terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Suzana Herculano-Houzel

folha de são paulo

Gratidão

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De todos os feriados, o de Ação de Graças norte-americano é meu favorito: um fim de semana prolongado para reunir a família ao redor de um enorme jantar e lembrar de todas as pessoas, coisas e oportunidades pelas quais somos gratos. Ainda por cima, é um feriado não religioso e não comercial (ainda que dê início à temporada de compras natalinas).
Muito apropriadamente, o site TED.com publicou durante o feriado a palestra do monge Beneditino David Steindl-Rast, que vem há anos divulgando uma mensagem de gratidão. Em voz deliciosamente serena porém firme, e em pouco mais de 14 minutos sem qualquer apoio audiovisual, o monge nos lembra que todos nós, de qualquer cultura, etnia, credo ou profissão, temos algo profundo em comum: o desejo de ser feliz. E ousa dar uma receita: o caminho mais fácil e imediato para a felicidade é a gratidão.
É uma mensagem simples e poderosa --e a neurociência assina embaixo. David nos lembra do que é dar graças: é parar por um instante para olhar ao redor e reconhecer as oportunidades que temos, e lembrar que, mesmo se algo dá errado, a vida nos dá a seguir a oportunidade de tentar de novo. Na pior das hipóteses, podemos ser gratos só por essa oportunidade de seguir adiante.
Fui assuntar na literatura científica sobre o que é a gratidão para o cérebro, e me deparei com um belo estudo do americano Jordan Grafman com o brasileiro Jorge Moll sobre emoções morais.
Apoiados na filosofia de David Hume, eles supõem que essas emoções dependem da noção de agência, ou seja, de responsabilidade pessoal pelos acontecimentos. Quando algo de bom acontece como resultado das nossas ações, ficamos orgulhosos; mas quando algo de bom acontece por ação alheia, ficamos gratos. A equipe mostra que, nos dois casos, de fato há ativação do sistema de recompensa do cérebro, que nos deixa instantaneamente felizes e satisfeitos.
Parar para olhar ao redor e dar graças pelas coisas boas da vida é, portanto, dar ao cérebro uma oportunidade de lembrar de tudo o que tem dado certo e ficar genuinamente feliz com tudo isso que não depende de nós. Assim, a gratidão é, por definição, um sentimento de felicidade --mas um que podemos escolher ter a cada instante.
É só fazer uma pausa, dar graças (à vida, aos céus, a Deus, ao acaso, às pessoas boas que você conhece, não importa) --e instantaneamente seu cérebro encontrará um momento de felicidade.
suzana herculano-houzel
Suzana Herculano-Houzel, carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha, e professora da UFRJ. Escreve às terças, a cada 15 dias, na versão impressa de "Equilíbrio".

O colecionador de palavras - entrevista com Fred Navarro

  • Fonte: Revista CONTINENTE - LINGUAGEM REGIONALISMO 

  • Ordem e sentido para a babel da fala - 
  • TEXTO: Thiago Corrêa 
  •  Publicação de verbetes regionais em livros, como a nova edição do Dicionário do Nordeste, relançado pela Cepe Editora, responde ao interesse do brasileiro em conhecer sua variedade cultural, criatividade e identidade através da língua de encarar esses números. Se, antes, o discurso religioso da Bíblia apontava a pluralidade de línguas como um castigo para a evolução de um povo, hoje, ela é vista como sinal de riqueza cultural, criatividade e identidade. Num país com as dimensões do Brasil, onde o Ethnologue indica a existência de 215 línguas faladas, o discurso positivo da diversidade linguística também está vinculado às variantes do idioma predominante, diferenças de sotaque, expressões idiomáticas e peculiaridades do português falado em cada região. 
  • DICIONÁRIOS 
  • Até os homens se estabelecerem numa planície do Sinar, a Bíblia diz que o mundo inteiro falava a mesma língua. Aparentemente, essa vantagem fez com que eles decidissem cozer tijolos para substituir as pedras e usassem o piche no lugar da argamassa. Enquanto erguiam uma cidade onde poderiam se agrupar e uma torre tão alta, que chegaria ao céu, Deus lhes fez uma visita e percebeu que, para aquele povo de uma só língua, nenhum projeto seria irrealizável. Ele então condenou os homens à confusão, fazendo com que não mais entendessem a língua dos outros e a construção de Babel fosse interrompida. O mito da Torre de Babel, narrado do versículo 1 ao 9 do capítulo 11 do Gênesis, tem sido usado como lição para o atrevimento do homem, mas também ilustra o surgimento dos vários idiomas. Espalhados pelo mundo, os homens precisaram retomar a tarefa que Deus passou a Adão para dar nome às coisas. Séculos se passaram, as línguas se desenvolveram e foram registradas, frutificaram em arte literária, foram normatizadas, disseminadas pelos sistemas educacionais, transmitidas pelos meios de comunicação e ganharam a importância de um território identitário, visto como capaz de guardar valores, delimitar fronteiras e segredos de um povo. Um status que tem motivado discussões sobre a necessidade de preservação da língua culta e despertado receios aos estrangeirismos. No entanto, por maiores que sejam os esforços de preservação e estabelecimento de um padrão, os homens continuam condenados à confusão dos antepassados da planície do Sinar. Números do Ethnologue: languages of the world, que desde 1951 tem catalogado as línguas vivas do mundo, apontam para a existência de 7.105 línguas faladas hoje no mundo. O que mudou foi a maneira 
  • Uma mudança de postura pode ser observada na proliferação de expressões populares e de dicionários regionais nas livrarias. O mais recente exemplar da seção é o Dicionário do Nordeste, do jornalista pernambucano Fred Navarro, em sua 3ª edição, lançada no dia 13 deste mês, no Cais do Sertão Luiz Gonzaga (Bairro do Recife), pela Cepe Editora. Fruto de um trabalho de 21 anos, que envolve a coleta de novos termos em obras literárias, folhetos de cordel, músicas e na fala do povo, o volume atualmente reúne mais de 10 mil verbetes em suas 711 páginas. São expressões populares, neologismos e termos típicos dos nove estados do Nordeste que remetem à fauna, flora, culinária, às manifestações culturais e gírias cheias de duplo sentido. Tudo devidamente checado, com classificação gramatical, localização geográfica e citações de referência para contextualizar o uso dos termos. Com uma dimensão regional e um cuidado maior na descrição dos verbetes, a reedição do trabalho de Navarro vem confirmar o interesse do público pelo vocabulário local, a exemplo do Dicionário do Ceará, de Tarcísio García, e do Minidicionário de pernambuquês, de Bertrando Bernardino. Engenheiro mecânico de profissão, Bernardino explica que começou a colecionar palavras ao se deparar com o Outro e perceber que o seu português falado era diferente. “Eu trabalhava numa empresa cuja matriz era em Blumenau, e, noutra, com matriz em São Paulo. Então, quando chegava nesses cantos, o pessoal sentia certa dificuldade em entender o que eu estava dizendo. Aí, resolvi fazer um guia para os sulistas, fiz um guia com
  • 3. 1 umas 300 palavras e divulguei com o pessoal”, recorda Bernardino. Como o guia fez sucesso entre os colegas de trabalho, o autor ficou estimulado e publicou a 1ª edição do Minidicionário de pernambuquês, pela Bagaço, em 1994. Com o tempo, a fome de Bernardino por novas palavras o levou a se aprofundar mais na pesquisa, através de leituras, viagens e conversas com o povo. “Esse livro não foi feito atrás de uma mesa. Se você somar a quantidade de pinga e de cerveja que foi utilizada pra fazer esse livro... Quando você vai conversar com um vaqueiro, não tem como fazê-lo conversar e se soltar sem um gole. Você tem que se meter numa vaquejada, tem que conversar com as pessoas mais simples, pra ver exatamente como é aquele linguajar”, explica Bernardino. Hoje, o livro está na 4ª edição, reúne quase 2 mil vocábulos e suas quatro edições já somam cerca de 20 mil cópias vendidas. “O livro é um xodó de jornalista. O aeroporto também é um lugar onde vende muito. Uma coisa importante é o tamanho do livro, porque cabe no bolso”, observa o autor. Nesse sentido, o caso que melhor revela o filão lucrativo que se tornou o registro de termos típicos de uma região é o Dicionário de baianês, desenvolvido pelo engenheiro Nivaldo Lariú, publicado pela primeira vez em 1991. De lá para cá, o livro de Lariú já vendeu 200 mil exemplares (segundo a pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, realizada pela Fipe em 2011, a média entre exemplares produzidos e títulos publicados fica em 8.589 exemplares). Número que faz o autor alcançar o patamar de tiragens de livros best-sellers como O silêncio das montanhas, de Khaled Hosseini, 1889, de Laurentino Gomes, e Diário de um banana 7, de Jeff Kinney. O fenômeno do surgimento de dicionários regionais, contudo, não deve CONTINENTE DEZEMBRO 2013 | 38 ser visto apenas como uma simples oportunidade de mercado. No início do século passado, pesquisadores como Câmara Cascudo, no Rio Grande do Norte, Horácio de Almeida, na Paraíba, e Pereira da Costa, com o seu Vocabulário pernambucano (1936), já demonstravam a preocupação com o registro das peculiaridades da região. Esse esforço ganhou amplitude nacional em 1952, com a publicação de decreto para a elaboração de um atlas linguístico do Brasil. Assim, devido às dimensões do país, ficou definido que os primeiros passos nesse sentido deveriam ser os registros regionais, o que gerou os atlas com as variantes da Bahia, Minas Gerais, Sergipe, Paraíba e Paraná. A ideia foi retomada em 1996 e deu início ao Projeto Atlas Linguístico do Brasil, rendendo novos atlas, dessa vez do Pará, da região Sul, Mato Grosso do Sul e Ceará, além de um segundo volume de Sergipe.
  • 4. TORRE DE BABEL T Mito exemplifica a confusão gerada pela pluralidade das idiomas 2 BERNARDINO Ele lançou em 1994 o bem-sucedido Minidicionário de pernambuquês 3 NIVALDO LARIÚ O seu Dicionário de baianês, de 1991, vendeu 200 mil exemplares 2 DEMARCAÇÃO Entre os seis objetivos do Projeto Atlas está a identificação dos dialetos do Brasil, para tornar “evidentes as diferenças regionais através de resultados cartografados em mapas linguísticos” e, assim, renovar o mapa proposto por Antenor Nascentes em 1922, que dividiu o país em sete áreas dialetais – amazônica, nordestina, baiana, mineira, fluminense, sulista e um território incaracterístico. Enquanto isso não acontece, o critério da divisão territorial oficial tem servido para delimitar a abrangência dos dicionários regionais. “O Minidicionário de pernambuquês é muito genuíno, muitas palavras que estavam na primeira edição eu descobri que não eram exclusivas de Pernambuco, então, na segunda edição, elas já saíram”, defende Bernardino, que usa dicionários tradicionais como o Houaiss e o Aurélio no processo de checagem da origem dos termos e sua ortografia. Na prática, ao mesmo tempo em que partem de divisões estáticas e já estabelecidas, como as geográficas, os dicionários instituem fronteiras de ordem cultural, na tentativa de revelar as diferenças do país através das palavras. Segundo a professora de Linguística da UFPE, Nelly Carvalho, que também integra o conselho editorial da Cepe, essa associação é possível porque Os dicionários estabelecem fronteiras de ordem cultural, na tentativa de revelar as diferenças do país através das palavras grande parte do vocabulário é de origem cultural. “A língua ajuda a decifrar uma cultura. O que é que faz parte da cultura? Cultura é religião, culinária, arte, literatura e tudo isso a gente diz com a língua. Então, no fundo, língua e cultura são uma coisa única. Quando muda a cultura, a gente muda a língua. A tese de Sapir-Whorf diz que a língua e a cultura são indissociáveis”, explica a professora. A exceção à mutabilidade é o vocabulário instrumental e o vocabulário básico (do qual fazem parte as áreas do corpo, a divisão do tempo, condições temporais, acidentes geográficos, graus de parentesco, elementos da natureza). Dessa maneira, tomando o Dicionário do Nordeste como exemplo, encontramos marcas deixadas na língua por eventos históricos, como é o caso do verbete “cabelo a pirulito”, que remete à presença de soldados americanos das bases navais instaladas  na região na década de 1950. Pelas palavras, também é possível observar os principais interesses de uma região através da incidência de termos sobre o mesmo tema. “O regionalismo faz alguns divisores de água. Gírias, à farta, sobretudo no Sudeste, são fomentadas pelas gangues, sejam de marginais das cadeias ou de grupos urbanos, punks, hippies e os linguajares com cheiro de telurismo, no Nordeste. Aqui, o meio ambiente grita alto, e os bichos tomam pé e o meio rural prevalece. No Norte, a influência mesológica, a ecologia e a grande selva amazônica, com seus mistérios, são os fatores que se sobressaem”, aponta o professor cearense João Gomes da Silveira, responsável pelo Dicionário de expressões populares da língua portuguesa, cujas páginas registram cerca de 22.500 expressões idiomáticas. SEXO E CACHAÇA Nesse sentido, a existência do Dicionário do frevo (organizado por Nelly Carvalho, Sophia Karlla Mota e José Ricardo Paes Barreto) e do Dicionário da aguardente, por exemplo, já expõe a importância desses elementos para a sociedade em questão. Publicado em 1974, pelo cronista pernambucano Nelson Barbalho, o Dicionário da aguardente reúne verbetes em torno da cachaça – seja referente
  •  a seus tipos, apelidos, tira-gostos e ao estado de embriaguez – ao longo de 150 páginas. “Sexo e cachaça são abundantemente explorados na fraseologia de caráter popular. A cachaça, por exemplo, traz inumeráveis registros. Vai de branquinha à abrideira. Por via de consequência, bêbado é outro bicho estigmatizado; puta, nem se fala. Há uma gama de designações para esses aí”, reconhece Silveira. Por outro lado, embora esses dicionários contribuam para a reafirmação de uma identidade nordestina, a diversidade deles no mercado já põe em dúvida a tentativa de colocar nove estados e populações de realidades tão diferentes sob o mesmo guarda-chuva. Verbetes como “costurar pra fora”, registrado no Dicionário do Nordeste, são um indício disso. Se seu sentido geral no Nordeste é o de traição, no Piauí, ela pode ser aplicada a homens afeminados, enquanto na Paraíba ela se refere ao ato de praticar caridade. Mais do que revelar diferenças em amplitudes cada vez mais locais, o viés de estranhamento causado por expressões regionais já é um indicativo das relações históricas de poder. “O Centro-Sul ficou como modelo de língua, porque toda a corte foi para lá. Depois, houve um congresso em 1954, do qual participaram Antonio Houaiss e Celso Cunha, e os gramáticos resolveram que o modelo de língua tinha que ser o do Rio de Janeiro”, pontua Nelly Carvalho. A professora explica, ainda, que as mudanças numa língua acontecem por variações diatópicas (lugar), diacrônicas (tempo) e diastráticas (classe social). JANIO SANTOS “Paul Teyssier, francês que veio pesquisar o Brasil, diz que notou mais semelhança no falar do Recife com o de Porto Alegre do que o falar de uma pessoa rica do Recife com o do seu vizinho pobre. O que muda muito a língua portuguesa é a diferença de classe. E isso a gente vai ver nos dicionários locais, porque não são palavras cultas que aparecem, são palavras usadas pela língua do povo. Os dicionários locais são muito diacrônicos e diastráticos”, explica a professora. Uma reflexão que também se estende à própria concepção de Nordeste. De acordo com o historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., até 1910, não havia a noção de Nordeste. No livro A invenção do Nordeste e outras artes, ele explica que essa ideia foi forjada no meio simbólico e reflete mudanças ocorridas nas relações econômicas e de poder no Brasil, com o fim da escravidão, o poderio econômico de São Paulo, a decadência do ciclo da cana-de-açúcar e o êxodo de trabalhadores para o ciclo da borracha no Norte. “Uma nova consciência do espaço surge, principalmente, entre intelectuais que se sentem cada vez mais distantes do centro de decisão, do poder, seja no campo político, seja no da cultura e da economia. Uma distância tanto geográfica quanto em termos de capacidade de intervenção. Um intelectual regionalista quase sempre é aquele que se sente longe do centro irradiador de poder e de cultura. Ele faz da denúncia dessa distância, dessa carência de poder, dessa vitimização, o motivo do seu discurso”, escreve Albuquerque Jr. VERBETES Uma seleção de fazer rir As poucas palavras ou frases reproduzidas abaixo não dão a mínima conta das 10 mil que integram o Dicionário do Nordeste, de Fred Navarro. Aqui, buscamos apenas rir um pouco do que falamos e usamos o critério daquilo que o autor denominou como “termos fortes, rústicos, grosseiros, mas também dotados de lirismo, sensibilidade poética, bom humor e picardia”. Também suprimimos várias das informações contidas no volume, deixando apenas o significado e o seu lugar de origem. 
  • A ABIGOBAL • Abistuntado. AL. Abobalhado, tonto, besta como aruá, lelé da cuca. ALMA SEBOSA • 1. AL/PB/PE. Bandido, malandro, assaltante, trombadinha. 2. CE/PB. Poeta de segunda categoria, que faz versos ruins. 3. PE. Pessoa cruel, “sem coração”, bandido sem compaixão, que deve ser executado por justiceiros, a mando e “em nome” da comunidade, por causa de supostos crimes. AMIZADE DE CAGAR JUNTO • Amizade de cu. PI. Grande amizade, amizade do outro mundo, ou melhor, “amizade que só o cu pode explicar”. B BARONESA • 1. AL. Prostituta já velha, sem mais nenhuma atração física. 2. NE. Planta aquática (Eichhornia crassipes), conhecida também como dama-do-lago e aguapé, da família das ninfeáceas, típica de lagoas e rios, e que acompanha estes nas cheias do período chuvoso. BEBER SORO AZEDO E ARROTAR COALHADA • CE. Aparentar ser mais do que se é, se amostrar, exibir-se socialmente. C CABELO A PIRULITO • NE. Tem origem nos anos 1950, época em que os soldados americanos das bases navais instaladas na região usavam cortes de cabelo em que a nuca era raspada e a cabeça ficava com uma espécie de topete, semelhante a um pirulito. CONVERSA DE USINEIRO • PB. Falta de sinceridade, hipocrisia, cavilação, desfaçatez. COSTURAR PRA FORA • 1. PI. Expressão aplicada aos homens efeminados, bandeirosos. 2. PB. Praticar caridade, fazer beneficência. 3. NE. Ocorre quando a mulher pratica o adultério e “trai” o parceiro. 
  • P E PITÓ • 1. PB. Apanhado de cabelo enrolado em espiral ou ELE E ELA • PE. Dupla composta por caldinho em forma de concha, e fixado na cabeça por meio de grampos, varetas, fios elásticos. 2. PB. Cigarro grosseiro de fumo picado, arromba-peito. 3. PE. Cabelos puxados para os lados e presos com marias-chiquinhas, num arranjo também chamado de totó. (de peixe, fava, sururu, chambaril ou camarão) e uma dose de cachaça de cana pura. G GALA-RALA • NE. 1. Diz-se do homem que não esporra (ejacula) com intensidade. 2. Diz-se do homem que não tem filhos logo após o casamento: dois anos de casado e sem filhos, logo vão chamar você de gala-rala por aí. GUENZO • NE. Que não tem firmeza, com as pernas bambas, bamboleante. “Palanquim:/ Para que negar? Suporto/ o duro de certas bundas:/ padrecos brancos, croinhas,/ beatas e velhos guenzos;/ mas também gozar eu posso/ a maciez tão redonda de iaiás e sinhazinhas,/ de calor tão excitante/ que minha madeira fica/ mais rija do que o ferro.” Sobrados e mocambos, Hermilo Borba Filho. “E, no turbilhão do tempo, o palácio onde dormiu o casal imperial foi perdendo a sua esplendidez e (...) acabou reduzido a uma enorme ruína, com os cômodos cheios de goteiras (...), as portas guenzas, as escadas rangentes (...).” Ninho de cobras, Ledo Ivo. L LOIRA DE FARMÁCIA • Loura a pulso. NE • Falsa loura, loura oxigenada. “Esta mulher de Jaílson é uma puta. Nem conheço ela, mas está escrito na testa. O cabelo é oxigenado, loira de farmácia. Jaílson bate um bolão, mas em termos de mulher, está lascado.” O negro e o branco, Cicero Belmar. V. Loura, linda e japonesa. LOMBRA • Lombrinha. NE. Leseira física e mental que ocorre depois de beber cachaça ou fumar maconha. Xangai menciona: “Eu já bebi toda a minha solidão/ fiquei de lombra na ladeira do luar/ e na lembrança teu carinho me invade/ e a saudade fez intriga com a razão,/ fiquei biruta, enlouqueci, perdi o tino/ feito um menino numa farra de bombom,/ naquela tarde me senti um pescador,/ vi teu sorriso, se espalhava no batom.” Não é brincadeira, Maciel Melo. M Q QUEBRA-QUEIXO • 1. NE. Puxa-puxa, doce japonês, puxa- de-coco, feito a base de doce de goiaba e coco ralado. V. espichacouro/ sambongo. 2. NE. Todo tipo de doce que fica ‘ligado’ demais. Comes e bebes do Nordeste, Mario Souto Maior. V. citação em pirulito coxão de moça. 3. CE. Qualquer bebida gelada em excesso. 4. CE/PB. Um tipo de charuto (cigarro de folhas secas de palha). R RUA DA PALMA Nº 5 • NE. Punheta, gloriosa, masturbação. V. pecar na rua da palma nº 5. S SEBITE BALEADO • Sebito baleado. AL. 1. Pessoa sebite demais, turbinada, aloprada. 2. PB/ PE. Pessoa magra demais, quase anoréxica. V. ser magro como um sebite baleado/ vara de bater. SÓ QUER SER AS PREGAS DA ODETE • NE. Diz-se de quem quer ser mais do que pode, de quem vive alardeando as próprias qualidades. “Pra começo de conversa, eu era puto com os alemães, que só queriam ser as pregas da Odete. Os felas das putas dos galegos, só porque tinham armas modernas e dinheiro dando no meio da canela, queriam abarcar o mundo com as pernas.” Roliúde, Homero Fonseca. V. quem gaba o sapo é a jia/ vai ser bom assim lá na casa do carái!. T TUIUTU • NE. Equivale ao site de vídeos Youtube: “Eu MALOCA • 1. NE. Nas vaquejadas, o gado juntado pelos vaqueiros não assisti no dia, mas minha neta me mostrou no tuiutu da internet e você foi tampa!!!”. Berro novo, Jessier Quirino. e conduzido ao curral. 2. NE. Gado, chamado também de ‘moloca’, que costuma pastar em determinados locais, nas fazendas de criação. 3. AL/PE. Esconderijo próprio dos caranguejos na areia da praia. 4. Para os adeptos do manguebeat recifense, equivale a moradia, lugar onde as pessoas ‘se escondem’. 5. NE. Membro de grupo suspeito, maloqueiro, pessoa que não inspira confiança: não se meta com aqueles malocas. U O V o tempo, checar se vai chover ou não. 2. PB/PE. Perder-se em reflexões, matutar, olhar para o infinito. “E pede pra Rique dar os papéis pra ela, pra que ela se salve dos alemães. Rique fica assim, olhando a maçaranduba do tempo, numa sinuca desgraçada.” Roliúde, Homero Fonseca. bagunça. 2. Lugar apertado, rua estreita ou loja cheia de gente: não vou hoje naquele vuco-vuco de jeito nenhum. V. Bater chifre. 3. Relação sexual, cachimbada, trepada. “Mulher é um bicho muito complicado, não é como vocês, homens, costumam pensar. Vocês pensam que só basta enfiar, fazer vuco-vuco, e pronto. Não e assim não, meu filho. Tem que haver poesia, como diz uma amiga minha de Petrópolis. Tem que haver muita poesia.” As alianças, Ledo Ivo. OLHAR A MAÇARANDUBA DO TEMPO • Tomar a maçaranduba do tempo. 1. PB. Consultar URNA EMPRENHADA • Urna prenha. Urna prenhe. NE. Urna eleitoral violada, “prenhe” (cheia) de votos falsos. V. emprenhar urna. VUCO-TE-VUCO • PB. Vuco-vuco. NE. 1. Confusão, fuá, 
  •   Entrevista FRED NAVARRO 
  • “O GRANDE TRABALHO FOI SEPARAR O JOIO DO TRIGO” 
  • Fred Navarro cresceu numa casa no Bairro de Campo Grande, no Recife. Já formado em Jornalismo, arrumou as malas e migrou para São Paulo. No convívio com os colegas de redação, ele descobriu diferenças. As palavras que ouviu da sua babá, e aprendeu a usar para se comunicar nas suas brincadeiras de menino, passaram a ser motivo de risadas no trabalho. A partir de então, ele adquiriu um novo hábito, passou a colecionar palavras que remetiam à sua região. Quando está curtindo uma praia, conversando, lendo ou ouvindo música, ele está, na verdade, caçando palavras. Prática que se tornou trabalho, já dura 21 anos e frutifica com a terceira edição do Dicionário do Nordeste, com mais de 10 mil verbetes. 
  • CONTINENTE Colecionar palavras tem a ver com sua mudança para SP? 
  • FRED NAVARRO É uma prática de exílio. Tive que sair do Recife para que essas palavras ganhassem importância na minha vida. Antes, eu as usava normalmente, mas, quando vim para cá, isso virou um objeto de estudo. Mudei para São Paulo em 1983, vim trabalhar na Folha de S.Paulo e, no meio do caminho, fui parar na revista IstoÉ. E lá, sempre que eu usava expressões típicas do Nordeste, como a “coluna tá troncha” e “ora, pinoia”, era aquela gargalhada na redação. Então, percebi que havia alguma coisa a ser explorada. O riso não era de sarcasmo, de crítica, mas de desconhecimento, surpresa. Havia ali um desconhecimento muito grande e comecei a colecionar essas palavras, cada vez que acontecia, ia anotando, rabiscava num pedaço de papel e guardava. 
  • CONTINENTE Como se deu essa busca por palavras? 
  • FRED NAVARRO Quando saiu a primeira edição do dicionário, eu já estava escrevendo a segunda há muito tempo. A primeira edição, com 2.500 palavras, é de 1998, a segunda, com 5 mil, é de 2004. Veja que se passaram quase 10 anos para a terceira edição, que tem 10 mil verbetes. Ele foi crescendo, à medida que foi sendo escrito; 20% a 30% das palavras da nova edição fui conhecer quando escrevia o livro – ia procurar uma coisa e achava outra. Procurava uma citação para ancorar um verbete e achava outras duas palavras que não conhecia, então ia atrás e confirmava a origem nordestina delas. Foi um trabalho em construção. Parti da minha biblioteca, da minha discografia pessoal. Também viajei muito pelo Nordeste, tenho parentes na Bahia, no Ceará, Paraíba e sou um rato de praia. Então, cada vez que ia, voltava com centenas de palavras novas para checar, pesquisar. O grande trabalho, ao final, foi separar o joio do trigo, muita coisa que parece ser do Nordeste, mas não é. É do Amazonas, de Minas, de Goiás. As fontes foram se multiplicando e o que deu mais trabalho foi confirmar o que não podia entrar. 
  • CONTINENTE Por mais que você se dedique, novos termos surgem e é impossível atingir a totalidade. Isso dá alguma frustração? 
  • FRED NAVARRO Quando vou ao Recife, no avião, já vou colecionando expressões novas, já vou com a caderneta no bolso, porque sei que vão surgir palavras novas. Como Manuel Bandeira falava, o povo é o inventa-línguas. Hoje à noite, em algum barzinho do Pina, alguém está inventando palavra nova. A riqueza vocabular da nossa linguagem é uma no Litoral, outra na Zona da Mata, no Agreste e no Sertão. E, às vezes, elas não se confundem. A classe média de Fortaleza não fala igual à classe média de Juazeiro do Norte. O sotaque, as expressões, os termos são muito diferentes. Assim como a do Recife é diferente da de Petrolina, o sertanejo não fala igual ao pescador. São características próprias de microrregiões. Claro, elas interagem, fazem um conjunto, mas a riqueza vocabular é tremenda. 
  • CONTINENTE Como foi o processo de checagem para saber se o termo é do Nordeste? 
  • FRED NAVARRO É um trabalho duro de jornalismo investigativo, que é checar as fontes, ir aos dicionários tradicionais e clássicos para pesquisar a origem dessas palavras, encontrar referências na nossa cultura popular. Consultei os três dicionários tradicionais, o Aurélio, o Houaiss e o dicionário da Academia Brasileira de Letras. Quando eles identificam, a sigla do estado está registrada lá. Quando não conseguem identificar o estado, eles colocam a região. E, quando não conseguem identificar a região, colocam como brasileirismo. Muitas dessas palavras eu chegava achando que eram do Nordeste e a fonte era Goiás. Além disso, nossa cultura popular registra essas palavras com abundância; você pega 10 cordéis de Caruaru, Campina Grande ou do Crato e vai encontrar dezenas de termos em comum, e outros não, são específicos do Ceará, específicos da Paraíba. E eu ia fazendo a triagem. Meu trabalho foi tentar ver o que era realmente de onde. Isso deu trabalho. Meus critérios foram jornalísticos, de checar a veracidade da informação, de procurar uma citação digna de confiança. 
  • CONTINENTE É normal que novos termos sejam criados e muitos acabem se perdendo. Qual o critério para que ele se torne um verbete? 
  • FRED NAVARRO Useis dois critérios. Primeiro, o registro em alguma forma de manifestação cultural, pode ser Lia de Itamaracá, pode ser Xico Sá ou Chico Science. Ser registrado por alguém é uma evidência de que esse termo continua vivo, não caiu em desuso, não é um ósculo da vida. O critério para mim é aquilo que está vivo. O que é representativo para a comunicação, o povo adota, assume como seu. Inclusive, nós temos centenas de palavras de origem estrangeira, na língua portuguesa. Se essas palavras foram incorporadas, é porque elas tiveram uma utilidade, uma função na comunicação das pessoas. O critério é a utilidade, às vezes, entra a beleza, a singularidade, o humor, mas tem que ser útil, funcional. 
  • CONTINENTE O Dicionário do Nordeste é resultado de um trabalho anterior, que tinha como título Assim falava Lampião. Essa primeira versão não foi bem-recebida no Rio Grande do Sul por conta da antipatia dos gaúchos com Lampião. Como foi essa história? 
  • FRED NAVARRO É aquela velha história do desconhecimento. Para eles, a imagem de Lampião é lugar comum, clichê, bandido, bandoleiro, matar criança. Nunca leram Frederico Pernambucano de Melo, nunca leram a grande e boa literatura sobre Lampião já feita no Nordeste, nunca viram Baile perfumado. A região Sul e o Nordeste são as duas regiões mais nacionalistas. O Rio Grande do Sul já tentou se separar do Brasil, assim como nós. Lampião era músico, inventou um ritmo musical, inventou o xaxado com as marcações dos fuzis e alpercatas, para comemorar as vitórias sobre os policiais, compôs mais de 18 músicas, inclusive Mulher rendeira. Lampião tinha todo um lado “Só o Nordeste e o Rio têm essa expressão tão rica, com o tom da brincadeira, da sacanagem, da provocação” fascinante junto ao bandido vingador, que merece atenção. Esse fato reflete um pouco nosso distanciamento cultural, eles não se interessam pelos livros de Jorge Amado, as músicas de Fagner. Para eles, tudo isso é o lado pobre, o lado sem educação, sem instrução e estrutura do brasileiro. É preconceito, é falta de informação e ignorância deles. Mas, quando tiram férias e conhecem o Nordeste, eles voltam todo ano. 
  • CONTINENTE Um exemplo que sempre é citado no campo da linguística é o dos esquimós, que possuem mais 100 termos para designar o branco. Esse exemplo nos dá uma ideia de que a língua se desenvolve de acordo com as necessidades e características de cada sociedade. A partir do seu trabalho, é possível entender o Nordeste? 
  • FRED NAVARRO É possível conhecer o Nordeste através dele. Vejo o dicionário como um manual de tradução do  Nordeste para outras regiões do Brasil e outros países. Porque a força da cultura popular nordestina está na diversidade, na capacidade que tem de expressar a voz do homem da rua e do rico de Boa Viagem ao mesmo tempo. No cordel, na linguagem sofisticada de Elomar, na invenção de um Tom Zé, Francisco Dantas. Essa diversidade cria uma riqueza vocabular que expressa o meio ambiente em que vive o homem nordestino. A chave para entender o dicionário é a relação do homem com a natureza, é da sua relação com a natureza que o vaqueiro, o pescador e o canavieiro tiram a maior parte dessas expressões. Muitas delas foram herdadas de Portugal e adaptadas ao meio nordestino. Isso aconteceu em todas as regiões do Brasil, não só no Nordeste. O número de palavras que o vaqueiro tem para designar o boi e que o pescador tem para falar do barco são equivalentes às do esquimó com a neve. O mesmo peixe, no Brasil, tem 18 nomes diferentes. Essa riqueza remete à questão da globalização. A globalização passa réguas nas culturas, mas ela localiza e destaca as culturas com base nessa força popular. Não são culturas que inventaram as coisas artificialmente, são culturas enraizadas, com história, as histórias da nossa linguagem remetem ao tempo medieval português, aos romanos, à própria origem do latim. É uma língua que soube acoplar essa história ao meio ambiente e ao povo. 
  • CONTINENTE No dicionário, há muitos páginas com verbetes relacionados a sexo. Isso é um reflexo da importância que o tema tem no Nordeste? 
  • FRED NAVARRO Ele não entra como item especial, tem tantos termos quanto comidas e árvores. Mas a importância dos termos chulos, com a picardia e a sacanagem, tem a ver com o bom humor do nosso povo. Você só encontra isso, no Brasil, na gíria carioca. A linguagem falada no Amazonas, no Pantanal, no Sudeste e no Sul é muito careta, muito conservadora, sob esse ponto de vista. Só o Nordeste e o Rio de Janeiro têm essa expressão tão rica, com o tom da brincadeira, da sacanagem, da provocação. Mário Souto Maior já publicou o Dicionário do Palavrão com 500 e tantos verbetes. THIAGO CORRÊA.

Rosely Sayão

folha de são paulo
A autonomia das crianças
Quando ouço dizer que as crianças não têm limites, penso imediatamente que elas têm limites em demasia
Tenho visto muitas mães trocando ideias a respeito de alguns programas que podem ser interessantes para os filhos nas férias. O que me chamou a atenção nessas conversas foi o fato de que a maioria delas não buscava alternativa para deixar o filho por impedimento de estar com ele. Não: o que essas mães têm procurado são atividades para as crianças.
Dá para entender a preocupação dessas mães se pensarmos no estilo de vida que a maioria de nossas crianças experimenta. Veja só, caro leitor: nunca antes falamos tanto de autonomia da criança. Na escola, em casa, nos cursos extracurriculares, todos falam que a criança precisa ganhar autonomia e dizem privilegiar essa questão. Entretanto, as crianças nunca foram tão controladas e conduzidas, mesmo em questões que poderiam ser mais livres para elas.
Na escola, por exemplo, o tempo todo elas são comandadas sobre o que fazer, quando fazer, como fazer, o quanto fazer, como se comportar etc. Não resta nada às crianças senão obedecer ou desobedecer; aliás, a segunda alternativa parece muito mais criativa e atraente, não é?
Como a criança pode dar os primeiros passos em direção à autonomia se não lhe sobra tempo e espaço para tanto? Da hora em que entra na escola à hora da saída, tudo está previamente determinado. E, em geral, sem considerar a criança real que será submetida a esse esquema. Para a escola, vale o aluno teórico, ou seja, aquele que é pensado para que o planejamento seja feito, e não o aluno que, de fato, assiste às aulas.
Em casa é igual: como os pais foram convencidos de que podem determinar o futuro dos filhos modificando o presente, enchem os filhos de atividades. Língua estrangeira, escola de esporte, aula de informática etc. De novo, da hora que acorda à hora de se recolher, à criança não sobra um único intervalo para que possa se conhecer, saber do que gosta, inventar, criar. A vida delas tornou-se 100% controlada.
O pior é que muitos pais creem que podem mudar esse panorama árido da vida dos filhos permitindo que escolham coisas que, em geral, eles nem têm condições de escolher.
Dessa maneira, não é de se estranhar que, durante as férias, elas fiquem sem saber o que fazer. Por isso elas ficam atrás dos pais --em geral da mãe-- em busca do que fazer e também é por isso as mães ficam atrás de atividades para elas. Mas essas atividades serão, de novo, determinadas, e pouco restará a não ser aderir ou transgredir.
Seria muito bom se a criança pudesse, desde cedo, aprender a saber quem ela é, de quais coisas que ela conhece e gosta, quais lhe são indiferentes e de quais ela não gosta, pelo menos por enquanto. Seria bom ela escolher o que fazer, inclusive para perceber, após a experiência, que não gostou de dedicar seu tempo àquilo. É assim que se aprende a fazer melhores escolhas.
Seria bom também se elas não fossem tão controladas: que pudessem brincar do seu jeito ou que pudessem aprender a brincar; que pudessem escolher o que fazer, mesmo que isso exigisse delas muito esforço. Elas teriam muito prazer com a chegada das férias dessa maneira. Hoje, elas têm prazer porque não precisam ir à escola nesse período, o que é bem diferente.
Sempre que ouço alguém dizer que as crianças de hoje não têm limites --ainda há quem diga isso-- penso imediatamente que elas têm limites em demasia. Por isso, muitos se comportam de maneira descuidada, ruidosa e destrambelhada: parece que esse é o único espaço que lhes restou sem que o adulto consiga controlar.

Janio de Freitas

folha de são paulo
Em volta das arquibancadas
É possível processar a quase totalidade dos criminosos, e não só dois ou três como é feito, quando é feito
A grita em tantas direções não evita que seja difícil, senão impossível, encontrar entre os gritadores um que não seja corresponsável, em alguma medida, pelo espetáculo das bestas humanas nas arquibancadas de Joinville, e em todas as outras.
Já que estamos por aqui, podemos começar pelos meios de comunicação. Nenhum jornal, TV, revista ou rádio se interessou, jamais, por encarar para valer a violência que invadiu os estádios, no Brasil todo, há muito tempo. Assim como os bestalhões cometem periodicamente os seus acessos de brutalidade aproveitando o futebol, a imprensa (vá lá, engloba tudo) faz o seu surto de críticas como subsidiário do espetáculo boçal. E logo se segue a pausa, a imprensa à espera da clarinada dos boçais.
Na imprensa, poucos não sabem que muitos dos bandos são patrocinados com doações dos respectivos clubes, a pretexto de torcida para incentivo ao time. E que o patrocínio tem duplo interesse eleitoreiro, nas disputas pelo poder no clube e nas eleições político-partidárias: há muitos cabos eleitorais nas torcidas organizadas. É uma engrenagem bastante conhecida.
Se a engrenagem cria um enguiço maior, nem por isso a gritaria subsidiária avançará necessariamente mais. O episódio da Bolívia é exemplar. De repente foi "descoberto" lá no litoral paulista um "dimenor" apresentado como disparador do rojão sobre torcedores bolivianos, com a consequência de matar um menino de 14 anos. À família da vítima foi dado, não uma indenização, mas um cala a boca monetário, como complemento da "solução" incumbida a uma charmosa advogada e comentarista de jornal da TV Cultura. Ali o bando de boçais pouco se distinguiu de um grupo de querubins.
Se antes o assunto estava em estado mortiço, a "solução" cobriu-o de silêncio. Nem com tantos jornais, TVs, revistas e rádios, houve uma iniciativa de verificar se o "dimenor" ao menos viajou mesmo para a Bolívia, que algum rastro ficaria. Por falar nele, em que condições vivem, hoje, o próprio e sua família?
A legislação para o problema é uma grande farsa. Foi elaborada mais com interesses políticos do que para regramento efetivo. A chamada Justiça Esportiva não tem como coibir a ferocidade nas arquibancadas, mas finge ter, com medidas idiotas como "o jogo com fechamento dos portões" e a perda de mando de campo, que punem os futuros times adversários do time "punido". Mas assim se cumpre o objetivo dos mandatários do futebol, de não criarem problemas políticos e eleitorais para si e para seus correligionários.
E as autoridades da ordem? A Polícia Civil de São Paulo mostrou ontem o que é um verdadeiro trabalho policial. Prendeu duas dezenas de desordeiros e ladrões que investigou desde outubro, quando a morte de um menino por tiro policial serviu de pretexto para a interrupção da rodovia Fernão Dias, roubo de cargas e de caminhões, saques a lojas e incêndios de ônibus. Foi investigação, foi infiltração, foram interrogatórios, com um resultado que, por certo, irá além desse episódio: vai atemorizar muitos dos que têm feito tais ações sem dificuldade no ato e no pós-ato.
O trabalho excelente nesse caso demonstra que é possível identificar, prender e processar a quase totalidade dos criminosos das arquibancadas, e não só dois ou três como é feito, quando é feito. O que demonstra, também, que se não é feito é porque os governantes estaduais não querem e os setores que lhes podem cobrar não os cobram de verdade, não os põem xeque.
A gritaria tem razão de ser. Mas é também contra si mesma.

Vladimir Safatle

folha de são paulo
Pensamento brasileiro
No último domingo, o Instituto Datafolha publicou uma pesquisa a respeito do posicionamento ideológico dos brasileiros. Essa não foi a primeira vez que pesquisas dessa natureza foram feitas pelo instituto, mas foi a primeira vez que questões econômicas ligadas à função do Estado, às leis trabalhistas e à importância de financiar serviços públicos apareceram. O resultado foi simplesmente surpreendente.
Se você ler os cadernos de economia dos jornais e ouvir comentaristas econômicos na televisão e no rádio, encontrará necessariamente o mesmo mantra: os impostos brasileiros são insuportavelmente altos, as leis trabalhistas apenas encarecem os custos e, quanto mais o Estado se afastar da regulação da economia, melhor. Durante décadas foi praticamente só isso o que ouvimos dos ditos "analistas" econômicos deste país.
No entanto décadas de discurso único no campo econômico foram incapazes de fazer 47% dos brasileiros deixarem de acreditar que uma boa sociedade é aquela na qual o Estado tem condição de oferecer o máximo de serviços e benefícios públicos.
Da mesma forma, 54% associam leis trabalhistas mais à defesa dos trabalhadores do que aos empecilhos para as empresas crescerem, e 70% acham que o Estado deveria ser o principal responsável pelo crescimento do Brasil.
Agora, a pergunta que não quer calar é a seguinte: por que tais pessoas praticamente não têm voz na imprensa econômica deste país? Por que elas são tão sub-representadas na dita esfera pública?
A pesquisa ainda demonstra que, do ponto de vista dos costumes, os eleitores brasileiros não se diferenciam muito de um perfil conservador. O que deixa claro como suas escolhas eleitorais são eminentemente marcadas por posições ideológicas no campo econômico. Uma razão a mais para que tais posições possam ter maior visibilidade e estar em pé de igualdade com as posições econômicas liberais hegemônicas na imprensa brasileira.
É claro que haverá os que virão com a velha explicação ressentida: o país ama o Estado devido à "herança patrimonialista ibérica" e à falta de empreendedorismo congênita de seu povo. Essa é a velha forma de travestir egoísmo social ressentido e preconceituoso com roupas de bricolagem histórica.
Na verdade, o povo brasileiro sabe muito bem a importância da solidariedade social construída por meio da fiscalidade e da tributação dos mais ricos, assim como é cônscio da importância do fortalecimento da capacidade de intervenção do Estado e da defesa do bem comum. Só quem não sabe disso são nossos analistas econômicos, com suas consultorias milionárias pagas pelo sistema financeiro.

    |José Simão

    Brasileirão! Torcida vira Trucida
    E o Corinthians? Diz que o Timão perdeu pro Náutico só pra não empatar justo na despedida do Empatite
    Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E o sorteio da Copa? Um minuto de silêncio para Mandela! E a Fifa roubou até no minuto de silêncio, durou 12 segundos! Diz que só durou 12 segundos porque o Galvão não ia conseguir fazer um minuto de silêncio! Milagre ele ter feito 12 segundos de silêncio!
    E eleito o melhor momento do sorteio: close do decote da Fernanda Lima com o papelzinho escrito "D4"! Rarará! E o Marin tentou roubar o pote número 1. E as três bolinhas no palco: Dilma, Blatter e Ronalducho Fofômeno!
    E o Brasileirão? Atlético PR x Vasco! As trucidas se trucidaram! Eu sempre chamo torcida violenta de trucida. Trucida organizada. Vão pro estádio pra trucidar! Prende os caras e só solta depois da Copa! E onde tava a PM? A PM sumiu?! E rebaixa os times pra série D!
    E os rebaixados? E o Vasco? Como disse um amigo: "O Vasco tá tão acostumado a ser segundo que esperou o Fluminense cair primeiro". O Vasco pro Flu: "Por favor, pode cair antes, a gente tá acostumado a ficar em segundo". O Vasco é a prova que o futebol não é uma caixinha de surpresa! Vascaindo! Vascaiu!
    E o Fluminense? O Fluminense foi rebaixado no patrocínio: de Unimed pro SUS! Novo patrocinador do Fluminense: SUS! Perdeu até o plano de saúde! Rebaixado pra fila do SUS! Série B: vai pro fim da fila! Rarará!
    E o Corinthians? Diz que o Timão perdeu pro Náutico só pra não empatar justo na despedida do Empatite. E o site "FuteboldaDepressao" revela o desabafo do Tite na derrota do Corinthians: "Porra, perdi o meu empate". Rarará.
    E São Paulo x Coritiba? Nem vi. Me tranquei no quarto com ar-condicionado e fiquei jogando "Angry Birds"! Muito melhor! Rarará! Mas diz que os bambis abriram as coxas pro Coxa!
    É mole? É mole, mas sobe!
    E esse cartaz numa banca em Ipanema? "Grupo A: Brasil, Croácia, México e Camarões. Grupo B: Vasco, Fluminense, Ponte Preta e Náutico." Rarará!
    E a vantagem de o Vasco cair é que a gente já sabe quem vai ser o vice da serie B no ano que vem. Vasco, vice da série B 2014! Com o Flu campeão! Rarará! E esse torcedores são uns pitbulls dilaceradores de vísceras! Medo!
    Nóis sofre, mas nóis goza! Hoje só amanhã!
    Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

      João Pereira Coutinho

      folha de são paulo
      Esquerda, ida e volta
      Vem na Bíblia: todas as grandes conversões são sempre histórias de amor à segunda vista
      Minha vizinha é linda. Minha vizinha é de esquerda. Um problema?
      Não para mim, uma alma tolerante e pluralista e mentirosa. Para ela. Mas, como diria Jack, o Estripador, vamos por partes.
      Aconteceu em setembro. Começou o ano acadêmico em Lisboa e uma espanhola mudou-se para o apartamento ao lado do meu. Encontrei-a na porta da rua, transportando as malas. Ofereci ajuda. Resposta dela: "Lá porque eu sou mulher você pensa que não consigo?".
      Alarme. Feminista na área. Fugir, fugir, fugir --eis o sinal luminoso nos meus neurônios. Mas fugir daqueles olhos absurdamente azuis?
      Não, claro que não, e depois falei de uma hérnia discal precisamente por excesso de peso. "É preciso ter cuidado." Ela comprou a primeira mentira. Se Deus me der tempo e saúde, outras se seguirão.
      História da donzela: veio para Portugal apaixonada pela literatura dos lusos. A ideia é fazer doutorado, ficar uns anos, experimentar a vida do país. Excelente ideia.
      "Pena chegar com esse governo fascistinha, você não acha?", perguntou ela.
      Explicação prévia: o governo português atual, que alguns consideram de centro-direita, tem sido um exemplo de socialismo no seu pior. Sobretudo carregando nos impostos como nenhum governo socialista antes dele. Mas o que responder? A verdade, só a verdade, nada mais que a verdade?
      Não. A mentira, só a mentira, nada mais que a mentira. "Fascistinha é dizer pouco", murmurei com venenoso sarcasmo.
      E eu? Quem sou eu? Que faço? Quais são os meus gostos e desgostos? Falar de colunismo e televisão e livros é matéria interdita. Livros? O último chama-se "Por que Virei à Direita", Deus do céu.
      Respondi vagamente ("dou aulas") e depois menti vagamente ("mas o meu sonho é trabalhar numa ONG"). Os olhos dela brilharam e eu senti o meu cachet a subir.
      Mas tanta mentira desgasta. Voltando aos livros, é impossível esconder a biblioteca inteira. Foi o primeiro momento em que a máscara quase caiu. "Você lê muito autores de direita, não?", perguntou ela, olhando para as estantes com os meus Hayeks, os meus Oakeshotts, os meus Voegelins.
      Pausa. Sangue frio. "Você tem que conhecer o inimigo", respondi. Ela concordou. E depois perguntou pelos autores da minha vida. "Tirando o Slavoj Zizek? Não vejo mais ninguém com qualidade hoje em dia."
      Ela não conhecia Zizek. Com luvas e máscara de proteção, comprei um livro do ogro no dia seguinte. Foi o meu presente de aniversário em outubro. Ela gostou de Zizek; mas, surpresa das surpresas, achou as páginas sobre a necessidade de violência revolucionária um pouco excessivas. "Por causa dos inocentes", disse ela.
      Eu poderia ter ficado calado. Não fiquei. "Mas você acha que no capitalismo há mesmo inocentes?" Silêncio. E epifania: a única forma de trazer esse anjo um pouco mais para o centro é eu próprio radicalizar-me à esquerda.
      Dito e feito: nos últimos tempos, as conversas ficaram surreais. Defendo Cuba. Defendo a Venezuela. Ataco os Estados Unidos até pela falta de água em Lisboa.
      E sobre os colunistas de direita que "invadiriam a mídia", os tribunais deveriam fazer qualquer coisa. "Onde está a liberdade, afinal?", pergunto eu, indignado.
      De resto, a crise europeia tem responsáveis perfeitamente identificáveis ("a ganância dos bancos") e o "aquecimento global" é a maior ameaça à vida na Terra ("e quem diz o contrário deveria ser preso").
      O resultado desse cortejo de insanidades está na moderação dela, que cresce de dia para dia: por cada loucura minha, ela tenta um equilíbrio. "Você é muito radical", eis o mantra dos últimos tempos. Eu medito, faço cara de caso. Depois rendo-me e concordo. "Sim, você tem razão."
      O objetivo, agora, é virar o barco para a direita por influência dela. Há sinais de esperança. Tímidos. Tênues. Dias atrás, assistindo ao biopic sobre Thatcher com Meryl Streep no papel da "dama de ferro", arrisquei: "Essa Thatcher era mulher de coragem. Fascista, mas de coragem".
      Ela completou. "Eu gosto dela. Quando você é mulher, tem que ser um pouco fascista num mundo de homens." Repicaram os sinos na minha alma.
      Se as coisas continuam assim, no próximo ano estaremos os dois no Fórum da Liberdade de Porto Alegre, a cantar hossanas a Milton Friedman e à escola de Chicago. E por que não?
      Vem na Bíblia: todas as grandes conversões são sempre histórias de amor à segunda vista.