domingo, 9 de março de 2014

Na Glória, encontrei o mestre - Evanildo Bechara

folha de são paulo
ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Na Glória, encontrei o mestre
Rio, 1943
EVANILDO BECHARAAquela tarde de sexta-feira de 1943 seria igual às outras em que meu tio-avô, de folga da labuta semanal, se dedicava a faxinas nos quartos externos do grande quintal de sua residência, numa tranquila rua da Boca do Mato, entre o Méier e o Engenho de Dentro.
Militar que era, servira em mais de um Estado do país, indo sempre com a casa às costas, retornando com lembranças e bugigangas que eram esquecidas em malas e velhos baús. De uns tempos àquela quadra elas precisariam ser despachadas para instituições de caridade. Dessas faxinas eu participava ativamente, ajudando meu tio-avô na tarefa de separar o que podia retornar às malas e o que se destinava aos asilos.
No meio da faxina, ele virou-se para mim com um livro na mão, dizendo: "Você, que quer ser professor de português, fique com este".
Antes do repouso, tomei do livro que me fora ofertado e li: "Lexeologia do Português Histórico" (1921), de M. Said Ali. Estranhei o título, pois esperava ver nele a palavra "gramática", como via sempre nos compêndios que me inculcara meu excelente mestre de língua portuguesa, no então curso ginasial: Odeval Machado.
Se o título não me era comum, o autor passava desconhecido a um ginasiano de 15 anos. Tudo me levou a abrir o livro e ler, com pouco entusiasmo, os primeiros parágrafos do prólogo. Mas, ao chegar ao terceiro, facilmente se confirmou a impressão de que estava diante de uma outra visão sobre a língua.
Eis o trecho que mais me tocou: "Não dissocio do homem pensante e da sua psicologia as alterações por que passou a linguagem em tantos séculos. É a psicologia elemento essencial indispensável à investigação de pontos obscuros. As mesmas leis fonéticas seriam inexistentes sem os processos de memória e da analogia. Até o esquecimento, a memória negativa, é fator, e dos mais importantes, na evolução e progresso de qualquer idioma".
Jamais havia visto o idioma português inserido no plano largo da linguagem e do falante, plano para o qual aquele desconhecido acabara de me estimular a caminhar.
No dia seguinte, corri à Livraria Central e adquiri tudo o que escrevera Said Ali sobre nosso idioma: "Dificuldades da Língua Portuguesa", "Gramática Histórica", "Gramática Secundária", "Gramática Elementar", "Meios de Expressão e Alterações Semânticas".
Após quase um ano dessa descoberta, fui a pouco e pouco entendendo seus escritos, mesmo as "Dificuldades", que, no parecer juvenil, elegi o mais profundo livro de pesquisa entre os muitos que já então integravam minha biblioteca.
Certa feita, assaltou-me uma dúvida no entendimento acerca de um ponto da "Gramática Histórica". Estaria vivo Said Ali? Onde residiria? O catálogo telefônico informou-me que morava no Rio, na rua da Glória. Aventurei o número indicado, e uma voz feminina me garantiu que o professor me receberia no dia e hora aprazados. Esse encontro, eu aos 16 e ele aos 83 anos, está vivo na memória, e marcou um desvio de rota na minha caminhada ao magistério.
Figura serena de religiosidade bíblica, de copiosa barba branca, recebeu-me com simpatia, e desde logo o ouvia dissertando sobre o quanto o nosso idioma precisava de investigadores. A emoção do momento só me permitiu confessar-lhe o sonho de ser professor, apesar da profecia do meu tio de estar querendo abraçar uma carreira de fome e sacrifício.
Na mesma semana, numa segunda visita, lá estava à minha disposição uma pilha de livros selecionados por Said Ali para enriquecer meu arsenal bibliográfico. De 1944 a 27 de maio de 1953, quando faleceu, nossos encontros foram semanais, ocupados com leitura dos clássicos portugueses dos séculos 15 a 19 e digressões sobre temas linguísticos e filológicos.
Do seu mandamento de investigação científica, dois artigos me foram logo recitados: 1)"Nunca aceite uma exemplificação sem que se levante, vá à fonte citada e veja se confere a informação"; 2)"Nunca aceite tranquilamente uma lição só pelo fato de ter sido emanada de um mestre, ainda que esse mestre seja eu. Só aceite quando se convencer".
Esses e outros mandamentos fundamentaram minha formação de investigador. Tudo isto para declarar o quanto devo a esse amigo inesquecível e a esse mestre incomparável, sempre presente nas vitórias que a vida me concedeu.
E paro por aqui, porque mais de uma vez, no meio de nossos encontros semanais, me avisava: "Se você, quando eu morrer, escrever minha biografia, eu, de pirraça, não vou lê-la".

    João Paulo Cuenca

    folha de são paulo
    LITERATURA
    O ornitorrinco e a agente literária
    O "autor local" escreve para o mundo
    J. P. CUENCARESUMO O escritor J.P. Cuenca responde a texto de Luciana Villas-Boas publicado na "Ilustríssima" de 23/2, no qual a agente apontava a obsessão do autor nacional em obter projeção no exterior, antes de consolidar-se no Brasil. Para Cuenca, dimensionar a pretensão artística pela demanda do leitor médio é mediocrizar a literatura.

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    Foi numa sala de embarque que li "A Tradução, essa Faminta Quimera - Para Quem Escreve o Autor Local?", artigo de Luciana Villas-Boas publicado nesta "Ilustríssima" há dois domingos. Estava nos Estados Unidos para divulgar a tradução de um romance, convidado pelas universidades de Stanford, UCLA, Princeton, Yale, Brown, Illinois, Indiana e NYU. Apesar da lista elegante, foram leituras de alcance restrito, para turmas de pós-graduação. Ainda não cheguei ao sofá da Oprah ou à lista de mais vendidos do "New York Times".
    Foram necessários três anos e meio para que se esgotasse a primeira fornada, de 3.000 exemplares, de meu livro mais recente, que agora terá nova edição. Embora não seja um estrondo comercial, "O Único Final Feliz para uma História de Amor É um Acidente" (Companhia das Letras, 2010) já chegou às livrarias de Portugal, Espanha, Alemanha, Argentina, França e EUA, ainda que em distribuição restrita. Até junho, será editado na Finlândia e na Romênia.
    O mérito é de cada um dos tradutores que se apaixonou pelo livro, normalmente propondo a tradução e antecipando-se a acordos editoriais. É da agência e dos editores estrangeiros que acreditaram nas excentricidades deste escritor. Mas nada disso seria possível sem o programa de traduções da Fundação Biblioteca Nacional. Sua retomada foi fundamental para a difusão da nossa literatura no exterior nos últimos anos. (Importante lembrar que não se trata de invenção brasileira. Muitas das traduções que consumimos no Brasil são fruto de iniciativas similares, já bastante tradicionais em mercados como a Europa.)
    Diferentemente de Villas-Boas e de Raquel Cozer, que também publicou texto na penúltima edição deste caderno, não sou grande conhecedor dos números de exemplares vendidos meus ou dos meus colegas de geração --numa mesa de literatos brasileiros dos anos 10, falar disso é tabu maior do que teorizar sobre a própria produção (ou do que confessar a inveja que temos dos escritores gaúchos).
    Por isso não tenho o número total de vendas do meu livro fora do Brasil, mas desconfio que seja maior que o doméstico. Se contarmos pelas tiragens, ele foi impresso três ou quatro vezes mais no exterior. Também foi mais resenhado fora. Agora a imprensa argentina e francesa começam a falar dele, apontando aspectos que a crítica brasileira, portuguesa ou alemã não tinham levantado. E o romance começa a ser lido com atenção por alguns estudantes estrangeiros. Essas novas camadas de leitura jogam luzes diferentes à obra e oxigenam o seu autor.
    Em termos absolutos, são números ainda pequenos. É um começo e uma aposta. Deixo, no entanto, ao departamento comercial das editoras e agências o papel de julgar produção literária e sua repercussão ao longo da história por desempenho das vendas.
    ESTOURO Ao contrário do que alguns colegas e editores sugerem, não acredito que um escritor deva moldar sua literatura com o objetivo de ser acessível e virar um "estouro de mercado". Num país que transformou autores como Guimarães Rosa e Clarice Lispector em cânone, dimensionar pretensão artística sob a demanda do leitor médio seria fruto de uma inversão lógica que, no limite, nos levaria ao grunhido.
    Continuo a escrever exatamente o que quero, mas sempre me disponho ao embate. Nos últimos anos tive a sorte de vender livros em vilarejos ao norte da Alemanha, em balneários caribenhos, em Macau e no Meio-Oeste americano. Também o fiz em dezenas de cidades do meu país, de Foz do Iguaçu ao interior do Maranhão.
    O trabalho de arregimentar novos leitores --para mim e para a literatura brasileira-- é um corpo a corpo ao qual tenho dedicado boa parte do meu tempo na última década, dentro e fora do Brasil. É o foco do meu trabalho? Não. Escrevo para isso? Não. Ganho dinheiro com isso? Aqui, pouco. No exterior, nenhum. Mas esses encontros ajudam a entender o que faço. E, ainda que entre a espetacularização da figura do escritor e uma difusão efetiva do hábito da leitura exista um abismo por trás de uma cortina de fumaça de boas intenções, com sorte ganho um ou outro leitor ao final dessas performances. Por isso, continuo.
    Cada leitor é tão importante quanto o próximo. "20 leitores locais são mais preciosos que uma edição na Bulgária"? Não. A não ser que a edição búlgara tenha menos de 20 exemplares vendidos. O "autor local", como Luciana Villas-Boas gosta de chamar, escreve para o mundo, onde buscará seus leitores. Nem mesmo o seu país irá reconhecê-lo se ele não tiver essa pretensão.
    OBSESSÃO Luciana Villas-Boas começa seu artigo com uma assertiva meio grosseira: "O autor brasileiro é vidrado numa tradução". Depois, ao traçar com detalhe os motivos do divórcio entre literatura e sociedade nas últimas décadas, dá a dica que poderia explicar nossa estranha obsessão, mas deixa a ponta meio solta.
    O autor brasileiro não é vidrado numa tradução por "cultivar o sonho colonizado e aprisionador do sucesso no Primeiro Mundo'", como o texto diz. Ele é vidrado numa tradução porque quer ser lido. E porque nasceu num país que tem lido muito pouco literatura contemporânea.
    A tiragem inicial média de um romance em Portugal é a mesma que aqui, ainda que nossa população seja quase 20 vezes a de lá. Nossos números podem ser ainda mais vergonhosos: em 2011, quase quatro em cada dez universitários não podiam ser considerados plenamente alfabetizados --os dados são do Instituto Paulo Montenegro (IPM). Não há ação editorial que resolva tal problema.
    Talvez seja por isso que escritores brasileiros precisem repetir como um mantra: escrevo exatamente o livro que posso e desejo escrever. Se a obra pronta se transformará numa "aposta ousada" ou convidará novos brasileiros ao hábito da leitura é algo que está totalmente fora da minha lista de prioridades quando escrevo. Para a ira de alguns, não apenas escrevemos o que queremos, mas também queremos ser lidos sem nenhum tipo de concessão às necessidades do mercado editorial ou à última onda anglo-saxônica. A lógica por trás do artigo de Villas-Boas sucumbe ao provincianismo que ela credita ao autor brasileiro.
    A mesmice não está na produção literária dos contemporâneos. É só ler seus livros com os olhos abertos, o que alguns "scouts" de agência e críticos literários com pedigree não costumam fazer, sempre procurando neles outros que já foram escritos.
    O "mais do mesmo" está nesse tom acusatório, vindo de certos editores, acadêmicos e escritores que tentam corresponsabilizar a produção contemporânea por um problema estrutural de educação no país. O desprestígio da ficção brasileira no mercado local é fruto do desprestígio da leitura como um todo no Brasil. Creditá-lo aos livros publicados ou aos interesses dos seus autores é um erro que ajuda a intoxicar ainda mais um ambiente não muito conhecido pela sua lisura.
    O editor e escritor Paulo Roberto Pires, num seminário em que estivemos juntos na Universidade Brown no ano passado, terminou seu panorama sobre a literatura brasileira contemporânea com uma imagem arrasadora:
    "O crítico marxista Francisco de Oliveira certa vez definiu o capitalismo brasileiro como um ornitorrinco, aquele estranho animal que é ao mesmo tempo da terra e da água, mamífero e ovíparo, uma exceção eterna no conceito da evolução das espécies. Eu acho que é uma boa metáfora para pensar a literatura brasileira hoje. Nós somos ornitorrincos literários: temos público, mas não temos leitores, nós viajamos ao redor do mundo, mas não temos reconhecimento no nosso país, nós somos the next big thing', mas não ganhamos dinheiro com isso, nós ganhamos a vida falando para muita gente sobre livros lidos por apenas alguns deles. Nós somos, mesmo contra a nossa vontade, um espelho do nosso país."
    O ornitorrinco não tem culpa de ser ornitorrinco, Luciana. Libertemos o escritor brasileiro de mais essa.

      Que bloco é esse? Os primeiros passos dos black blocs

      folha de são paulo
      POLÍTICA
      Por trás das máscaras
      Um perfil histórico dos black blocs
      FRANCIS DUPUIS-DÉRITRADUÇÃO GUILHERME MIRANDA
      RESUMO A série em que a "Ilustríssima" adianta lançamentos editoriais traz excerto de "Black Blocs", a sair pela editora Veneta no fim do mês. No livro, cientista político aborda as origens e o desenvolvimento da tática e enceta traçar um perfil de seus participantes, com base em pesquisa histórica e entrevistas com ativistas.
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      O que distingue a tática dos black blocs não é o recurso à força, tampouco o uso de equipamentos defensivos e ofensivos em passeatas e manifestações --ainda mais porque muitos black blocs já protestaram pacificamente sem qualquer equipamento. Na verdade, o que diferencia essa tática de outras unidades de choque é sobretudo sua caracterização visual --a roupa inteiramente preta da tradição anarcopunk-- e suas raízes históricas e políticas nos Autonomen, o movimento "autonomista" em Berlim Ocidental, onde a tática do black bloc foi empregada pela primeira vez, no início dos anos 1980.
      Esse autonomismo1 surgiu na Alemanha e depois se espalhou para a Dinamarca e a Noruega. As origens ideológicas dos Auto- nomen são variadas --marxismo, feminismo radical, ambientalismo, anarquismo-- e essa diversidade ideológica era vista em geral como garantia de liberdade.
      Na Alemanha Ocidental, as feministas radicais tiveram um impacto profundo nos Autonomen, injetando um espírito mais anarquista no movimento, que, no resto da Europa Ocidental, era mais marcado pela influência marxista-leninista.
      As feministas buscavam redefinir a política, estimulando a autonomia em várias esferas: a individual por meio da rejeição à representação, de modo que as pessoas falassem por si mesmas, e não em nome do "movimento" ou de todas as mulheres; a de gênero, por meio da criação de coletivos exclusivamente de mulheres; a decisória, por meio da adoção de tomadas de decisões consensuais; e a política, por meio da independência de órgãos institucionalizados (partidos, sindicatos etc.), por mais progressistas que fossem.
      Os Autonomen praticavam uma política igualitária e participativa "aqui e agora", sem líderes ou representantes; a autonomia individual e a autonomia coletiva eram, em princípio, complementares e igualmente importantes.
      Os grupos autônomos alemães expressavam-se politicamente por meio de campanhas contra o pagamento de aluguéis e reapropriações de centenas de edifícios, que eram transformados em lares e espaço para atividades políticas.
      Muitas dessas ocupações davam comida e roupa de graça e abrigavam bibliotecas, cafés, salas de reunião e centros de informações conhecidos como "infoshops", assim como espaços para shows e galerias de arte onde músicos e artistas socialmente engajados podiam apresentar seu trabalho. O mesmo movimento ocupou universidades e enfrentou neonazistas que perseguiam imigrantes, assim como policiais que protegiam usinas nucleares. Nessas ocasiões, os Autonomen usavam capacetes, escudos improvisados, bastões e projéteis.
      REPÚBLICA livre Não se sabe ao certo quando o termo "black bloc" foi utilizado pela primeira vez. Alguns afirmam que foi em 1980, quando um chamado pela mobilização anarquista de Primeiro de Maio em Frankfurt pedia às pessoas que "[se juntassem] ao Black Bloc". Outra história localiza o surgimento do termo meses depois, quando a polícia avançou para desmontar a República Livre de Wendland, um acampamento em protesto contra a abertura de um depósito de lixo radiativo em Gorbelen, Baixa Saxônia.
      Nos dias seguintes, foram organizadas manifestações em solidariedade, sendo a mais famosa a "Black Friday", na qual, segundo consta, todas as pessoas estavam vestidas com jaquetas de couro preto e um capacete de moto, com os rostos cobertos por bandanas pretas. As reportagens sobre o evento faziam referência ao Schwarzer Block (isto é, black bloc).
      Outros ainda defendem que o termo foi cunhado em dezembro de 1980 pela polícia de Berlim Oriental. Tendo decidido pôr fim às ocupações, as autoridades municipais haviam autorizado a polícia a conduzir uma série de despejos extremamente violentos. Diante da ameaça iminente de uma ação brutal da polícia, diversos Autonomen com máscaras e roupas pretas foram às ruas para defender suas ocupações.
      Nesse cenário, chegou a haver ação jurídica contra a "organização criminosa" conhecida como "o Black Bloc". Mas a ação da procuradoria perdeu, e as autoridades admitiram que a organização nunca existira. Depois, em 1981, foi impresso um panfleto intitulado "Schwarzer Block", com a seguinte explicação: "Não existem programas, estatutos ou membros do Black Bloc. Existem, porém, ideias e utopias políticas, que determinam nossas vidas e nossa resistência. Essa resistência tem muitos nomes, e um deles é Black Bloc".
      Um grande black bloc se formou em Hamburgo em 1986 para defender as ocupações da rua Hafenstrasse. Cerca de 1.500 black blockers, apoiados por outros 10.000 manifestantes, enfrentaram a polícia e salvaram a ocupação. "Foi uma grande vitória", afirmou um ativista do movimento autônomo, "provando que era possível evitar despejos".2 A mobilização na rua aconteceu em colaboração com ações clandestinas contra as ameaças de despejo e ataques da polícia: pequenos grupos incendiaram mais de dez lojas, casas de políticos e prédios municipais.
      Black blocs também apareceram em manifestações contra a visita do presidente norte-americano Ronald Reagan a Berlim Ocidental em junho de 1987. E, quando o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) se encontraram em setembro de 1988, também em Berlim Ocidental, um black bloc participou dos protestos. Em algumas manifestações, Autonomen usando capuzes pretos caminhavam nus nas ruas -- o espetáculo paradoxal de um black bloc altamente vulnerável.
      Hoje, a Alemanha tem os maiores black blocs (muitas vezes chamados de blocos autônomos). O serviço de segurança do país, Bundesamt für Verfassungsschutz [Escritório Federal para a Proteção da Constituição], estima --talvez com demasiada precisão-- que os black blockers do país cheguem a 5.800.
      Nas manifestações anticapitalistas anuais de Primeiro de Maio em Berlim, os black blocs reúnem de 2.000 a 4.000 pessoas vestidas inteiramente de preto, envoltas por faixas e vestindo jaquetas de moletom com capuzes (jaquetas de couro saíram de moda) e óculos escuros (agora que as máscaras foram proibidas na Alemanha).
      TURISTAS Essas manifestações se tornaram tão famosas entre as redes militantes europeias que muitos Autonomen se queixam de "turistas ativistas", que buscam protestos como oportunidades para farrear, são indiferentes à realidade local e, pior de tudo, saem da cidade com a mesma rapidez com que chegaram a ela. Não é raro que essas pessoas comprem cerveja ao longo da manifestação e atirem os vasilhames vazios na polícia, sendo repreendidas ou até mesmo tratadas com violência por Autonomen "straight edge" (que defendem a abstinência de tabaco, álcool e drogas em geral). Mesmo assim, no ano passado, viam-se em Kreuzberg, bairro de Berlim, pôsteres em inglês --voltados, portanto, para turistas ativistas-- convidando as pessoas a entrar em um "bloco anarquista/autônomo".
      Surgiram muitas outras ocasiões para a formação de black blocs, como os chamados para enfrentar os neonazistas reunidos em Dresden a fim de lembrar, em 11 de fevereiro, o bombardeio da cidade durante a 2ª Guerra Mundial.
      Em razão do tamanho e do dinamismo do movimento autônomo alemão, várias redes podem enviar chamados simultâneos para a formação de blocos autônomos. Os blocos nascidos na rede de ação antifascista são compostos principalmente por homens cuja atitude é mais belicosa. As mulheres são a maioria nas redes antirracistas, nas quais questões de diversidade e inclusão têm mais importância.
      COLORIDOS Nos últimos anos, foram convocados blocos multicoloridos, com o argumento de que pode ser insensível, do ponto de vista cultural, associar o negro a anonimato e uso da força.
      Um desses comunicados foi feito em 1º de abril de 2012, para uma manifestação em Eisenach contra o encontro de fraternidades nacionalistas xenofóbicas. O pôster mostrava dois personagens vestidos ao estilo dos black blocs, mas um estava de roxo e o outro, de rosa. Apesar disso, a maioria dos participantes apareceu de preto, e alguns dos antifascistas chegaram a fazer comentários homofóbicos e sexistas contra companheiros que usavam cores mais extravagantes.
      No acampamento No Border, realizado em Estocolmo em junho de 20 da política de imigração europeia, foi emitida outra convocação para um bloco colorido --atendida porém só por pouquíssimos ativistas suecos e alemães.
      Também é importante mencionar que, nos anos 2000, surgiram grupos autônomos-nacionalistas ou de ação antiantifascista de extrema-direita, que, em marchas neonazistas, se apropriaram do estilo dos black blocs: óculos escuros, capuzes, muitas faixas, música eletrônica. Blocos como esses chegaram a reunir cerca de mil fascistas em grandes manifestações.
      TÁTICA Como a tática dos black blocs migrou da Berlim Ocidental dos anos 1980 para a Seattle de 1999? Os sociólogos Charles Tilly, Doug McAdam e Dieter Rucht, especialistas em movimentos sociais, mostram como repertórios de ações coletivas consideradas eficazes e legítimas para a defesa e a promoção de uma causa circulam entre períodos e lugares diferentes. Eles são transformados e disseminados ao longo do tempo e entre fronteiras, de um movimento social para outro, segundo as experiências dos militantes e as mudanças na esfera política.
      A tática dos black blocs se disseminou nos anos 1990, sobretudo através da contracultura punk e de extrema-esquerda ou ultraesquerda, via fanzines, turnês de bandas punks e contatos pessoais entre ativistas em viagens.
      Acredita-se que tenha surgido pela primeira vez na América do Norte em janeiro de 1991, durante uma manifestação contra a primeira Guerra do Iraque. O prédio do Banco Mundial foi alvejado, e janelas foram quebradas. Um black bloc foi organizado depois, no mesmo ano, em San Francisco, em uma manifestação no dia do Descobrimento da América, denunciando os 500 anos de genocídio perpetrado contra as nações indígenas, e outro surgiu numa marcha, em Washington, pelo direito das mulheres de mandar em seus corpos. Jornais anarquistas como o "Love and Rage" ajudaram a tornar a tática black bloc conhecida em toda a comunidade anarquista norte-americana.
      A tática também foi usada no início dos anos 1990 por membros da Anti-Racist Action (ARA), movimento antiautoritário e antirracista nos Estados Unidos e no Canadá, dedicado ao confronto direto com neonazistas e seguidores da Supremacia Branca.
      Ativistas da seção de Toronto da ARA foram a Montreal em 22 de setembro de 1993, onde se reuniram em um pequeno black bloc em protesto contra a reunião (posteriormente cancelada), que teria dois prefeitos franceses direitistas, da Frente Nacional, como oradores convidados. O resultado foi um confronto violento com a polícia, uma torrente de bombas de tinta contra o restaurante que havia recebido os "frontistes" e uma perseguição pelas ruas em que os manifestantes foram atrás dos cerca de 30 skinheads neonazistas que haviam vindo proteger o lugar.
      Em 24 de abril de 1999, um black bloc de aproximadamente 1.500 pessoas participou de uma passeata na Filadélfia exigindo a liberação de Mumia Abu-Jamal, um dos fundadores da divisão local dos Panteras Negras, que havia sido acusado de matar um policial em 1981 e condenado à morte.
      MÍDIA Mas foi em 30 de novembro de 1999, durante as manifestações contra a reunião da OMC em Seattle, que a mídia exibiu a imagem do black bloc para o mundo.
      Nos EUA, ao longo da década, a polícia vinha usando spray de pimenta contra manifestantes não violentos e fazendo prisões em massa, durante ações de desobediência civil realizadas por ambientalistas radicais da Costa Oeste. Imaginando que a atitude se repetiria, os black blockers optaram por uma tática móvel que evitaria prisões em grande escala e ataques de spray de pimenta e gás lacrimogêneo.
      Na manhã de 30 de novembro de 1999, a polícia atacou os grupos de ativistas não violentos que vinham bloqueando a entrada do centro de convenções desde as 7 horas, e os estoques de gás estavam acabando. Às 11 horas, o black bloc entrou em ação em uma área distante do centro de convenções. O bloco estilhaçou as janelas de alguns bancos e empresas internacionais e desapareceu antes que a polícia pudesse reagir.
      A mídia cobriu extensamente a aparição dos black blocs em Seattle, ajudando a difundir suas características distintivas: roupas pretas, máscaras nos rostos e ataques contra alvos econômicos e políticos. Os principais meios de comunicação apresentaram uma visão bastante negativa dos black blocs; a discussão sobre suas ações foi mais equilibrada na mídia alternativa, especialmente na rede on-line independente Indymedia, na qual se podiam ler comunicados dos black blocs e ver fotos e vídeos de suas ações.3
      Fascinadas por essas imagens e convencidas pelos argumentos a favor da legitimidade e da eficácia da tática, algumas pessoas passaram a se identificar com essa forma de ação e decidiram organizar seus black blocs na primeira oportunidade --por exemplo, caso fosse anunciada a realização de uma grande cúpula econômica internacional em sua cidade.
      Na realidade, o protesto em Seattle foi parte de um grande movimento transnacional --conhecido por diversos nomes, entre eles movimento antiglobalização ou "alterglobalização", ou "movimento dos movimentos" --que aproveita cúpulas feitas pela OMC, pelo FMI, pelo G8, pelo G20, pela UE, e assim por diante, para organizar vários dias de conferências e ações perto da cidade anfitriã.
      Esse movimento amplo e heterogêneo se expressa por meio de diversas ações nas ruas. As principais organizações sociais democráticas (sindicatos trabalhistas, sindicatos rurais, federações feministas, partidos políticos de esquerda, entre outras) fazem uma passeata "unitária" supervisionada por unidades policiais vigorosas. Enquanto isso, diversos grupos militantes conduzem ações violentas. Os black blocs se organizam nessas ocasiões, às vezes marchando pacificamente, mas dispostos a recorrer à força física, dependendo do contexto e da sua força relativa.
      Os black blocs também se envolveram em mobilizações não diretamente relacionadas ao movimento alterglobalização; foi o caso das cúpulas da Otan de 2003 e 2009 em Praga e Estrasburgo, respectivamente, e da Convenção do Partido Republicano em Nova York, em agosto e setembro de 2004.
      A tática dos black blocs pode adquirir um sentido especial que varia dependendo do contexto local. Por exemplo, no México dos anos 1990, os anarcopunks se interessavam especialmente pelo visual dos black blocs, sobretudo pelo uso das máscaras, uma vez que essa também era uma característica do Exército Zapatista de Libertação Nacional --embora a relação dos anarcopunks com os zapatistas fosse ambivalente.
      PERFIL É difícil fazer um perfil sociológico preciso dos homens e mulheres que participam de black blocs: não só porque eles usam disfarces mas porque cada black bloc é diferente do outro. Ainda assim, minhas observações sugerem que eles são compostos sobretudo por jovens (embora alguns membros tenham mais de 50 anos) e homens (em alguns casos, apenas 5% dos black blockers são mulheres).
      Mesmo nas redes antifascistas e antirracistas do Ocidente, os membros do black bloc são majoritariamente de origem europeia, quase não havendo negros ou hispânicos. É claro que também se pode dizer o mesmo de outras redes políticas da esquerda do Primeiro Mundo, mas as ações diretas específicas dos black blocs são mais arriscadas para imigrantes e negros, porque a repressão contra eles pode ser bem maior.
      O sociólogo francês Geoffrey Pleyers identificou entre os participantes de black blocs tanto jovens com baixos níveis de consciência política em busca de emoção como ativistas altamente politizados.
      É fato que algumas pessoas entram em black blocs sob a influência de amigos ou pelo simples desejo de extravasar a raiva reprimida, mas ninguém pode forçar outra pessoa a adotar essa tática, que se baseia no respeito à autonomia de todos que dela participam.
      Nem todos os participantes de black blocs são anarquistas autodeclarados. No Egito, por exemplo, podem ser ativistas políticos, torcedores de futebol ou fãs de bandas de heavy metal. Entretanto, como diz o professor Mark LeVine, a Tahrir [praça no Cairo que concentrou os protestos que levaram à derrubada de Hosni Mubarak, em 2011, e continuou a receber protestos contra o governo da Irmandade Muçulmana] "continua sendo em muitos aspectos o símbolo das ideias de horizontalismo e auto-organização que estão no centro da teoria e da prática do anarquismo moderno".
      Em seus comunicados, manifestos e entrevistas, muitos black blocs ressaltaram a diversidade de seus membros. Em "Letter From Inside the Black Bloc" (carta de dentro do black bloc), por exemplo, publicada alguns dias após as manifestações contra a Cúpula do G8 de 2001, em Gênova, Mary Black escreve:
      "A maioria das pessoas que usaram as táticas black bloc tem trabalhos diurnos voluntários. Alguns são professores, sindicalistas ou estudantes. Alguns não têm empregos em tempo integral, mas passam a maior parte do tempo trabalhando para mudar suas comunidades. Eles começam projetos de jardins urbanos e bibliotecas móveis; cozinham para grupos como Food Not Bombs. São pessoas pensantes e atenciosas que, se não tivessem ideias políticas e sociais radicais, seriam comparadas a freiras, monges e outros que levam a vida servindo".
      "Existe uma grande diversidade no que somos e no que acreditamos. Conheço pessoas de black blocs que vêm da Cidade do México mas também de Montreal. Acredito que o estereótipo está certo ao dizer que a maioria de nós é jovem e branca, embora eu não concorde com a ideia de que somos uma maioria de homens. Quando estou vestida de preto da cabeça aos pés, com roupas pretas largas, com o rosto coberto, a maioria das pessoas pensa que sou homem. O comportamento dos ativistas dos black blocs não é associado a mulheres, por isso repórteres costumam supor que somos todos homens."
      Esses relatos parecem ser motivados por um desejo sincero de retratar os black blocs de maneira correta e, ao fazer isso, rebater acusações de que eles não passam de jovens delinquentes sem qualquer consciência política.
      Autorrepresentações como essa procuram desmentir uma crítica muito frequente contra os black blocs: a de que é impossível para um ativista fazer duas coisas ao mesmo tempo ou até uma depois da outra --ou seja, tomar parte em protestos violentos e também se organizar em movimentos globais ou locais que ajudem as pessoas exploradas e marginalizadas.
      LEGITIMAÇÃO Afirmações como a de Mary Black também são ações de legitimação. Em 2011, após protestos contra medidas de austeridade em Londres, quando um participante do black bloc, identificando-se como um "trabalhador mal pago do setor público", disse a um repórter do "Guardian": "Vimos muitos enfermeiros, trabalhadores da área de educação, tecnologia, desempregados, estudantes e assistentes sociais no bloco". Outro afirmou:
      "Você teria uma surpresa incrível com as pessoas que usam as táticas do black bloc, em termos de idade, gênero, profissão. A mídia gosta de pintar um quadro de hooligans e bandidos, homens irracionais em fúria. Simplesmente não é verdade. Existem mulheres e provavelmente transgêneros também. Alguns dos anarquistas assustadores trabalham em empregos de assistência social e saúde mental. Isso não vem da bandidagem".
      O retrato inesperado que surge desses relatos é o de um grupo de cidadãos responsáveis e sensatos, de ambos os sexos.
      Durante a greve estudantil no Quebec de 2012, os principais meios de comunicação denunciaram a suposta infiltração de black blocs em manifestações estudantis. Aqui está o que um grupo de "anarquistas entre muitos" respondeu a essa afirmação em seu "Manifeste du Carré Noir" (manifesto do quadrado negro):
      "Somos homens e mulheres. Somos estudantes. Somos trabalhadores. Somos desempregados. Estamos furiosos. Não estamos cooptando uma greve. Fazemos parte do movimento desde o começo, uma de suas facetas, junto com todos os outros ["¦] Não nos infiltramos em manifestações; ajudamos a organizá-las, fazemos com que elas nasçam. Não estamos sabotando a greve; somos parte integral dela, ajudamos a organizá-la, fazemos seu coração pulsar."
      Muitas das pessoas que entrevistei eram ou haviam sido estudantes de ciências sociais (no entanto, tais encontros tem relação natural com o fato de eu mesmo fazer parte do mundo acadêmico). Em várias ocasiões, seus projetos de pesquisa tratavam da importância política e das consequências de manifestações e ações diretas, o que sugere que seu envolvimento político se baseava em pensamentos políticos mais profundos.
      Segundo o comunicado divulgado pelo black bloc de Seattle em 1999, a maioria dos membros "estuda os efeitos da economia global, da engenharia genética, da extração de recursos, do transporte, das práticas trabalhistas, da eliminação da autonomia indígena, dos direitos animais e dos direitos humanos, e há anos praticamos ativismo nessas áreas. Não somos mal informados nem inexperientes".
      Em sua maioria, as pessoas que entrevistei a respeito dos black blocs eram ativistas experientes ou que atuavam em diversas comunidades ou organizações políticas (contra os neonazistas, o racismo, a brutalidade policial e assim por diante), ou que ajudavam a produzir jornais políticos.
      Vale repetir, porém, que não existe um perfil homogêneo dos militantes por trás das máscaras. Ser fã de música punk não é suficiente para fazer de alguém um candidato óbvio a black blocker. Por outro lado, um black blocker pode não gostar de música punk ou estudar em uma universidade.
      Muitos black blockers dizem que o uso da força resulta de uma avaliação política baseada em frustrantes experiências pessoais com ações não violentas, que passaram a ver como, no mínimo, inadequadas. Um militante veterano que havia se juntado a muitos black blocs me disse:
      "Todos os homens e mulheres que conheço que participaram de black blocs são ativistas, alguns muito experientes. Eles ficaram um tanto desiludidos porque chegaram à conclusão de que os métodos pacíficos são muito limitados e jogam a favor dos poderes no comando. Então, para deixarem de ser vítimas, eles acharam melhor usar a violência".4
      As notas a seguir foram editadas pela Redação, sendo suprimidas aquelas essencialmente bibliográficas e mantidas as necessárias à contextualização:
      1. Não confundir com movimentos autonomistas, pró-reconhecimento de culturas nacionais ou regionais distintas.
      2. BB4, entrevistado pelo autor em Montreal em 26.nov.03. Morador de Amsterdam, ele tinha 42 anos na época e havia participado de black blocs durante a década de 1980 e no movimento de ocupação na Alemanha e na Holanda.
      3. O primeiro centro da Indymedia foi fundado durante a Batalha de Seattle. Ele reuniu estudantes, trabalhadores comunitários e ativistas. Desde então, inúmeras cidades passaram a ter sites ligados à Indymedia. Qualquer pessoa pode publicar textos e imagens diretamente neles. Embora não seja inteiramente dedicada ao tema, a rede Indymedia continua sendo uma das fontes mais úteis para obter detalhes sobre os protestos alterglobalização.
      4. BB2, entrevistado pelo autor. Tradução nossa. A mesma observação foi feita por militantes franceses em Cle?ment Barette, "La Pratique de la Violence Politique par l'Émeute: le Cas de la Violence Exerce?e lors des Contre-sommets" (Universite? de Paris I-- Panthe?on-Sorbonne, 2002), 93.

      Obras abrem vagas para "ex-escravos"

      Obras abrem vagas para "ex-escravos"
      Resgatados por órgãos de combate ao trabalho análogo à escravidão suprem falta de braços na construção
      folha de são paulo
      Programa que começou em Mato Grosso já empregou 588 pessoas e deve agora ser levado para mais Estados
      CLAUDIA ROLLIDE SÃO PAULO
      Obras de infraestrutura abrem espaço para uma nova categoria de trabalhadores no país: os resgatados em ações de combate ao trabalho escravo.
      A iniciativa começou em Mato Grosso, em construções como a do estádio Arena Pantanal, da Mendes Júnior, em Cuiabá, e da usina hidrelétrica Teles Pires, da Odebrecht, na divisa dessa região com o Pará. E neste ano deve se expandir para ao menos três Estados, que negociam com parceiros locais vagas para essa mão de obra.
      Rio, Bahia e Pará discutem programas como o Ação Integrada, que em Mato Grosso empregou 588 trabalhadores resgatados entre 2011 e 2013.
      A carteira assinada nas obras vem acompanhada de cursos de qualificação e alfabetização promovidos em parceria por entidades como Sesi e Senai e empresas da construção, de colheita de algodão e de criação de suínos.
      O número de resgatados que voltam ao mercado de trabalho em programas como esse ainda é pequeno diante do total de libertados no Brasil. Foram 2.300 no ano passado e perto de 46 mil desde 1995, quando o país reconheceu a existência de trabalho análogo à escravidão.
      Mas o número de empregados em MT (588) já representa quase dois terços dos 1.615 que receberam o seguro-desemprego especial de resgatados nesse Estado, de 2003 a 2012.
      A expansão do programa abriu espaço para uma discussão entre fiscais, procuradores do Ministério Público e especialistas que atuam no combate a essa prática.
      "É preciso entender que esse trabalhador precisa ser resgatado em vários aspectos. Não adianta simplesmente assinar a carteira. O programa avalia a aptidão profissional, resgata a cidadania (muitos nem documentos têm) e ajuda com cursos práticos. Na sala de aula, prepara esse trabalhador", diz Valdiney Arruda, superintendente do Trabalho em Mato Grosso e coordenador do programa.
      'OUTRA VIDA'
      O paulista José Divino da Silva, 59, chegou à obra da Arena Pantanal desnutrido, com anemia e sem condições físicas de enfrentar a rotina da construção. Foi caminhoneiro e acabou indo parar numa fazenda de algodão em Primavera do Leste (MT). "Ganhava R$ 14 para capinar cada rua da plantação. Levava até três dias para fazer uma rua com 3.400 metros. Morava num barracão com 40 colegas. E só tinha uma paredinha separando a gente do chiqueiro. Quando chovia, os porcos invadiam o cômodo."
      Com a saúde frágil, Divino foi empregado como responsável por cuidar do alojamento da obra. "A vida mudou muito. Naquele tempo, a comida era fraca e pouca. A gente comia carne só quando alguém caçava tatu. Agora tenho carteira assinada, salário e consegui comprar meu carrinho, em 36 vezes."
      Na obra de construção da hidrelétrica Teles Pires, a história do baiano Anílton Conceição dos Santos, 30, resgatado de uma fazenda em Itiquira (MT) há menos de um ano, traz semelhanças com a de Divino. "Trabalhava sob sol e chuva. Posso dizer, sim, que era quase um escravo." A promessa era receber R$ 1.600 de salário, mas, com todos os descontos e dívidas, diz, o dinheiro nunca chegava ao bolso. "A comida custava caro, a bota era descontada. Cada vez que pedia para ir à cidade, o frete custava R$ 190. Quando saía da fazenda, levava advertência."
      Anílton fez curso de soldador e tem sonhos: quer estudar mais, ser motorista e viajar pelo Brasil.
      "Como o Brasil virou um canteiro de obras e faltam profissionais, a vinda desses trabalhadores também foi uma alternativa importante", diz Chrispim Sheikespire, gerente administrativo na obra do estádio Pantanal.
      Há vários casos de trabalhadores que já estão sendo promovidos. Durval Fernandes da Silva, 40, começou como servente, mudou de cargo duas vezes e vai ser oficial de armador na obra de duplicação da BR-163.

      Helio Schwartsman

      folha de são paulo
      Enxugando gelo
      SÃO PAULO - Quando uma pessoa quer muito fazer algo irracional, é difícil impedi-la. Informação e persuasão só funcionam até certo ponto. Barreiras legais produzem algum efeito, mas elas vêm com um custo, tanto econômico como em termos de redução de liberdade que é pago pelo conjunto da sociedade.
      Faço essas reflexões após ler o recém-divulgado informe anual de 2013 do Conselho Internacional de Controle de Narcóticos, ligado à ONU. Como sempre, o foco principal do relatório é tentar justificar a própria existência do conselho, a cada ano mais espremido entre os resultados nada brilhantes da política de guerra às drogas por ele desposada e a tendência de países desenvolvidos de adotar posições liberalizantes.
      O informe busca salvar a atuação do órgão afirmando que, não fosse pela linha proibicionista, o número total de dependentes químicos no mundo seria muito maior. Isso é em parte verdade. Se todas as drogas fossem legalizadas, mais gente as utilizaria e, com a maior exposição, é razoável esperar que houvesse aumento na proporção dos viciados.
      A questão é que ninguém sabe o grau em que isso ocorreria. Para uma linha de estudiosos mais pessimistas, não há limite para o vício. Se 100% de uma população for submetida a um regime de ingestão forçada de drogas, ao cabo de algumas semanas teremos 100% de dependentes.
      Para outros, porém, em condições naturais, isto é, sem a dieta obrigatória, o vício se torna um fenômeno bem mais raro. Na verdade, como sugerem alguns estudos, a grande maioria dos usuários de drogas tão variadas como álcool, heroína e crack jamais se torna dependente.
      Se o segundo grupo tem razão, fica ainda mais difícil defender a linha proibicionista, que nos leva a gastar bilhões de dólares por ano e entrega, na melhor das hipóteses, uma estabilidade relativa na proporção de dependentes. É enxugar gelo a um custo financeiro e social exorbitante.

        Antonio Prata

        folha de são paulo
        Googlall
        Imagina que saco: você numa churrascaria e um bip alertando que a quantidade de proteínas foi ultrapassada
        Vira e mexe, me vejo bisolhando o sujeito na mesa ao lado e espremendo o cérebro feito um limão: de onde eu conheço esse cara? Terá sido meu companheiro no chalé IV do acantonamento Rancho Ranieri, em 1987? O namorado da prima de uma ex-namorada, na faculdade? Um passageiro com quem troquei três frases na ponte aérea, semana passada? Muito em breve, essa e outras questões serão resolvidas num piscar de olhos. Literalmente: bastará encarar a pessoa através das nossas lentes de contato digitais e uma legenda aparecerá, como na viseira do Robocop: "Pedro Arruda, 35, advogado tributarista, vulgo "Goiabão", roubou seus bonecos do Comandos em Ação na quarta série".
        Tudo estará na rede e a rede estará em nós. Imagine um novo casal tendo aquela típica conversa sob os lençóis: "Que coisa doida a gente nunca ter se esbarrado por aí antes... Será que a gente já passou pertinho um do outro em algum lugar?". Como seremos chipados ao nascer, os namorados poderão ver as situações em que estiveram mais próximos dando um rápido rewind nos GPSs pessoais. E já que as lentes filmarão o tempo inteiro, do exame do pezinho à pá de cal, dará até para assistirem às cenas de seus quase encontros: na infância, a três assentos de distância, no barco viking do Playcenter; na adolescência, se cruzando numa passeata dos "caras-pintadas"; numa tarde modorrenta de 2003, olhando pro painel de senhas do cartório Vampré, em Pinheiros. (Essas imagens, claro, estarão no vídeo de casamento dos dois, mandado diretamente para as lentes dos convidados.)
        Nem só pra fora, infelizmente, olhará o Big Brother. Imagina que saco, você numa churrascaria e um bip alertando que a quantidade necessária de proteínas foi ultrapassada e é recomendável comer mais fibras. (Neste momento, as alfaces da travessa piscarão em suas lentes, como pop-ups na tela do computador.) Rodízio só será um programa viável se você estiver devidamente desplugado.
        Se na ingestão a ferramenta será uma mala sem alça, na digestão poderá ser uma mão na roda. Sabendo as quantidades de sólidos e líquidos deglutidos e cada detalhe do seu metabolismo, um aplicativo poderá te dar hora e minuto exatos em que você terá que ir ao banheiro -uma espécie de Waze corporal, com informações precisas sobre o tráfego interno.
        Confesso que, quando penso neste futuro próximo, o que mais me atiça a curiosidade não são as maravilhas possíveis (encontrar doadores compatíveis, unir pessoas com fetiche por roupas de couro verdes lambuzadas por iogurte de pêssego -light), mas as pequenas inutilidades. Como, por exemplo, pegar uma caneta Bic e, através das impressões digitais, descobrir as mãos pelas quais já passou, ver as fotos e perfis desses desconhecidos cujo único vínculo é uma esferográfica -e, quem sabe, uma medula óssea ou um fetiche semelhantes. Talvez, quando esse dia chegar, já não se precise mais de cronistas: cada pedrinha no chão, cada tijolo na parede, ao serem escaneados, contarão histórias muito mais ricas do que as que poderemos inventar. Enquanto esse dia não chega, contudo, continuamos aqui, todo domingo.
        P.S. Nem todo domingo: nas próximas quatro semanas, estarei de férias, olhando uns tijolos e pedrinhas por aí. Até.

        Marcelo Leite

        Tribos bacterianas
        Associações insuspeitadas entre germes e genes abrem caminhos inovadores para investigar várias doenças
        Bactérias estão na moda. De dois anos para cá, pululam estudos de biomedicina sobre a comunidade de milhares de tipos de bactérias que colonizam o corpo humano. Por fora (pele, boca etc.) e por dentro (intestinos, principalmente).
        A excitação surge da descoberta de que ecossistemas bacterianos (microbiotas, diz-se) com perfis diversos, em particular na chamada flora intestinal, parecem estar associados com vários problemas de saúde. Obesidade, asma, depressão --a lista não para de crescer.
        Pessoas obesas têm uma diversidade menor de bactérias nas tripas, ou seja, um bioma interior mais pobre. Quando fazem dieta ou passam por cirurgia bariátrica (redução de estômago), estranhamente, a composição muda e aumenta o número de espécies de micróbios.
        Não se sabe direito se os diferentes perfis são causas ou resultados da doença e da saúde. De qualquer jeito, essas associações antes insuspeitadas estão abrindo caminhos inovadores para investigar os mecanismos por trás das moléstias.
        Uma peça a mais desse complicado quebra-cabeças acaba de ser identificada pelo pernambucano Sérgio Lira, da Escola Médica Mount Sinai, em Nova York. Desta vez estavam na mira lesões pré-cancerosas do cólon (intestino grosso). O grupo de Lira as estuda com ajuda de camundongos geneticamente modificados para desenvolver as lesões, conhecidas como pólipos, que estão relacionadas com cerca de um quarto dos cânceres de cólon.
        Lira andava intrigado com o fato de os pólipos aparecerem concentrados num trecho específico do cólon, o ceco (em humanos, eles costuma aparecer no outro extremo, a região do reto).
        Como a alteração genética que favorece o surgimento das lesões está presente em todas as células do intestino, surgiu a hipótese de que o problema estivesse relacionado com a população particular de bactérias naquele trecho do cólon.
        Para saber se bactérias estavam de fato envolvidas, o pessoal de Mount Sinai recorreu ao tiro de canhão: um coquetel de vários antibióticos (metronidazol, ampicilina, neomicina e vancomicina). As lesões diminuíram, como previa a hipótese sob investigação.
        "Não se pode dizer que as bactérias em si causam a doença", explica Lira. "Só se tiver o fator genético presente, também."
        O pernambucano diz que ainda tem um longo caminho pela frente para tentar identificar as bactérias mancomunadas com os genes. "Pegar aquela moqueca e separar o leite de coco, o camarão, o dendê, e aí olhar um por um." E, quem sabe um dia, tratar com antibióticos, mudança de dieta ou alteração da microbiota as pessoas que tenham mutações desvantajosas e polipose.
        "Nosso genoma é só parte da história", diz o pesquisador, que se formou em medicina no Recife e deixou o Brasil há três décadas. "Existe todo esse outro self, uma constituição genética muito mais plural, uma ecologia fantástica, cujo entendimento é essencial."
        Até aqui a microbiota intestinal tem sido estudada por atacado, com amostras (e até transplantes!) de fezes, vale dizer, do produto final. Mas Lira acha que o cólon guarda várias tribos diferentes de bactérias.
        Em certos locais, e conforme os genes da pessoa, a reação inflamatória a algumas delas talvez dê origem a pólipos, propõe o brasileiro, um "fisiologista apaixonado".

          Suzana Singer [folha ombudsman]

          folha de são paulo
          OMBUDSMAN
          Ler, ver e crer
          Pesquisa mostra o predomínio da televisão, o potencial da internet e a alta confiança em jornais
          A julgar pelo que se discute na imprensa -explosão da internet, derrocada dos impressos, perda de audiência da televisão aberta-, os brasileiros já entraram de vez no jornalismo 2.0. Não é bem assim.
          Uma pesquisa bastante abrangente sobre hábitos de mídia (18 mil entrevistas em 848 municípios), feita pelo governo federal, mostra que o domínio da televisão ainda beira o absoluto. O seu amigo radical, professor universitário que lê em francês e não tem televisão, é a exceção da exceção -97% dos brasileiros assistem à TV, 65% fazem isso todo santo dia, numa média diária de três horas e meia.
          Na supremacia da TV aberta, a Globo, como era de esperar, lidera com uma vantagem folgada. À pergunta espontânea "A qual telejornal você assiste?" 45% disseram ser o "Jornal Nacional", 16% citaram o "Jornal da Record" e 8%, o "Cidade Alerta", também da Record.
          É uma elite que se delicia com as perversidades de "Game of Thrones" e com os jardins de "Downton Abbey": a TV paga está em um terço dos lares (31%), especialmente nos mais ricos e nos localizados nas grandes cidades. É menos do que a porcentagem dos que, no extremo oposto, dependem de uma antena parabólica para ver seus programas favoritos na TV aberta (37%).
          O rádio, sempre esquecido nos debates sobre os rumos da mídia tradicional, continua firme e forte. Segundo a pesquisa, 60% dos brasileiros ouvem rádio, 21% todos os dias, em média, por três horas.
          A maioria dos brasileiros nunca acessa a internet (53%), mas o potencial de crescimento da rede é evidente quando se olha para os mais jovens. Entre os que estão na faixa de 16 a 25 anos 48% navegam pela web todos os dias. Além da idade, o determinante para estar on-line é escolaridade, renda e viver em cidade grande. Dos entrevistados que estudaram até a quarta série apenas 8% acessam a rede uma vez por semana; no alto da pirâmide, entre os que terminaram a universidade, esse número salta para 87%.
          Aquele seu outro amigo radical, o advogado trabalhista que acha ridículo contar a vida no Facebook, é também ponto fora da curva. Dos internautas 67% estão na rede social de Mark Zuckerberg e 31% dizem que se informam por ela.
          Os jornais impressos são lidos por um quarto da população adulta, especialmente pela parcela de alta escolaridade. Mas o leitor assíduo, que, como você, segue a Folha de domingo a domingo, é tão raro quanto os seus amigos esquisitos que viram as costas para a Globo e para as redes sociais: apenas 6% leem jornal todo dia.
          A força do impresso não está na abrangência, mas na confiabilidade. Enquanto 53% dos entrevistados confiam (sempre ou muitas vezes) nas notícias dos jornais, só 28% dizem a mesma coisa em relação aos sites e 22% sobre blogs.
          Pode ser que o jornal esteja se tornando alimento para animais em risco de extinção, mas o fundamental é não perder o voto de confiança do leitor. A luta pela sobrevivência consiste em garantir um espaço relevante na internet, onde está a audiência do futuro, mantendo o prestígio da marca do impresso.

            Elio Gaspari

            jornal o globo
            'Sorriso' mostrou a Paes a alma do Rio
            O prefeito achou que encarava a greve dos garis com radicalismo de gogó e produziu uma grande lixeira
            As cidades têm alma, e o prefeito Eduardo Paes parece não entender a da sua. O Rio tem a capacidade de se encantar com personagens do andar de baixo. No Império havia um filho de escravos, veterano da Guerra do Paraguai, que se intitulava D. Obá 2º d'África. D. Pedro 2º obsequiava-o nas audiências públicas. Houve Madame Satã, um marginal gentil, brigão, homossexual, que passou boa parte da vida preso e é um patrono da velha Lapa. E também o Profeta Gentileza, que pregava pelas ruas e deixava murais nos viadutos da avenida Brasil. O último desses adoráveis personagens é o gari "Renato Sorriso", aquele que varria a passarela do samba dançando e alegrou o mundo no encerramento da Olimpíada de Londres.
            "Sorriso" aderiu à greve dos garis do Rio. Na outra ponta, o prefeito Eduardo Paes teve seu momento Ronald Reagan. Diante da greve, demitiu 300. Quando a cidade ficou parecida com Nápoles durante sua terrível paralisação de 2011, aceitou readmiti-los, pagando os dias parados. O presidente Reagan havia sido ator mas não fazia teatro, demitiu 11 mil controladores de voo, quebrou a greve e nenhum deles retornou ao emprego. Depois do recuo, Paes chamou grevistas de "delinquentes". Nisso, a cidade continuava imunda pois, ao contrário de Reagan, que armou um plano B, a prefeitura entrou só com a agressividade do gogó. Disse que a greve era coisa de 300 garis. Tudo bem. Se fosse assim, cada um deles deveria ganhar R$ 100 mil por mês pois, quando pararam, a cidade virou um lixo. Desfeita a patranha, reconheceu-se que o movimento envolveu pelo menos 30% dos 4.000 servidores. Em vez de tentar um caminho que o levou ao fracasso, poderia ter acompanhado a alma do Rio, evitando a linha do posso-logo-faço. Filmado arremessando pedaços de fruta na rua, explicou que jogou-os na direção de uma lixeira longínqua "ou para que um de seus assessores fizesse o descarte em local adequado". Fica criada assim a categoria de assessor de descarte, ou gari de prefeito. Seria mais fácil cantar: "Viver é arte. Errar faz parte".
            Brigar com gari pode não ser uma boa ideia, mas, quando um prefeito está de um lado e um sujeito como "Sorriso" está do outro, ele deve pensar duas vezes.
            TERROR
            O ministro Ricardo Lewandowski recebeu uma carta de um advogado que defende a banca no julgamento pelo STF do processo dos poupadores tungados nos planos econômicos. Dizia o seguinte:
            "A prevalência do entendimento até agora adotado por numerosas decisões judiciais provocará uma convulsão econômica que lançará o país numa coorte de horrores que, sem exagero, irão do desemprego em massa à fome da população mergulhada nos sortilégios de uma crise econômica que afetará toda a nação."
            A banca da banca deve estar lendo demais sobre a Ucrânia.
            BURLE MARX
            Um carioca de alma exilado em Brasília estava esperando sua hora no aeroporto do centro da cidade e não acreditou no que viu. Sumiu o jardim de Burle Marx que ficava na pracinha em frente.
            Virou estacionamento e sobraram só as árvores, para dar sombra aos carros.
            SUCESSÃO
            Durante um almoço do andar de cima, no Rio, falava-se nas virtudes de Eduardo Campos como candidato à Presidência, até que um grande empresário que estava à mesa perguntou ao garçom:
            -Você sabe quem é Eduardo Campos?
            -Não senhor, respondeu o rapaz, com sotaque nordestino.
            O assunto morreu.
            MADAME NATASHA
            Madame Natasha vai a Brasília pedir aos educatecas do Inep que estudem as mudanças anunciadas para o sistema de testes do SAT americano. Nos Estados Unidos, os estudantes podem fazer esses exames em sete ocasiões ao longo de um ano. No Brasil, Lula e Dilma prometeram duas provas anuais do Enem, mas era lorota.
            A instituição que cuida do SAT anunciou que retirará dos exames os fatores de "ansiedade improdutiva". Para começar, banindo expressões que são colocadas nas provas com o propósito de humilhar e confundir os estudantes. Algumas palavras, como "síntese" ou "empírico", não são corriqueiras, mas devem ser conhecidas. Outras, como "deletério", podem ser substituídas. (Por "destruidor", por exemplo.)
            Natasha foi a uma prova do Enem de 2012 e achou coisas assim: "canalizar as pulsões", "cultura lipofóbica", "sentimentos de pertencimento" e "biorremediação".
            Natasha teme que o Inep diga que é isso mesmo, porque a doutora Dilma disse o seguinte há dias:
            "Tem uma infraestrutura muito importante para o Brasil, que é também a infraestrutura relacionada ao fato de que nosso país precisa ter um padrão de banda larga compatível com a nossa, e uma infraestrutura de banda larga, tanto backbone como backroll, compatível com a necessidade, que nós teremos para entrarmos na economia do conhecimento, de termos uma infraestrutura, porque no que se refere a outra condição, que é a educação, eu acho importantíssima a decisão do Congresso Nacional do Brasil em relação aos royalties." (84 palavras em busca de um sentido.)
            TRÊS VIÚVAS DO HAITI NO GAVETEIRO DA JUSTIÇA
            Em 2010, durante o terremoto do Haiti, morreram 18 militares brasileiros que integravam a força internacional que policiava o país. Lula recebeu os caixões com pompa e circunstância e o governo deu às famílias as pensões a que tinham direito, bem como um auxílio especial de R$ 500 mil a cada uma.
            Encerrada a marquetagem, começou uma encrenca. Todos os mortos tinham seguro de vida vendido pelo Bradesco, consorciado com a Fundação Habitacional do Exército. Até hoje não se sabe o que pode levar um exército a se juntar a uma seguradora privada. As viúvas diziam que os militares morreram em serviço (o que é óbvio) e, portanto, tinham direito ao dobro do valor da apólice. A seguradora dizia que eles morreram num cataclismo ao qual o contrato não dava cobertura. Foram para a Justiça e o Bradesco fez acordo com 15 famílias. Sobraram três, que reivindicam também indenização por danos morais ocorridos durante a disputa. Como seus maridos foram promovidos post-mortem, são viúvas de dois generais e um coronel. Com elas não houve oferta formal de acordo, além de um telefonema.
            Desde 2012, um recurso dessas três senhoras está no gaveteiro do Tribunal Regional Federal 1. Se o Exército não tivesse se associado a uma seguradora que vende apólices de grupo dentro de suas instalações, a questão estaria resumida a um negócio privado.

              Janio de Freitas

              folha de são paulo
              A lição do lixo
              Em vez de polícia dissolvendo piquetes, apareceu polícia na proteção à limpeza pelos garis dispostos a trabalhar
              As numerosas mas imprecisas centenas de garis que persistiram em greve no Rio tentaram obter, das chamadas autoridades, uma reação daquelas que emporcalham a democracia. Criaram grupos de agressão aos que aceitaram o acordo entre o seu sindicato e a estatal de limpeza urbana, apelaram para passeatas e perturbação do trânsito, e prometeram mais e maiores agitações.
              O efeito foi exemplar. Em vez de polícia dissolvendo com armas os piquetes agressores, apareceu polícia na mais pacífica proteção à limpeza da cidade pelos garis dispostos a trabalhar. Até o momento em que escrevo, nem um só dos costumeiros incidentes. Espera-se para hoje a retirada final das toneladas de lixo e sujeira acumuladas, e não é improvável que, até lá, haja algum incidente. Apesar disso, não se diminuirá o valor exemplar do tratamento inteligente dado, afinal, a uma greve perturbadora, por si mesma, e agravada por provocações de grevistas violentos. Uma resposta do poder, suponho, sem precedente em casos semelhantes: resposta democrática.
              Não se comprovou que os políticos dados como incitadores dos supragrevistas o fossem de fato, embora não haja dúvida quanto à incitação política. E aí se completa o efeito exemplar da condução compreensiva do problema: a continuação da greve não causou a pretendida corrosão eleitoral do governador Sérgio Cabral e do prefeito Eduardo Paes. Se é que não lhes deu algum ganho, com a derrota política dos que investiram no prejuízo sentido pela cidade.
              Pode ser que outros prefeitos e governadores venham a notar o que e como se passou no Rio.
              IMPUNIDADE
              Alguns tipos de violação de direitos humanos recebem, nos meios de comunicação, o tratamento combativo à altura, como se passa com os atos contra gays e lésbicas. O racismo ainda não merece o empenho proporcional à sua gravidade. O futebol o demonstra muito bem.
              Os casos se sucedem, as páginas esportivas os noticiam, a cada um seguem-se críticas em partes de colunas, e logo se passa à espera do próximo episódio. Muito cômodo para as consciências, mas também resulta em uma forma de conivência com a continuidade da agressão desumana.
              O que houve com o brasileiro Tinga no Peru exigia que a imprensa esportiva se lembrasse de que também ela tem compromissos com a democracia. De sua parte, o mínimo seria movimentar-se para mostrar que, contra o racismo, o futebol brasileiro não poderia voltar ao Peru durante um longo período. Mas a atitude foi transferida para a arapuca chamada Conmebol, quando agredidos foram o futebol brasileiro e os direitos humanos universais.
              Agora, no Rio Grande do Sul, o juiz Márcio Chagas da Silva foi vítima de agressões raciais da torcida do Esportivo. Saíram as notícias de praxe em alguns jornais, saem os comentários de praxe em partes das colunas de praxe. No RS, o Ministério Público tomou suas providências para colaborar com a permanência das praxes: propõe que o Esportivo perca os três pontinhos de sua vitória no jogo do incidente.
              Se a imprensa esportiva se dedicasse a mostrar a necessidade de medidas eficazes, como seria a proibição de jogo na gaúcha Bento Gonçalves por um ano, ou em cidades paulistas onde alguém sofra o que o santista Arouca sofreu, o futebol deixaria de ser oportunidade, senão incentivo, para o racismo.
              A história de mais de cem anos do jornalismo esportivo inclui escassos momentos de contribuição ao desenvolvimento humano e ético do esporte brasileiro.

              José Simão

              folha de são paulo
              Ueba! Rumo à Copa sem rumo!
              Oscar de Melhores Defeitos Especiais: os estádios da Copa. Melhor Defeito Especial: Itaquerão. Rarará!
              Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Sambódromo! Desfile das Campeãs: Unidos da Tijuca tirou o primeiro lugar porque homenageou o Senna. Se tivesse homenageado o Rubinho, teria ficado em segundo! Ou teria quebrado na largada! Rarará.
              E se tivesse homenageado o Massa, os carros alegóricos iam quebrar. Engavetamento de alegóricos! Rarará!
              E a grande novidade do Carnaval: "Adriano larga o Carnaval e treina no Atlético-PR".
              Milagre! Tá curado. Tá curado, não! Nasceu de novo! Isso não é uma recuperação, é uma ressurreição! Curitiba é um rehab!
              E agora rumo à Copa. Rumo à Copa Sem Rumo! Oscar de Melhores Defeitos Especiais: os estádios da Copa. Melhor Defeito Especial: Itaquerão. Rarará!
              E todo ano, no Rio, sai aquele bloco Me Beija que Eu Sou Cineasta. E agora em São Paulo, depois das manifestações, saiu pela primeira vez o bloco Me Bate que Eu Sou Jornalista. Rarará!
              E a Ucrânia? Traumatismo Ucraniano! A Ucrânia é um país tão louco que, nas eleições de 2004, os dois candidatos tinham o mesmo nome: Viktor.
              E ambos se consideraram Viktoriosos! Rarará.
              E a Rússia é um país tão louco que proibiu a Parada Gay. Por cem anos! E o Putin tem cara de vilão de filme de 007. Vilão de Guerra Fria! E tá proibido fazer trocadilho com Putin. Só com o filho do Putin!
              E o site Futirinhas fez a apuração das escolas de futebol. "Quesito Apanhando da Torcida, Sport Club Corinthians, nota deeez". "Quesito Virada de Mesa, Fluminense Football Club, nota deeez".
              "Quesito Ajuda da Arbitragem, Clube de Regatas Flamengo, nota deeez". "Quesito Falta D'água, Clube de Regatas Vasco da Gama, nota deeez". Rarará!
              E esse repórter policial em Natal: "Mulher presa tentando entrar na penitenciária com drogas alojadas nas cavidades naturais".
              Essa é inédita: chamar as partes pudendas de cavidades naturais. Rarará!
              Banheiro de Carnaval! Olha esse: "Banheiro VIP de Carnaval! Xixi: R$ 0,50. Cocô feminino: R$ 2. Cocô masculino: R$ 5. Proibido: vômito, sexo, bronha, banho na pia e pum em eceço". Carnaval VIP! Rarará.
              Nóis sofre, mas nóis goza!
              Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

                Mônica Bergamo

                folha de são paulo
                Plínio comenta
                Metralhadora giratória na internet, Plínio de Arruda Sampaio aconselha o pré-candidato do PSOL a presidente, Randolfe Rodrigues, a fazer como ele na eleição de 2010: partir para ofensas morais para chamar a atenção
                "É a favor da legalização da maconha?", "É vascaíno?", "Pretende se candidatar a algum cargo?". As perguntas pulam na página do Twitter. Plínio de Arruda Sampaio, 84, pousa as mãos sobre seu iMac da Apple (e só não responde às perguntas pornográficas): é, sim, a favor de descriminalizar a erva. Torce pelo São Paulo. E não, não vai disputar as eleições.
                "Já cumpri o que eu tinha que cumprir", explica ao repórter Joelmir Tavares. "E seria muito ruim ir para Brasília e deixar a Marietta sozinha aqui em São Paulo", diz o ex-deputado federal, citando a companheira há 60 anos, com quem teve seis filhos.
                Candidato do PSOL derrotado nas eleições para presidente de 2010 -recebeu 886 mil votos, 0,87% do total-, Plínio é o único dos quatro postulantes mais votados conformado em ficar fora da urna eletrônica em outubro. Dilma Rousseff (PT) concorre à reeleição, José Serra (PSDB) indica disposição para disputar algum cargo e Marina Silva (PSB) pode ser vice de Eduardo Campos (PSB).
                Enquanto mantém diálogo com os 81 mil seguidores do perfil @pliniodearruda -onde ganhou popularidade por se oferecer, quase todo dia, para responder a "perguntas sobre política e religião"-, corre por fora como cabo eleitoral do pré-candidato de seu partido a presidente, Randolfe Rodrigues, 41.
                Ao senador do Amapá ("novinho, mas craque pra burro"), Plínio aconselha: é preciso partir para o ataque, até com "ofensas morais". "Se não for agressivo no debate em um partido pequeno, os eleitores esquecem você."
                Mas o arsenal retórico de Plínio, se fosse requisitado agora, estaria pronto para ser disparado. Contra Dilma ("cortou benefícios previdenciários, entregou a Petrobras"), Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos ("representam interesses que os impedem de falar as coisas importantes, e aí têm que fazer promessinha") e Marina ("uma fofoqueira habilidosa, ultra-ambiciosa; se o Eduardo bobear, ela sai candidata").
                Afirma que a adversária que mais atacou em 2010 foi Marina. E poupou Serra, de quem diz ser amigo. "Objetivamente, ele é um governante melhor do que a Dilma e os demais. Ele é meio reacionário e violento, mas competente. Pessoalmente, é uma simpatia, um cara simples."
                Diz que o PSOL não tem chance de vencer agora. Acredita na reeleição de Dilma.
                Defensor da gratuidade no transporte, Plínio tenta convencer o partido a buscar o apoio do MPL (Movimento Passe Livre), que teria "tudo a ver" com a legenda. As manifestações de rua foram positivas, para ele, por criar "um fato novo no processo eleitoral".
                Mas discorda da tática do "black bloc" ("sem propósito") e defende o deputado estadual do Rio Marcelo Freixo (PSOL), sobre quem recaiu a suspeita de ligação com os acusados da morte do cinegrafista Santiago Andrade. "Não sei qual a intenção dos que fizeram essas ilações. Estão totalmente enganados."
                Fundador do PT, alega que deixou o partido em 2005 porque, no poder, ele fazia as vontades da "burguesia". Diz que o julgamento do mensalão foi "íntegro". Mas ficou "triste" ao ver ex-companheiros presos, como José Dirceu ("ele roubou mesmo") e José Genoino ("vivia com dificuldade, pegou para o partido").
                O prefeito Fernando Haddad (PT-SP) "é um incompetente". Alexandre Padilha, pré-candidato petista ao governo do Estado, "é um desconhecido, um poste". Lula "é uma figura admirável, sujeito malandrão, ótimo de coração", mas "um desastre" como presidente. Eduardo Suplicy (PT-SP) "é o melhor senador em atividade, um comunista 'sui generis'". O ministro Joaquim Barbosa, do STF, é "extraordinário".
                E mais: o deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), tido como homofóbico, "é um fanático". Geraldo Alckmin (PSDB-SP) "é um governador meio reaça, mas um homem correto", de quem o escândalo do cartel do metrô "não vai passar nem perto" e por quem põe "a mão no fogo".
                Assim como nega contradição em ser de esquerda e elogiar políticos da direita, diz administrar bem a devoção ao marxismo e à Igreja Católica. "O Marx é um instrumento para analisar a realidade. Mas, quando extrapola, aí já não me interessa. Sou cristão, acredito em Deus." Lamenta que os filhos não tenham apego à religião.
                No Twitter, mesmo com dificuldade para dominar a tecnologia, une duas paixões. "Faço um trabalho de formação política e de apostolado."
                Foge de brigas. Diz só responder a questões sérias e sobre os assuntos de que entende. Não dá bola para piadas. "Estou respondendo a perguntas sobre roupas pretas e cortes de cabelo" e "sobre política e requeijão" são exemplos de brincadeiras de usuários que imitam Plínio.
                No Facebook, não faz tanto sucesso com a própria página. Tem 9.000 seguidores. A sátira Plínio Comenta, na mesma rede, tem 66 mil. Nela são postados pitacos sobre temas do momento. São frases curtas escritas em fotos do ex-deputado, na forma de "memes" (mensagens que se espalham em larga escala). O autor é um professor de 25 anos filiado ao PSOL.
                O partido vai usar muito a internet neste ano, segundo o veterano. "O [Barack] Obama ganhou por isso. A Dilma está ligada. Até voltou ao Twitter", diz o entusiasta das redes sociais. Quando quer desanuviar do frenético ambiente digital, ele pega papel e lápis. E começa a desenhar. "É uma forma de abstração, sem pretensão artística", diz Plínio, em sua versão analógica.

                Mauricio Stycer

                folha de são paulo
                Realidade paralela
                O Twitter ajuda programas ruins ou chatos a se tornarem muito melhores do que são na realidade
                Um dos meus programas preferidos no Carnaval é assistir à cobertura que a RedeTV! faz dos desfiles e bailes de Carnaval, em São Paulo e no Rio.
                A emissora costuma escalar para a frente de batalha subcelebridades sem traquejo para a função de reportagem, mas enorme cara de pau para fazer perguntas inconvenientes e dizer bobagens.
                Oscilando entre o deboche, o escracho, a piada e a infâmia, a cobertura da RedeTV! produz momentos de muito constrangimento, mas também de bastante diversão, em contraste com a monótona apresentação dos desfiles da escolas de samba que a Globo exibe no mesmo horário.
                Este ano, infelizmente, não consegui assistir ao evento que costuma ser o "grand finale" do Carnaval da emissora paulista: a transmissão de um baile gay no Rio. Tive o cuidado, porém, de gravar o programa, e o vi algumas horas depois. Para minha surpresa, não achei graça nenhuma.
                Só neste momento me dei conta de algo óbvio: já não consigo ver alguns programas de televisão sem trocar ideias e opiniões com outras pessoas no Twitter.
                No caso de atrações "trash", como a cobertura de Carnaval da RedeTV!, a experiência de ver sozinho explicitou como certos programas se tornam muito melhores do que são, na realidade, quando tenho a oportunidade de acompanhá-los na companhia de outros espectadores.
                Não estou sozinho nessa, como mostram os números divulgados pelo Twitter sobre o impacto que a transmissão da cerimônia de entrega do Oscar teve na rede social. Segundo a empresa, foram feitos 19,1 milhões de comentários durante o programa, que durou três horas e meia.
                Essas tuitadas foram postadas por cerca de 5 milhões de usuários e vistas, nos cálculos do Twitter, por 37 milhões de pessoas. Segundo dados do instituto Nielsen, 43 milhões de pessoas assistiram ao Oscar pela TV, nos Estados Unidos, a maior audiência de um programa não esportivo desde 2004, quando parte do país se fixou diante da TV para ver o último episódio de "Friends".
                O número de usuários ativos do Twitter no Brasil não é conhecido, mas está longe de ter a importância que, aparentemente, demonstra nos EUA. A lista dos programas de TV mais comentados na rede social frequentemente não tem relação alguma com os números de audiência apresentados pelo Ibope.
                Em outras palavras, por aqui, a popularidade de um determinado programa no Twitter está longe de ser sinônimo de um campeão de audiência, mas é um indicador dos humores de uma parcela, conectada, do público.
                A chamada experiência da "segunda tela" é mais animada durante eventos ao vivo, como shows ou partidas de futebol, mas também é bastante divertida durante a exibição de programas gravados que contam com grande audiência, como novelas, por exemplo.
                É curioso, neste sentido, observar que "Em Família", a atual novela das 21h, da Globo, o programa mais assistido da televisão brasileira, raramente aparece entre os dez tópicos mais comentados no Twitter.
                Os usuários da rede social parecem ter pouco a dizer, bem ou mal, sobre a trama de Manoel Carlos. Em números absolutos, como disse, eles representam pouco, mas podem ser um termômetro. Como gosta de falar Silvio de Abreu, "novela só tem sentido se pegar que nem catapora".

                  Ferreira Gullar

                  folha de são paulo
                  Quisera ser um gato
                  Alegra-me a confiança de um bicho que não fala a minha língua, que não sabe quem sou eu
                  Fora os fantasmas que me acompanham e me fazem refletir sobre o sentido da vida, vivo eu, neste apartamento, com uma gatinha siamesa. Que é linda, não preciso dizer, mas, além disso, é especial: quase nunca mia e, quando soa a campainha da porta, se arranca. Nem eu sei onde ela se esconde.
                  Ela é, portanto, muito diferente do gatinho que, antes dela, me fazia companhia e que se foi. Morreu de velho, já que nunca havia adoecido durante seus 16 anos de vida. Quando adoeceu, foi para morrer. Não preciso dizer que fiquei traumatizado e não quis mais saber de outro gato. Amigas e amigos me ofereceram um substituto para o meu gatinho, e eu respondia que amigo não se substitui.
                  Os anos se passaram, a dor foi se apagando, até que um belo dia, minha amiga Adriana Calcanhotto chegou aqui em casa com um presente para mim: era uma gatinha siamesa. Faltou-me coragem para dizer não, mesmo porque a bichinha me encantou à primeira vista. Manteve-se arredia por algum tempo, mas logo me aceitou e nos tornamos amigos.
                  Hoje me sinto praticamente lisonjeado pelo fato de que, por medo ou desconfiança, enquanto ela foge de todo mundo, me busca pela casa, sobe em minhas pernas e ali se deita, isso sem falar que, todas as noites, dorme em minha cama.
                  Confia em mim, sabe que gosto dela e que pode contar comigo para o que der e vier. Essa confiança de um bicho que não fala a minha língua, que não sabe quem sou eu, mas só o que sou dentro desta casa, me alegra.
                  E às vezes, olhando-a dormir na poltrona da sala, lembro que para ela a morte não existe, como existe para nós, gente. Ela é mortal, mas não sabe, logo é imortal. A morte, no caso dela, é apenas um acidente como outro qualquer, dormir, comer, brincar, correr; só existirá quando acontecer, sem que ela saiba o que está acontecendo.
                  Neste ponto é que a invejo. Já pensou como a vida seria leve se não tivéssemos consciência de que ela acaba? Seria como viver para sempre, tal como ocorre com a gatinha.
                  E enquanto penso essas tolices, ela --que se chama Gatinha-- se levanta, vem até mim e começa a se roçar nas minhas pernas, insistentemente. Só então me dou conta de que está pedindo que eu vá até a cozinha e ponha ração no seu prato. Ela não sabe que é mortal, mas sabe muito bem que necessita comer e que quem lhe providencia a comida sou eu.
                  A verdade é que vivemos os dois neste apartamento cheio de livros, quadros e móbiles (feitos por mim, não por Calder, ou seja, falsos móbiles) e nos entendemos bem. A Gatinha é diferente do Gatinho, é de outra geração, a geração do pet shop. Por isso mesmo, ela não come carne nem peixe, só come ração.
                  Consequentemente, ao contrário do Gatito, que subia na mesa para xeretar meu almoço, ela não está nem aí para comida de gente, só quer saber de ração. E tem mais: só pode ser aquela ração; se mudar, ela não come, cheira e vai embora.
                  Aliás, isso criou um problema sério, quando a ração que Adriana trouxera terminou. Como não entendia de rações, ao ver que a dela acabara, fui a um pet shop aqui perto para comprar e, como não tinha a dela, decidi comprar qualquer outra, mas fui advertido pela dona da loja de que teria que ser da mesma ração.
                  Fui a outra loja, bem mais longe, e lá também não tinha a tal ração. Pedi a meu neto que a comprasse num pet shop do Humaitá, bairro onde ele mora, e nada, lá também não havia. Desesperado, liguei para Adriana que, imediatamente, me fez chegar aqui em casa dois pacotes com a raríssima ração que a gatinha comia. Respirei, aliviado.
                  Depois aprendi que para evitar que ela morra de fome, no caso de faltar sua ração exclusiva, há que ter em casa uma ração parecida e ir misturando à sua até que se acostume. Coisas de gatos modernos, muito diferentes daqueles que, outrora, vagabundeavam aqui pelos telhados e pela rua.
                  Mas, se mudou a ração, não mudou a razão que me fez adotá-la como minha companheira de todas as horas, que me acorda, pontualmente, às seis horas da manhã, vindo cheirar meu rosto sob o lençol. E agora a vejo, ali, a poucos metros de mim, deitada na poltrona, livre da morte, nesta tarde de março, num determinado ponto da Via Láctea, onde moramos.