terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Preguiça - Suzana Herculano-Houzel

folha de são paulo
Todo dia, lá pelo fim do dia, ela chega. Você senta para ver televisão e, quando os comerciais interrompem seu programa favorito, você nota que o controle remoto ficou lááá longe –e decide que esperar alguns minutinhos até o programa voltar não será tão ruim assim. Então bate a sede, mas você avalia mentalmente a distância até a geladeira –e decide que não está com tanta sede assim. Ao menos, nada que faça o esforço valer a pena.
Essa é a preguiça, nome comum para um estado cerebral que afeta a nós todos, todos os dias, quase que com hora marcada: o estado de falta de motivação causado pelo acúmulo de adenosina no seu sistema de recompensa como resultado das várias horas passadas no estado acordado.
Um dos efeitos da adenosina é bloquear a ação da dopamina, substância que, no sistema de recompensa, leva à ativação do estriado ventral. Esta, por sua vez, dá aquele surto de prazer que, quando produzido logo após algo bem feito, serve como recompensa –e, quando obtido só de pensar em fazer alguma coisa, e logo antes de fazê-la, serve como uma cenoura na ponta da varinha e empurra seu cérebro à ação.
O sistema de recompensa, contudo, funciona em paralelo com outro sistema, centrado no córtex cingulado anterior, que avalia custos: o esforço de se mexer. Se você sai do sofá ou não depende de quem fala mais alto e ganha a disputa –seu cingulado anterior ou o estriado ventral. E com o estriado ventral encharcado de adenosina, dá para imaginar que a sede terá que ser muito grande, e o comercial, muito ruim para fazer você sair do sofá.
Como a adenosina que se acumula é um subproduto natural do funcionamento de neurônios e outras células no cérebro, não há jeito: a preguiça certamente baterá no final do dia. O que é bom, pois assim você sossega e tem mais chances de adormecer. Por isso, também, jogar videogames altamente motivadores à noite (ou ler aquele livro de suspense com uma reviravolta a cada página) é uma péssima ideia: não há adenosina que chegue para neutralizar a ação de tanta dopamina.
Mas nem toda relutância em se mexer é por preguiça. Estou de férias onde, se quiser, posso ficar o dia todo lendo na rede. Aí a competição é outra: entre o prazer de continuar na rede e o novo candidato a próxima atividade. Geralmente só ganham a cozinha e o banheiro, ou um joguinho de cartas... 

Ancestrais do homem tinham organismos que produziam mais vitaminas

Ancestrais do homem tinham organismos que produziam mais vitaminas


The New York Times"Em 1602, uma frota de navios espanhóis navegava pela costa pacífica mexicana quando os tripulantes adoeceram mortalmente. "O primeiro sintoma é dor no corpo inteiro, que fica sensível ao toque", escreveu o padre Antonio de la Ascensión, membro da expedição. "Surgem manchas roxas por todo o corpo, especialmente da cintura para baixo. Em seguida, as gengivas incham tanto que se torna impossível cerrar os dentes, e [as pessoas] só conseguem beber líquido. Finalmente, todas morrem repentinamente, ainda falando."
A tripulação estava sofrendo de escorbuto, doença comum, mas ainda misteriosa. Ninguém sabia como curá-la. Então o padre Ascensión testemunhou o que pensou ser um milagre.
Quando os tripulantes foram para a terra sepultar os mortos, um marinheiro colheu um fruto de cacto para comer. Sentiu-se melhor. "Todos começaram a comer os frutos e os levaram a bordo dos navios, de modo que, após duas semanas, estavam curados", escreveu o padre.
Pouco a pouco, ficou claro que o escorbuto é provocado pela falta de frutas e verduras. Mas foi apenas em 1928 que o bioquímico húngaro Albert Szent-Gyorgyi descobriu o ingrediente que cura a doença: a vitamina C.
Os experimentos dele fizeram parte de uma onda de pesquisas sobre vitaminas feitas no início do século 20. Cientistas descobriram que o corpo humano precisa de quantidades minúsculas de 13 moléculas orgânicas. Uma deficiência de qualquer uma das vitaminas conduz a doenças diversas: a falta de vitamina A leva à cegueira, a de vitamina B12, à anemia grave, a falta de vitamina D provoca raquitismo. Mas como foi que ficamos tão dependentes dessas pequenas moléculas?
Parece que as vitaminas foram essenciais à vida desde o início, cerca de 4 bilhões de anos atrás. As primeiras formas de vida conseguiam produzir suas próprias vitaminas, mas algumas espécies posteriores perderam essa capacidade. As espécies começaram a depender umas das outras para obter vitaminas, criando um complexo fluxo de moléculas que cientistas batizaram de "tráfego de vitaminas".
Toda vitamina é produzida por células vivas. A vitamina D, por exemplo, é produzida em nossa pele quando a luz solar entra em contato com um precursor do colesterol. O limoeiro produz vitamina C a partir de glicose. Enquanto uma proteína pode ser composta por milhares de átomos, uma vitamina pode ser feita de apenas algumas dúzias de átomos. No entanto, não obstante suas dimensões pequenas, as vitaminas expandem nossa versatilidade química. Uma vitamina coopera com proteínas para ajudá-las a realizar reações que não conseguiriam fazer sozinhas.
"Bactérias, fungos, plantas, humanos -todos precisam delas", comentou o bioquímico Harold B. White 3°, da Universidade de Delaware. Quando a capacidade de produzir vitaminas se desenvolveu, algumas espécies se tornaram especialmente hábeis nisso. As plantas, por exemplo, converteram-se em fábricas de vitamina C, enchendo seus frutos e folhas com a molécula.
As plantas levaram centenas de milhões de anos para se tornarem fabricantes eficientes de vitamina C, mas a produção de vitaminas pode mudar em muito menos tempo que isso. Nossos ancestrais precisaram de poucos milhares de anos para modificar sua produção de vitamina D. Quando os humanos deixaram a África equatorial e se espalharam por latitudes mais altas, o céu ficava mais baixo no céu e fornecia menos luz ultravioleta. Ao desenvolver pele mais clara, europeus e asiáticos puderam continuar a produzir um nível saudável de vitamina D.
Tirando as vitaminas D e K, não conseguimos produzir nenhuma das vitaminas de que necessitamos. Em alguns casos, nossos ancestrais eram capazes de produzi-las, mas perderam esta capacidade.
Muitos vertebrados conseguem produzir vitamina C. "Nós também deveríamos conseguir produzi-la, considerando que temos todos os genes para isso", comentou Rebecca Stevens, do Instituto Nacional de Pesquisas Agrícolas francês. Diferentemente de uma rã ou de um canguru, porém, temos mutações em um desses genes, conhecido como GULO. Incapazes de fabricar a proteína GULO, não conseguimos produzir vitamina C.
Os humanos tampouco conseguem produzir vitamina B12. Logo, precisamos obtê-la dos alimentos, como da carne. Mas os animais que consumimos não produzem B12 em suas próprias células. Em vez disso, a vitamina é fabricada pelas bactérias presentes nos intestinos deles.
Também nós abrigamos milhares de espécies de bactérias, que consomem os alimentos que comemos e sintetizam vitaminas. Isso quer dizer que dependemos de nosso próprio tráfego interno de vitaminas?
"Essa ainda é uma teoria", disse Douwe van Sinderen, da University College Cork, na Irlanda. "Mas as evidências de que as bactérias podem fornecer algumas das vitaminas de que precisamos estão aumentando." 

Nizan Guanaes

folha de são paulo
Davos, aula global
Dizer que Davos é encontro da elite desalmada, local do 'rolezinho' do dinheiro, é preconceito; Davos é tudo
No momento em que você lê este artigo, estarei chegando a Davos, na Suíça, onde participo de workshop com o Prêmio Nobel da Paz Muhammad Yunus, dentro do Fórum Econômico Mundial.
Mas, mais do que falar, vou ouvir e ouvir muito. Para quem tem a mente aberta e os ouvidos mais abertos ainda, Davos é o lugar.
Durante uma semana, numa pequenina estação de esqui da Suíça, o poder discute o mundo. E não é só o poder político ou o poder financeiro, mas o poder moral, o poder das ideias, o poder acadêmico, o poder da ciência, o poder da espiritualidade.
Existe algo importante no mundo que nós ainda não consegui- mos implementar no Brasil --fazer com que a nossa academia, as nossas universidades, sejam ouvi- das com a atenção que elas merecem e sejam parte atuante de nossa vida econômica e de nosso "establishment".
É tão fascinante ver jovens e velhos, artistas e bilionários, índios, lamas e "nerds", gente que fala línguas tão diferentes, se falando e se compreendendo. A presidente Dilma Rousseff e muitos de seus ministros estarão lá, o que é muito bom. Afinal, chefes de Estado de todo o mundo estarão presentes, inclusive praticamente todos os presidentes da América Latina. É muito oportuno que o Brasil também esteja lá para vender o seu peixe.
A quantidade de empresários brasileiros presentes também aumentou neste ano. É importante para nós que o mundo ouça, por exemplo, um Roberto Setubal falar. Isso valoriza o nosso país. A imprensa também prepara uma cobertura profunda do evento. E tudo isso vai inserindo o Brasil, com nossas forças e nossas mazelas, no grande palco internacional.
Nossos grandes concorrentes, como Índia, Rússia e México, por exemplo, estarão também presentes massivamente com todos os seus problemas, como corrupção, drogas, burocracia, problemas muito parecidos com os nossos. Mas estarão lá comunicando o que eles têm de força e o que eles têm de bom, discutindo e opinando sobre as grandes questões globais.
Davos ficou rotulado por alguns como encontro de direita e da elite desalmada do mundo, local do "rolezinho" do dinheiro. Isso é preconceito ou falta de informação. Davos é tudo. Davos é o lugar onde você pode ver Bill Gates, o fundador da Microsoft, subir ao palco e doar US$ 5 bilhões ou se surpreender ouvindo de maneira sublime um grupo de cientistas e financistas discutirem a felicidade.
Ao lado do TED Global (que neste ano será no Rio) e do South by Southwest, Davos é um dos principais "think tanks" do mundo, um lugar que me inspira, que me faz pensar, que me dá raiva, que me enche de esperança e me enche de medo. Mas nunca saio de lá o mesmo ou vazio.
Afinal, é alvissareiro ver como um ator do calibre de Matt Damon entende tanto sobre o problema de água. Ou ver mentes poderosas como Paul Polman, da Unilever, Eric Schmidt, do Google, Carlos Brito, da AB Inbev, Jamie Dimon, do JPMorgan, Indra Nooyi, da Pepsi, e Gary Cohn, do Goldman Sachs, discutindo não apenas a economia e os negócios mas a sustentabili- dade e o futuro deste planeta superaquecido de mais de 7 bilhões de pessoas.
Além disso, Davos lhe dá a oportunidade única de se atualizar sobre o que está acontecendo na sua região e na sua indústria. No meu caso, ouvir os presidentes da América Latina, os principais executivos da nossa região e as grandes cabeças do meu setor, o setor de mídia e comunicação, como Sheryl Sandberg, do Facebook, Maurice Levy e John Wren, da Publicis Omnicon, e Sir Martin Sorrell, da WPP.
Enfim, é uma aula.
Muita gente, quando cresce, acha que já sabe tudo e que não precisa aprender mais nada. Num mundo mutante como este em que vivemos, não é assim. O nome do jogo deste século é aprender. Agora, a tradição é passada de filho para pai.
É por isso que, quando me perguntam se eu vou falar em Davos, eu respondo: não, eu vou ouvir.

Rolezinho da USP - Reynaldo Turollo Jr.

folha de são paulo
Rolezinho da USP
Estudantes que fazem encontro anual em shopping sem serem abordados pedem, em tom de provocação, mesmo tratamento dado a 'rolê' da periferia
REYNALDO TUROLLO JR.DE SÃO PAULO
Muito antes dos "rolezinhos", encontros de jovens da periferia marcados em shoppings de São Paulo, centenas de jovens de classe média lotam anualmente um shopping na zona oeste para cantar, dançar e festejar.
São alunos da USP, que se encontram no shopping Eldorado, sem aviso prévio e sem serem incomodados pela segurança do lugar.
Organizado pelo centro acadêmico da FEA (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade), o evento acontece desde 2007, sempre na primeira semana de aula, e reúne cerca de 500 calouros, que entoam gritos de guerra no saguão de entrada.
Depois dos gritos --como "Ei, GV [Fundação Getúlio Vargas, tida como rival da FEA], vai tomar no c..."--, parte dos estudantes almoça na praça de alimentação, onde são entoados mais cânticos. O encontro dura cerca de uma hora e meia.
Na semana passada, após a polêmica causada pela proibição aos "rolezinhos", o centro acadêmico da FEA publicou uma nota em que afirma haver semelhança entre o encontro que promove todo ano e os "rolezinhos".
E lançou a provocação: "Se os eventos são similares, o tratamento deve ser o mesmo, independentemente de quem os frequente".
"Enquanto nos embasarmos em preconceitos para definir quem pode ou não frequentar determinado local, continuaremos tendo ambientes de profunda segregação social", diz a nota.
Para o aluno do quarto ano de economia, Bruno Miller Theodosio, 24, ex-integrante do centro acadêmico, "uma comparação estanque [entre os encontros] seria burra."
"Mas há pontos em comum: os dois são grandes aglomerações de jovens que não têm a intenção primária de consumir", analisa.
Segundo Theodosio, que participou de dois eventos com calouros no Eldorado, os seguranças do shopping acompanham a brincadeira, mas sem interferir. Lojistas não fecham as portas, e clientes não reclamam, diz.
"A gente grita ofensas em alto e bom som, e ninguém fala nada", diz. "Alguns sobem nas mesas, e os seguranças pedem educadamente para descer."
Neste ano, o centro acadêmico ainda não decidiu se vai manter a comemoração.
Segundo o Eldorado, o encontro reúne 200 alunos --menos do que estimam os participantes--, todos devidamente identificados com camisetas e rostos pintados.
"Não há no histórico dessas comemorações nenhuma atitude em que os seguranças precisassem intervir ou solicitar o apoio da polícia. O encontro, todos os anos, ocorre de forma organizada", afirma em nota o estabelecimento.

Ninfomaníaca - Vladimir Safatle

folha de são paulo
Ninfomaníaca
Há algo de rara beleza em "Ninfomaníaca", último filme de Lars von Trier. Depois de algumas semanas em cartaz, boa parte dos leitores interessados em cinema já viram ou ouviram falar da história da ninfomaníaca que "confessa" a um pescador sua história inesgotável de sexo com todo o tipo de homem. Por meio desse cenário improvável, Trier consegue fornecer mais uma vez as imagens de nossos impasses.
"Não sou uma pessoa boa", diz Joe ao pescador, enquanto narra sua maneira compulsiva e sem limites de fazer sexo. Em uma inversão dos papéis tradicionais, o pescador Seligman responde com metáforas primárias e discurso pseudocientífico não para levá-la ao arrependimento, mas para simplesmente tentar aliviá-la de sua culpa. Não há nada de errado em sua vida sexual, diz, no fundo, Seligman. O desejo constrói circuitos, alguns mais elásticos do que outros. Foi-se a época em que esconder suas fantasias sob recalques era sinal de normalidade.
Mas Joe sabe que errou; em algum momento ela errou. O filósofo francês Georges Bataille costumava dizer que o erotismo era uma das poucas formas que nos restavam para realmente nos perdermos pois, quando assumido em todas suas consequências, ele sempre nos levava para além do cálculo utilitarista de maximização do prazer e afastamento do desprazer. Do ponto de vista da lógica utilitária dos indivíduos modernos à procura da melhor rentabilização de suas experiências, o erotismo é um desperdício desprovido de sentido, algo inútil e completamente imprevisível.
Joe bem que gostaria de organizar toda essa bagunça, colocar horários em seus encontros, decidir o que falar para seus "amantes" apenas lançando dados. Então, para botar ordem, Joe começa a contar como, no fundo, sua procura se resume a três tipos de homens: os que se preocupam primeiro em fazê-la gozar, os que a tomam com força e... aquele que ela ama. Mas é exatamente esse que ela descobre, aterrada, nada sentir.
Esse nada que o amor trouxe não é o nada da indiferença própria ao caráter intercambiável dos seus amantes. Ele é o nada do que não tem lugar, não tem nome, do que quebra a música. Essa anestesia é aterradora porque demonstra que Joe errou, mas ela errou como quem entrou em uma errância cuja verdadeira função era descobrir o que não podia ser intercambiável.
Esse impossível de trocar não vem do fato de Joe estar diante de alguém que traz uma intensidade descomunal ou fantasias totalmente novas. Ela está simplesmente diante do que se sente de outra forma. Mas, para alguns, não há nada de mais aterrador.

Golfinhos e condor - Carlos Heitor Cony


folha de são paulo
Golfinhos e condor
RIO DE JANEIRO - O editor de um segundo caderno encomendara a Irineu, um free-lancer que estava sempre disponível, uma pesquisa sobre os golfinhos da baía de Guanabara, golfinhos que constam do escudo oficial da cidade do Rio de Janeiro, mas ausentes, há mais de um século, das águas que a cercam.
Não podia haver matéria mais estranha ao gosto e ao conhecimento de Irineu, mesmo assim ele fez o que pôde, entregou-a dentro do prazo, recebeu o pequeno cachê quase simbólico --e nunca viu a matéria publicada.
Verônica afastou uma pilha de jornais velhos de uma poltrona desbotada, sentou-se, olhou mais e melhor aquilo tudo, que era o que restava dele, do homem que respeitara e, acima de tudo, admirara. Daquela confusão, destacava-se um recorte do "New York Post", sobre o assassinato de alguns líderes políticos que faziam oposição ao regime militar instaurado em alguns países do Cone Sul da América Latina
Pelo que conhecia de diversos textos esparsos que Irineu volta e meia lhe dava para ler, ela sabia que havia uma ordem infernal naquele delírio a que se entregara, como se buscasse o elixir da imortalidade, a espada de Excalibur, o Santo Graal da Távola Redonda.
Ela própria sentia remorso por não ter levado Irineu a sério, na verdade admirara e respeitara o homem que lutava para continuar sendo o que era, mas sem entrar no mérito de sua causa. Se o mundo foi contra ele, ele foi contra o mundo --era o que sempre dizia, já nos momentos de exaltação provocados pela doença que o mataria.
Havia anotações esparsas na pequena mesa em que todas as noites comiam uma pizza ou uma sopa em lata. Havia uma palavra comum em quase todos os recortes: "condor". Irineu morreu seguindo uma pista que nada tinha a ver com os golfinhos da Guanabara.

    Helio Schwartsman

    folha de são paulo
    Liberdade, igualdade, rolezinhos
    SÃO PAULO - O interessante nesse debate sobre os rolezinhos é que ele revela na prática os limites teóricos sobre os quais nossa sociedade tenta equilibrar-se --e muito precariamente, diga-se de passagem.
    Não vemos mendigos e crackeiros dentro de shoppings. Eles não deixam de frequentar esses estabelecimentos porque não apreciem um ar condicionadozinho em tardes de calor, mas simplesmente porque os seguranças não os deixam entrar. Se o fizerem, são logo postos para fora. E ninguém reclama, porque os shoppings são estabelecimentos privados. Têm liberdade para criar algumas regras restritivas em relação a sua utilização. É bastante razoável que seja assim. Se o shopping fosse um espaço indistinguível do de ruas e praças, nenhum lojista pagaria mais para instalar-se ali.
    Isso, porém, é só metade da história. Vivemos num estágio de civilização em que já não se admitem mais algumas modalidades de discriminação racial e social. É verdade que ninguém advoga pelo direito de mendigos frequentarem shoppings, mas revolta-nos pensar que pessoas sejam impedidas de entrar num deles apenas em virtude da cor de sua pele ou de seus rendimentos. Exigimos certa igualdade jurídica entre cidadãos.
    Nesse contexto, são absurdas as liminares que pretendem proibir a realização de rolezinhos. É possível e desejável deter alguém que cometa um furto ou até que incorra numa das várias contravenções penais referentes à paz pública, mas não dá para impedir um conjunto indeterminado de pessoas de estar num lugar que é em princípio aberto ao público.
    A moral da história é que liberdade e igualdade, embora tenham inspirado a Revolução Francesa, são princípios incongruentes. Se os agentes são livres para buscar seus interesses, alguns acumularão mais bens do que outros e darão tratamento privilegiado a seus familiares, amigos e clientes, o que mina, na teoria e na prática, a ideia de igualdade.

      Os homens que roubavam livros - Raquel Cozer

      folha de são paulo
      Os homens que roubavam livros
      Sem a atenção do Estado e visados por colecionadores, publicações raras e documentos históricos são alvos de quadrilhas
      RAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHAAcervos de livros raros nem sempre recebem do Estado a atenção devida, mas são mina de ouro para quem entende do assunto. A combinação desses fatores, descaso e valor, leva a crimes milionários.
      Exemplo notório disso ocorreu em 2012, quando o italiano Marino Massimo de Caro foi preso por furtar mais de mil livros da Biblioteca Girolamini, instituição napolitana da qual tinha sido nomeado diretor meses antes.
      No Brasil, bibliotecários e investigadores afirmam que furtos e roubos de livros raros se multiplicaram em dez anos, embora não seja possível mensurá-los --sobretudo devido ao silêncio de vítimas, que não raro só descobrem os crimes quando as obras reaparecem.
      Mais de dez grandes casos foram noticiados no país desde 2003. Em vários, há um denominador comum, segundo os investigadores: um ex-estudante de biblioteconomia acusado de comandar uma quadrilha em todo o país (veja alguns casos abaixo).
      Esse cenário que tem como predadores amantes dos livros, gente que em teoria gostaria de preservá-los, inspirou a americana Allison Hoover Bartlett a escrever "O Homem que Amava Muito os Livros", lançado pela Seoman no último semestre.
      O livro acompanha, ao longo da última década, a história do ladrão John Charles Gilkey e do "bibliodetetive" Ken Sanders. "Em séculos de furtos do gênero, os grandes criminosos foram clérigos ou bibliotecários, gente apaixonada por livros. Uns fazem isso por dinheiro; outros, pela impressão de que os colegas não lhes dão o devido valor", diz a jornalista à Folha.
      Gilkey tem como alvo vendedores de livros raros e como método o uso de números de cartões de crédito alheios. Foi preso e solto mais de uma vez, e sempre se beneficiou do sigilo que os colecionadores, constrangidos pelos furtos, mantêm sobre os casos.
      ÁPICE
      "O ano de 2003 não é apenas um ápice [no roubo de obras raras no Brasil]. Há ali uma alteração de perfil", escreveu a pesquisadora Beatriz Kushnir, diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, em artigo de 2009.
      Referindo-se à descoberta, pela Polícia Federal, do furto de 2.000 itens do Itamaraty, no Rio, em 2003, ela diz que o caso "aponta para um novo alvo: papéis históricos, mais fáceis de transportar."
      "Até chegar a livros e documentos, há uma evolução. No roubo de arte sacra, é mais fácil mapear a origem. Livros e documentos são suportes com mais de uma cópia, o que facilita a desova da mercadoria", afirma Kushnir à Folha. Ela fez pós-doutorado no tema depois que, em 2006, descobriu um furto de mais de 3.000 itens do Arquivo Geral.
      Parte do acervo levado, como 87 gravuras de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), repareceu em 2007, quando foi preso pela segunda vez o homem que delegados da PF definem como o maior criminoso do gênero no país hoje.
      BANCA DE LIVROS
      Laéssio Rodrigues de Oliveira, 41, estudou biblioteconomia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e, no início dos anos 2000, teve uma banca de livros usados perto da Biblioteca Mário de Andrade.
      Foi detido pela primeira vez em 2004, após denúncia de um vendedor que comprara dele, por R$ 2.000, "De Medicina Brasiliensi" (1648), de Willem Piso. O livro, avaliado em até R$ 70 mil, pertencia ao Museu Nacional.
      Quando a polícia localizou Laéssio, achou com ele itens de instituições como o Arquivo Histórico de Blumenau e a Mário de Andrade. Meses depois, estava em liberdade.
      "Creio que 90% dos casos de furto do gênero no Brasil têm a ver com Laéssio e a quadrilha dele. Comete de furtos, passando-se por pesquisador, a assaltos", diz o delegado da Polícia Federal Fabio Scliar, que afirma ter interceptado cartas dele, de dentro da prisão, a comparsas de vários Estados.
      Também delegado da PF, Alexandre Saraiva, responsável pela investigação que resultou na segunda prisão de Laéssio em 2007, destaca o conhecimento demonstrado por ele --tanto sobre obras quanto sobre o funcionamento de instituições--, o que o leva a crer que haja ajuda de funcionários nos crimes.
      Dessa prisão, por tentativa de assalto à Casa de Rui Barbosa (em 2008, ainda detido, ele foi condenado por furto no Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico), Laéssio foi libertado no final de 2012.
      Meses depois, Beatriz Kushnir recebeu cinco pacotes, com o nome do escritor João do Rio (1881-1921) como remetente, com alguns dos livros furtados em 2006 no Arquivo Geral.
      "Minha hipótese é que há um depósito onde ele guarda o que não conseguiu comercializar. Espero que seja possível localizar esse depósito. Lá estará o acervo de várias instituições", diz.
      Saraiva diz que é preciso que as instituições reforcem sua segurança. E ressalta a necessidade de se investigar os receptadores --em geral, "pessoas de classe altíssima".
      "Esse tipo de crime acontece sob encomenda." Muitas vezes, o material sai do país.
      Laéssio responde hoje a mais de dez inquéritos. Após quase um ano em liberdade, foi detido novamente no fim de 2013, acusado de ser o mentor de um assalto à mão armada ao Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA) de Campinas. Está hoje no Centro de Detenção Provisória de Hortolândia.

      OUTRO LADO
      'É praxe acusar Laéssio de todo e qualquer roubo'
      DA COLUNISTA DA FOLHA
      Procurado pela Folha, Laéssio Rodrigues de Oliveira respondeu, via Coordenadoria de Unidades Prisionais da Região Central do Estado de SP, "não [ter] interesse em conceder qualquer tipo de entrevista a esse jornal, referente aos motivos de sua prisão ou qualquer outro fato".
      Ele está preso desde 18 de novembro no Centro de Detenção Provisória de Hortolândia, acusado de organizar um assalto à mão armada contra o Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas.
      Até outubro, o acusado era representado pelo advogado José Clevenon Alves Bezerra, que disse à Folha, por carta, ter se afastado do caso após a Polícia Civil de Campinas indiciá-lo, "indiretamente, como associado criminosamente a Laéssio". Sobre o ex-cliente, diz que "já é praxe das polícias (Civil e Federal) acusarem Laéssio de todo e qualquer roubo ou furto de obras de arte e livros raros".
      "Após um roubo contra o Instituto de Botânica da USP [em 2012], Laéssio foi acusado de mentor intelectual, mesmo estando preso em Bangu em regime fechado, e diversos meios de comunicação, inclusive a Folha, publicaram matérias acusando-o, sem qualquer prova, de comandar crimes de dentro da cadeia."

      José Simão

      folha de são paulo
      Rolezinho é 'Little Walk Around'!
      Sabe por que o Fluminense perdeu? Porque o gramado não era um TAPETE! O Tapetense perdeu do tapete!
      Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E os rolezinhos? Eu sei como resolver os rolezinhos. É só botar uma placa na porta do shopping: "Entrada proibida para menores de 18 salários mínimos".
      E o tuiteiro monteirobsb diz que o problema do rolezinho é o nome. Devia ser "Little Walk Around", ficaria no estilo Flash Mob!
      E olha isso: Ingresso Guns N' Roses, R$ 500, Ingressos Doctor House Arena Iguatemi Brasília, R$ 480. Vou dar um rolezinho! Rarará!
      E o problema dos rolezinhos são os rolezeiros que, em vez de ficar fora, resolveram ficar dentro! Um problema baseado em duas palavras: fora e dentro!
      O fora não pode entrar e o dentro tem medo de sair! Pronto!
      E sabe por que o Fluminense perdeu? Porque o gramado não era um TAPETE! O Tapetense perdeu do tapete!
      E o meu São Paulo começou mal: perdendo pro Bragantino. O Time da Linguiça! Os Bambis perderam pros Linguiças.
      E essa: "Ceni erra o cálculo". O Rogério Ceni tem que jogar usando óculos pendurados no pescoço, aqueles óculos pendurados numa correntinha!
      E esse predestinado: o goleiro do Bragantino, Rogério DEFENDI! E o melhor goleiro do mundo ainda é a cueca: segura duas bolas e um atacante! Rarará!
      E um leitor me disse que o São Paulo vai fazer três novas contratações: Félix, Eron e Niko! Rarará! Agora vai!
      E essa notícia escandalosa: "CBF oferece R$ 4 milhões para a Lusa ficar calada na Série B".
      A Lusa não precisa de R$ 4 milhões. A Lusa precisa de 4 milhões de torcedores. Rarará! CBF oferece 4 mihões de torcedores para a Lusa! Rarará!
      E diz que o Bahia contratou o Pinto pra jogar enfiado! Rarará!
      É mole? É mole, mas sobe!
      E saudades do Corinthians e do Posto Ipiranga: "Amigo, você sabe onde fica a torcida do Corinthians?". "Assaltando o Posto Ipiranga". Rarará!
      Humor de futebol não tem jeito, é baseado em rótulos e preconceitos: corintiano e flamenguista são todos marginais, são-paulino é bambi, palmeirense é porco.
      E santista é tudo aposentado! E o Fluminense perdeu porque o STJD estava em recesso. Rarará!
      Nóis sofre, mas nóis goza!
      Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

      João Pereira Coutinho

      folha de são paulo
      Lobos e escravos
      Só assistindo às chibatadas constantes de '12 Anos de Escravidão' entendi como estava errado
      Começou a temporada dos prêmios de cinema e eu cometi a imprudência de sair de casa. Para ver as obras do momento.
      "Imprudência" é palavra demasiado forte, admito: uma desilusão e um reencontro feliz não são propriamente um prejuízo. Mas de Steve McQueen, o diretor de "12 Anos de Escravidão", esperava tudo. Exceto "12 Anos de Escravidão".
      Até por razões curriculares: "Fome" (2008) e "Shame" (2011) são retratos de desumanização que, em sua radicalidade formal e narrativa, o cinema contemporâneo não se atreve a oferecer com regularidade.
      No primeiro caso, a desumanização de Bobby Sands, o ativista do grupo terrorista irlandês IRA que cumpriu greve de fome até as últimas consequências em inícios da década de 1980. McQueen, artista plástico, filmou essa autoflagelação com o "realismo sujo" de um Caravaggio. E Michael Fassbender, o ator, nasceu nesse filme como o maior talento da sua geração. Ainda é.
      "Shame" vai ainda mais longe, ao filmar Brandon (uma vez mais, Fassbender), um viciado em sexo e pornografia que é incapaz de estabelecer uma ligação emocional relevante com a humanidade em volta.
      Esse, precisamente, é o tema central do filme: a devastadora solidão de um homem condenado à superficialidade da carne.
      "12 Anos de Escravidão" tinha premissa igualmente poderosa e até verídica: Solomon, um negro livre de Nova York, é capturado e vendido como escravo para as plantações do Sul.
      Mas Steve McQueen acredita que a melhor forma de apresentar o sistema repulsivo da escravatura passa por uma sucessão ilógica e gratuita de quadros de violência física. Imagino que o propósito seja mostrar ao mundo que a escravatura era coisa ruim.
      Curioso: sempre julguei que fosse coisa boa. Só assistindo às chibatadas constantes de "12 Anos de Escravidão" entendi finalmente como estava errado.
      Escusado será dizer que, no redundante panfleto de McQueen, os personagens são reduzidos a caricaturas dignas de um filme de James Bond: os maus são muito maus; e os bons são muito bons, com destaque para Brad Pitt, um abolicionista "avant la lettre", com barba de Abraham Lincoln e retórica de Angelina Jolie.
      Aliás, por falar em Angelina, é incompreensível que a própria não tenha feito uma aparição no filme como Embaixadora da Boa Vontade para o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Seria um final perfeito: Angelina, aterrissando na fazenda de helicóptero, salvando todos os escravos e até adotando um deles. Talvez numa próxima.
      E o reencontro feliz? Ah, o reencontro: Martin Scorsese. Momento de nostalgia: Scorsese foi o cineasta da minha formação. Por causa dele, passei uma adolescência em Nova York, cometendo crimes com Johnny Boy (em "Caminhos Perigosos", 1973), viajando no táxi de Travis Bickle (em "Taxi Driver", 1976) ou assistindo aos combates entre Jake La Motta e Sugar Ray Robinson (em "Touro Indomável", 1980).
      Mas nos últimos anos --desde, digamos, "Cassino" (1995)-- havia a terrível sensação de que Scorsese brochara para o cinema. Cada filme dele (o inacreditável "Kundun"; o medíocre "Gangues de Nova York"; mesmo o estimável "Os Infiltrados") era um insulto à minha memória cinéfila e uma confissão de cansaço ou impotência.
      Com "O Lobo de Wall Street", uma extravagância visual alimentada a cocaína do princípio ao fim, Scorsese constrói a sua comédia mais negra, delirante e hilariante sem abandonar, claro, as obsessões morais da sua arte.
      Uma fortíssima educação católica não se apaga da noite para o dia: narrando a história de Jordan Belfort, um corretor de Wall Street na sua demencial escalada para a riqueza, Scorsese vai desfiando, com um frenesi literalmente infernal, todos os pecados que Dante escreveu na primeira parte da sua obra: luxúria, ganância, cólera, fraude e, obviamente, traição.
      O resultado só pode ser mesmo uma divina comédia, dessa vez reforçada por um Leonardo DiCaprio que, aos 40 anos, chegou ao fim da adolescência e entrou definitivamente na idade adulta.
      Obrigado, Mestre: depois do táxi de Travis Bickle e do ringue de Jake La Motta, também não esquecerei este "Grande Gatsby" decadente filmado com o tesão dos velhos tempos.

      Janio de Freitas

      folha de são paulo
      Desencontro no shopping
      O medo foi incutido pela visão de turba ameaçadora com que os rolezinhos foram tratados na imprensa
      Se as passeatas da classe desprivilegiada aos shoppings têm, mesmo, a expressão política e social que a imprensa paulista lhes atribuiu por duas obsessivas semanas, uma dedução tentadora se insinua: os jovens da periferia e os trabalhadores sem-teto têm mais cultura política e mais civilidade do que os universitários da USP, por exemplo, e seus iguais da mocidade de classe média.
      A comparação das condutas leva a evidências opostas. Tanto os rolezinhos e rolezões realizados como os impedidos, dos quais eram esperadas arruaças contraventoras e furtos abundantes, transcorreram nos melhores padrões de sociabilidade em aglomerações públicas. Os incidentes foram insignificantes em quantidade e em forma. Apesar da hostilidade das recepções, além de numerosas, armadas.
      A obtusidade política implícita na suposição de que depredar uma reitoria é ato político, como há pouco na USP e já em várias outras universidades, é coerente com a adesão de estudantes ao black bloc, comprovada em diversas cidades. Esses ativistas não alcançam sequer a percepção do que é bem público, uma carência só compreensível nas classes desatendidas pelos bens públicos.
      Mas nas universidades as ações embrutecidas e obtusas são de poucos, é a minoria. Não, é a grande maioria. É a cumplicidade da maioria que permite práticas como a vista na USP e na Universidade de Brasília, entre outras.
      Sim, é certo que os brutamontes das torcidas organizadas também são da classe desprivilegiada. Mas não têm a dimensão política que os diagnósticos predominantes na imprensa viram nos integrantes dos rolezinhos de jovens e nos rolezões dos trabalhadores sem-teto. A identificação de mentalidade e métodos da violência boçal das arquibancadas é com o black bloc e com os devastadores de reitorias e outras dependências universitárias. Cada grupo ao seu modo, todos estes são black bloc.
      O medo dos frequentadores e comerciantes dos shoppings foi incutido pela visão de turba ameaçadora com que os rolezinhos foram tratados, nas primeiras semanas do assunto, pela quase totalidade de sua abordagem na imprensa. A visão majoritária mudou, nos últimos dias, em diferentes graus. Mas os rolezinhos também mudaram. Se não eram manifestações com propósito essencialmente político, ou se o tinham em pequena dose, é perceptível que ficam diferentes com a mudança de sua composição humana: o significado que a imprensa lhes deu, naquelas duas semanas, atrai para os convocados rolezinhos vários movimentos e ativistas costumeiros dos protestos políticos ou sociais.
      O que será das duas modificações, ou novo desencontro, já é outro capítulo.