quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Fora da curva - Marcelo Coelho

folha de são paulo
QUESTÕES DE ORDEM
MARCELO COELHO - coelhofsp@uol.com.br
Fora da curva
Barroso era contra a condenação, mas não quis repetir a tese impopular de que não houve quadrilha
Por pouco não acabava mal a sessão de ontem do STF, julgando os últimos recursos do mensalão. O presidente do tribunal, Joaquim Barbosa, mais uma vez foi perdendo a paciência. Na circunstância, entretanto, Barbosa tinha razão. O mais novo ministro do Supremo, Luís Roberto Barroso, encaminhava-se para livrar os réus da condenação pelo crime de formação de quadrilha.
Até aí, não haveria grande surpresa. Quatro votos (Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia) já tinham sido dados, meses atrás, nesse sentido.
Para esses ministros, Marcos Valério, Dirceu e companhia não constituíram um bando estável, dedicado a cometer crimes indeterminados, que pusesse em risco a "paz pública", como estabelece o Código Penal. Tratava-se apenas de uma junção de várias pessoas, com funções próprias, dedicada ao propósito da compra de votos parlamentares.
A diferença entre uma coisa e outra, segundo o exemplo clássico do jurista Nelson Hungria, pode ser entendida se pensarmos no grupo de Lampião. A mera passagem do bando de cangaceiros por uma cidadezinha era suficiente, claro, para que ninguém pusesse os pés fora da porta de casa. Mesmo sem fazer nada, Lampião e seus comparsas ameaçavam o sossego geral; a mera existência do grupo já constituía um ato criminoso.
Os mensaleiros, sem mensalão, não constituiriam ameaça nenhuma. Não eram "quadrilha", nesse sentido. Apenas o mensalão, e não algum modo de vida turbulento, fez com que se unissem ao longo de vários anos.
Se quisesse, Barroso poderia somar-se aos que defendem essa tese, sem maiores inovações. Mas ele escolheu um caminho estranho.
Primeiro, repetiu suas críticas ao sistema político brasileiro, que induz à corrupção. Era, naturalmente, mais um de seus acenos à opinião pública. Rememorou então um famoso artigo que tinha escrito antes de ser conduzido ao STF. O julgamento do mensalão, repetiu, era um "ponto fora da curva". Primeiro, porque políticos raramente são condenados no Brasil. Segundo, porque a severidade das penas foi fora do normal.
Era o caso das penas relativas ao crime de quadrilha. Em alguns casos, chegaram perto do teto permitido pela lei. Mesmo para o crime de corrupção a dosimetria do STF tinha sido mais moderada.
Barroso deu a entender que a corte exagerou para evitar a prescrição. É que, quando as penas são baixas demais, e muito longo o tempo transcorrido entre o crime e a condenação, o Estado perde o direito de punir o criminoso.
A suposição de Barroso era razoável. Dito isso --o que aliás punha sob suspeita toda a decisão do plenário--, ele foi adiante. Calculou, numa hipótese teórica, a pena "real" que os acusados deveriam receber, caso o tribunal não tivesse exagerado na dose. Concluiu então que o caso da quadrilha estava prescrito.
Veio o acréscimo espantoso: de todo modo, os réus não tinham cometido esse crime! Joaquim Barbosa esbravejava. Barroso mantinha a fleugma.
Foi Cármen Lúcia quem apontou a incoerência de Barroso. Como calcular uma pena mais branda para o réu, se ao mesmo tempo se está absolvendo o mesmo réu? Se ele não cometeu nenhum crime, por que imaginar que sua pena deveria ser, "em tese", de tantos anos a mais ou a menos?
Barroso queria reforçar a tese de seu artigo, no sentido de que as penas foram altas demais. Mas é possível que também não quisesse ficar com o estigma de quem virou o jogo.
Era contra a condenação, mas não quis repetir a tese mais simples, e impopular, de que não houve quadrilha. Preferiu fazer cálculos meio fora de hora sobre as penas que deveriam ter sido e que não foram.
Foi ele, na verdade, o "ponto fora da curva". Na prática, dava no mesmo: livram-se os réus do crime de quadrilha. Mas não se livrou Barroso da opinião que de fato tinha a esse respeito.

    Ruy Martins Altenfelder Silva

    folha de são paulo
    RUY MARTINS ALTENFELDER SILVA
    A injustiça dos aposentados
    No INSS, a média mensal paga aos aposentados urbanos é de R$ 1.240. No funcionalismo federal, varia de R$ 6.558 a R$ 25.225
    Os aposentados estão sem motivos para festejar. A diferença de remunerações de segurados do INSS e da União mostra quanto os chamados benefícios pagos a quem dedicou sua vida de trabalho à iniciativa privada são escandalosos e injustamente menores.
    No INSS, a média mensal paga aos 10,8 milhões aposentados urbanos é de R$ 1.240. No funcionalismo federal dos três Poderes, a média varia de R$ 6.558, concedida a servidores civis do Poder Executivo, a R$ 25.225, recebidos pelos aposentados do Poder Legislativo.
    No intervalo, aparecem os militares (R$ 7.741), os inativos do Judiciário (R$ 16.726) e do Ministério Público Federal (R$ 19.324). Além das disparidades, há detalhes até pitorescos, como revela o ranking das aposentadorias publicado pela Folha: a remuneração média dos ativos do Judiciário é menor do que a dos aposentados: R$ 13.575 contra os já citados R$ 16.726.
    Enquanto isso, os valores pagos pelo INSS vêm sendo, sistematicamente, atualizados abaixo da inflação. Há quem defenda a unificação de dois sistemas hoje adotados para a aposentadoria: o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), que atende a contratados pela CLT, e o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), destinado ao funcionalismo. Entre outros argumentos, citam-se os recursos destinados a cobrir deficit crônicos que consomem mais de R$ 60 bilhões por ano para atender menos de 1 milhão de servidores incluídos no RPPS contra os menos de R$ 50 bilhões destinados aos mais de 30 milhões de beneficiários do INSS.
    Há outro ponto que preocupa. A Associação Nacional dos Servidores da Previdência e da Seguridade Social alerta para as alterações previstas no perfil demográfico do Brasil. Hoje, o número de pessoas com mais de 65 anos já ultrapassa um terço dos 30 milhões de aposentados e pensionistas do INSS, raspando na casa dos 14 milhões.
    Não é difícil imaginar a pressão que recairá sobre as contas da Previdência em 2060, quando a expectativa de vida terá saltado dos 71,2 anos (homens) e 78,3 anos (mulheres), segundo o IBGE, para, respectivamente, 77,8 e 84,5 anos.
    Além disso, nas próximas cinco décadas, a faixa de brasileiros com mais de 65 anos corresponderá a 25% da população, o que reduzirá os contribuintes ativos. Para quem acha que tais cenários não passam de exercícios de futurologia, vale lembrar que o total de beneficiários do INSS com mais de 80 anos já somava 3,2 milhões no final de 2011, e os com mais de 70 anos se aproximavam dos 10 milhões, quase 30% dos aposentados e pensionistas.
    Registre-se, a bem da verdade, que nos últimos anos a legislação vem limitando as distorções. Em 2003, a emenda constitucional 41 acabou com a paridade de remuneração entre servidores ativos e inativos. Em 2012, foi criada a Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo. Com isso, os servidores contratados a partir de 2013 serão submetidos a novas regras, que limitam os benefícios da aposentadoria ao teto previdenciário da época. Quem quiser receber mais terá de contribuir para um fundo de pensão.
    São bons passos. Mas ainda urge corrigir a remuneração dos milhões de aposentados do setor privado.

    Efeito mensalão - Roberto Delmanto Junior

    folha de são paulo
    ROBERTO DELMANTO JUNIOR
    Efeito mensalão
    O descrédito que o fenômeno da vaquinha trouxe à pena de multa poderá estimular tribunais a enaltecer ainda mais a pena de prisão
    A punição criminal, com suas penas de privação de liberdade e multa, há de ser sempre individualizada. O juiz, quando as estabelece, deve considerar as circunstâncias específicas dos fatos e a culpabilidade da pessoa que é condenada.
    Embora soe óbvio, nem sempre foi assim. Na antiga Grécia, por exemplo, a punição estendia-se a toda família do criminoso. Atualmente, punições coletivas, vedadas por nossa Lei de Execução Penal, ainda são uma realidade.
    Quanto à pena criminal de multa, é fato que nossas leis, para a maioria dos crimes, a preveem conjuntamente com a pena de reclusão. E quando a pena privativa de liberdade é igual ou inferior a quatro anos e o crime é cometido sem violência, sendo o condenado primário, a prisão será substituída por penas alternativas, que variam desde a prestação de serviço à comunidade a até mesmo uma outra pena de multa --a chamada prestação pecuniária--, que se soma à outra pena de multa originariamente prevista.
    É fato também que na atual redação de nosso Código Penal, toda punição pecuniária, que nada tem a ver com a reparação do dano, é considerada dívida de valor, sendo certo que a inadimplência não leva o condenado ao cárcere. Ele sofrerá penhora de bens, não podendo a execução alcançar terceiros, salvo se tiver havido fraude ou simulação para evitar que o Estado satisfaça o seu crédito.
    Estabelecidas essas premissas, gostaríamos de compartilhar com o leitor uma reflexão sobre as vaquinhas realizadas para o pagamento das penas pecuniárias impostas pelo Supremo Tribunal Federal aos condenados do caso mensalão.
    Não se discute, por certo, que as doações foram realizadas por pessoas de bem, alguns com depósitos módicos, outros substanciosos, tendo todos ampla liberdade para doar a quem quiser o seu dinheiro. Se doaram por convicção ideológica-partidária, por entender que o julgamento foi injusto, por amizade ou por admiração, não cabe a ninguém questionar. E certamente os condenados beneficiários das doações pagarão os impostos devidos, como o de transmissão de valores entre vivos.
    Porém, como todo dinheiro precisa ter origem, os depósitos deverão estar todos identificados, para a própria segurança daqueles que deles se beneficiaram.
    Por outro lado, embora insista-se no óbvio, como fez o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), de que não há lei que proíba doações para tal fim, atacando o ministro Gilmar Mendes, que levantou dúvidas diante do volume milionário e da rapidez da arrecadação, o fenômeno da vaquinha literalmente esvaziou a punição pecuniária imposta pelo Supremo, deturpando o caráter personalíssimo da sanção criminal.
    Aqueles que doam estão, no fundo, solidarizando-se e, de certa forma, cumprindo a pena no lugar do outro, o que traz para o Poder Judiciário grande desconforto.
    Ao mesmo tempo, réus mais humildes e menos politicamente influentes que se envolveram nos mesmos fatos certamente sentirão no bolso, com o arresto de seus bens, a implacável punição criminal pecuniária. A desigualdade de situações e de efetivo cumprimento de suas penas também gera uma incômoda sensação.
    Outro fato que nos chama a atenção é o de que esse episódio poderá gerar um efeito bumerangue em matéria de aumento do encarceramento. Isso porque o descrédito que o fenômeno da vaquinha trouxe à pena de multa poderá estimular que tribunais enalteçam ainda mais a pena de prisão como única resposta penal, certos de que, neste caso, a pena não poderá ser cumprida mediante vaquinha.
    Com isso, a situação das cadeias brasileiras --que hoje são a maior violação humanitária do continente americano-- poderá piorar ainda mais. De tudo, uma coisa é certa: o Judiciário, como Poder, foi desafiado e de certa forma vencido.

    Carnaval - Kenneth Maxwell

    folha de são paulo
    KENNETH MAXWELL
    Carnaval
    No ano de 1966, eu vivia com meu namorado, Carlos Alberto, um carioca negro, na rua Rainha Elizabeth, na esquina da avenida Nossa Senhora de Copacabana, perto da praia no Posto 6.
    Era minha segunda estada no Rio de Janeiro. Aluguei o apartamento na Rainha Elizabeth porque ficava perto de onde morava Júlio, por quem eu havia me apaixonado profundamente no ano anterior.
    Júlio era um estudante da Bahia que vivia em uma cobertura em frente ao Posto 6 com um empresário europeu muito mais velho. Conheci Carlos Alberto em uma noite em que Júlio e eu estávamos fazendo uma caminhada, ou melhor, um "footing" pela avenida Nossa Senhora de Copacabana, uma prática comum na época.
    O empresário europeu se sentia muito desconfortável na companhia de Carlos Alberto e, por isso, pouco vi Júlio dali por diante.
    Carlos Alberto era um jovem muito decente. Fui com ele ao Carnaval de 1967. Fomos ao "Baile dos Enxutos", no Cine São José, na praça Tiradentes, no centro do Rio, ainda que entre nós usássemos o termo "entendidos".
    A canção do Carnaval daquele ano era a marcha-rancho "Máscara Negra", de Zé Keti: "Quanto riso, ó, quanta alegria/ Mais de mil palhaços no salão/ Arlequim está chorando pelo amor da Colombina/ No meio da multidão".
    E continua assim: "Foi bom te ver outra vez/ Está fazendo um ano/ Foi no Carnaval que passou/ Eu sou aquele pierrô/ Que te abraçou/ Que te beijou, meu amor".
    (Quem quiser ouvir as marchinhas de Zé Keti e conhecer as suas letras poderá acessá-las em bit.ly/musicaszeketi).
    Foi no baile que vi Gil pela primeira vez. Ele era do Cantagalo, descendente de colonos suíços trazidos ao Brasil por dom João 6º entre 1819 e 1820. Tinha longos cabelos loiros e fortes mãos camponesas. Mudamo-nos para um apartamento na esquina da avenida Nossa Senhora de Copacabana com a rua Figueiredo Magalhães.
    Zé Keti trocou o Rio de Janeiro por São Paulo nos anos 80. As marchinhas desapareceram. Os direitos autorais se tornaram caros demais. Mas a reputação de Zé Keti foi restaurada quando ele voltou ao Rio, nos anos 90. O velho Cine São José foi demolido. Não voltei ao Brasil até 1977. Nunca mais vi Júlio, Carlos Alberto ou Gil.
    Mas Gil me levou ao Aragon, o navio no qual parti do Rio de Janeiro para Lisboa em outubro de 1967. Ele me deu um exemplar de "Os Sertões: Campanha de Canudos", de Euclydes da Cunha, a segunda edição corrigida publicada pela editora Laemmert, no Rio de Janeiro, em 1903.
    Euclydes da Cunha nasceu no Cantagalo em 1866.

    Rogerio Gentile

    folha de são paulo
    Boquinha de Carnaval
    SÃO PAULO - A Comissão de Ética Pública da Presidência enviou aos ministérios ofício lembrando como as autoridades devem se comportar no Carnaval. A recomendação básica é tão óbvia que chega a ser ridícula: todos podem festejar, "desde que por sua própria conta".
    Ainda que o texto trate de algo tão evidente, não se pode dizer que seja desnecessário. Afinal, estamos numa terra onde o presidente do Senado (Renan Calheiros, PMDB) viaja em avião da FAB para fazer implante de cabelo e o da Câmara (Henrique Alves, PMDB) leva a noiva e mais seis pessoas para assistir a um jogo de futebol num avião pago pelo erário.
    No Carnaval, então, as fronteiras entre os interesses público e privado costumam ficar mais tênues. No de 2012, por exemplo, o hoje presidenciável Eduardo Campos, aquele da "nova política", esteve no Rio com a família para assistir ao desfile. Segundo a prestação de contas do PSB em análise no TSE, os seis dias no hotel foram pagos com recursos do Fundo Partidário, criado para a manutenção das atividades dos partidos. Campos até hoje não explicou a importância da folia na vida do PSB.
    Em 2011, o governador do Paraná, Beto Richa, esteve com a mulher no Sambódromo do Rio como convidado da Brahma. Sem se importar com o papel de garoto-propaganda, usou uma camiseta com a marca da cervejaria. É esse o conceito do tucano de festejar por sua "própria conta"?
    No Carnaval de 2013, o ministro Aldo Rebelo (Esportes, PC do B) viajou pela FAB para Cuba com a mulher e o filho. Disse que estava em viagem oficial, a fim de fechar um intercâmbio olímpico, mas nunca ficou claro como seus familiares ajudarão o Brasil a obter mais medalhas em 2016.
    Razões, portanto, não faltam para o ofício do Conselho de Ética. Aliás, seria bom distribuí-lo internamente no próprio órgão, que, em setembro, arquivou apuração contra Rebelo, embora o ministro não tenha pago a "conta" da viagem dos parentes. O conselho não viu problema algum.

      Paula Cesarino Costa

      folha de são paulo
      Se não houver Carnaval
      RIO DE JANEIRO - Um motorista bêbado atropela um grupo que estava pulando em bloco na Vila Madalena, em São Paulo; valentões bêbados trocam socos e pontapés no meio de milhares de participantes de um bloco no centro do Rio; governador e pré-candidato à Presidência recebem vaias ao serem anunciados no maior bloco de Maceió, Alagoas. É o clima do país do Carnaval.
      Nem faz dez anos que muito se reclamava de que os blocos de rua tinham desaparecido e de que o Carnaval no Rio havia se elitizado ao ficar restrito ao Sambódromo, com seus caros 60 mil lugares (hoje são 72 mil).
      Pouco a pouco, de modo desordenado, mas espontâneo, os blocos foram reaparecendo aqui e ali. Pequenos grupos se multiplicaram como multidão e tomaram a cidade.
      O poder público apareceu para organizar o que nasceu para não ter organização --e para perder, ano a ano, a corrida por instalar banheiros suficientes para aliviar os corpos e recolher os restos deixados no chão.
      Bastou para que a cidade se dividisse também a respeito do Carnaval. De um lado, milhares que se divertiam de graça, sem corda nem regulamento, com nostalgia da inocência de festejos antigos. Do outro lado da calçada, os que reclamavam do trânsito tornado caótico, do xixi nas ruas, rasgando a fantasia da cidade cordial. No meio, um monte de gente cantando e dançando feliz.
      Amplia-se o coro de quem não quer ser "atrapalhado" por semelhantes que, rindo à toa, cantam desafinados um país idílico, usando roupa do sexo oposto, jogando confete, serpentina e espuma branca. Incomodados, que sonham em transportar-se para um ano sem Carnaval.
      Pois aconteceu em 1894. Machado de Assis assim o descreveu: "Quando eu li que este ano não pode haver Carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha, que no dia em que o deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba".

        José Simão

        folha de são paulo
        Carnaval! Vai, Vomita e Volta!
        O Jamelão detestava esse termo puxador porque puxador é puxador de fumo ou puxador de carro!
        Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E essa: "Na festa do Oscar, caviar, 600 lagostas e 4.000 vinhos". Foi a Roseana quem fez a lista de compras? Não foi, mas ela vai copiar. Ou então achou muito modesta pro gosto dela! Rarará!
        E essa: "SP terá blindados antiprotestos com jatos d'água". OBA! Nesse calor vai ser uma delícia! Podia ser jato de lança-perfume! Rarará! E eu tenho foto de um protesto no Rio: "Não Vai Ter Xota!". E ainda tem o cartaz: "Chupa Bolsonaro! Mas tem que revezar!". Rarará! Protesto Carnaval!
        E escola de samba devia ser assim: quanto mais celebridade, mais ponto perde! A coisa mais antiglamorosa do mundo é ver celebridade suando. Celebridade não sua! E os carros alegóricos estão cada vez mais altos. O mais baixo tem 300 metros de altura. Carnaval em Dubai!
        E puxador de escola de samba? O genial Marcius Melhem, da Globo, falou que puxador de escola de samba pensa que a gente é surdo: "Portela, o dia clareou, CLA-RE-O-U!". "Mangueira, mostra a tua raça. A TU-A RAAA-ÇA!". E continuam: "E lá vou eu! E LÁ VO-U EEEEE-UUUUU". Rarará.
        O Jamelão detestava esse termo puxador porque puxador é puxador de fumo ou puxador de carro!
        E uma amiga vai sair fantasiada de dentista: só de fio dental. E uma outra vai sair de empada: uma azeitona no umbigo!
        E as peladas são as mesmas do ano passado. Com o peito dez vezes maior! O sambódromo é o Vale do Silicone!
        E os blocos? Os blocos estão bombando! Direto de Niterói: Vai, Vomita e Volta.
        Esse vai ser o meu slogan de Carnaval: Vai, Vomita e Volta. Não admitimos desistências! Rarará!
        E direto de Olinda: Quer Mamar, Vai Pra Debaixo do Burro. Eu, hein? Que sutileza! Rarará! E no Rio, o bloco dos corretores: Os Imóveis. Rarará! E no Guarujá fizeram um bloco pra melhor idade: Bloco da Rola Cansada! Mas pela foto dos foliões não é só a rola que tá cansada, não! Rarará!
        É mole? É mole, mas sobe!
        O Brasil é Lúdico! Olha o cartaz no poste: "Sumo com a pessoa amada durante o Carnaval. Devolvo na quarta-feira de cinzas. Ligue já". É melhor ligar logo porque o cara deve tá com a agenda lotada. Rarará!
        Nóis sofre, mas nóis goza! Hoje, só amanhã!
        Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

        Ator encarna o artista Basquiat em suas últimas horas de vida

        folha de são paulo
        Ator encarna o artista Basquiat em suas últimas horas de vida
        Peça recria história do pintor americano morto aos 27
        GUSTAVO FIORATTIDE SÃO PAULOAo fundo da cena, um painel branco pendurado ao teto desce até o chão e continua apoiado à superfície do piso.
        Este é o elemento cênico central do espetáculo "In the Place "" Um Lugar para Estar", em que o ator Alex Mello interpreta nova leitura sobre a vida do artista americano Jean-Michel Basquiat (1960-1988). A peça está no Sesc Consolação até o dia 28.
        Durante uma hora, Mello encarna Basquiat em seu último dia de vida. O texto é de próprio punho. A direção é de Gilberto Gawronski, diretor habituado a solilóquios. Recentemente, ele encarnou a figura de um canibal no monólogo "Ato de Comunhão" (2011), também baseado em fatos reais.
        Como Basquiat, Mello vai pintando essa tela em branco, enquanto narra episódios na vida do personagem.
        Recupera fatos da infância, o início da carreira grafitando muros, a escalada para o sucesso em Nova York, a relação com a heroína, o sentimento de estar deslocado no mercado nova-iorquino das artes. Por fim, vem a morte, aos 27 anos, por overdose.
        Além de criar em cena imagens que remetem ao desenho do pintor, no painel branco, Mello também risca palavras soltas e poemas.
        "As telas de Basquiat são assim, como diários, trazem o café que ele derrama sem querer, ou marcas dos pés dele", descreve o ator. Cada espetáculo resulta em um painel diferente.
        FIM DE CASO
        Também há menção à vida afetiva do artista. O espetáculo recria, por exemplo, um telefonema que ele teria recebido de uma namorada. Ela não é nomeada, mas a cena faz referência ao relacionamento entre Basquiat e Madonna.
        Com o fim do namoro, a cantora devolveu a ele uma série de telas. "Depois, quando viu o valor que as obras conseguiram, ela se arrependeu", conta Mello, sobre episódio narrado também pela biografia "Basquiat", de Leonhard Emmerling.
        Andy Warhol (1928-1987) é outro que está na lista de celebridades amigas.
        SIMILARES
        O espetáculo embarca em uma onda recente de projetos teatrais similares, criados a partir de biografias de pintores e escultores célebres.
        Nos últimos dois anos, São Paulo viu em cena a vida de Auguste Rodin (1840-1917) e de Camille Claudel (1864-1943), em "Camille e Rodin", com texto de Franz Keppler e direção de Elias Andreato.
        O pintor Mark Rothko (1903-1970) também foi levado ao palco, encarnado por Antonio Fagundes em 2012, com direção de Jorge Takla.

          Janio de Freitas

          folha de são paulo
          Black blocão
          É o blocão da chantagem; eles se dizem independentes, mas são os mais dependentes de verbas e cargos da União
          Eles se dizem "independentes". São os que dependem, para qualquer dos seus objetivos, de cargos governamentais, de dinheiro liberado pelo governo e de outras deformações para fazer o seu comércio político, e outros comércios. Agregados em oito aglomerações que se fazem chamar de partidos, associaram-nas para a ação na Câmara sob o nome geral de "blocão".
          Os líderes dos oito partidos, reunidos na casa do idealizador do blocão, deputado Eduardo Cunha, não pouparam clareza no propósito de opor resistência, com cerca de metade do plenário, às propostas e necessidades da Presidência da República nas votações da Câmara.
          Exceto o Solidariedade do Paulinho da Força, PMDB, PDT, PTB, PP, PSC, Pros e PR são "partidos aliados" do governo. "Aliados insatisfeitos." Porque não recebem do governo "a atenção" desejada. A resistência terá, portanto, a finalidade de torná-los satisfeitos.
          Resistir para provocar negociação. Negociação para ser atendido em indicações a cargos públicos, dinheiro do Tesouro Nacional liberado pelo governo e outras deformações que alimentam a política como comércio.
          Logo, o que está criado na Câmara é o blocão da chantagem. Não mais a chantagem de uma bancada, nem a chantagem de dirigente com meios de direcionar a pauta, sustar votações, marcar ou evitar sessões extraordinárias. A chantagem passa a ser um componente da Câmara como instituição.
          O esperável do governo é que procure contornar ou atenuar seu novo problema buscando entendimentos com alguns dos líderes e movimentando o vice-presidente Michel Temer, para agir no PMDB. É pena, mas a resposta do governo não será a necessária, a que seria a resposta à altura.
          Os deputados do blocão serão, quase todos, candidatos a reeleger-se. Ou a mandatos mais ambicionados. Chantagem do blocão? O primeiro passo da resposta poderia ser apenas um aviso: a presidente comunica que irá à TV todos os dias, em aparição oficial, para informar ao país --aos eleitores-- os nomes dos deputados que exigem vantagens descabidas para votar iniciativas e soluções esperadas pela população. De quebra, despejo logo do governo, para confirmar sua disposição, de uma dúzia de pendurados em bons cargos por indicação de deputados.
          O governo depende da Câmara e do Senado. Mas os deputados com força eleitoral bastante para garantir-se são muito poucos. A diferença é que uns têm audácia. O outro, é herdeiro do longo vício de ajoelhar-se.

          INJUSTIÇAS


          A comemoração de 20 anos do Plano Real foi uma homenagem à injustiça. O plano só existiu porque Itamar Franco estava determinado a arriscar tudo contra a inflação. Antes de Fernando Henrique chegar à Fazenda, Itamar destituiu dois ministros, Paulo Haddad e Gustavo Krause, por relutarem em lançar um projeto anti-inflação radical, mais um, Eliseu Resende, por falta de condições políticas para a tarefa.
          Fernando Henrique só lembrou Itamar Franco para falar do convite que lhe entregou o Ministério da Fazenda, e a versão é, no mínimo, imprecisa.
          Foi ainda a persistência de Itamar que fez Fernando Henrique afinal desengavetar o plano, que já estava pronto há quase um semestre. E disso veio a outra injustiça da comemoração. André Lara Resende só foi citado no discurso de Fernando Henrique em cambulhada com uma fieira de nomes, presentes até quem não colaborou --ainda bem-- sequer com vírgulas no projeto. André Lara, uma inteligência criativa, foi o artífice do plano, com a colaboração também imaginosa de Pérsio Arida.

          Contardo Calligaris

          folha de são paulo
          Hip-hop na linha
          Proliferação de regras inúteis serve para compensar o fracasso das leis fundamentais
          Faço parte do conselho da organização social que administra a São Paulo Escola de Teatro, com sede na praça Roosevelt. A escola, uma iniciativa do Estado, oferece formação em atuação, cenografia, figurino, direção, dramaturgia, humor, iluminação, sonoplastia e técnicas de palco.
          Muitos alunos recebem bolsa durante os estudos. O vestibular é concorrido. Os recém-formados são bem-vistos pelo mercado de trabalho. As reuniões do conselho são amistosas. Em suma, está tudo bem.
          Agora, imaginemos que, um dia, por decreto, a escola pare de "apenas" formar seus alunos e passe a capacitá-los oficialmente, ou seja, a dotá-los de um carimbo que os separe de seus concorrentes não carimbados. Naquele dia, eu me demitiria.
          Acho ótimo que existam formações nas artes, mas nenhuma formação artística deveria se transformar em capacitação exigida para poder exercer a profissão. Você quer ser artista plástico? Curse uma faculdade de belas-artes, entre no sindicato e tire a carteira. Quer ser cineasta? Dançarino? Poeta? Escritor? Mesma coisa.
          Como surge uma ideia dessas? É ganância de dono de escolas particulares? É frustração de alguns, que talvez procurem migalhas de poder tornando-se quadros sindicais? É vontade de que o Estado controle a vida de artistas inquietantes, distribuindo fomentos aos patenteados?
          Para mim, dos males, o menor é a hipótese da ganância. Os outros são pesadelos da ex-União Soviética, em que os artistas de carteirinha (profissional, sindical e do partido) eram promovidos pelo Estado, enquanto os outros lambiam vitrines no frio, ou apodreciam em campos de concentração.
          Mas a paixão por regras e regulamentos tem também outra origem. Um exemplo. Alguns andam pelo mundo carregados de regras: não podem colocar o pé em cima de uma junta, nem subir um degrau com o pé esquerdo. Esses indivíduos sofrem de um excesso ou de uma falta de regras? Curiosamente, eles sofrem de uma falta: a paixão pela proliferação de prescrições desnecessárias é quase sempre um efeito da fraqueza das leis que importam. É como se a proliferação das regras inúteis quisesse compensar o fracasso das leis fundamentais.
          Em regra, a Constituição de um país é uma súmula de princípios essenciais. Durante a Constituinte, muitos lamentavam (com razão) que a carta brasileira fosse excessivamente extensa e detalhada; eles observavam que, no caso do Brasil, talvez a extensão do texto fosse uma tentativa (vã) de ocultar a fraqueza endêmica dos princípios.
          Falo disso tudo por causa do projeto de lei 6756/2013, do deputado federal Romário (texto de Juliana Gragnani na Folha de 12/2), no qual é proposta a regulamentação do hip-hop. Pelo projeto, disc-jockeys, mestres de cerimônias, rappers, beatboxers (percussionistas vocais), dançarinos de break dance de rua e grafiteiros serão profissões regulamentadas, com aprendizes (a partir dos 14 anos) e estagiários (a partir dos 16), com inscrição de todos na Superintendência Regional do Trabalho e com "cursos técnicos de capacitação profissional, em instituições credenciadas e reconhecidas pelo Ministério da Educação".
          O projeto promete que nenhum profissional do hip-hop colocará "em risco sua integridade física ou moral". Ora, é possível que se torne obrigatório o uso de capacete e cotoveleiras para o break dance, mas, quanto à integridade moral, mal é preciso dizer que o projeto é o fim da alma do hip-hop.
          Chega a ser engraçado que o projeto invoque a Constituição e os direitos humanos, pois ele restringe o básico: o livre exercício de uma prática cultural.
          Agora, apesar de meu temperamento anárquico, pensando bem, acho que sou a favor de ao menos um curso de capacitação obrigatória. Proponho que seja instituído um curso de capacitação para candidatos a todo cargo legislativo: só dois anos, uma das matérias sendo um apanhado básico de história das ideias sociais e políticas.
          Um seminário de primeiro ano poderia ser sobre o surgimento, no século 18, da ideia de que é preciso legislar para proteger a liberdade e os direitos dos indivíduos, cuidando para que o Estado não se meta à toa na organização das vidas e que a extensão de sua intervenção seja sempre a mínima indispensável.
          Eu me ofereceria para dar esse seminário e preparar a apostila, traduzindo o essencial --tudo de graça, mas, infelizmente, não sei qual curso eu deveria fazer antes, para me capacitar.