domingo, 8 de dezembro de 2013

Insólitas prisões - Maria Sylvia Carvalho Franco

folha de são paulo

Maria Sylvia Carvalho Franco: Insólitas prisões

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Tendências / Debates"Quatro da madrugada: instante entre a noite e o amanhecer, quando as decisões lá no topo já se firmaram, quando o que deverá acontecer já aconteceu. Alguém bate à porta, urgente. Quem é? Não se sabe."
Com essa matriz política, Jan Kott abre sua reflexão sobre o golpe de Estado urdido em "Ricardo 3º", peça em que a violência dilacera as tramas do cotidiano: súbito, a força física e a intimidação moral irrompem nos afazeres, no lazer, no sono. "Quem dentre nós, pelo menos uma vez na vida, não foi assim despertado?" O ensaio de Kott sobre "Ricardo 3º" faz dessa figura uma grande metáfora da "húbris" política, desvelando a essência do ato despótico e sua perene ameaça.
Assistimos, aqui e agora, à reiteração dessas práticas. As detenções dos réus da ação penal 470 ocorreram após um processo transparente, mas o foram com bizarria do prisma ético. Sua imposição intempestiva, em longo feriado, valeu-se do emblemático Dia da República e da suspensão, no calendário, de três dias úteis. Pergunta-se o porque da pressa: Joaquim Barbosa valeu-se do recesso para decidir sozinho, ignorando seus pares?
A efetivação repentina dessas prisões, após um lento processo, insere o monopólio estatal da força física no cotidiano das pessoas. Noite que enseja emboscadas, ou feriado que paralisa a vida pública e privada, ambas as situações cancelam as garantias constitucionais.
Não visamos, aqui, a procedência das prisões, mas seu arbitrário "modus faciendi". O uso do feriado não é inédito nas práticas políticas autoritárias: entre nós, basta citar os ardilosos planos econômicos, como o de Collor. Há mesmo uma história dessas tocaias: nas imagens acentuadas por Kott, o golpe de Ricardo 3º condensa-se na semana de Todos os Santos e Finados, tropos polissêmicos onde o dia dos mortos e o morticínio do tirano conjugam-se: os assassinatos, processos e decapitações não por acaso efetivam-se quando a vida social está suspensa, em luto. Inglaterra elisabetana ou República brasileira, a conivência com tais condutas resulta na mesma inversão de valores e práticas já presentes na democracia grega e sintetizadas por Platão como raízes do poder tirânico.
Por fim, completando os atentados à cidadania, juntas médicas ratificaram o desrespeito a um preso doente. No laudo sobre a saúde de José Genoino, afirma-se que ele pode suportar o cárcere: bastam remédios, dieta, exercícios regulares e (pasme-se!) evitar "fatores psicológicos estressantes". Os doutores ironizam ou ignoram o que significa uma prisão, enunciando um oximoro: cadeia sem trauma.
As juntas que se pronunciaram sobre Genoino --e talvez as que examinam Jefferson-- esqueceram-se de que avaliam prisioneiros cujas vidas não se assemelham à dos pacientes abstratos cujos diagnósticos pautam-se pelos parâmetros rotinizados oferecidos pela tecnologia médica. Lendo seus pareceres, tem-se o sentimento de que a submissão aos poderosos avalizou tais contrassensos. Tanto mais grave torna-se essa conduta quando distinguimos a atual crise nos meios médicos brasileiros e lembramos o quanto a bioética vem sendo debatida mundialmente.
Após a renúncia de Genoino, as circunstâncias de sua captura podem parecer episódicas, mas, nelas, o imprudente uso do poder evidencia o vezo, perene no Estado brasileiro, de afrontar o cidadão.
A crítica ao "modus operandi" das prisões não implicam tolerância ao crime; pelo contrário, ela pressupõe que sentenças legais não autorizam sua execução ilegítima.
Vale recordar que as denúncias contra a democracia martelam a tese de que nela é ínsita a impunidade. Já dizia Platão ao invectivar o regime ateniense das liberdades que, na polis "licenciosa", condenados à morte ou ao exílio não "deixam a praça, circulam em público, como se fossem indiferentes a todos, invisíveis, como fantasmas de heróis". Pelo visto, alguns magistrados são platônicos e gostariam de banir a democracia para sempre.
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO é professora titular aposentada de filosofia da USP e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

"Toda Tarde", a imaginação teatral de Gertrude Stein

folha de são paulo

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GERTRUDE STEIN
tradução DIRCE WALTRICK DO AMARANTE
ilustração BRUNO DUNLEY

SOBRE O TEXTO Gertrude Stein escreveu, entre 1913 e 1920, 18 peças, entre as quais "Toda Tarde" (1916). Reunidas e traduzidas por Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin , elas comporão o livro "O Que Você Está Olhando", a sair em janeiro pela Iluminuras. Em textos para o volume, as organizadoras comentam particularidades, aqui notáveis, da obra dramatúrgica de Stein, como a dispensa da pontuação corrente (pontos de interrogação e aspas, por exemplo) e a recusa de marcações e rubricas que normalmente orientam as encenações -o que faria dela uma antecipadora do chamado teatro pós-dramático.
*
Raquel Cunha/Folhapress
Ilustração de Bruno Dunley
Ilustração de Bruno Dunley
Me levanto.
Então você se levanta.
Estamos satisfeitos um com o outro.
Por que vocês estão.
Porque temos esperança.
Você tem alguma razão para tê-la.
Temos razão para tê-la.
O que é.
Não estou preparado para dizer.
Não tem nenhuma chance.
Naturalmente.
Sei o que você quer dizer.
Acho que não é necessário que eu lecione línguas.
Seria absurdo que você lecionasse.
Seria aqui.
Não seria em lugar nenhum.
Não me importo com o Peru.
Espero que você se importe.
Começo isso.
Sim você começou isso.
Claro que começamos.
Sim de fato começamos.
Quando falaremos de outro.
Hoje não eu te asseguro.
Sim certamente você o mencionou.
Mencionamos tudo.
Para o outro.
Não quero motivos.
Você quer dizer que foi ensinada antes.
Isso é exatamente o que eu quero dizer.
E eu sinto a mesma coisa.
Você sente que é a mesma coisa.
Você o põe à prova.
Não o ponha à prova.
Esta noite não houve discussão sobre tentação ele não estava nem um pouco interessado.
Ela também não estava.
Claro que ela não estava.
De fato não é necessário perguntar a ela.
Eu achei necessário.
Achou.
Certamente.
E quando você tem folga.
Lendo e tricotando.
Lendo ou tricotando.
Lendo ou tricotando.
Sim lendo ou tricotando.
À tarde.
Primeiro rapidamente.
Ele estava bem estabelecido.
Onde ele se estabeleceu.
Em Marselha.
Não consigo entender as palavras.
Você não consegue.
Você é tão facilmente enganado você não pergunta o que eles decidem de fato o que eles vão decidir.
Não há razão.
Não não há razão.
Entre as refeições.
Você realmente costura.
Ele era tão indispensável para mim.
Estamos igualmente satisfeitos.
Venha e fique.
Faça isso.
Você quer dizer ser rude.
Ele quis dizer.
Te pergunto o porquê.
Amanhã.
Sim amanhã.
Toda tarde.
Um diálogo.
O que você fez com o seu cachorro.
Nos o mandamos para o campo.
Ele era um problema.
De jeito nenhum mas achamos que ele ficaria melhor lá longe.
Sim não é certo manter um cachorro grande na cidade.
Sim concordo com você.
Sim
Chegada.
Sim certamente.
Seja rápido.
Não no ato de respirar.
Não você sabe que você não se importa.
Dissemos sim.
Siga em frente.
Isso soou como um animal.
Estavam esperando alguma coisa.
Não sei.
Você não sabe nada disso.
Você sabe não acredito.
Ela acreditava.
Bem eles são diferentes.
Não sou muito cuidadoso.
Mencione isso de novo.
Aqui.
Aqui não.
Não receba a madeira.
Não receba a madeira.
Bem fomos e a encontramos.
Amanhã.
Venha amanhã.
Venha amanhã.
Sim dissemos sim. Venha amanhã.
Chegada muito boa. Não seja impaciente. Não diga que não te falaram.
Você sabe que eu quero um telegrama. Por quê. Porque os
imperadores não quiseram.
Não me lembro disso.
Não me preocupo com um tempo longo.
Pois um tempo longo finda.
Por que não.
Porque eu gosto dele.
Isso é o que ela disse.
Dissemos.
Viremos com prazer no sábado.
Ela irá.
Oh sim ela irá.
O que é uma conversação.
Podemos cantar tudo.
Vem um grande número de pessoas.
Vem um grande número de pessoas.
Por que os dias passam tão rápido.
Porque somos muito felizes.
Sim é isso.
É isso.
É isso.
Quem cuida das margaridas.
Você me ouve.
Sim posso te ouvir.
Muito bem então explique.
Que eu cuido de margaridas.
Que nós cuidamos de margaridas.
Venha venha.
Sim e não chorarei.
De fato não.
Vamos fazer um piquenique.
Oh sim.
Estamos muito felizes.
Muito felizes.
E contentes.
E contentes.
Vamos e ouviremos Tito Ruffo.
Aqui.
Sim aqui.
Oh sim eu me lembro disso. É para ele estar aqui.
Para começar o que é que compramos.
Repreensão.
Se você se lembra você lembrará de outras coisas que te assustam.
Lembrarei.
Sim e não há nenhuma necessidade a explicação não está na sua
primeira caminhada da última caminhada da caminhada ao meu
lado a única razão é que tem muito espaço e que eu prefiro isso.
Então diremos que irá chover.
No outro dia havia um luar luminoso.
Não aqui.
Não aqui mas geralmente tem mais luar que na Bretanha.
Venha novamente.
Entre novamente.
Vindo novamente.
Entrando novamente.
Venha novamente.
Digo que eu entendo o chamado.
Chamando-o.
Sim Polybe.
Venha.
Venha.
Venha novamente e traga um livro.
O encontramos tão frequentemente.
Quisemos dizer cuidar disso. Você quer dizer a luz.
Estou orgulhoso dela. Você tem todas as razões para estar e ela
aceita isso tão naturalmente.
É melhor que isso sejam suas mãos.
Sim é claro.
Ninguém pode pagar por isso.
Repúblicas são tão ingratas.
Você deseja aparecer aqui.
Por que é claro nesse sentido.
Não conheço essas palavras.
É realmente desprezível.
Você vê de fato.
Não o vejo dessa maneira.
Não você não veria que você preferiria as palavras certas e elevadas.
Diga para mim.
Você sabe eu nunca ia querer ser responsabilizado.
Um esforço para comer rapidamente.
Você prometeu para ele.
Eu prometi para ele as madeiras.
As madeiras.
Agora não.
Você quer dizer agora não.
GERTRUDE STEIN (1874-1946), escritora americana, autora de "A Autobiografia de Alice B. Toklas" (Cosac Naify), terá suas peças publicadas no Brasil em janeiro.
DIRCE WALTRICK DO AMARANTE, 43, é tradutora, professora de artes cênicas na UFSC e autora de "Para Ler Finnegans Wake de James Joyce".
BRUNO DUNLEY, 29, é artista plástico; participa da exposição "Além do Ponto e da Linha", em cartaz no MAC- USP.

Um talento de arrepiar [Elis] - Luiz Carlos Miele

folha de são paulo

Um talento de arrepiar


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LUIZ CARLOS MIELE

Em novembro de 1969, eu voltei a São Paulo para a apresentação do espetáculo "Elis com Miele & Bôscoli", no teatro Maria Della Costa. Tínhamos terminado a temporada carioca de quatro meses e iriamos iniciar o mesmo período na capital paulistana.
Levamos a sério o ditado "antes só que mal acompanhado". Estavam conosco Roberto Menescal na guitarra e direção musical, Wilson das Neves (hoje uma estrela do samba) na bateria, Zé Roberto Bertrami no teclado, Jurandir no baixo e Hermes na percussão.
Elis ensinou a todos nós que palco "a gente só divide com quem gosta muito". Eu realmente a adorava. E ela sempre me honrou com a maior amizade e consideração.
Tanto que, nas páginas do programa do show, o texto dela sobre mim assim dizia: "Miele, força de leão, coração de beija-flor. Dorme entre oito pastores alemães. Acorda de smoking. Janelas abertas. Corpo fechado. O Luiz artista, bom de bola, de papo, de copo. De copas, o rei de copas. O barba. O Barrabás. O mielofone. Mais motivos pro Miele estar no show? Eu adoro o Miele".
Folhapress
Miele e Elis Regina durante gravação de programa de TV em 1971
Miele e Elis Regina durante gravação de programa de TV em 1971
Bem, a história de dormir entre os oito pastores alemães é mais ou menos verdade. E ela também inventou outra história saborosa, que contou no palco. Disse que certa noite pediu que eu não bebesse nada depois do show de sexta-feira, pois teríamos duas sessões no sábado.
Fui então pra casa obediente, sem beber. Mas chegando lá, os cachorros não me deixaram entrar. Como era uma das raras vezes em que me viam sóbrio, não me reconheceram.
Nosso show era bem descontraído, permitia esse tipo de brincadeira. E Elis se divertia muito, dançava, sapateava (um pouquinho, de mentira, como eu), imitava o Carlitos, vestida e maquiada como ele.
Depois, ia tirando a maquiagem e o bigodinho, o chapéu-coco, e cantava "Minha", do Francis Hime e do Ruy Guerra. Era de arrepiar.
A grande maioria da crítica elogiou nosso show. Nós tínhamos a segunda maior bilheteria de teatro em São Paulo.
Ficamos quatro meses em cartaz. A produção ficou a cargo do Zé Nogueira -grande especialista em uísque, peladas de futebol e Adoniran Barbosa. Acho até que foi por conta dessa amizade que a Elis gravou "Tiro ao Álvaro" depois.
Elis era superprofissional. Todos tinham que chegar cedo ao teatro. Durante nossas apresentações, mesmo quando não estava em cena, nunca me afastava no palco. Ficava na coxia, ouvindo Elis e sua musicalidade extraordinária.
De tantos artistas que Ronaldo Bôscoli e eu produzimos (nossa dupla realizou 86 shows), Elis foi a única cujo talento sempre me surpreendeu.
Também tive o prazer de ser o diretor de seus especiais na TV Globo, mas, infelizmente, quando ela rompeu com o Bôscoli, era natural que eu também me afastasse de seu convívio pessoal.
Não foi mais possível estar no palco ao seu lado, ou na produção de seus espetáculos, e assim passei para a plateia de seus maravilhosos shows.
Mas, repito, não sou fã, sou devoto de Elis Regina. E, agora, estou perto dela novamente, como um dos personagem do espetáculo em sua homenagem, "Elis, a Musical", em cartaz no Rio.
Elis foi a estrela maior que eu conheci, ao lado de quem fui tão feliz no teatro Maria Della Costa.
Ave Elis.
LUIZ CARLOS MIELE, 75, é cantor e produtor musical.

Em thriller, cubano revê o assassinato de Trótski

Em thriller, cubano revê o assassinato de Trótski


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JOCA REINERS TERRON

RESUMO "O Homem que Amava os Cachorros", de Leonardo Padura, ficcionaliza as jornadas de Leon Trótski e seu assassino, Ramón Mercader. O escritor, seguindo tendência em voga nos romances investigativos de fundo histórico, mescla ensaio, memória e realidade ao contrapor o teórico da Revolução Russa a seu algoz.
*
Leonardo Padura deparou-se com um problemão ao decidir escrever "O Homem que Amava os Cachorros" [trad. Helena Pitta, Boitempo, R$ 69, 592 págs.]: como relatar uma trama policial cujo desfecho -o assassinato de Trótski e suas circunstâncias históricas- era conhecido por todos?
A resposta não é simples, assim como o romance resultante não é apenas um policial, pelo menos não como a obra precedente do escritor cubano poderia sugerir.
Padura, narrador de longa quilometragem e criador do detetive Mario Conde, protagonista de oito livros, sabia que o melhor caminho seria a trilha menos batida.
Sem evitar aquilo que é público e evidente a respeito do assassinado notável, tomou como centro da trama a existência encoberta por brumas do assassino obscuro.
A ascensão e queda de Lev Davidovich Bronshtein, ou Leon Trótski (1879-1940), está retratada em todos os meios impressos possíveis: panfletos, artigos, reportagens, perfis, biografias e até folhetos de cordel.
Trótski foi um dos principais líderes e teóricos da Revolução Russa, organizador e comandante do Exército Vermelho. Após a morte de Vladimir Lênin em 1924, disputou com Josef Stálin (1879-1953) a liderança da União Soviética. O rival venceu, e Trótski acabou exilado em 1929, vítima de uma perseguição política que pretendia não somente apagá-lo da história soviética mas do mapa-múndi.
A missão foi posta em prática por Ramón Mercader (1914-78), ou Jacques Mornard Vandendreschs, agente espanhol comunista que se infiltrou na casa de Trótski na Cidade do México e cravou-lhe uma picareta na cabeça.
"O fato de Mercader ser um personagem histórico sem história é a chave do livro", escreve Padura, em entrevista por e-mail. "A questão é que Trótski é completamente histórico, pois teve biografados quase todos os dias de sua vida. Enquanto isso Mercader é um grande mistério de quem só sabemos, ao certo, que matou Trótski em 20 de agosto de 1940. O resto deixa grande margem para ficção, espaço que aproveitei ao máximo e me ajudou a construir o romance com um maior sentido dramático."
VÉRTICE
A dramaticidade a que Padura se refere é amplificada graças ao vértice da narrativa, justamente um personagem fictício chamado Iván Cárdenas Maturell, cubano pertencente à mesma geração do autor (nascido em 1955) e com algumas coincidências biográficas: leitor dedicado de romances policiais, escritor noviço e jornalista a contragosto.
Logo no início, em meio ao furdunço de suas mazelas cotidianas e a seu trabalho em uma publicação veterinária, Iván relata o encontro com um setentão misterioso na praia de Santa María del Mar, próxima de Havana, em 1977.
O jornalista estava entretido com um livro de Raymond Chandler (o romancista policial norte-americano, autor de um conto que empresta título a "O Homem que Amava os Cachorros") quando a chegada do velho estrangeiro e de seus dois cães borzóis lhe rouba a atenção. Iván se interessa inicialmente pelos raros galgos russos perdidos naquele balneário de uma ilha caribenha politicamente isolada: como teriam chegado ali?
Por meio de Iván, um narrador em primeira pessoa que espelha a realidade vivida por Padura nos anos de completo isolamento da Cuba pós-revolucionária até o período atual, no qual tudo -utopias, esperanças e supostas verdades- está esfacelado, o problema de construção do romance encontra sua solução.
REGRA DE OURO
A mescla de testemunho pessoal, ensaio e crônica histórica é uma espécie de regra de ouro da nova onda de romances investigativos de fundo histórico em língua espanhola, explorada com êxito, por exemplo, pelo escritor espanhol Javier Cercas em "Soldados de Salamina" [trad. Wagner Carelli, R$ 34,90, 274 págs.] e em "Anatomia de um Instante" [trad. Ari Roitman e Maria Alzira Brum, R$ 49,90, 436 págs.], ambos publicados pela Biblioteca Azul.
Os livros levam os leitores a considerar se a história, no fim das contas, não passaria de uma gigantesca psicose de massa à qual sobrevivemos (bem, nem sempre), invariavelmente chamuscados por pequenos traumas íntimos.
Ao contrapor a existência fartamente documentada de Trótski àquela provável de Mercader -veterano da Guerra Civil Espanhola cooptado em 1937 pela NKVD, a polícia política da URSS, passando a partir daí a assumir novas identidades e a tomar parte em operações secretas -, Padura dispõe lado a lado esses homens, evidenciando como suas trincheiras eram opostas, porém tão próximas.
Diferentemente de um biógrafo estrito senso, o ficcionista pode declarar sua empatia pelos personagens. Essa é, sem dúvida, a premissa de "O Homem que Amava os Cachorros", ao menos em relação a Trótski e Mercader, retratados em toda a sua humanidade.
Estaria aí a distinção entre um livro de não ficção e um romance histórico? "O romance é o reino da liberdade. O escritor é como Deus, e isto já foi dito muitas vezes", diz Padura, mais uma vez.
"Mas existem limites para esse poder. A verdade histórica é um limite que não se deve violar, pois um livro também tem o poder da letra impressa, que tende a ter um sentido de credibilidade. Daí que personagens como Trótski ou Mercader possam ser vistos com maior ou menor simpatia de acordo com minhas intenções literárias e convicções políticas ou ideológicas. Fui o mais respeitoso possível com o documental, sem renunciar à minha liberdade de romancista."
Na "bibliografia e crítica da bibliografia" ao final de outro livro dedicado a Trótski recém-publicado no Brasil, "A Paixão Segundo a Revolução", incluído no volume "Vida" [Companhia das Letras, R$ 46, 392 págs], o poeta paranaense Paulo Leminski registra que "não parece ser possível escrever uma história da Revolução Russa isenta de 'partis pris', partidarismos ou outras interferências ideológicas".
A afirmação, em tom de evidente justificativa por cometer tão apaixonada defesa de seu personagem, também ressalta que suas principais fontes eram comprometidas desde a origem, como as referenciais biografias de Stálin e Tróstki realizadas pelo "trotskista" Isaac Deutscher, igualmente consultadas por Padura.
"Um livro de não ficção não tem a possibilidade de ser simpático ao personagem, ou não deveria tê-la", ressalta o escritor cubano, "O respeito ao histórico deveria ser total, apesar de de às vezes não ser assim, como sabemos."
Ao contrário do narrador, Iván Cárdenas Maturell, o leitor não demora a intuir a identidade do velho dono dos cães borzóis da praia de Santa María del Mar. Após permanecer preso por 20 anos e passar breve temporada em Moscou, Mercader transferiu-se para Cuba, onde viria a morrer.
Essa fatal coincidência enfia Cuba e o fracasso minucioso de Iván no epílogo da história de enganos que foi o século 20.
Antes, porém, o leitor é obrigado a testemunhar o excruciante apertar do garrote em volta do pescoço de Trótski em seu périplo de fugitivo da URSS, que incluiu assassinatos e suicídios de asseclas e familiares, passando por Turquia, Noruega, França e México, palco onde, afinal, cai o pano.
Como aqueles atores canastrões que são anunciados ao longo de uma peça inteira sem dar as caras, Ióssif Viassariónovitch Djugashvíli, vulgo Josef Stálin, só aparece ao final -e mesmo assim na forma da picareta que atinge sem piedade a cabeça do velho ideólogo.
Não por coincidência, a última frase escrita por Trótski, do prefácio inacabado de sua biografia de Stálin, foi interrompida em "A ideia tinha...".
JOCA REINERS TERRON, 45, é autor dos romances "A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves" e "Do Fundo do Poço se Vê a Lua" (ambos pela Companhia das Letras), entre outros.

Diferentes versões da vida do andarilho Jack Kerouac

folha de são paulo

Diferentes versões da vida do andarilho Jack Kerouac


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CLAUDIO WILLER

RESUMO Com uma vida intensa, que se confunde com sua criação literária, Jack Kerouac (1922-69) é o escritor biografável por excelência: há mais títulos sobre ele do que livros escritos pelo autor de "On the Road". Uma das principais obras desse cunho, "O Livro de Jack", misto de mosaico de depoimentos e crítica, sai agora no Brasil.
*
No seu prefácio a "O Livro de Jack", que escreveu com Lawrence Lee, Barry Gifford observa que seu intuito era "conduzir o público à leitura dos 11 romances de Kerouac, quase sempre ignorados, e de seus demais trabalhos".
Em 1978, quando da publicação original deste "O Livro de Jack - Uma Biografia Oral de Jack Kerouac" [trad. Bruno Gambarotto, Biblioteca Azul, R$ 49,90, 496 págs.], beat e contracultura pareciam coisa do passado.
Hoje não mais. "On the Road", de Kerouac (traduzido como "Pé na Estrada" por Eduardo Bueno, com sucessivas reedições, desde 1984), se firma cada vez mais como a narrativa mais influente da segunda metade do século 20.
Outros títulos merecem ser lembrados, como "O Apanhador no Campo de Centeio", de J. D. Salinger, ou "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez. No entanto, estes não ultrapassaram o sistema literário. Com "On the Road", Kerouac o extrapolou.
Junto com "Uivo e Outros Poemas", de Allen Ginsberg, promoveu o aparecimento dos beatniks e dos hippies. Seu chamado à aventura inspirou outros a saírem estrada afora. Foi decisivo para figuras do porte de Bob Dylan, que fugiu de casa após lê-lo; também para Francis Ford Coppola e para Lou Reed, entre tantos que integraram o cordão de autores e personalidades influenciados por Kerouac e pela geração beat.
Não obstante, desde seu lançamento, em 1957, "On the Road" vem sendo atacado por críticos, pelo culto à espontaneidade, desordem formal, apologia da libertinagem. Recebeu objeções pautadas pela correção política, que apontaram hedonismo, sexismo e imediatismo.
Os autores da geração beat chegaram a ser acusados de iletrados. Na verdade, eles foram um exemplo de crença extrema na criação literária, atribuindo-lhe valor mágico, como fonte de acontecimentos, e não só de textos.
BIBLIOGRAFIA
Felizmente, cresce uma bibliografia crítica pertinente. Ela é representada, entre outros exemplos, pelos ensaios de Howard Cunnell, Penny Vlagopoulos, George Mouratidis e Joshua Kupetz que precedem a edição de "On the Road - O Manuscrito Original [trad. Eduardo Bueno e Lúcia Brito, L&PM, R$ 24,50, 464 págs.].
Jerome Yulsman/Globe Photos
Jack Kerouac e sua então namorada Joyce Johnson em frente ao The Kettle of Fish, no Greeenwich Village, Nova York, c. 1958
Jack Kerouac e sua então namorada Joyce Johnson em frente ao The Kettle of Fish, no Greeenwich Village, Nova York, c. 1958
Junto com os ensaios, vieram as biografias. Em número de títulos, elas superam aqueles da extensa obra de Jack Kerouac. Personagem de si mesmo, com uma vida intensa que se confundiu com a criação literária, ele é o escritor biografável por excelência.
O estudo biográfico pioneiro é o de Ann Charters, "Kerouac: a Biography" [St. Martins Press, R$ 62,30, 432 págs.]. Lançada originalmente em 1973, a obra descerrou cortinas ao relatar a intrincada vida sexual do escritor e de Neal Cassady com Carolyn Cassady, Luanne Henderson e outros parceiros -inclusive Allen Ginsberg.
Charters trouxe à luz cenas como esta, ocorrida em Denver, em 1947: decidida a retornar à Califórnia, Carolyn, já companheira de Cassady, com quem se casaria e teria filhos, passa por seu apartamento para despedir-se; ao abrir a porta, encontra-o deitado em companhia de Luanne e Ginsberg, um de cada lado da cama.
Em seguida vieram outras. "Memory Babe" [University of California Press, 767 págs., esgotado], de Gerard Nicosia, é de 1983 e continua a ser a mais completa dessas biografias, como o reconhecem outros estudiosos, a exemplo de Barry Miles -seu "Jack Kerouac - King of the Beats" [trad. Roberto Muggiati, Cláudio Figueiredo, Beatriz Horta, ed. José Olympio, R$ 50, 420 págs.], de 1998, saiu no Brasil em 2012.
"Visions of Kerouac" [Ithaca Press, 235 págs., esgotado], de Charles E. Jarvis, é de 1974. O livro teve sua faísca inicial em 1968, quando, aproveitando uma estada em Lowell, cidade natal do escritor e dele próprio, Jarvis se pôs a gravar falas do alcoólatra terminal e o acompanhou pela noite, assombração percorrendo uma cidade fantasma. Já "Subterranean Kerouac" [St. Martins Press, R$ 91,70, 448 págs.], de Ellis Amburn, publicado em 1998, faz incidir o foco sobre a complicada vida sexual do escritor.
E há que lembrar os depoimentos: Ginsberg escreveu, em 1974, "Visions of the Great Rememberer" [Mulch Press, 71 págs., esgotado]; em "Off the Road" [Overlook, e-book, R$ 22,21], de 1990, Carolyn Cassady polemizou com Gerard Nicosia. Joyce Johnson, companheira de Kerouac na época do lançamento de "On the Road", publicou o premiado "Minor Characters" [Penguin, e-book, R$ 35,58] em 1984.
Por fim, "Memórias de uma Beatnik" [trad. Ludimila Hashimoto, Veneta, R$ 24,90, 216 págs], de Diane di Prima, lançado no Brasil neste ano, relata uma performance de sexo tântrico entre a poeta beat e Jack -biógrafos não sabem precisar se Di Prima ficcionalizou os fatos ou se eles fizeram tudo aquilo.
CORAL
Obra polifônica, coral de vozes díspares, mas não dissonantes, "O Livro de Jack" acompanha a vida toda de Kerouac.
Barry Gifford e Lawrence Lee partem de um amplo espectro de entrevistados, que inclui desde personagens qualificados, como Allen Ginsberg, William Burroughs e Gary Snyder, e participantes ativos, como o delinquente Herbert Huncke, até figuras secundárias, mas que trazem depoimentos reveladores: o parceiro de sinuca de Cassady, Jim Holmes, e o casal Al e Helen Hinkle (Ed e Galatea Dunkel em "On the Road").
Não há nada de panegírico: por mais que a importância de Jack Kerouac seja admitida, isso não impede críticas. Mais do que isso, há objeções a Neal Cassady, caracterizado como psicopata por Burroughs e John Clellon Holmes e detestado por ex-colegas de Denver.
Lee e Gifford, este último também autor do romance "Wild at Heart" (filmado por David Lynch), não se limitaram a ir atrás de personagens e recolher depoimentos.
Comentários e apresentações de cada capítulo compõem não só uma biografia mas uma avaliação crítica de Kerouac, que os autores souberam conduzir, abordando questões relevantes -por exemplo, seu misticismo, ou sua formação literária, com momentos decisivos como a visita dele e Ginsberg a Burroughs.
Os biógrafos esclarecem como Kerouac escrevia -espontaneamente, mas nem sempre: foi dele a iniciativa de reescrever várias vezes "On the Road", e uma de suas obras mais complexas, "Doctor Sax", foi sendo elaborada de 1948 a 1958. Corrigem a injustiça com relação ao crítico Malcolm Cowley, acusado por Kerouac de normalizar seu texto.
Mas sancionam um erro: o rolo em que datilografou "On the Road" não era de papel para telex dado por Lucien Carr: esse seria usado em outras ocasiões, mais tarde.
É claro que muita coisa relevante foi deixada de fora. Mas a crise a partir do final de 1957, o modo como Kerouac se desestruturou e seus sombrios anos finais de vida estão bem relatados.
Além da informação biográfica, há discussão literária, destacando a poesia de "Mexico City Blues" e os complexos "Visões de Cody" e "Doctor Sax".
O livro subestima, no entanto, "Os Vagabundos Iluminados" -basta confrontar com a leitura de Regina Weinreich, no prefácio do recente "Livro de Haicais" (L&PM 2013, tradução minha)- e a prosa poética de "Anjos da Desolação" (trad. Guilherme da Silva Braga, L&PM, 2010). E, principalmente, faz pouco, injustamente, de seu canto de cisne, "Vanity of Duluoz", já de 1967, quando ele estava às vésperas da morte.
A edição brasileira vem com prefácios de Walter Salles e Gifford, atualizando-a. Mas faltam as fotografias que ilustram a edição original.
Houve dificuldades com a negociação de direitos, informa o editor, e aquelas foram substituídas por outras, que deveriam ter recebido legendas. Para ver as caras de Luanne Henderson e
Herbert Huncke, ou do casal
Hinkle, será preciso baixar a edição eletrônica de "Jack's Book" ou ir à página de internet dedicada a Ginsberg (allenginsberg.org).
Foram mantidos o roteiro de pseudônimos e nomes reais dos personagens das narrativas de Jack Kerouac, além do índice remissivo e da bibliografia -mas deveriam ter sido consignados os títulos já publicados no Brasil.
VERDADE
"O Livro de Jack" remete à questão da verdade biográfica. No prefácio, Gifford provoca, citando Freud: "Para ser biógrafo, você precisa ocupar-se de mentiras, acobertamentos, hipocrisias, falsidades e mesmo apagar sua falta de compreensão, pois a verdade biográfica é impossível e, se a ela chegássemos, não poderíamos utilizá-la... A verdade não é possível, a humanidade não a merece".
Contrapõe a esse julgamento categórico um comentário de Ginsberg: "Meu Deus, é como o 'Rashomon' -todo mundo mente, e a verdade vem à tona!".
Mas a melhor resposta à questão da "verdade" é dada por Gary Snyder: "Jack era, em certo sentido, um mitógrafo norte-americano do século 20".
Seus personagens e episódios se tornariam "parte da mitologia dos Estados Unidos na qual estava trabalhando". O que importa não é reproduzir a realidade, mas sim criar novos mitos, que se projetam no mundo e o transformam.
Essa argumentação jamais seria entendida pelos que se pretendem donos de suas imagens.
Se fosse no Brasil e a família Sampas, sucessores de Kerouac, adotasse o desastrado discurso contra as biografias que dominou o noticiário nacional recentemente, boa parte da bibliografia aqui mencionada não alcançaria seus leitores. O que sobraria de "O Livro de Jack" se o personagem-tema fosse algum Roberto Carlos?
CLAUDIO WILLER, 73, é poeta, ensaísta e tradutor. Publicou "Geração Beat" (L&PM Pocket, 2009), "Manifestos 1964-2010" (Azougue, 2013) e a tradução do "Livro de Haicais", de Jack Kerouac (L&PM, 2013), entre outros.

Marcelo Gleiser

folha de são paulo
Por que tanta pressa?
Para resgatarmos nosso controle sobre o tempo, é preciso criar espaço para a contemplação da vida
Sei que ninguém gosta muito de pensar em assuntos pesados durante essa época pré-natalina, mas, como todo momento de reflexão, o fim de ano é sempre propício para darmos uma parada e analisarmos um pouco como andam as coisas.
A primeira palavra que me vem em mente quando penso na vida moderna é dispersão. Existe uma competição constante pela nossa atenção entre os produtores de novas tecnologias, de comida, de roupas; há uma necessidade crescente de estarmos "ligados" com o que está acontecendo, e já não basta rádio e televisão; tem que ser pelo Facebook, pelo Twitter, pelo Google Plus e um bando de outras redes sociais.
Cada instante é ocupado por algo que vemos numa tela, pequena ou grande. A informação vem em torrentes incessantes. Se esquecemos nosso celular em casa, é como se tivéssemos perdido um dedo ou outra parte do corpo. Os celulares tornaram-se parte integral de nossa existência, um apêndice tecnológico que nos define como indivíduos. Tornaram-se um vício, como verificamos assim que pousa um avião e todo mundo se precipita para ligar seu iPhone ou seu Galaxy, como se naquele voo de 45 minutos a história do mundo tivesse se transformado de forma profunda e aquele e-mail que mudará a sua vida tivesse finalmente chegado.
Não nos permitimos mais espaço para a contemplação.
Sei que isso está parecendo papo de velho, atravancado com os avanços tecnológicos. Mas não é nada disso; eu mesmo tenho todos os brinquedos tecnológicos que existem e os uso como todo mundo, com muito prazer. Portanto, essa reflexão é para mim também, mesmo se digitada em meu laptop.
Muita gente me pergunta se o tempo está mudando, passando mais rápido. Essa é uma percepção psicológica da passagem do tempo, que nada tem a ver com a passagem física do tempo. A duração do dia muda muito lentamente, e muda no sentido inverso, aumentando e não diminuindo, devido à fricção gravitacional das marés causadas pelas atração entre Terra, Lua e Sol.
O tempo está passando mais rapidamente, ou assim o percebemos, porque cada vez temos menos controle sobre ele. O ócio é algo que consideramos quase que pecaminoso (esquecendo os pecados capitais); qualquer brecha de tempo nós enchemos com uma leitura no Twitter, do Facebook, de e-mail, um videozinho no YouTube, ou um podcast qualquer.
Uma das maiores vítimas dessa correria moderna é nossa conexão com a natureza.
Na ânsia pela informação, pouco desviamos os olhos das telas. Olhar para o céu é algo que raramente fazemos, especialmente nas grandes cidades. Para a maioria das pessoas a natureza é um conceito, algo que existe lá longe, nas fotos que vemos nas revistas, ou nos vídeos do YouTube e especiais de TV.
Para resgatarmos nosso controle sobre o tempo é necessário retornarmos à natureza, criarmos espaço para a contemplação das formas de vida, das árvores, das flores e animais; é necessário olharmos para o céu noturno, longe das luzes da cidade. Assim conseguiremos desacelerar, buscando outro tipo de informação que nos liga ao que temos de mais essencial: nossa relação com os ciclos e ritmos do Cosmo.

Novos 'Amarildos' surgem após violência policial no Rio

Novos 'Amarildos' surgem após violência policial no Rio


LUIZ FERNANDO VIANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA, DO RIO
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A revolta provocada pela morte do pedreiro Amarildo de Souza, torturado na sede da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Rocinha em julho, criou ou renovou forças em mulheres que buscam justiça para seus parentes, alvos de agentes do Estado.
Amiga de uma irmã de Amarildo e moradora há 50 anos da favela, a diarista Maria de Fátima dos Santos Silva, 54, nunca procurou advogados ou promotores para falar sobre o caso do seu filho.

Hugo Leonardo dos Santos Silva, 33, foi assassinado em 17 de abril de 2012, quando a ocupação policial preparava a instalação da UPP na favela. Mirelle Araújo, sua irmã, conta que viu cinco policiais, dois civis e três militares, indo atrás dele num beco.
Quando ela chegou ao lugar, o primeiro tiro já tinha atingido a barriga de Hugo. O disparo provocou uma discussão entre os policiais. Mas outros dois tiros foram dados. O último acertou a cabeça.
Marcio Isensee e Sá/Folhapress
Viviane (à esq.) e Daiana, respectivamente, irmã e mulher de presos, dizem que eles são inocentes
Viviane (à esq.) e Daiana, respectivamente, irmã e mulher de presos, dizem que eles são inocentes
O caso foi registrado na 15ª DP (Gávea) como auto de resistência, que é quando há troca de tiros. Nunca foi apresentada, porém, a arma com que Hugo estaria.
Ele, que deixou dois filhos, trabalhava como entregador e fazia "fretes" na Rocinha - levava cargas nos ombros a partes altas da favela.
"Ele era usuário de drogas, mas não era traficante. Os policiais perseguiam, ficavam querendo que ele apontasse o pessoal do tráfico", afirma Maria de Fátima.
Ela diz não ter feito nada antes porque sua família foi ameaçada. Depois do caso Amarildo, tem participado de manifestações e se informado sobre como reivindicar seus direitos.
"No dia em que o Hugo morreu, passou na TV: 'mais um traficante morto em troca de tiros'. Isso não sai da minha cabeça. Preciso limpar o nome dele", diz ela, para quem a violência policial aumentou com a UPP. "Têm muitos Amarildos e Hugos Leonardos por aí."
'VEM COMIGO'
Em 13 de julho, a Operação Paz Armada subiu a Rocinha com 20 mandados de prisão temporária e desceu com 58 detidos. Um dos excedentes era Ricardo Santos Rodrigues da Silva, 34, que nos três meses anteriores vinha denunciando abusos de PMs da UPP.
Já tinha sido detido por desacato ao brigar com um policial que o mandou interromper uma festa que organizava. Na madrugada do dia 13, segundo conta em carta escrita àFolha, estava desmontando os brinquedos infantis de outra festa quando um policial lhe disse: "Vem comigo, Ricardinho".
Conhecido na favela como Ricardo PSV, alusão ao nome do time em que jogava futebol às quintas-feiras, ele disse que era engano, reagiu, foi agredido e levado para a sede da UPP.
"A sorte é que ele disse: 'Conheço o pessoal dos direitos humanos. Se fizerem algo comigo, vocês vão se ferrar'. Podia ter sido outro Amarildo", conta sua mulher, Daiana Azevedo, 28.
Ela está cuidando da lan house do casal. Perdeu o emprego num restaurante por causa das visitas a Bangu 4, todas as quartas e sábados.
Nos dias 6 e 7 de novembro, duas reportagens da imprensa do Rio, baseadas em informações da polícia, afirmaram que Ricardo Santos Rodrigues da Silva, conhecido como Ricardinho 157, estava participando de uma guerra entre facções rivais.
Além da confusão de nomes -pois existe um Ricardinho e um Rogério 157, mas nenhum deles é Ricardo PSV- o homem que a polícia dizia estar dando tiros na rua estava, na verdade, preso havia quatro meses.
"Não queria que ele se envolvesse com direitos humanos, porque sei que todos acabam perseguidos pela polícia. Mas agora eu mostro a cara. Ele não tem mulher, tem uma aliada", afirma Daiana.
Amigo de Ricardo, Victor Hugo da Silva, 26, estava desempregado em 13 de julho, quando foi levado com outros homens para uma casa em que policiais perguntaram sobre armas e drogas e fizeram ameaças.
Embora sem antecedentes criminais, está até hoje em Bangu 4, onde outros presos o chamam de "chorão", por causa de seu desespero permanente. Ele e Ricardo ainda não prestaram depoimento, seja à polícia ou à Justiça. Victor diz, também em carta à Folha, que só em agosto, no presídio, descobriu que era acusado de ser um dos gerentes do tráfico na Rocinha.
"Você acha que, se ele fosse gerente do Valão (área da favela), moraria aqui e eu não teria dinheiro nem para visitá-lo na prisão?", pergunta Viviane da Silva, 27, no apertado quarto do irmão.
Ela perdeu um emprego para se dedicar à libertação de Victor, que tem três filhas. Ajudante de pedreiro, Bruno Fernandes Pinheiro, 23, está em Bangu 4, embora sem ligação comprovada com o tráfico. Escreveu carta contando que tem carteira assinada. Em 2007, o governador do Rio, Sérgio Cabral, chamou a Rocinha de "fábrica de produzir marginal".

Mãe luta por condenação de assassinos de adolescente


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DO RIO
 exemplo para as mulheres da Rocinha vem de outra favela da zona sul, a do Cantagalo. Deize da Silva Carvalho, 43, tenta há quase seis anos a condenação dos assassinos de seu filho.
Andreu Luis da Silva de Carvalho foi espancado até a morte em 1º de janeiro de 2009, no Centro de Triagem e Recepção do Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas). Tinha 17.

Por furtos, já havia sido apreendido duas vezes. Passou três anos no Instituto Padre Severino, centro com histórico de violência contra menores. Um policial disse à imprensa que Andreu chamara o Padre Severino de "parque de diversões", o que Deize nega. Ele ficou marcado.
Na noite de 31 de dezembro de 2008, desceu para a praia de Ipanema e encontrou um colega que tinha acabado de roubar um coronel norte-americano. O militar não reconheceu Andreu como autor do roubo, mas ele foi levado para o Degase.
O primeiro laudo do IML foi inconclusivo. Deize conseguiu a exumação do corpo. O segundo não determinou como se deu a morte, mas apontou traumatismo craniano, hemorragia e cortes. No velório, um cunhado de Deize contou 30 cortes.
Daniel Marenco/Folhapress
Deize Carvalho, 43, busca condenação de assassinos de seu filho; repercussão do caso Amarildo estimula luta por justiça
Deize Carvalho, 43, busca condenação de assassinos de seu filho; repercussão do caso Amarildo estimula luta por justiça
MINISTRA
As audiências na Justiça vêm sendo adiadas. Depois que Deize expôs seu caso num encontro no qual estava a ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, a audiência marcada para fevereiro de 2014 foi antecipada para 11 de dezembro. Seis agentes são acusados.
"Mesmo que meu filho fosse bandido, não tinham o direito de tirar a vida dele", diz ela, que atribui os furtos do filho a um desejo obsessivo -não realizado- de conhecer o pai, que foi morar nos EUA quando ele tinha três anos.
Várias vezes ameaçada, ela deixou um documento com informações que podem ajudar na investigação. E pôs no YouTube um vídeo em que resume sua história. "O único medo que eu tinha era o de perder meu filho. Depois disso, supero qualquer coisa. Perdi o medo da morte".
Quando policiais da UPP cometem violência no Cantagalo, moradores a procuram. Seu empenho foi fundamental para que a Justiça mandasse a júri -sem data marcada- o soldado Paulino Mendes Pereira pela morte de André de Lima Cardoso Ferreira.
Funcionário de supermercado, ele foi comprar um cachorro-quente para a mulher em 12 de junho, Dia dos Namorados. Dois PMs sem farda o agrediram e um deles atirou em suas costas. Grávida, sua mulher deu à luz uma menina cinco dias depois.
OUTRO LADO
Jovens presos são suspeitos, diz promotora
DO RIOApós as 58 detenções na Operação Paz Armada, a Polícia Civil indiciou 14 pessoas.
A promotora de Justiça Marisa Paiva acrescentou mais duas acusações: contra Ricardo Santos Rodrigues da Silva e Victor Hugo da Silva.
Em nota enviada pelo Ministério Público, Marisa Paiva afirma que "há fortes indícios" de que Victor Hugo seja um dos gerentes da venda de drogas da Rocinha e que Ricardo seja "gerente do preparo e da individualização da droga, além de esconder o armamento do bando". Já Bruno Fernandes Pinheiro seria um dos "gerentes da venda de maconha".
A promotora se baseou no relatório do delegado que fez as prisões, Ruchester Marreiros, que, por sua vez, obteve informações dadas por um soldado da PM infiltrado com autorização da Justiça entre os traficantes.
Este mesmo soldado disse ter recebido ligação de um traficante afirmando que havia matado o "Boi", apelido de Amarildo. Depois, ficou provado que era uma farsa. Hoje, 25 PMs estão presos pela morte do pedreiro, inclusive o major Edson Santos, que comandava a UPP.
Sobre a informação, atribuída nas reportagens da imprensa do Rio a policiais da UPP, de que Ricardo Santos Rodrigues da Silva trocava tiros na Rocinha em novembro, embora estivesse preso desde julho, Coordenadoria de Polícia Pacificadora diz que "investigações do setor de inteligência são sigilosas".
A respeito do soldado Paulino Mendes Pereira, acusado de homicídio no Cantagalo, a assessoria diz que a CPP respeitará a decisão que for tomada pela Justiça. "Vale ressaltar que esse episódio ocorreu no início da instalação da UPP, quando ocorriam casos de resistência ao trabalho policial", diz a nota.
Em relação à morte de Hugo Leonardo dos Santos Silva na Rocinha, a Polícia Civil informou que "um inquérito foi instaurado para apurar as circunstâncias do fato".
O Degase informou que a acusação pela morte de Andreu Luis da Silva de Carvalho "recaía sobre um dos funcionários, que foi demitido". Os outros agentes seriam suspeitos de omissão. O caso foi arquivado. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência diz que já recebeu Deize Carvalho, mãe de Andreu.

    Estudo inédito revela que homem brasileiro é mais baixo que roupas vendidas por grifes

    folha de são paulo

    Estudo inédito revela que homem brasileiro é mais baixo que roupas vendidas por grifes


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    PEDRO DINIZ
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
    GUILHERME GENESTRETI
    DE SÃO PAULO
    "O homem brasileiro não é 'tanquinho'. Tem barriga, é baixo, e seu peito e sua bunda são grandes. Ele é mais normal do que gostaria de ser."
    A frase do gerente de inovação, estudos e pesquisas do Senai, Flávio Sabrá, oculta outra realidade: o mercado de moda masculina nacional também pensa que o brasileiro é diferente. Algumas das principais grifes nacionais não oferecem roupas condizentes com o tamanho do homem médio que vestem.
    Baseada nos resultados parciais do estudo antropométrico realizado pelo Senai Cetiqt (Centro de Tecnologia da Indústria Química e Têxtil) e obtido com exclusividade, a reportagem visitou lojas de 11 marcas, no Rio e em São Paulo, e constatou que o desajuste médio entre corpo e vestimenta chega a 6 cm para mais na altura e 6 cm para menos no quadril.
    As grifes testadas -Alexandre Herchcovitch, Conto Figueira, Crawford, Ellus, Noir Le Lis, Osklen, Reserva, Riachuelo, Richards, Sérgio K. e VR- foram escolhidas levando em conta relevância no mercado, diversidade de públicos-alvo e por terem modelagens distintas entre si.
    O homem médio do Sudeste, de acordo com análise prévia, tem entre 1,72 m e 1,75 m. No teste da fita métrica feito com calças e camisas "slim", mais coladas ao corpo, nos tamanhos M e 40 das marcas, a soma é de quase 1,80 m.
    O quadril das grifes é menor do que deveria ser. Enquanto elas trabalham com diâmetro de 94,5 cm, a média da pesquisa é de 100 cm.
    Editoria de arte/Folhapress
    DESAJUSTE MAIOR
    Ao todo, o Senai mediu 1.806 homens em Minas Gerais, Rio e São Paulo. Quando forem tiradas medidas no Norte, no Nordeste e em parte do Sul, até julho de 2014, a média do desajuste da altura pode aumentar para até 8 cm.
    "Em Manaus, o homem padrão mede cerca de 1,64 m. Já em Belém, 1,68 m", explica Sabrá, que há sete anos conduz o maior estudo do gênero já realizado no país.
    Os homens citados por Sabrá, considerados baixos, representam 15,7% da população masculina. Os considerados altos, que medem mais de 1,81 m e encontram oferta ampla de roupas no mercado nacional, também correspondem a 15,7% do público.
    Numa loja da grife Crawford, por exemplo, o vendedor passou 22 minutos até achar uma camisa no tamanho 38, que corresponde a um tamanho P na grade atual adotada pelo mercado.
    "São as primeiras peças que desaparecem. Sempre sobram os tamanhos M e G", disse ele à reportagem, que não se identificou.
    Numa filial da grife carioca Reserva, no Rio, um vendedor justificou a falta de uma camisa com modelagem menor afirmando que o "carioca gosta de roupa folgada, ao contrário dos paulistas".
    Na loja da marca próxima à rua Oscar Freire, símbolo do consumo de alto padrão em São Paulo, o tamanho das peças M era similar ao do Rio. A oferta de camisetas pequenas, porém, era maior que no ponto carioca: havia uma arara só com esses modelos.
    As camisas da Reserva, as calças da Osklen e as peças da Conto Figueira e da Sérgio K. tiveram algumas das menores medidas apuradas.
    Bruno Passos, estilista da grife Conto Figueira, faz ressalvas à criação de uma tabela única a partir das medições. "Cada marca tem seu público-alvo e com suas medidas." O tamanho M da Conto, apesar de não ser tão grande quanto o das outras marcas pesquisadas, foi medido a partir do corpo do próprio dono (1,85 m).
    MUDANÇA URGENTE
    Segundo Flávio Sabrá, há na moda masculina um preconceito com o corpo real e uma relação esquizofrênica com a imagem de homem ideal vendida pelas marcas.
    "Se as mulheres têm muita carne e não encontram roupas que caibam bem em seus corpos no tamanho G, os homens têm problemas similares no tamanho P", diz o pesquisador, que já trabalha com a Associação Brasileira de Normas Técnicas para normalizar a tabela de medidas do vestuário feminino.
    Após reportagem da Folha em maio sobre o desajuste de medidas na moda feminina, a associação procurou o Senai para estabelecer nova tabela de referência.
    Já há encomendas para normalização de medidas de vestuários masculino, terceira idade, obeso e infantil.
    Alexandre Herchcovitch, João Pimenta e Sérgio K, de olho no mercado reprimido de baixinhos, já vendem peças PP, equivalente ao XS dos EUA e da Inglaterra.

    Confira parcial de estudo sobre as medidas do corpo do homem brasileiro


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    DE SÃO PAULO

    Confira a parcial do Estudo Antropométrico da região Sudeste, correspondente ao corpo do homem brasileiro. Segundo o Senai Cetiqt, os dados correspondem à média nacional; no entanto, as medidas de altura podem diminuir até 2 cm.

    Altos - maiores que 181,4cm (15,7% do total de homens pesquisados)
    Medidas de Maior incidência:
    3,0% - 183,1cm (altura); 106,6cm (busto); 94,6cm (cintura); 103,5cm (quadril)
    2,9% - 182,8cm (altura); 102,6cm (busto); 89,8cm (cintura); 100,6cm (quadril)
    2,8% - 182,6cm (altura); 98,7cm (busto); 85,0cm (cintura); 97,6cm (quadril)
    Médias dos homens mais altos:
    182,8cm (altura); 102,6cm (busto); 89,8cm (cintura); 100,6cm (quadril)
    175,6cm - 181,3cm = Baixa incidência. Não entra na contagem.
    Medianos - entre 172,6cm e 175,5cm (61,2% do total de homens pesquisados)
    Medidas de Maior incidência:
    12,1% - 174,0cm (altura); 103,4cm (busto); 91,8cm (cintura); 100,0cm (quadril)
    10,5% - 173,8cm (altura); 99,5cm (busto); 87,0cm (cintura); 97,0cm (quadril)
    9,3% - 174,2cm (altura); 107,4cm (busto); 96,6cm (cintura); 102,9cm (quadril)
    8,5% - 173,5cm (altura); 95,5cm (busto); 82,1cm (cintura); 94,1cm (quadril)
    5,9% - 173,3cm (altura); 91,5cm (busto); 77,3cm (cintura); 91,1cm (quadril)
    5,8% - 174,5cm (altura); 111,4cm (busto); 101,4cm (cintura); 105,9cm (quadril)
    Médias dos homens medianos:
    174,0cm (altura); 103,4cm (busto); 91,8cm (cintura); 100,0cm (quadril)
    167,1cm a 172,5 = Baixa incidência. Não entra na contagem.
    Baixos -menos de 167,1cm (15,7% do total de homens pesquisados)
    Medidas de Maior incidência:
    3,4% - 165,4cm (altura); 100,2cm (busto); 88,8cm (cintura); 96,5cm (quadril)
    3,2% - 165,2cm (altura); 96,2cm (busto); 84,0cm (cintura); 93,5cm (quadril)
    2,3% - 165,6cm (altura); 104,2cm (busto); 93,6cm (cintura); 99,4cm (quadril)
    2,0% - 164,9cm (altura); 92,2cm (busto); 79,2cm (cintura); 90,6cm (quadril)
    Médias dos homens baixos:
    165,6cm (altura); 104,2cm (busto); 93,6cm (cintura); 99,4cm (quadril)

    'Comprar roupa é um suplício', diz cineasta que fez filme sobre o tema
    Documentário 'Fora do Figurino', de Paulo Pélico, mostra confusão de tabelas nas grifes do país
    Segundo estilista, peças maiores são tradição no Brasil; 'Era sempre a mãe que comprava maior, para não perder'
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA DE SÃO PAULOO périplo em busca de roupas que caiam bem virou até enredo de filme. No documentário "Fora do Figurino - As Medidas do Jeitinho Brasileiro", lançado neste ano, o cineasta Paulo Pélico mostra que o país nunca teve um estudo para apontar os padrões de medida dos brasileiros.
    As referências das confecções, indica o filme, são tabelas estrangeiras. "As grifes têm contradições e o resultado é esse aborrecimento: em toda loja, a pessoa tem que provar a roupa. Isso tem um impacto econômico."
    Pélico, 57, cruzou o país para fazer o filme. "Em Manaus, não achei ninguém que não tivesse problemas", diz ele, contando sobre a importância do serviço "UTI do jeans", que funciona na cidade para encurtar as barras das calças.
    De estatura mediana (1,75 m), o cineasta conta que até para ele "comprar roupas é um suplício". "Não tem peça minha que não seja ajustada. A indústria do vestuário no Brasil não sobreviveria sem esse exército de costureiras."
    O estilista Bruno Passos, dono da marca online Conto Figueira, diz que criou no site uma tabela com as medidas de todas as peças para evitar contratempos. "É um facilitador. Minha margem de troca não chega a 10%."
    Segundo ele, a modelagem no país tende a ser maior por tradição. "Era sempre a mãe que comprava, e em tamanhos maiores por economia, para não perder' a roupa."
    O estilista João Pimenta, que vende peças em geral menores do que a média, diz que investir em roupas em formato tubular foi opção para o corpo brasileiro, com tórax e braços grandes.
    "Os homens estão com uma mania de academia que temos de acompanhar."
    Pimenta diz ver vantagem no fato de o brasileiro não corresponder, segundo ele, àquele perfil "elegante como o europeu" ou "grande como o americano". Segundo diz, "a roupa cai melhor em quem tem bunda", ainda que seja mais difícil costurar. "O homem brasileiro não é gostoso, é popozudo."
    ROUPA DE CRIANÇA
    "É um desgosto", afirma o designer gráfico Yuri Rios, 23, 1,54 m de altura. "Já cheguei a rodar quatro shoppings e não achar nenhuma roupa que me coubesse."
    Ele conta que já teve de recorrer a camisetas infantis ("para crianças de 12 anos") e calças da mãe. "O problema é que o cavalo aperta, e o bolso é pequeno", diz.
    Camisa social, ele tem duas --uma delas, de mulher. "Já sofri preconceito", afirma Rios. "Uma vez peguei calças femininas e experimentei no provador infantil. A vendedora me mandou sair e disse que as peças não eram para mim."
    O relações-públicas da Way Model, José Macedo, 28, diz comprar peças no exterior, em redes como Uniqlo e H&M, que têm "modelagem mais europeia e fit" --tudo para fugir dos ajustes.
    "Se você compra algo de um estilista e ajusta, perde a identidade da roupa", diz o rapaz, de 1,66 m. "Ser baixinho só é bom no avião."

      OUTRO LADO
      Grifes afirmam que há pouca procura por tamanho PP
      COLABORAÇÃO PARA A FOLHADas 11 grifes que tiveram medidas de calças e camisas M analisadas pela reportagem, Ellus, Richards, Riachuelo e VR afirmam não ver necessidade de ajustar sua modelagem média ou de incluir o tamanho PP em sua grade.
      A Ellus diz que sua tabela é baseada em pesquisas feitas com o consumidor. "A demanda por PP é extremamente baixa", diz a nota. A Richards afirmou em nota: "Mesmo o homem brasileiro sendo menor, nos preocupamos em alongar sua silhueta em camisas", diz a marca.
      Em nota, a VR afirma que seu "slim fit" cai bem para um consumidor baixo.
      A Riachuelo afirma usar uma média mais alta pois atende a todo o Brasil.
      A Sérgio K diz que há demanda por PP e que oferece produtos para homens menores. A Conto Figueira diz que não há procura.
      Alexandre Herchcovitch, Noir Le Lis, Reserva, Crawford e Osklen não responderam até a conclusão desta edição.
        ONDE ACHAR ROUPAS MENORES
        João Pimenta
        Os modelos tubulares e o recorte transpassado dos blazers de seis botões devem ser tendência na próxima estação
        Alexandre Herchcovitch
        Passará a produzir o tamanho XP em sua linha. A coleção de inverno 2014, inspirada em Lampião, dá início à empreitada
        Sérgio K
        O Midas da moda masculina "engomadinha" bota fé em linhas esporádicas no tamanho XP
        Topman
        Além do "slim fit", justo e curto, há uma preocupação extra com os materiais, que duram mais de uma estação

          Antonio Prata

          folha de são paulo

          Beyoncé

          Ouvir o texto

          Até o ano passado, eu era garçom num quilo, ali na Brigadeiro, mas o dono aposentou e voltou pra Uruguaiana. Eu tava há seis meses sem trabalho, devia dois paus e 700 pro meu cunhado, meu nome indo pro Serasa já, e ainda tinha problema de pressão. Aí, 13 de março desse ano, eu chego no bar do Ademir, cinco, seis horas da tarde, o Ademir, "Ô, Rui, cê já viu o papa argentino?".
          Tinham coroado o Francisco naquele dia. Anunciado, isso, mas eu não sabia, eu tava numa entrevista de emprego. Ele, "Pô, se cê não tivesse aqui, agora, eu jurava que era você no Vaticano!". Falei "Sai fora, Ademir! Papa argentino?! Eu, hein?". Pedi uma cerveja -que naquela época eu ainda bebia em público-, sentei numa mesa e esqueci. Beleza.
          Daí, mais tarde eu chego em casa, dez, 11 horas, vem a Luci correndo lá de dentro e já vai me puxando: "Rui, Rui, vem ver, vem ver você na televisão!". Pra falar a verdade, eu nem achei assim tão parecido, mas o pessoal comentou, até a minha filha, "Pai, pai, não acredito!" e tal, e eu acabei aceitando. Tem a careca, né? A orelha...
          Foi a Luci que deu a ideia, "Rui, cê fica aí procurando emprego de garçom, mas esse negócio de sósia parece que dá dinheiro, viu?". Eu, "Tá doida, Luci? Nunca fiz isso", e ela, "Que que tem?! É só vestir uma bata, fazer sinal da cruz e ficar acenando pro povo!". Sabe como é mulher, né?
          Pegou mais 250 com meu cunhado e mandou uma vizinha fazer a roupa. Depois, falou assim que eu precisava de um agente, que sem esse negócio de agente a coisa não vira e me deu o telefone do Marcello Perotti, que uma amiga dela tinha visto na Rede TV!, com dois Elvis. Elvis, Raul, Ronaldo, Silvio, os bonzão mesmo são tudo lá da agência.
          O Marcello disse que eu tinha tirado a sorte grande, que sósia de papa é firmeza: papa não sai de moda, não fica mudando o cabelo, não engorda, não faz plástica, redução de estômago, então, já viu.
          Da Luci ter a ideia até eu tá no Jô, foi o que? Um mês? Nem isso. Dei autógrafo pro Tomate. A Renata Vasconcellos disse meu nome no "Bom Dia Brasil", ao vivo. A Sabrina Sato me deu um beijo na testa. Se a pessoa, vamos dizer, se a pessoa não tem um psicológico forte, ela se perde.
          Lá no Ademir era todo mundo oferecendo cerveja de graça e eu só recusando, porque sósia de papa, né? Na rua a mulherada dando mole. Eu sei que não é comigo, é com o Francisco. Ele é muito querido. Mas a carne é fraca, rapaz, ele é papa, eu não. Complicado. Uma hora...
          Que que eu vou te dizer? Você viu a foto. Se quiser escrever aí no seu jornal, "Sósia do papa flagrado em motel com sósia da Beyoncé", eu não tenho como negar. Mas pra você vai ser só uma matéria. Isso, uma crônica. O pessoal vai rir, vai achar engraçado.
          Já pra mim, parceiro, vai acabar com a minha vida. Tô rico? Não tô, mas tô empregado, quitei a dívida com o meu cunhado, tô ajudando a minha filha a pagar a faculdade, vou entrar de sócio num quilo junto com o Ademir, até a pressão melhorou. Sem falar que eu amo a Luci e meu negócio com a Beyoncé foi só aquela noite, mesmo.
          Pronto. Queria que você me ouvisse. Ouviu. Agora faz aí o que a sua consciência mandar.
          antonio prata
          Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve aos domingos na versão impressa de "Cotidiano".