A festa da imaginação
Acabei virando cientista porque queria ter uma vida em que a imaginação não é aprisionada pelo bom senso
O Fusca do meu pai subia com muito esforço. Mas pouco me importava, e torcia mesmo para que o carro avançasse bem devagar. Assim, tinha mais tempo de olhar pela janela, acompanhando a incrível transformação do cenário, do caos urbano de Copacabana às montanhas sublimes, recortadas por centenas de milhões de anos de erosão, revestidas aqui e ali pela inigualável mata atlântica.
Costumávamos parar na serra para comer e olhar as preguiças nas árvores vivendo em câmera lenta. Volta e meia, um bando de tucanos passava fazendo a maior algazarra.
Para meus olhos de criança, a transformação da cidade em montanhas, dos prédios no majestoso Dedo de Deus, dos vasos de planta na explosão de orquídeas e bromélias, era algo de mágico.
Talvez percebesse isso intuitivamente, mas sabia que para vivermos na cidade tínhamos de abrir mão da natureza; ou, o pouco que tínhamos dela era aprisionado: passarinhos na gaiola, árvores estranguladas pelo cimento das calçadas. Meu porteiro dizia que passarinho cego cantava melhor. Pode ser, mas é um canto sofrido, entoado pela melancolia.
O Carnaval era sempre lá, na casa das montanhas. Minha família escapava do calor e do buchicho, e íamos nos bailes da tarde, as matinês, vestidos de pirata e de cowboy, pulando e marchando aos som da banda ao vivo. Era uma grande festa da imaginação, cada um sendo o que queria ser mas não podia.
Crescer é perder a capacidade de imaginar que o imaginado é o real; é erguer cada vez mais a muralha entre a realidade e a imaginação, ficar sensato, esquecer de manter a mente aberta para contemplar o impossível.
Nessas horas de nostalgia entendo por que acabei virando cientista. Queria ter uma vida em que a imaginação não é aprisionada pelo bom senso. É bem verdade que nenhuma criança pede para se fantasiar de Einstein ou de Santos Dumont. (Se bem que já saí com a Unidos da Tijuca vestido como o dito cujo.) Mas poderiam. Pois se um reinventou o que é o espaço e o tempo, o outro inventou como podemos voar.
São exemplos de pessoas que cresceram se recusando a crescer, ao menos sem erguer uma muralha intransponível entre realidade e imaginação. Pelo contrário, mostraram que é possível transformar a realidade em algo aparentemente mágico usando justamente a imaginação.
É esse o aspecto mais cativante da ciência, recriar o mundo. Imagino a cara do meu avô se me visse falando num iPhone, ele no Rio e eu em Teresópolis; ou se usasse o seu GPS para evitar o trânsito na avenida Brasil; ou se olhasse para o céu noturno e vislumbrasse satélites cruzando a escuridão; ou se visse imagens de mundos distantes, trazidas por telescópios espaciais.
Que mundo mágico esse em que vivemos, hein, vô? E que pena que pouco ligamos para essa mágica toda ou paramos para refletir que ela vem justamente dessas pessoas que têm um compromisso aberto com a imaginação.
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