domingo, 12 de janeiro de 2014

"É extraordinário viver", afirma o cantor Marcelo Jeneci

folha de são paulo

"É extraordinário viver", afirma o cantor Marcelo Jeneci


NATÁLIA ALBERTONI

DE SÃO PAULO
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Se o cantor Marcelo Jeneci pudesse escolher uma frase de "autoajuda", seria esta: "é extraordinário viver". A sentença também traduz o clima de seu disco recém-lançado, "De Graça", o qual ele apresenta no Sesc Pompeia, na sexta (17), no sábado (18) e no domingo (19).
Apesar do clima alto-astral da maioria das novas composições —que se contrapõe à melancolia do primeiro, "Feito pra Acabar"—, Jeneci diz que não é um otimista. "O otimista acredita que tudo vai dar certo. Eu não. Espero que, dos erros, possa sair algo de positivo", diz em entrevista à sãopaulo.

Marcelo Jeneci lança "De Graça"

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Adriano Vizoni/Folhapress
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O compositor Marcelo Jeneci em sua casa, no Alto da Lapa, em São Paulo
A fase positiva veio com uma mudança física. Nas imagens promocionais, Jeneci aparece purpurinado. Ele explica que posou para as fotos num período próximo ao aniversário (que é dia 7 de abril) e que na época estava "adorando me maquiar, usufruir desse lance da maquiagem, como se faz na Índia". Apesar de ter começado a usar o recurso em shows, disse que não tem utilizado, mas nunca se sabe. "Se a roupa for muito simples, vale à pena. Quanto mais opção melhor. Para mim o futuro tem a ver com alternativas.
Mesmo com toda a positividade —como ele prefere classificar—, o CD também tem uma parte reflexiva. "Mais de uma pessoa me disse que o disco tem um lado A e um lado B. É um pouco como a vida se dá para mim: a superficialidade da diversão e a profundidade. Por isso há duas camadas também na arte da capa", explica.
Questionado se a dualidade existe por um dificuldade de escolher algum gênero para se debruçar, ele diz que não, que escolheu fazer o disco dessa forma porque não se satisfaria se o fizesse com uma única linguagem.
Mas concorda que "a gente vive numa época muito fértil culturalmente, mas que ao mesmo tempo traz uma doença que é uma dispersão...".
É das nuances que surgiram letras como "Alento", "O Melhor da Vida" e a paulistaníssima "Tudo Bem, Tanto Faz", que ele cantarola ao telefone (Sair?/Pra quê?/Prefere só ligar a TV/Jornal pra ler/E aquele amor, melhor esquecer) e leva ao palco ao lado de antigas como "Pra Sonhar" e "Felicidade".

Antonio Prata

folha de são paulo
Por um fio
Ninguém percebeu que o golpe das engrenagens já estava em marcha, na surdina, há mais de cem anos
Não foram poucos os cineastas que filmaram o levante das máquinas contra o Homem. Em "2001 - Uma Odisseia no Espaço", o computador HAL se cansava de computar e partia pra um motim solitário, dominando a nave com sua melancólica agressividade. Em "Blade Runner", androides superinteligentes saíam matando quem fosse preciso, em busca de uma recarga que estendesse seus curtos dias sobre a Terra. Em "O Exterminador do Futuro", os robôs se davam conta de que já não precisavam mais da gente pra passar WD-40 nas juntas e, sem muita explicação, resolviam nos eliminar do planeta. Nos três casos, o embate se dava no futuro distante e o pega pra capar (ou pra desparafusar) era explícito. Ninguém percebeu que o golpe das engrenagens já estava em marcha -e na surdina- há mais de cem anos. E como perceberia? Que mente anticlimática criaria filme tão triste em que os humanos seriam dominados não por gigantescos computadores, por replicantes perfeitos ou robôs soltando mísseis pelas ventas, mas por este aparelhinho ridículo chamado telefone?
Agora, olhando pra trás, tudo faz sentido; quase podemos ouvir o ruído da nossa liberdade sendo sugada, pouco a pouco, pelos furinhos do bucal. Ora, uma geringonça que permite que você seja encontrado em casa, a qualquer momento, por qualquer pessoa, só podia estar mal-intencionada. Eis o plano inicial do telefone: jogar uns contra os outros, deixando os funcionários sob o controle dos chefes, as sogras próximas das noras, as ex-namoradas a poucos cliques dos bêbados; os chatos experimentaram um salto no poder de alcance inédito desde a invenção da roda.
Felizmente, enquanto o inimigo estava preso à parede, como um cão à coleira, ladrava, mas não mordia. Bastava sair de casa e o cidadão tornava-se inatingível. Ah, as novas gerações não conhecem o Éden perdido! "Onde está fulano?", "Saiu", "Pra onde?", "Não sei" -e lá ia você com as mãos no bolso, assoviando, livre para beber sua cerveja no bar, para jogar boliche em Mongaguá ou fazer amor em Guadalupe.
Incapaz de nos seguir por aí, a máquina recrutou capangas: secretárias eletrônicas que esperavam o incauto cidadão voltar de suas errâncias para, como bombas-relógio, explodir afazeres, cobranças e más notícias. Bipes que, como drones, podiam bombardear um dos nossos em qualquer canto do globo.
Mesmo com bombas e drones, no entanto, até uns 20 anos atrás, ainda era possível escapar, não ouvir os recados, viver sem bipe. Então veio o golpe mortal, assustador como Daryl Hannah piruetando em direção ao Caçador de Androides, traiçoeiro como o dedo-espeto de mercúrio do Exterminador: o celular. O verdugo não estava mais apenas em nossos lares: morava em nosso corpo. Não só falava e ouvia como fotografava, filmava, enviava cartas, bilhetes, contas, planilhas, demitia funcionários, terminava casamentos, passava clipes do Justin Bieber, sermões do Edir Macedo e oferecia promoções de operadoras às 8h11 da manhã de domingo.
Lá por 2017, o celular já era ubíquo. Pelas ruas e ônibus, pelas escolas e repartições, parques e praias, só se viam seres humanos curvados, de cabeça baixa, servis como cachorrinhos a babar sobre as telas de cristal líquido, para onde quer que se olhasse -mas quem olhava?

    O livro de Jobs - Will Self

    folha de são paulo
    O livro de Jobs
    A Apple merece nossa reverência?
    WILL SELFTRADUÇÃO JOSÉ RUBENS SIQUEIRARESUMO O escritor inglês Will Self argumenta que a Apple, mais do que comercializar equipamentos eletrônicos, aspira a uma estética transcendental, articulação entre os desejos de seus designers e os dos consumidores. Self "conclui": os produtos da companhia são a única interface de que necessitamos com o mundo global.
    O jornalista e biógrafo Leander Kahney faz Jony Ive parecer um oráculo, ao usar as palavras deste como epígrafe do capítulo sobre o iPhone de seu recém-lançado livro sobre o mago da Apple: "Nesses primeiros estágios de design (...) sempre conversamos sobre a história do produto --falamos de percepção. Falamos daquilo que você sente sobre o produto, não num sentido físico, mas perceptivo".
    Ao longo de toda a biografia que escreveu sobre o responsável há duas décadas pelo design da Apple, "Jony Ive -- O Gênio por trás dos Grandes Produtos da Apple" [trad. André Fontenelle, Portfolio-Penguin/Companhia das Letras, R$ 44,90, 328 págs.], Kahney toca várias vezes na noção formulada por Ive da "narrativa" de um produto, e essa formulação nos leva perto do metafísico, sugerindo, talvez, que iMacs, PowerBooks, iPods e iPads concebidos pelo designer britânico devam ser considerados não como meros fenômenos, mas como verdadeiros númenos.
    O que mais ele quer dizer com "perceptivo"--diferente de "físico"-- se não a ideia do iPhone em si mesmo, livre do toque capacitador de nossos dedos?
    Você pode achar tudo isso muita piração a respeito de um celular --ou de um laptop, ou de um tablet--, mas quando se trata da Apple e de seus produtos, o céu é o limite: em 2012, a companhia atingiu US$ 660 bilhões (cerca de R$ 1,5 trilhão) de capitalização de mercado, superando o recorde estabelecido pela Microsoft em 1999 e transformando a empresa na mais valiosa companhia de capital aberto de todos os tempos.
    É sobre essa percepção (e uso aqui o termo no sentido da linguagem comum, não no sentido de Ive) que a Apple acumula a montanha de sua riqueza, não apenas comercializando dispositivos eletrônicos inteligentes, mas alterando de alguma forma a consciência global: aí é que a identidade própria da companhia encontra sua mais plena expressão.
    Outros gigantes da tecnologia podem ter suas gracinhas --a Microsoft é brilhante e esperta, o Google é carinhoso e simpático, o Facebook é impetuoso e juvenil--, mas só a Apple pode afirmar que elevou sua estratégia de mercado ao status de estética transcendental.
    Mas antes de examinar essa afirmação em maiores detalhes --e vocês podem se surpreender com o fato de que eu concorde em grande parte com a avaliação que a Apple faz de si mesma-- permitam que faça minha própria narrativa sobre a Apple.
    BAIXO CUSTO Em 1989, eu comandava uma pequena editora de publicações comerciais de baixo custo, como revistas internas de empresas e folhetos de promoções. Quando fui contratado, a firma consistia de duas porcarias de PCs da marca Amstrad e dois clientes tão porcarias quanto.
    O encarregado anterior realizava todo o trabalho sozinho: produzia o texto, tirava as fotos e fazia as marcações para as máquinas de composição e escaneamento. Depois cortava e colava um layout para reprodução.
    Esses termos --"cortar" e "colar"-- exigem hoje maior esclarecimento. Falo do ato físico de cortar com a tesoura e colar com cola. Ao assumir o trabalho, passei a aprender esses laboriosos processos na base da improvisação, embora já tivesse consciência de que o vento da mudança estava soprando com força na indústria gráfica.
    Dezoito meses depois, eu havia contratado um designer que dominava a nova tecnologia e o escritório tinha uma equipe de quatro pessoas trabalhando com três Mac Classics e um Mac II, todos rodando os softwares PageMaker e QuarkXPress.
    Eu ainda tinha de ir pessoalmente ao supermercado Safeway, em St. Andrews, para entrevistar o gerente sobre as gôndolas de congelados, fazer a foto dele cercado por sua equipe com cachecóis de neve, mas entregava o material para o designer num disquete e ele podia pegar as fotografias, passar para o computador, cortar e ampliar, organizar tudo na tela, depois imprimir os arquivos digitais.
    Às vezes, eu mesmo fazia a diagramação e essa compressão de diversas profissões especializadas de antigamente em uma única caixinha plástica bege operada por um amador me parecia a própria miniaturização da mudança de era.
    Os Macs da Apple estavam profundamente equipados: a interface de software WYS/WYG (What You See Is What You Get [o que está na tela é o aspecto final]) removia as diferenças entre o que se via na tela e o resultado impresso: o real e o virtual se fundiam.
    Não importava mais que conceitualmente não entendêssemos de computação --o que constituía uma barreira quando era preciso se comunicar com a máquina--, pois estava claro que ela nos entendia, intuindo tranquilamente como conduzíamos as coisas em nosso estranho mundo de fenômenos quadridimensionais.
    O antropomorfismo do Mac Classic ajudou também: sua tela é um olho monocular de Deus; a fenda frontal, uma boca pela qual ele regurgita nossas oferendas em disquete.
    Escritor de ficção frustrado na época, eu acredito que foi o trabalho com os Macs na produção de publicações que me ajudou a perceber meu potencial criativo: ou, se você prefere uma formulação mais sofisticada, o Macintosh foi parte de minha enteléquia.
    Você pode pensar que depois de ser tocado pelo computador Mac eu morderia a Apple para sempre, mas nem de longe. Na verdade, eu só comprei dois produtos da Apple nos últimos 24 anos: um iPod em 2007 e um iPhone em 2012.
    Quando o Amstrad que herdei de minha mãe finalmente pifou em meados dos anos 90, o amigo de um amigo a quem pedi ajuda informática descartou o Apple dizendo que suas máquinas e softwares não eram imediatamente compatíveis com o Windows da Microsoft, que na época dominava o mundo, nem seu programa de processador de texto se equiparava ao Word.
    É resultado dessa decisão que, quase duas décadas depois, estou digitando este artigo em um PC genericamente sem graça e não num transcendental MacBook Air.
    MITO Só me dou ao trabalho de contar essa história porque ela parece voar na face de alumínio anodizado do mito Apple. Cito o jornal "Evening Standard" do recente 1º de novembro: "Dezenas de fãs da Apple chegaram a acampar nas ruas de Londres durante 24 horas para serem os primeiros na Grã- Bretanha a pôr as mãos no novo iPad Air. O primeiro da fila na loja de Covent Garden era Constantin Zabrotskiy, 29, que veio da Rússia na quarta-feira e ia voltar no início da madrugada, depois de pagar 399 libras pelo aparelho".
    Claro que existem muitos outros produtos além dos da Apple que provocam esse frenesi de consumismo, mas poucos recebem a reverência prestada igualmente por mídia e consumidores. A fotografia de Zabrotskiy com seu novo iPad produz uma sensação icônica: a peregrinação transcontinental terminou bem, com a relíquia saída do forno erguida para um beijo.
    Só consultei uma pequena parte da crescente literatura sobre a Apple para escrever este artigo. O livro de Kahney; mais um folheto modesto chamado "What Would Apple Do?" (o que a Apple faria?), com o subtítulo otimista de "Como Aprender com a Apple e Ganhar Dinheiro" [Biteback, US$ 10, 208 págs.], e "Dogfight", de Fred Vogelstein, com um subtítulo ainda mais animador: "Como Apple e Google Entraram em Guerra e Deram Início a uma Revolução" [Sarah Crichton Books, US$ 16, 272 págs.].
    Em todos, reluz a mesma história bíblica: como a Apple nasceu numa manjedoura; como seu messias, Steve Jobs, fundou a religião da computação pessoal; como as manobras de gabinete dos fariseus o exilaram para o deserto da NeXT e da Pixar; como ele voltou com as tábuas da lei ofuscantes de tão simples ("Deverá haver apenas quatro produtos Apple básicos: dois laptops e dois desktops"); e como, apesar da praga devastadora do Windows 95, ele e seu João Batista --Jony Ive-- lançaram uma cruzada para converter todo o planeta gentio à sua fé de que na simplicidade reside a máxima sofisticação.
    Acredito que a metáfora sacerdotal não seja exagerada. Com seu colorido "acid-pastel" de contracultura e o budismo declarado, Jobs levou à criação de aparelhos uma inversão peculiarmente autoilusória das práticas empresariais convencionais. Em vez de produzir as coisas que os consumidores queriam, os designers e engenheiros de produtos da Apple iriam articular seus próprios desejos íntimos.
    Em vez de meramente perseguir os dólares, o objetivo da Apple seria, nas palavras de Ive, "absolutamente não fazer dinheiro"; as vendas viriam quando as sensações perceptuais da multidão fossem estimuladas por esses belos objetos desejados por seus próprios criadores.
    A comprovação disso revela, a meu ver, o feliz alinhamento entre avanço tecnológico e uma fase messiânica do capitalismo recente, mais do que qualquer presciência sobrenatural da parte de Jobs e Ive. Não há dúvida de que Ive é um designer fantástico e Jobs foi um vendedor e empreendedor inspirado, mas é totalmente possível imaginar uma linha do tempo "steampunk" em que a Apple não fosse o demiurgo do digital.
    Afinal, mesmo sendo de conhecimento geral que a interface WYS/WYG surgiu na Apple e foi impiedosamente copiada pela Microsoft, não há dúvida de que alguém teria chegado à mesma coisa mais cedo e não mais tarde --assim como alguém (ou possivelmente a Samsung) teria chegado ao celular-com-computador sensível ao toque.
    Existem alguns donos da verdade que dizem que a nêmese da Apple está em sua recusa de adotar tecnologia de código aberto (open source). É verdade que a Apple tem uma postura curiosamente totalitária para uma companhia fundada por um ex-hippie: os designers do iPhone tiveram de assinar acordos de confidencialidade e declarações juramentas comprovando o que haviam assinado; precisavam de nada menos que quatro senhas eletrônicas para entrar ou sair de seu minimalista ateliê.
    Outros dizem que todo o problema da Apple está em seu sucesso na década em que o iPhone grudou na orelha de milhões de pessoas --que uma vez tendo se transformado na nova normalidade, mais que acessório favorito de vítimas do estilo, a marca perdeu sua alma proverbial.
    No livro de Kahney ficamos sabendo de um fato que, se não fosse verdade, seria preciso inventar: um grande problema com o primeiro protótipo do iPhone foi que os fios de barba dos designers ficavam presos entre o vidro e a borda.
    Mas mesmo barbudos, Ive e seu time continuam sendo operadores muito firmes quando se trata de prever a demanda do consumidor.
    O grande sucesso da Apple está na epifania que foi para mim o Classic tantos anos atrás: as tecnologias deslocaram o ponto da produção criativa dos especialistas para os amadores. A mídia digital bidirecional transforma qualquer um em seu próprio fotógrafo, locutor, câmera, cantor, casamenteiro e agente funerário.
    Do berço ao túmulo, a única interface de que alguém precisa agora com o mundo global é formada pelo vidro reforçado de um iIsto ou iAquilo; sem dúvida, era isso que Jony Ive estava buscando quando falou da "sensação" de seus produtos num "sentido perceptual": o mundo virtual está se transformando em nosso mundo fenomenológico, na medida em que Ive deu corpo a objetos físicos que tornam possível essa transubstanciação de formas adequadamente seráficas.

      Ricardo Bonalume Neto

      folha de são paulo
      Quando Asimov visitou o futuro, e ele era 2014
      RICARDO BONALUME NETO"Eu não sei, mas eu posso adivinhar." É assim que o escritor americano de origem russa Isaac Asimov (1920-92) resumia sua visão do mundo de 2014, enunciada 50 anos antes em um artigo publicado no "New York Times" e reeditado no final de dezembro passado pelo jornal.
      O famoso autor de livros de ficção científica, como o clássico "Eu, Robô", também escrevia livros e artigos de divulgação de ciência em quantidades assombrosas. Portanto, sua visão sobre o futuro expressa no texto "Visit to the World's Fair of 2014," baseado na feira mundial de Nova York de 1964, é particularmente fascinante.
      Como quase todos os que se propõem a adivinhar algo, no artigo acertou em parte e errou em outra parte, apesar de ter sido preciso em vários pontos fundamentais, não necessariamente ligados a aspectos técnicos.
      Asimov foi, como sua biografia deixa claro, um fã extremado da tecnologia. E sua visão, no fundo, é otimista: não há problema neste planeta que o homem não consiga resolver se realmente quiser fazer a coisa.
      Mas ele se esquece de um ponto importante: muitas vezes é a tecnologia mal usada que cria o problema. Por exemplo, o efeito estufa, o aquecimento global e a mudança climática que estão sendo acelerados pela ação humana.
      O autor estava particularmente preocupado com a explosão populacional, um tema que assombrava muita gente então, ecoando a tradição apocalíptica do economista britânico Thomas Malthus (1766-1834).
      "Em 2014, há quase certeza de que a população do mundo será de 6,5 bilhões", disse Asimov. A previsão, feita quando na Terra havia menos da metade disso, chegou perto dos mais de 7 bilhões atuais.
      "A pressão da população forçará a crescente penetração de áreas de deserto e áreas polares. O mais surpreendente e, em alguns aspectos, animador de 2014 será um bom início na colonização das plataformas continentais. Habitação subaquática terá suas atrações para quem gosta de esportes aquáticos, e, sem dúvida, encorajará a exploração mais eficiente dos recursos do mar, tanto comida como minerais", previu o escritor.
      Não está sendo bem assim, tal como a visão asimoviana de que a agricultura teria dificuldade em dar conta do aumento da população. Ele sugere que para alimentar tanta gente a mais seria preciso usar produtos como algas com sabores artificiais, "falso peru" e "falso bife", que sofreriam uma resistência "psicológica" dos consumidores.
      O escritor também afirmou que muita gente estaria morando debaixo da terra, pois a superfície estaria reservada para a produção agrícola.
      Curiosamente, a solução para a questão dos alimentos já estava acontecendo então, com a chamada Revolução Verde, iniciada na década de 1960, que propiciou grande aumento na produtividade graças a novas linhagens de plantas cultivadas --notadamente, arroz na Ásia-- e ao aumento do uso de fertilizantes nitrogenados.
      O mundo de 2014 não passa por epidemia de fome; o de 2064 talvez passe, se a população dobrar de novo.
      Asimov tem o clássico entusiasmo pela inovação tecnológica dos nerds. Carros andariam sem tocar a superfície das estradas, levitando "um pé ou dois sobre o solo". É o futuro do desenho animado "Os Jetsons".
      Mas, apesar de falar de colônias na Lua ou no fundo do mar, de casas subterrâneas com iluminação artificial nos subúrbios de classe média americanos, ele deixa claro que os avanços não serão para todos.
      "Embora a tecnologia ainda se manterá a par com a população até 2014, será somente por meio de um esforço supremo e com sucesso apenas parcial. Nem toda a população mundial irá desfrutar plenamente do mundo de gadgets' do futuro. Uma proporção maior do que hoje vai ser privada deles e embora poderão estar melhor, materialmente, do que hoje, eles estarão ainda mais para trás quando comparados com as partes avançadas do mundo. Eles se moverão para trás, relativamente", escreveu.
      Segundo Asimov, "robôs não serão comuns, nem muito bons em 2014, mas existirão". Claro, ele pensa no mesmo robô da sua série de livros, um ser humanoide. Provavelmente não passava por sua cabeça que existiriam robôs industriais em grande quantidade, muito mais úteis do que uma "empregada robô", como a que ele cita.
      Na viagem à feira de 1964, ele se espanta com um computador, no estande da IBM, capaz de traduzir russo para inglês. "Se as máquinas são tão inteligentes hoje, imagine o que pode estar previsto para daqui a 50 anos?", questiona-se. Mas ele não trata de internet e defende que computadores miniaturizados serão os "cérebros" dos robôs.
      O entusiasmo tecnológico de Asimov não tem limites. Os aparelhos domésticos de 2014 não terão fios elétricos, funcionarão com baterias de longa duração feitas com radioisótopos... Um liquidificador ou cafeteira nucleares?
      Ora, Asimov prevê que em 2014 as reações nucleares fornecerão mais da metade da energia consumida pelos homens. Contudo, na matriz energética do planeta, a nuclear costuma ficar hoje em torno de 5%. Combustíveis fósseis ainda dominam.
      O escritor menciona várias inovações "revolucionárias". O que mais falta na sua avaliação é outra coisa: os avanços evolucionários que fizeram muita diferença entre os mundos de 1964 e 2014.
      A maior lacuna no seu texto diz respeito à medicina e à saúde pública. Desde então se tornaram comuns transplantes de órgãos, diagnósticos por imagem de ultrassom, tomografia e ressonância magnética, inúmeras novas drogas e técnicas cirúrgicas, mesmo o começo de aplicações genéticas, e campanhas de vacinação que eliminaram ou diminuíram muito o impacto de doenças.

        Sidarta Ribeiro

        folha de são paulo
        Novo, mas nem tão admirável
        Os embates da psicodelia com a cultura da acumulação
        SIDARTA RIBEIRO
        RESUMO Neurocientista traça a história do uso de substâncias que estimulam o ser humano a sonhar acordado e examina como a cultura psicodélica influenciou o cinema e a literatura, de Aldous Huxley a William Gibson, criadores que vislumbraram caminhos alternativos para uma civilização centrada no acúmulo.
        Uma morte preparada para ser um acontecimento global, um episódio deliberadamente público: parece ter sido assim com Aldous Huxley (1894-1963). O escritor inglês agonizava em estágio terminal de câncer quando tomou nas mãos uma caneta e um pedaço de papel. Aquilo que à primeira vista se mostrou uma confusão de rabiscos era um pedido. Uma nota simples, quatro palavras: "LSD intramuscular 100 microgramas".
        A mulher de Huxley, Laura, olhou para ele e voltou a fitar o papel. Decidiu não aceitar a ajuda de um médico; buscou seringa, agulha e ampola. Aplicou a injeção. Algum tempo depois, repetiu o processo. Ao lado da cama, ela viu as horas passarem. Durante todo o tempo, o autor de "Admirável Mundo Novo" e "As Portas da Percepção" esteve sereno, até que, nas palavras dela, "assumiu um semblante muito belo e morreu".
        Assim, o decesso de Huxley, com o auxílio da dietilamida do ácido lisérgico, parece ter sido planejado para afirmar a promessa psicodélica de um futuro melhor, tanto na vida quanto na morte. Um futuro hipertecnológico de criatividade máxima a favor da humanidade, utopia neomarxista de tempo livre para fruir a existência na arte, esporte e ciência.
        Isso tudo a partir de uma substância serotonérgica não-aditiva, apenas sintetizada por humanos, capaz de alterar a consciência de forma contundente mesmo em doses diminutas, mil vezes menores do que as encontradas em compostos alucinógenos produzidos por fungos e vegetais. Todos eles de ação tão poderosa sobre a mente que recebem o nome de enteógenos, aqueles que "manifestam o divino internamente".
        Os planos de Huxley, no entanto, se frustraram. No mesmo dia, em Dallas, John F. Kennedy seria assassinado, e o ato final lisérgico do escritor inglês daria lugar nas manchetes à comoção nacional, teorias conspiratórias, a imagem de um tiro, mil vezes repetida.
        Em 1963, ano da morte de Huxley, o uso do LSD, sintetizado em 1938 pelo cientista suíço Albert Hofmann (1906-2008), estava começando a se disseminar. Ainda estava por vir o psicodelismo que culminaria no "Summer of Love", em 1967. Mas a despeito das mudanças nos costumes, imperava a mesma política do último bilhão de anos: a lei da selva, representada naqueles anos por bombas e mais bombas sobre o Mekong.
        SONHAR ACORDADO A revolução psicodélica vislumbrada por Hofmann e Huxley ainda está por se cumprir. Somos prisioneiros de instintos que vêm de um passado remoto, comportamentos selecionados ao longo de inúmeras gerações, sem os quais nossos ancestrais não teriam sobrevivido e prevalecido: violência para fora do grupo e solidariedade para dentro. Sentir que a vida é luta constante, que somos "nós contra eles", é a base mais antiga de nosso sucesso como espécie. Evoluímos na escassez de tudo, capazes de devorar e extinguir a megafauna do pleistoceno --nem mesmo os mamutes tiveram chance contra os caçadores famélicos que certamente disputaram a pedradas o alimento que escasseava.
        A guerra, portanto, foi inevitável desde o início dos tempos. Quem não foi brutal, excludente e coercitivo com "os de fora" pereceu. Entretanto, evoluiu ao mesmo tempo um depurado amor ao próximo, com o refinamento da "teoria da mente", isto é, a capacidade de presumir e simular a mente alheia, cerne da empatia que mantém os grupos cooperativos e coesos. Sem tal capacidade empática a espécie tampouco teria sobrevivido.
        Em paralelo a esses instintos, evoluía nossa capacidade de sonhar. Se todos os mamíferos sonham, foi entre nós, humanos, que a capacidade biológica de remodelar memórias se transformou numa arte mística de acúmulo cultural. De enorme importância na Antiguidade, o vislumbre do amanhã com base no ontem, nas nossas experiências da vigília, tão especialmente propiciada pelos sonhos, deixou nos textos mais arcanos as marcas abundantes da crença em realidades paralelas.
        Foi só o começo. Quanto tempo terá se passado até que nossos ancestrais desenvolvessem a capacidade de, mesmo despertos, imaginarem o futuro com base no passado, em escala que vai de minutos a décadas? Bem próxima da capacidade de "sonhar dormindo", a capacidade de "sonhar acordado" pode ter surgido como invasão onírica da vigília.
        Foi nesse período, regido por uma mentalidade ainda bem diferente da nossa, que deve ter começado a se disseminar culturalmente a ingestão de substâncias químicas para sonhar acordado e "ter clarões". O consumo acidental de extratos vegetais ou animais deu lugar ao experimentalismo dos xamãs, início da medicina. O uso de psicodélicos para vislumbrar mistérios é prática mais antiga do que os ritos secretos de Elêusis.
        E isso não é tudo. Na hipótese do psicólogo americano Julian Jaynes (1920-1997) sobre a emergência da consciência humana, até 3.000 anos atrás nossos ancestrais eram semelhantes a esquizofrênicos, "autômatos" movidos por necessidades básicas, sem muitas memórias do passado ou planos elaborados para o futuro, mas capazes de ouvir vozes "externas" de comando, elogio ou censura.
        Há evidências arqueológicas e históricas de que nossos antepassados nessa época eram regidos por certas "vozes dos deuses". Divindades que não eram espíritos desencarnados ou entidades do mundo extrafísico, mas sim lembranças concretas: memórias auditivas das vozes dos reis mortos interpretadas como prova irrefutável de vida após a morte, alucinações vívidas capazes de comandar os atos dos indivíduos segundo os preceitos da experiência ao longo dos séculos. Orientados por tais vozes, os faraós --verdadeiros e psicóticos deuses vivos-- ordenavam plantar, colher, guerrear, escravizar e sobretudo, notavelmente, erigir colossais montanhas artificiais para nelas habitarem após a morte. Segundo Jaynes, nossa consciência deriva da fusão das vozes dos deuses (passado e futuro) com a voz do autômato (presente), gerando um ego reflexivo que dialoga permanentemente consigo próprio.
        Não estamos tão distantes dos hominídeos primitivos concebidos por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke em "2001: Uma Odisseia no Espaço". Percorremos em poucos milhões de anos o caminho que vai do Homo ao sapiens sapiens, em bandos cada vez maiores, de dezenas a centenas e logo milhões de pessoas unidas por línguas e bandeiras, em guerras cada vez maiores e piores mas também, é importante dizer, cada vez mais críticas em relação a um mundo em que o instinto de acumulação (de alimento, no princípio) virou cobiça, avareza e usura.
        CRISE DO PROGRESSO E agora essa novidade: todos. Depois da internet: todos nós. O capitalismo vertiginoso criando as ferramentas para que paz e guerra se generalizem, o poder máximo de um e de todos, potencial para que não reste ninguém "de fora". Todos "dentro" no mesmo planeta, gente, gente e mais gente.
        A aceleração da história e o paroxismo de tantos absurdos parecem uma alucinação. Pense nos engarrafamentos abomináveis que tomaram de assalto as cidades do Brasil. Serão reais esses cortejos estáticos e metálicos de 50 km em lugar que há tão pouco tempo foi uma aprazível vila à beira rio? Quando será o primeiro engarrafamento que vai durar uma semana inteira? Isso é viver? Pingue o colírio alucinógeno quem souber a resposta.
        Desequilíbrio é a norma. O modelo econômico é crescer a qualquer custo. Crescer para onde? Para quê? Até quando? Tudo que tocamos vira lixo, embalagens e mais embalagens de coisas cada vez mais efêmeras. Como aceitar as hidrelétricas da Amazônia, pirâmides faraônicas em solo pobre, a maldição do assoreamento dos leitos de rio, conspurcação de flora, fauna e gente? O bulldozer avança para dar às empreiteiras, mineradoras e madeireiras o que elas mais querem. Os guerreiros munduruku, que por séculos se adaptaram como puderam ao homem branco, hoje enfrentam a construção de Belo Monte com o destemor das causas impossíveis, sabendo que as menos midiáticas hidrelétricas do Tapajós são as próximas da lista.
        Quão perto estamos da traição histórica dos índios do Xingu, 50 anos depois do pacto negociado pelos irmãos Villas Bôas? "Se deixarem suas terras, migrarem para bem longe e se reunirem diversas etnias num parque apenas, bem longe da civilização, aí estarão em paz." Engano? Vamos cimentar a floresta para gerar energia e enviar commodities para a China vender ao mundo mais badulaques e carros descartáveis? O genocídio dos guarani-kaiowá, a morte do rio Xingu. Para que, mesmo?
        Vivemos uma crise de confiança no progresso. A própria ciência perde lastro ao se pós-modernizar, cada vez mais contaminada pelos conflitos de interesse do mercado. Fármacos vendidos como panaceias pelas maiores empresas do ramo têm sua eficácia questionada, ao mesmo tempo em que se verifica que seus efeitos colaterais foram subestimados por vieses comerciais nos estudos que originalmente firmaram seu valor clínico.
        O ideário do lucro corrompe a medicina, sem poupar a pesquisa básica que sempre se julgou em torre de marfim. As revistas científicas de máximo prestígio, fiéis da balança na distribuição de recursos, abrigam cada vez mais exageros, sensacionalismos, fraudes e shows midiáticos. Quem se lembra do Dr. Hwang Woo-suk, o barão de Münchhausen coreano que fingiu, em plena capa da revista "Science", clonar células tronco embrionárias humanas?
        Terá saído pela culatra a popularização da ciência em jornais e revistas, consumidas por leigos como produto embrulhado em marketing na mesma prateleira da fofoca e da novela? O pão e circo das novas arenas esportivas prenuncia a futebolização da pesquisa e a descorporificação da própria vida, pretensão de "libertar o cérebro do corpo".
        HÍBRIDOS Para entender a doença dessa civilização hipertecnológica é preciso imaginar seu devir. Talvez ninguém tenha antevisto tão claramente os dilemas existenciais e éticos do futuro quanto os escritores Philip K. Dick e William Gibson em seu "cyberpunk", gênero da ficção científica que mescla elementos de história policial, filme noir e prosa pós-moderna. Em seus livros, conceberam não apenas os problemas da interação com máquinas que imitam pessoas --que remetem aos capciosos robôs asimovianos ou ao ardiloso computador Hal 9000 criado por Clarke e Kubrick--, mas também questões que envolvem o que podemos chamar de pessoas-máquina, híbridas em percepção, ação e sobretudo afeto. Seres meio carne, meio plástico, misturas de fios e nervos que documentam seu entorno com olhos que tudo filmam e repassam para redes de usuários em tempo real.
        Não falta muito para isso, com câmeras de vigilância em cada esquina, celulares onipresentes e óculos Google. O fim dos segredos seria a premissa para o fim da violência, como imaginou Wim Wenders em seu "O Fim da Violência" (1997)? Ou nos tornaremos apenas e cada vez mais decrépitos "voyeurs" da dor e do prazer alheios, peões em sociedades de vigilância e controle, reféns da "transparência" e do monitoramento constante do governo, indivíduos e corporações?
        Em "Neuromancer" [trad. Fábio Fernandes, ed. Aleph, R$ 44, 312 págs.], de Gibson, uma máquina consciente controla uma poderosa corporação a serviço de velhos plutocratas, mantidos em animação suspensa e despertados periodicamente apenas para dar diretrizes e logo serem novamente submetidos à criopreservação, a fim de envelhecer o menos possível. No mundo real, o controle de moléculas como as telomerases, que regulam o envelhecimento celular, aponta para um futuro em que mesmo pessoas muito idosas poderão habitar corpos novos. Pessoas transgênicas cuja idade não se revelará nos traços externos --uma extensão da lógica de seleção artificial que serve de base à agricultura e pecuária atuais.
        Nesse percurso que coisifica os seres, respiramos uma atmosfera de crescente massificação ideológica, necessária à sustentação de tamanha desigualdade de oportunidades. Catadupas de dinheiro gasto em campanhas eleitorais, pesquisas qualitativas orientando o governo, a versão mais importante do que o fato. Do outro lado, rizomas, gretas no muro, resistência ninja e "leaks" de toda ordem.
        O "cyberpunk" é nossa Cassandra e com suas visões apocalípticas teremos que lidar. Os "black blocs" anticapitalistas hoje encaram a concretude da violência e o perigo que isso encerra, pois o Estado tem a violência em seu DNA. A videogamização do mundo já permite matar de longe como se fosse brincadeira. Em breve, a polícia não vai mais enfrentar o conflito social, vão mandar drones. E os adolescentes do outro lado da trincheira terão ainda mais razões para se revoltar.
        Precisamos encarar os fatos: não haverá paz enquanto não houver piso e teto para a riqueza. Por que alguém quer ser bilionário?
        A ganância é uma doença, persistência perversa do instinto da acumulação quando ele já se tornou obsoleto e deletério. A atitude antes prudente mas agora patológica do "quanto mais melhor", levando à pulsão de acumulação infinita, pode destruir a espécie ou criar espécies diferentes de humanos: os ricos e os pobres.
        Desde a revolução verde de sementes e fertilizantes, há cerca de meio século, já existem condições técnicas para que se distribua comida para todos. Deveria ser o fim da guerra, início da era em que os instintos da acumulação e da violência já não são adaptativos. Mesmo assim, os mais ricos continuam a querer acumular. E ficam honestamente ofendidos quando isso é questionado. Somos vítimas de um conflito de instintos: a acumulação abusiva contra o redentor amor ao próximo.
        É justamente nessa disjuntiva que o tema dos psicodélicos recobra sua atualidade. De um lado, como antecipado por Philip K. Dick, o problema do proibicionismo. O cidadão comum vive na mais espessa ignorância no que diz respeito aos efeitos, doses e grupos de risco das drogas consideradas ilícitas, sem falar no pesadelo permanente da criminalização e do castigo, certamente a causa maior da paranoia por parte dos usuários. O mercado negro retratado por Dick em "Minority Report" antecipa o medo e a insalubridade como consequências lógicas do proibicionismo.
        E isso não é tudo, pois a multifacetação psicodélica da consciência se mescla à identidade incerta da internet. O "scrambler suit" descrito no livro "O Homem Duplo", traje capaz de mudar completamente a aparência de uma pessoa, metaforiza um momento em que a própria identidade é conjectura, em que viver é cada vez mais complexo e sobretudo impreciso. Em "Total Recall", as memórias são simplesmente implantadas. Em "Blade Runner", não há como saber se as lembranças correspondem aos fatos.
        DESCOBERTAS A neurociência constata que a percepção é relativa. A realidade é construída, presumida e fugidia. O futuro distópico de guerra, lixo e desigualdade antevisto por Dick, em que as drogas servem apenas ao entorpecimento da razão, é o abismo com que nos deparamos, encurralados por nossos piores instintos. Mas existe outro caminho, uma rota para a qual a meditação, a respiração e os psicodélicos parecem ser chaves mestras. De origem milenar, estas chaves encontram na neurociência já a partir dos anos 1960 um espaço fértil para novas descobertas, através da combinação de autoexperimentação com imagens concomitantes da atividade cerebral.
        Introspecção é a senha. Se a física quântica pode chegar a revelar algo essencial sobre a consciência, a viagem às profundezas da mente pode revelar algo fundamental sobre o universo, o tempo, a matéria e a sociedade.
        A psiconáutica --navegação da mente-- está mais viva do que nunca, agregando valor às ideias mais transformadoras. Steve Jobs, atribuiu sua criatividade ao LSD. O prêmio Nobel Kary Mullis, inventor da reação em cadeia da polimerase, que revolucionou a genética e a medicina, também conferiu à experiência com o LSD a sua melhor inspiração. Os benefícios terapêuticos dos psicodélicos são cada vez mais evidentes no tratamento do trauma, dos estados terminais e do abuso de substâncias aditivas, mas também são notáveis quando aplicados a problemas como a depressão.
        Nos EUA, epicentro do proibicionismo, os militares do Pentágono se interessam pelo MDMA --princípio ativo do ecstasy, serotonérgico como o LSD-- para tratar as dores psíquicas de seus veteranos de guerra. Aquilo que tantos psicoterapeutas praticavam na década de 60 de modo heurístico vem se confirmando em sólidas publicações científicas. Hofmann e Huxley tinham razão, os psicodélicos são um inestimável patrimônio da humanidade.
        As promessas desse novo olhar são a evolução de uma nova ética social em tempos de abundância, a desrepressão da libido e o respeito a todas as formas de loucura, menos àquelas que oprimem. Poderiam os psicodélicos fazer os ricos se desapegarem do excesso de riqueza? Provavelmente.
        Vale a pena sonhar com isso: todos nós humanos em harmonia conectada de pulsões criativas, alforriados do trabalho mecânico pelas máquinas, não libertos do corpo, mas libertos no corpo, não mais predadores universais da criação, mas hiperlúcid@s guardas-parque de Gaia. Futuro que a Deus pertence, para a sétima geração depois de nós. Quem não entender que pingue mais uma gota.

        O papel mata-moscas - Robert Musil

        folha de são paulo

        O papel mata-moscas


        ROBERT MUSIL

        tradução e nota MARCELO BACKES
        ilustração ROBERT HOOKE
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        SOBRE O TEXTO A parábola abaixo foi escrita pelo austríaco Robert Musil (1880-1942) há 100 anos e é parte do volume "Nachlaß zu Lebzeiten" (ou "Espólio Publicado em Vida", de 1936).
        O ano de 1914 assinalou o começo da Primeira Guerra Mundial, da qual Musil participou como oficial, primeiro conflito no qual homens foram mortos tal como moscas, vítimas de armas químicas. Indiretamente, isso aparece nos signos dos militares, dos aeroplanos, dos cavalos mortos. O texto menciona ainda os tábidos -vítimas da sífilis-, fala em ídolos negros, que a correção política exigiria que fossem traduzidos por "divindades africanas", e menciona o "tour de force" clássico de Laocoonte.
        Reunindo Josef K. e Gregor Samsa numa mosca, investiga o sentido da vida num existencialismo levado às últimas consequências. Primeiro distante e frio na expressão, parecendo até esboçar um manual de instrução para trocar pneus, o narrador logo humaniza as moscas e participa de seus destinos. O breve conto talvez indigite tudo aquilo que nos controla e nos mata, que nos transforma em moscas da convenção, nos faz aceitar as armadilhas da lei e da civilização. É uma releitura muito mais terrível do grande inquisidor de Dostoiévski e do tribunal de Franz Kafka, ou a metáfora eventual de uma certa agência de bisbilhotice mundial atuante em Maryland (EUA).
        *
        O papel mata-moscas Tangle-foot tem mais ou menos trinta e seis centímetros de comprimento e vinte e um centímetros de largura; é coberto por uma cola amarela e tóxica e vem do Canadá. Quando uma mosca pousa sobre ele -sem demonstrar qualquer avidez especial, mas seguindo uma convenção, afinal de contas já há tantas outras ali-, fica colada primeiramente apenas pelas extremidades dobradas de todas as suas perninhas. Uma sensação bem suave e estranha, como quando andamos no escuro e pisamos descalços sobre alguma coisa que ainda não é nada a não ser algo que oferece uma resistência mole, morna, confusa, para dentro do que a humanidade já vai jorrando terrivelmente aos poucos, o reconhecimento de uma mão que de algum modo ali jaz e nos segura com cinco dedos cada vez mais nítidos em seus propósitos.
        Então todas as moscas fazem força e se levantam, eretas, semelhantes a tábidos que não querem ser notados, ou como militares velhos e alquebrados (e de pernas ligeiramente arqueadas, como quando se está sobre um monte inclinado). Elas se endireitam, reunindo força e concentração. Depois de poucos segundos, estão decididas e começam a fazer o que podem, zumbir e tentar se erguer. Executam essa ação furiosa por tanto tempo até que a exaustão as obriga a parar. Segue-se uma pausa para respirar e uma nova tentativa. Mas os intervalos se tornam cada vez mais longos. Elas estão paradas ali e eu sinto como estão desnorteadas. De baixo sobem vapores desconcertantes. Como pequenos martelos, suas línguas tateiam fora da boca. Suas cabeças são marrons e peludas como se fossem feitas de casca de coco; como ídolos negros antropomórficos. Elas se curvam para frente e para trás sobre suas perninhas enlaçadas e presas, se dobram sobre os joelhos e avançam se erguendo, como fazem seres humanos que tentam movimentar de qualquer jeito uma carga pesada demais; mais trágicas do que trabalhadores, mais verdadeiras na expressão atlética do esforço extremo do que Laocoonte. E então chega o estranho e recorrente instante em que a necessidade do segundo que passa triunfa sobre toda a poderosa constância da existência.
        Robert Hooke
        É o instante em que por causa da dor um alpinista abre voluntariamente a mão cujos dedos ainda se agarravam, em que um homem perdido na neve se deita no chão como uma criança, em que um homem perseguido com os flancos em brasa para de correr. Elas já não têm mais forças para manter-se em pé, elas afundam um pouco e nesse instante são totalmente humanas. De imediato são agarradas por uma nova parte, mais acima na perna ou na parte traseira do corpo ou na extremidade de uma asa.
        Quando elas superaram a exaustação anímica e depois de um breve instante voltam a lutar por sua vida, já estão fixadas numa posição desfavorável, e seus movimentos se tornam pouco naturais. Então elas jazem com as pernas dianteiras esticadas, apoiadas sobre os cotovelos, e tentam se levantar. Ou estão sentadas no chão, empinadas, de braços erguidos, como mulheres que tentam em vão escapar aos punhos de um homem. Ou jazem sobre a barriga, com a cabeça e os braços estendidos à frente, como se houvessem desabado em meio à corrida, e continuam erguendo apenas o rosto. Mas o inimigo sempre e desde o princípio é passivo e vence apenas devido aos instantes de desespero e confusão. Um nada, um isso as puxa para baixo. Tão devagar, que mal se consegue acompanhar o que acontece, e na maior parte das vezes com uma aceleração brusca ao final, quando o último colapso interno as abate. Então elas se deixam cair de repente, para a frente, de rosto, sobre as pernas; ou de lado, todas as pernas esticadas para longe do corpo; muitas vezes também de lado, com as pernas remando para trás. Assim elas jazem. Como aeroplanos caídos, que apontam uma das asas para o ar. Ou como cavalos mortos miseravelmente. Ou com infinitos gestos de desespero. Ou como adormecidos. Ainda no dia seguinte uma delas às vezes desperta, tateia por um momento com uma das pernas ou zumbe com a asa. Às vezes um desses movimentos perpassa o campo inteiro, então todas afundam ainda um pouco mais em sua morte. E só do lado do corpo, na região em que estão fixadas as pernas, elas têm algum órgão diminuto e cintilante que ainda vive por bastante tempo. Ele se abre e se fecha, não se pode caracterizá-lo sem lente de aumento, ele se parece com um minúsculo olho humano, que se abre e se fecha sem cessar.
        ROBERT MUSIL(1880-1942), escritor austríaco, autor de "O Homem Sem Qualidades".
        MARCELO BACKES, 40, é escritor e tradutor. Lança neste ano, pela Companhia das Letras, o romance "A Casa Cai".
        ROBERT HOOKE (1635-1703), cientista inglês.

        Marcelo Gleiser

        folha de são paulo

        Pensando livremente sobre o livre arbítrio


        Todo mundo quer ser livre; ou, ao menos, ter alguma liberdade de escolha na vida. Não há dúvida de que todos temos nossos compromissos, nossos vínculos familiares, sociais e profissionais. Por outro lado, a maioria das pessoas imagina ter também a liberdade de escolher o que fazer, do mais simples ao mais complexo: tomo café com açúcar ou adoçante? Ponho dinheiro na poupança ou gasto tudo? Em quem vou votar na próxima eleição? Caso com a Maria ou não?
        A questão do livre arbítrio, ligada na sua essência ao controle que temos sobre nossas vidas, é tradicionalmente debatida por filósofos e teólogos. Mas avanços nas neurociências estão mudando isso de forma radical, questionando a própria existência de nossa liberdade de escolha. Muitos neurocientistas consideram o livre arbítrio uma ilusão. Nos últimos anos, uma série de experimentos detectou algo surpreendente: nossos cérebros tomam decisões antes de termos consciência delas. Aparentemente, a atividade neuronal relacionada com alguma escolha (em geral, apertar um botão) ocorre antes de estarmos cientes dela. Em outras palavras, o cérebro escolhe antes de a mente se dar conta disso.
        Se este for mesmo o caso, as escolhas que achamos fazer, expressões da nossa liberdade, são feitas inconscientemente, sem nosso controle explícito.
        A situação é complicada por várias razões. Uma delas é que não existe uma definição universalmente aceita de livre arbítrio. Alguns filósofos definem livre arbítrio como sendo a habilidade de tomar decisões racionais na ausência de coerção. Outros consideram que o livre arbítrio não é exatamente livre, sendo condicionado por uma série de fatores, desde a genética do indivíduo até sua história pessoal, situação pessoal, afinidade política etc.
        Existe uma óbvia barreira disciplinar, já que filósofos e neurocientistas tendem a pensar de forma bem diferente sobre a questão. O cerne do problema parece estar ligado com o que significa estar ciente ou ter consciência de um estado mental. Filósofos que criticam as conclusões que os neurocientistas estão tirando de seus resultados afirmam que a atividade neuronal medida por eletroencefalogramas, ressonância magnética funcional ou mesmo com o implante de eletrodos em neurônios não mede a complexidade do que é uma escolha, apenas o início do processo mental que leva a ela.
        Por outro lado, é possível que algumas de nossas decisões sejam tomadas a um nível profundo de consciência que antecede o estado mental que associamos com estarmos cientes do que escolhemos. Por exemplo, se, num futuro distante, cientistas puderem mapear a atividade cerebral com tal precisão a ponto de prever o que uma pessoa decidirá antes de ela ter consciência da sua decisão, a questão do livre arbítrio terá que ser repensada pelos filósofos.
        Mesmo assim, me parece que existem níveis diferentes de complexidade relacionados com decisões diferentes, e que, ao aumentar a complexidade da escolha, fica muito difícil atribuí-la a um processo totalmente inconsciente. Casar com alguém, cometer um crime e escolher uma profissão são ponderações longas, que envolvem muitas escolhas parciais no caminho que requerem um diálogo com nós mesmos. Talvez a confusão sobre o livre arbítrio seja, no fundo, uma confusão sobre o que é a consciência humana.

        Encontro às escuras com Borges -East Lansing (Michigan), 1976

        folha de são paulo
        ARQUIVO ABERTO
        MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
        Encontro às escuras com Borges
        East Lansing (Michigan), 1976
        CARLOS EDUARDO LINS DA SILVAEm 1976, aos 23 anos, estudante do programa de mestrado em comunicação da Michigan State University, tive a chance de entrevistar Jorge Luis Borges, então professor visitante no departamento de Espanhol e Português.
        Na época, eu atuava como correspondente dos Diários Associados nos EUA. Um de meus editores, o poeta e jornalista Álvaro Alves de Faria, já era um especialista em Borges e me incentivou muito a entrevistar o escritor, de quem até então eu não havia lido nada.
        Ele próprio, Álvaro, no mesmo ano, passara 12 horas em conversas com o autor de "O Aleph", em sua casa em Buenos Aires. Mas, como me relatou agora: "... [Borges] falava muito bem da ditadura argentina e por extensão da brasileira; guardei a entrevista por 25 anos, até que virou livro em 2001" --"Borges: o Mesmo e o Outro"[Escrituras, R$ 16, 80 págs.].
        Meu texto, "Borges, uma Vida por Viver", saiu em 14 de março de 1976, na capa do "Jornal de Domingo" do "Diário de S. Paulo".
        O grande escritor argentino tinha perdido a mãe, dona Leonor, oito meses antes, e, aos 76 anos, estava apaixonado por María Kodama, a quem havia pedido em casamento pouco antes de viajar para Michigan. Segundo o biógrafo Edwin Williamson, no livro "Borges - Uma Vida" [Companhia das Letras, R$ 68, 672 págs.], o escritor o fez sob o argumento de que seria "um escândalo" os dois viverem juntos nos EUA sem estarem casados. Mas eles só viriam a se casar, de fato, em 1986, pouco antes da morte dele.
        Não me lembro de ter visto Kodama durante a entrevista. Williamson relata que os dois moraram num apartamento de dois quartos no campus da universidade.
        Minha recordação é de ter sido recebido numa casa grande, fora do campus, talvez a de Donald Yates, tradutor de Borges para o inglês e professor de espanhol em Michigan, que havia sido o anfitrião do escritor em dezembro de 1975, na ocasião de um seminário sobre sua obra. Além de Borges, só me lembro da presença de Dennis Soebbing, um amigo meu, que fotografou o encontro.
        Chegamos no início da tarde. Conversamos (em inglês, por iniciativa de Borges) mais ou menos por duas horas. A sala logo ficou escura --em Michigan, no inverno, o sol se põe cedo--, e eu tive dificuldade para tomar notas. Borges, já cego, não tomou a iniciativa de acender nenhuma luz. Nem eu.
        Ele foi muito simpático, elogiou Camões, antes de recitar versos dos "Lusíadas" de cor, Eça de Queiroz e Euclydes da Cunha. Não se recusou a falar sobre nenhum tema: cegueira, política argentina, Neruda --seu antigo desafeto.
        Mas nem mesmo essa extraordinária oportunidade para um jovem jornalista fez com que meu interesse pela obra de Borges despertasse ali, nem nos oito anos seguintes.
        Em 1984, como secretário de Redação da Folha, tive nova chance de conversar com Borges, junto com colegas, alguns admiradores entusiasmados do poeta, como Caio Túlio Costa e Augusto Massi.
        Borges viera a São Paulo a convite deste jornal e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi um grande happening sua palestra para mais de mil pessoas no pátio do estacionamento da Folha.
        Após este encontro, afinal comecei a ler Borges. Mas pouco.
        Só fui conhecer realmente sua obra a partir de 1999, quando o cineasta Hector Babenco leu uma resenha minha do livro "There Is no Borges" (Borges não existe), do alemão Gerhard Köpf. Segundo o romance, Borges teria sido um personagem criado por Adolfo Bioy Casares, interpretado por um ator.
        Babenco se entusiasmou com a história e me pediu para escrever um argumento para um possível filme. Foi então que mergulhei nos escritos e na biografia de Borges. O filme não saiu. Mas o aprendizado com o personagem inesquecível que conheci há 38 anos tem sido enormemente enriquecedor.
        Ao tentar reconstituir aquele encontro em Michigan, dei-me conta de como é verdadeira uma frase que Borges disse em 13 de agosto de 1984, no estacionamento da Folha, em voz baixa, em meio ao barulho dos automóveis: "A memória é a busca da identidade, podendo-se nela remodelar tanto os fatos vividos do passado como os fatos do futuro. Só o presente é rígido, inflexível".

          O milagre do saco plástico - Denise Fraga

          folha de são paulo
          Lembro até de seu nome: Nadir. Foi minha professora de geografia. Já me esqueci de todas as capitais, mares e rios que ela possa ter tentado me ensinar com seu falatório cansado, mas foi apenas uma de suas aulas que fez com que ela nunca mais me saísse da cabeça.
          Entrou na sala nervosa, colocou suas coisas em cima da mesa, ameaçou começar o de sempre, mas resolveu sentar. Não sentou na cadeira da escrivaninha, hábito de muitos de meus velhos professores que, com o avançar da idade, já davam suas aulas sentados. Ao contrário, dona Nadir até rejuvenesceu, pois sentou sobre o tampo da mesa. Ficou em silêncio, encarando a turma. "Hoje a minha aula vai ser diferente." Não precisava nem dizer, já estava irreconhecível.
          A senhora gordinha e carrancuda era agora uma mulher jovem e franca, sentada de perna aberta sobre a escrivaninha. O que a transformou foi um acontecimento banal. Teve que frear bruscamente seu carro quando um saco plástico grudou no seu para-brisa. Por incrível que pareça, naquela época, jogar um saco pela janela não era algo tão absurdo e a aula inusitada não foi um sermão politicamente correto sobre o assunto.
          Ilustração Zé Vicente
          O fato é que dona Nadir tinha levado um susto e entrara em contato com o cristal, com a vida na corda bamba e o mero saco plástico ao vento fez com que ganhássemos de nossa medíocre professora de geografia uma incrível aula de filosofia. dona Nadir refletiu sobre o instante, sobre o quanto tudo pode se transformar muito rapidamente. Falou do quanto podemos promover revoluções quando agimos em horas fundamentais.
          Suas palavras evoluíam nos recrutando como poderosos agentes sobre essa matéria etérea que é a vida. Nunca mais esqueci. Na verdade, me lembro de duas de suas aulas: a do milagre do saco plástico e da sua aula seguinte, quando ela voltou ao seu estado letárgico de professora quase aposentada.
          Seus mares e rios voltaram a fluir em branco, enquanto eu esperava ansiosa por aquela outra Nadir. Aquela que, de perna aberta, sabia muito mais do que acidentes geográficos. Mas a lucidez não nos livra dos dramas.
          denise fraga
          Denise Fraga é atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo). Escreve a cada duas semanas na versão impressa do caderno sãopaulo

          José Simão

          folha de são paulo
          Bafo! Sensação garrafa térmica!
          E diz que a Dilma vai lançar o Bolsa Calor: todo brasileiro terá direito a uma piscininha de plástico!
          Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Hoje a sensação térmica é de garrafa térmica! E com o Carnaval, Páscoa, Copa e eleições, 2014 só vai entrar em 2015! Bafos da semana: a morte do Nelson Ned e o presídio de Maranhão!
          E com a morte do Nelson Ned, o único anão celebridade agora no Brasil é o PIB do Mantega! Ops, com a morte do Nelson Ned, o único anão celebridade agora no Brasil é o ACM Neto! ACMeio metro! Rarará! E a manchete do Piauí Herald: "Dilma decretou meio minuto de silêncio em homenagem ao Nelson Ned".
          E atenção! Eu sei como acalmar os presídios no Maranhão! É só o Sarney ir lá e ameaçar ler um livro dele. Aí já é crueldade! Na Constituição de 88 tá escrito que é proibida a tortura no Brasil!
          E tá todo mundo falando mal da Roseana porque ela licitou 80 kg de lagosta. Mas a Roseana é fofa: os 80 kg de lagosta eram pra botar nas quentinhas do presídio. Arroz cru, feijão azedo e por cima uma lagosta! Quentinha Roseana Gourmet!
          E o nome do presídio: Pedrinhas. Esse Pedrinhas deve ser parente do Sarney. Presídio Pedrinhas Sarney!
          Tudo no Maranhão leva o nome do Sarney. "Maranhão tem 26 maternidades com o nome Sarney." Também, pra nascer aquela parentada toda!
          E sabe qual o apelido da família Sarney? Morimbundos de Fogo! E sabe como o Sarney chama o Maranhão? MYranhão! E a sigla do Maranhão, MA: Me Ajudem! Rarará!
          E o calor? O bafo dos infernos? Sensação térmica: quero ficar pelado. Quero ir pra praia já! Test-drive pro inferno! Hoje dormi no freezer ligado no modo nevar. Tem gente filando ar-condicionado de banco! Vou levar uma cadeira de praia pra agência do Banco do Brasil!
          E diz que a Dilma vai lançar o Bolsa Calor: todo brasileiro terá direito a uma piscininha de plástico!
          E esse site de Campinas: "Frente frita derruba temperatura". O estagiário errou acertando. Tá tendo uma frente frita no Brasil. Chegou a frente frita! Rarará! E uma amiga dá tanto nesse verão que o apelido dela é Imigrantes: ninguém vai pro litoral sem passar por ela! Rarará! E com esse calor, a Miriam Leitão vai virar torresmo! Rarará!
          E olha essa placa num portão: "Querida admiradora secreta: amei o vinho e as flores no portão, só não entendi a galinha e a farofa". Rarará! Nóis sofre, mas nóis goza!
          Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

            Mônica Bergamo

            folha de são paulo

            Rachel Sheherazade, do SBT, diz que se decepcionou após votar em Lula 


            Ouvir o texto


            O Uruguai virou "sócio de traficantes" ao regulamentar o comércio da maconha. A defesa do Conselho Federal de Medicina à legalização do aborto é "abominável", e possivelmente está criando "um novo nicho de mercado" para a classe médica.
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            São algumas das ideias da jornalista Rachel Sheherazade, 40, que há quase três anos é paga para falar o que pensa no "SBT Brasil", jornal das 19h45, do qual é apresentadora.
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            Quem fala o quer quer, lê o que não quer na internet. "Meus votos para 2014: que a Rachel Sherazedo seja estuprada", postou o filósofo Paulo Ghiraldelli, em 26 de dezembro. Ela rebateu no Twitter e vai processar o detrator por incitação a crime. Ele creditou o ataque a um hacker.
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            1.001 noites de Sheherazade

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            Adriano Vizoni/Folhapress
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            A jornalista Rachel Sheherazade, 40, posa sobre a bancada do "SBT Brasil", jornal que apresenta há quase 3 anos
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            Por conflitos como este ("que estavam consumindo meu tempo"), a apresentadora já havia decidido se afastar da internet. "Foi ela que me trouxe aqui, mas comentários e ofensas estavam me deprimindo", conta ao repórter Chico Felitti.
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            Foi o YouTube que lhe garantiu fama. Em 2011, ela fez um vídeo criticando o Carnaval, pois a festa cercearia o direito de ir e vir do cidadão e sugaria recursos públicos. O comentário, feito na TV Tambaú, de João Pessoa, sua terra natal, caiu na rede e foi visto por mais de meio milhão de pessoas em uma semana.
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            Três dias depois, em pleno reinado de Momo, recebeu uma ligação de Leon Abravanel, sobrinho de Silvio Santos e diretor de produção do SBT. "Achei que fosse trote." O contato era um convite para vir a SP conhecer a rede.
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            "Vim desconfiando que seria um convite. Nunca quis sair da minha cidade, não preciso sair da minha região para me realizar." Mas topou.
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            Até então fazia dupla jornada. Passou em um concurso para ser escrivã em um tribunal para ajudar a fechar as contas, porque o jornalismo na Paraíba "não bastava". Está licenciada e termina nos próximos dias o período máximo de afastamento. "Vou pedir desligamento."
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            Passaram-se mais de mil dias até a certeza de que poderia abdicar da estabilidade do funcionalismo público. Ela não fala em dinheiro, mas o salário de apresentadora, em torno de R$ 150 mil, permitiu que seu marido, Rodrigo, deixasse o emprego na Paraíba para acompanhá-la.
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            "Foi uma prova de fogo. O homem nordestino pode ser muito machista. Olhamos o que é melhor para a família." Moram com os filhos Clara, 5, e Gabriel, 3, numa casa em Alphaville, complexo de condomínios de luxo a 23 km de São Paulo. Mas o clã faz pouco esse percurso.
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            "Eu tenho muito medo. Sou meio neurótica com violência urbana, mais ainda depois de começar a fazer bancada, noticiar tudo o que há de ruim." Quando os quatro vêm a São Paulo, "muito esporadicamente", optam por ir a teatros de shopping.
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            Se não, é de casa para a labuta, como no dia em que encontrou a reportagem. Ela chega ao SBT às 14h, dirigindo seu sedã preto, com pulôver da mesma cor, bordado com pedrarias. Ainda não decidiu o tema do comentário.
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            Está entre Edward Snowden, ex-agente que vazou informações confidenciais da agência de inteligência americana e sinalizara que queria asilo do Brasil, e a rebelião na Papuda, penitenciária onde estão presos condenados do mensalão. Acabou ficando com política brasileira, "mais interessante".
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            Escreve o texto no camarim, "como quem conta uma história". Seu nome, inclusive, veio de uma contadora de casos: a avó paterna leu os contos das mil e uma noites e se apaixonou pela protagonista, Sherazade. O segundo nome, adotado como sobrenome no lugar do original, Barbosa, ganhou nova sílaba sem razão conhecida.
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            Ela dá as razões para ter mudado de orientação política. "Eu era de esquerda. Pintei a cara para o Collor sair. Votei no Lula até ele ser eleito. Me decepcionei com o PT." Hoje, vota "em pessoas, não em partidos". Não declara em quem vai votar neste ano.
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            "Com a minha maturidade, passei a ter posicionamentos mais de direita do que de esquerda." Cita o direito à vida e à propriedade como exemplos. Em um aspecto pelo menos ficou mais liberal: o estético. Foi instruída pela emissora a usar bobes para dar volume às mechas escorridas. Detestava. "Hoje, não tenho vergonha de ir à praça de alimentação de bobe."
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            Confessa não ser vaidosa. "É um suplício", diz ao se dirigir ao camarim para ser maquiada. No caminho, elogia Reinaldo Azevedo, colunista da Folha e da revista "Veja". "Ele é um fofo! Me defendeu na história do Lula."
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            A tal história: o ex-presidente teria se referido a ela como "uma jornalista do SBT, de 20 e poucos anos" que faz críticas "sem embasamento". Azevedo fez um texto em defesa da colega em seu blog.
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            Rachel, por sua vez, defende o pastor e deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. "Ele sofre perseguição religiosa", diz ela, sobre o parlamentar criticado por posições controversas como a "cura gay".
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            É evangélica desde os 23 anos, quando foi batizada na igreja Batista. "A fé é 100% importante. Não teria resistido às dificuldades que encontrei aqui se não fosse pela fé."
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            Entre os percalços, ser nordestina ("ainda há preconceito forte") e trabalhar em "uma redação que te olhavam de banda por ter chegado pelas mãos do dono".
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            Não que fosse queridinha do patrão. Diz só encontrá-lo no salão de cabeleireiro Jassa, que tem convênio com a emissora. "Silvio é muito gente."
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            O chefe um dia perguntou por que ela não improvisa seus famosos comentários. "A gente faz ao vivo, cada segundo conta", respondeu. Precisa treinar para encaixar a fala em 45 segundos.
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            Chegando ao camarim, ela comenta que não quer fazer jornalismo para sempre. Mas desconversa. "Por enquanto estou feliz." Pelo menos até 2015, quando vence seu contrato, vai viver de discursar, como a xará da literatura. A personagem original, diz a lenda, prendia a atenção do rei narrando aventuras por mil e uma noites. "Ela, no fim, é igual à gente, tem que segurar a audiência."
            mônica bergamo
            Mônica Bergamo, jornalista, assina coluna diária publicada na página 2 da versão impressa de "Ilustrada". Traz informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999.