sábado, 28 de dezembro de 2013

Pessoas lembram de coisas que não viveram, diz estudo

folha de são paulo

Estudo mostra que é possível manipular lembranças até de pessoas com supermemória


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RICARDO BONALUME NETO
DE SÃO PAULO

A memória humana é algo maleável, capaz de ser facilmente adulterada, e isso tende a criar problemas jurídicos e terapêuticos graves.
OK, isso nunca foi muita novidade.
Mas se viu agora que mesmo uma memória excepcional não impede que ela possa ser falsificada deliberadamente. E resta a dúvida: o que é falso, o que é verdadeiro naquilo que uma pessoa lembra? Ou melhor, "lembra"?
Editoria de Arte/Folhapress
"Sem confirmação independente, você não tem como ter certeza se uma memória é verdadeira ou um produto de algum outro processo", disse à Folha a pesquisadora Elizabeth Loftus, da Universidade da Califórnia em Irvine, EUA.
Um novo trabalho da sua equipe, publicado na revista "PNAS", da Academia de Ciências dos EUA, mostrou que é possível implantar memórias falsas mesmo em pessoas capazes de lembrar pequenos detalhes da sua vida de uma década atrás.
Estudos nos EUA há mais de uma década mostraram que é possível fazer as pessoas acreditarem que viveram algo de que não participaram.
Loftus e colegas agora avaliaram voluntários com a "supermemória".
Ela podia fazer, por exemplo, alguém "relembrar" que tinha sido perdido dos pais em um shopping center, quando isso nunca aconteceu. E ainda por cima acrescentar detalhes do "evento".
NINGUÉM É IMUNE
A descoberta de pessoas com memórias excepcionais sobre sua própria vida indicaria que elas estariam imunes a esse tipo de "lavagem cerebral". Mas não foi o caso, como testes demonstraram.
Esse tipo de gente é algo difícil de acreditar. Basta ver uma série de televisão americana, "Unforgettable" ("inesquecível"). Uma policial de Nova York, Carrie Wells, lembra cada detalhe de cada dia da sua vida e isso a ajuda a resolver os casos. Ficção?
Não até descobrirem alguns poucos indivíduos –apenas 20 foram estudados por Loftus e colegas– com a chamada memória autobiográfica altamente superior.
Pergunte a um deles o que fizeram em certo dia –por exemplo 5 de setembro de 1987–, e a pessoa dirá o que fez, o que comeu de almoço, o que leu no jornal do dia...
Como uma pessoa assim é capaz de se lembrar de algo que aconteceu há uma década bem melhor do que uma pessoa comum se lembra de um simples mês atrás, seria de se esperar que fossem imunes aos testes criados pelos psicólogos para produzir falsas memórias.
Foram testados os 20 voluntários com memória superior e 38 pessoas com memória normal de idades e sexo semelhantes, utilizando experimentos com palavras, imagens e sentenças e a falsa memória de um vídeo não existente ligado aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA.
Resultado: ter a supermemória não impediu que ela fosse distorcida.
CONSEQUÊNCIAS
Lawrence Patihis, da equipe de Loftus, lembra que as consequências das "falsas memórias" continuam sendo um problema. Na década de 1990, essas memórias eram usadas por psicoterapeutas para fins questionáveis – "provando" casos de abuso sexual que nunca existiram.
Essas alegações diminuíram muito. "Isso em parte reflete o trabalho da professora Loftus na área", diz ele.
Recentemente, Loftus fez pessoas desistirem de tomar vodca achando que tinham tido uma péssima experiência preliminar com a bebida.
"Se fizer as pessoas pensarem que ficaram doentes com alimentos gordurosos fazerem-nas evitar essa comida, então isso poderia ter implicações para o seu comportamento alimentar e ser terapêutico", diz ela. "Também podemos implantar uma memória positiva sobre alimentação saudável."
Segundo a pesquisadora, essas são algumas maneiras pelas quais falsas memórias podem ajudar as pessoas.

Fernando Rodrigues

folha de são paulo
O Brasil e o 'cabelogate'
BRASÍLIA - Há uma dúvida frequente no noticiário político: a corrupção no Brasil aumentou em relação ao registrado em tempos passados?
É impossível responder. Não existe um "corruptômetro" nem uma medição confiável do que se passava no país durante a ditadura militar (1964-1985) ou antes. Como a maioria das pessoas tende a edulcorar o passado, preferindo as boas às más lembranças, muitos acham que hoje a corrupção aumentou na política.
Desconfio dessa avaliação, agora muito em voga após a repórter Andréia Sadi relatar o "cabelogate" do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) --ele usou um jato da FAB para ir ao Recife e se submeter ao implante de 10.118 fios de cabelo.
É verdade que no passado não havia tal tipo de tratamento para alopecia. A FAB tampouco tinha jatos à disposição para passeios particulares de políticos. O país era outro. Lei de Acesso à Informação e Lei de Responsabilidade Fiscal eram apenas abstrações. Também não existiam milhões de brasileiros com celulares fotografando tudo o que se passa.
Há hoje uma transparência inaudita sobre autoridades e políticos em geral. É sempre possível melhorar. Mas aumentou muito o acesso da população ao que se passa por trás das portas dos gabinetes de Brasília.
Tome-se o "cabelogate" de Renan Calheiros. A FAB publicou os dados na internet. Qualquer pessoa pode investigar. Há alguns anos, convescotes aéreos de ministros em Fernando de Noronha eram quase secretos.
A frequência atual com que políticos são apanhados em situação irregular tem ligação direta com a maior sofisticação das ferramentas de controle e com o fato de o Brasil ser hoje mais transparente.
Não seria, é claro, o caso de comemorar o implante dos 10.118 fios de cabelo do presidente do Senado nas asas da FAB. Só que o Brasil não está mais ou menos torto por causa desse episódio. O país e suas mazelas apenas ficaram mais visíveis a todos.

    Helio Schwartsman

    folha de são paulo
    Culto a Mao
    SÃO PAULO - A descrição que meu amigo Marcelo Ninio faz do culto a Mao Tse-tung em Shaoshan, sua cidade natal, vale por um tratado de psicologia. Ali, velhas tradições comunistas, como a gigantesca estátua do líder e a falsificação da história --os livros escolares mal mencionam a Grande Fome (1958-62) e os horrores da Revolução Cultural (1966-76)--, se misturam despudoradamente com elementos religiosos, como reverências e orações.
    Essa combinação me parece relevante porque ela escancara algo que tanto religiosos como militantes de causas políticas tentam esconder: a fé numa entidade sobrenatural e o fervor ideológico encontram-se muito mais próximos um do outro do que ambos os lados querem admitir.
    Isso já bastaria para banir algumas disputas abstrusas, como a que tenta determinar se foram guerras de religião ou regimes ateus que mataram mais pessoas ao longo da história. Embora essa discussão possa produzir divertidos exercícios estatísticos, ela perde de vista o essencial: o problema não está no que se acredita, mas no fato de algumas pessoas em determinadas situações serem capazes de matar por uma ideia.
    A questão tem mais a ver com as chamadas patologias do pensamento de grupo e a dinâmica que elas introduzem na sociedade do que com o conteúdo das crenças propriamente ditas. Não há diferenças funcionais importantes entre o cérebro do fiel que massacra o vizinho porque ele reza para o Deus errado e o do militante político que tortura e mata o dissidente para construir um mundo melhor. Ambos se aferraram a uma ideia (que nunca fez muito sentido, para começo de conversa) e desligaram todos os circuitos que poderiam levar suas mentes a questioná-la.
    De minha parte, gostaria que ninguém acreditasse nem em religiões nem em sistemas políticos redentores, mas, como isso não vai acontecer, o que de melhor podemos fazer é semear a dúvida --sempre.

      Ensino medíocre

      folha de são paulo
      Ensino medíocre
      Educação pública de nível secundário é buraco negro da qualificação, com 55% dos professores sem formação na área em que atuam
      Em pouco mais de duas décadas, de 1991 a 2012, as matrículas no ensino médio deram um salto de 120% no país. A clientela passou de 3,8 milhões para 8,4 milhões de alunos, a maioria deles (87%) em escolas públicas, sobretudo nas redes estaduais (85%).
      Há um processo acelerado de inclusão em andamento, mas ainda aquém do que o Brasil precisa. De cada centena de crianças no ensino fundamental, 75 chegam ao ensino médio e só 57 o concluem; apenas 14 conseguem fazer faculdade, e 7 a terminam.
      Inundadas de estudantes com deficiências de aprendizado, as escolas oficiais têm de acolhê-los a despeito das restrições orçamentárias impostas a governos estaduais endividados, e o fazem com um corpo docente desmotivado por salários baixos e, pior, sem a qualificação necessária.
      O quadro aparece sem meias-tintas em levantamento realizado --a pedido desta Folha-- pelo Inep, instituto de pesquisa do Ministério da Educação (MEC). Com base em dados do Censo Escolar de 2012, constatou-se que 55% dos professores de ensino médio dão aulas em disciplinas para as quais não têm formação específica.
      A partir do sexto ano do ensino fundamental (antigo ginásio), o docente precisa ter curso de licenciatura na área em que atua. Mas, entre a intenção da lei e a prática social, como de hábito no Brasil, verifica-se enorme hiato.
      De qualquer ângulo que se considere, a figura tem contornos assombrosos: só 18% dos professores de física têm formação na matéria; na Bahia, Estado em pior situação, meros 8,5% contam com licenciatura; mesmo na rede particular de ensino, pouco mais da metade possui formação específica.
      O governo federal despertou para o descalabro há alguns anos, mas as ações de enfrentamento são tímidas. Um Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio foi lançado há um mês pelo MEC com números grandiloquentes, sob medida para a propaganda eleitoral: 495.697 docentes, 7 milhões de alunos e 20 mil escolas envolvidos.
      Tudo se resume a mais uma bolsa federal: R$ 200 mensais para que professores aceitem fazer, no horário e no local de trabalho, cursos de aperfeiçoamento. Melhor que nada, mas ainda muito pouco.
      A solução real só virá a médio e longo prazos: atrair os melhores alunos da universidade para a docência. Se salários muito melhores são por ora impossíveis, dadas as restrições fiscais, há que buscar outros incentivos. Por que não um plano de carreira promissor, que recompense no futuro o investimento presente numa profissão hoje desprestigiada?
      Falta inovação e liderança no setor. Aceitar menos que isso é contentar-se com um ensino medíocre.

        É preciso desmilitarizar a polícia? SIM é uma Medida urgente - Marcelo Freixo

        folha de são paulo
        MARCELO FREIXO
        TENDÊNCIAS/DEBATES
        É preciso desmilitarizar a polícia?
        SIM
        Medida urgente
        O que a sociedade deve esperar de policiais militares que, ao longo de sua formação, são obrigados por seus superiores a se sentar e a fazer flexões sobre o asfalto escaldante, que lhes provoca queimaduras nas mãos e nas nádegas?
        Como esses soldados, submetidos a um treinamento cruel e humilhante, se comportarão quando estiverem patrulhando as ruas e atuando na "pacificação" das comunidades? Como uma instituição que não respeita os direitos de seus membros pode contribuir com a democracia?
        Dar respostas a essas perguntas se tornou ainda mais urgente após a morte do recruta da Polícia Militar do Rio de Janeiro Paulo Aparecido Santos de Lima, de 27 anos, em novembro. Membro da 5ª Companhia Alfa, ele foi parar no CTI (centro de terapia intensiva) do hospital central da PM após ser submetido a um treinamento que mais pareceu uma sessão de tortura, no CFAP (Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças).
        Além de Paulo, outros 33 recrutas passaram mal e 24 sofreram queimaduras nas mãos ou nas nádegas. Segundo relatos de colegas, quem não suportava os exercícios sob a temperatura de 42 graus Celsius --a sensação térmica era de 50 graus Celsius-- levava um banho de água gelada ou era obrigado a se sentar no asfalto.
        E o caso não é isolado. Após a morte de Paulo, o Ministério Público ouviu recrutas da 5ª Companhia Alfa. Eles confirmaram os castigos cruéis e contaram que os oficiais não davam tempo suficiente para que se hidratassem. Alguns tiveram que beber água suja na cavalaria. Segundo informações da enfermaria da unidade, alunos chegaram a urinar e vomitar sangue. O secretário estadual de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, classificou a morte como homicídio.
        Até policiais experientes não resistem a esses treinamentos. Neste mês, na Bahia, os soldados Luciano Fiuza de Santana, 29, e Manoel dos Reis Freitas Júnior, 34, morreram após passarem mal num teste de aptidão física para ingressar no Batalhão de Choque. Outros precisaram ser hospitalizados.
        A tragédia envolvendo o recruta fluminense e os policiais baianos, infelizmente, não é só do Rio e da Bahia, mas de toda a sociedade brasileira. Em todos os Estados do país, a PM é concebida sob a mesma lógica militarista e antidemocrática.
        Ninguém precisa ser submetido a exercícios em condições degradantes e a castigos cruéis para se tornar um bom policial. Em vez de se preocupar em formar soldados para a guerra, para o enfrentamento e a manutenção da ordem de forma truculenta, o Estado precisa garantir que esses profissionais atuem de forma a fortalecer a democracia e os direitos civis. A realização dessa missão passa necessariamente por mudanças na essência do braço repressor do poder público.
        Desde as manifestações dos últimos meses em todo o país, quando os excessos da PM e a sua dificuldade em conviver com o regime democrático ficaram evidentes, o debate sobre sua desmilitarização se tornou urgente. A PM é uma herança dos anos de chumbo, uma força auxiliar do Exército. Mas o que nós precisamos é de uma instituição civil.
        Nesse sentido, é fundamental que o Congresso Nacional aprove a proposta de emenda constitucional (PEC 51/2013) que prevê a desvinculação entre a polícia e as Forças Armadas; a efetivação da carreira única, com a integração entre delegados, agentes, polícia ostensiva, preventiva e investigativa; e a criação de um projeto único de polícia.
        Esse debate deve envolver os próprios policiais e as organizações da sociedade civil. Essa proposta não significa estar contra a polícia, mas estar a favor dos servidores da segurança pública e da cidadania.
        ALVARO BATISTA CAMILO
        TENDÊNCIAS/DEBATES
        É preciso desmilitarizar a polícia?
        NÃO
        Depreciar, desmerecer, desmilitarizar
        O desconhecimento do que é a Polícia Militar no Brasil leva as pessoas a pensarem, erroneamente, em treinamento de guerra e inimigos. Segundo esse pensamento, a desmilitarização seria a solução para eventuais deslizes e ações violentas.
        Só neste ano, em São Paulo, mais de 55 policiais militares perderam a vida defendendo o cidadão e cerca de 400 ficaram feridos, alguns com sequelas para o resto da vida. Isso aconteceu porque eles internalizaram valores que lhes foram transmitidos no consistente e demorado curso de formação, reiterados pelos comandos diuturnamente.
        O militarismo nas polícias é a forma de internalizar valores éticos, morais, de ordem e respeito às pessoas. Essa conduta é responsável por tornar os policiais militares homens e mulheres diferenciados por seu comprometimento com a defesa da vida e da dignidade, morrendo por seu ideal, se necessário for. Pelos indicadores apontados, isso não é apenas retórica.
        A polícia de hoje é uma polícia cidadã, focada na prestação de serviço. O policial militar não tem inimigo a ser eliminado. Tem um infrator da lei que deve ser preso e entregue à Justiça (Giraldi, 1999).
        O treinamento nas escolas da Polícia Militar --todas de nível superior-- tem esse foco. Há uma disciplina específica de direitos humanos, e seus conceitos, junto com a filosofia de polícia comunitária e de gestão pela qualidade, norteiam as ações policiais. Lá se ensina que a razão de ser da polícia é o cidadão.
        Os erros e desvios, quando acontecem --e acontecem, como em qualquer profissão--, são rigorosamente punidos por meio de uma corregedoria forte e atuante, que não sobresta procedimentos, que não transfere policial como solução, que não prescreve aposentadoria com salário integral como punição, que não se intimida e expulsa os policiais que não honram seu "compromisso com o cidadão" (slogan da PM de São Paulo em 2010).
        Agora que os indicadores não estão tão bons, fala-se muito em mudanças. Mas se ignora que a polícia de São Paulo foi o fator fundamental no maior exemplo de combate à criminalidade no mundo ao fazer cair os homicídios nas 645 cidades do Estado consecutivamente por 12 anos em 72%.
        Destaque-se: a queda não se efetivou em apenas uma cidade, como Bogotá ou Nova York.
        Erra quem compara os indicadores de letalidade policial com aqueles existentes nos Estados Unidos e demais países com legislação forte e poucos confrontos. Não considerar essas premissas é o mesmo que comparar banana com laranja.
        Caro leitor, a Polícia Militar exerce papel principal nessa conquista, pois o indicador cai quando o crime não acontece. Para isso, é fundamental a prevenção feita pela PM, com planejamento e inteligência, de forma competente.
        Cada país tem a sua peculiaridade, o seu arcabouço legal, a sua herança cultural, e no Brasil não é diferente. As Polícias Militar, Civil e Federal têm missões definidas e se completam, na medida de sua competência constitucional. Precisamos aperfeiçoá-las, com melhor treinamento e salários dignos, e exigir que cada vez mais prestem melhores serviços aos cidadãos, aprimorando os seus processos demissórios para banir de seus quadros aqueles que não se enquadrarem na nova ordem.
        A Polícia Militar é o sustentáculo da democracia, a garantidora do Estado democrático de Direito, o último anteparo do cidadão contra a criminalidade e, em muitos locais, o único. Devemos trabalhar para que ela melhore sempre, a cada dia, dentro do princípio da melhoria contínua que também a norteia. Depreciá-la, desmerecê-la, desmilitarizá-la é um grande erro.

        André Singer

        folha de são paulo
        1914
        Sugere-se aos que preferem começar o ano com a mente posta em imagens bonitas evitar a leitura desta coluna. Parece-me útil, contudo, lembrar os terríveis acontecimentos cujo centenário logo vai se cumprir. Pois com a eclosão da Primeira Guerra, a história fez uma curva abrupta e o século decorrido desde então sugere um contínuo de catástrofes, interrompido por ilhas de prosperidade e paz, apontando para novas tragédias.
        Segundo o historiador Eric Hobsbawm, quando o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia, em 28 de julho de 1914, começava um conflito mundial que só iria terminar 31 anos depois. Para ele, a Segunda Guerra foi mera continuação da Primeira, de tal forma que é preciso considerar o período integral, encerrado em 14 de agosto de 1945, data em que o Japão se rendeu aos aliados.
        A abrangência da luta e a escala da destruição deram ao drama dessas três décadas uma característica inédita na longa crônica das atividades marciais: pela primeira vez a humanidade correu o risco real de desaparecer da face da terra. Calcula-se que algo como 8 milhões de militares tenham perecido na barbárie de 14, com 20 milhões de feridos. Dos franceses mobilizados para o front, não muito mais do que um terço voltou incólume. "Os britânicos perderam uma geração", lembra Hobsbawm.
        Foi tamanho o horror das trincheiras que, encerrada a Primeira em 1918, imaginou-se nunca mais haver guerra no mundo. Ainda traumatizada, a França recusou-se a enfrentar a Alemanha quando invadida vinte anos mais tarde. No entanto, os números da carnificina iniciada em 1939 foram muito mais longe. O morticínio em massa de civis indefesos jogou os dados para a estratosfera. Entre 40 e 50 milhões de pessoas perderam a vida. O holocausto judeu e o uso da bomba atômica contra os japoneses ficaram como sintomas mais expressivos de que todos os limites tinham sido rompidos, mudando a política e a história para sempre.
        No fim, "a humanidade sobreviveu. Contudo, o grande edifício da civilização (...) desmoronou nas chamas", diz Hobsbawm. Por isso, como na entrada do Inferno de Dante, 1914 inscreveu na consciência social a mensagem: "Deixai toda esperança". No caso, a expectativa de que o avanço da técnica, grande conquista dos séculos 19 e 20, tenha, em si, o dom de transformar a vida em uma viagem pacífica, fértil e amorosa. Ficou provado que a produção de riqueza, por si só, não leva o trem da sociedade a um patamar superior de relações, podendo ocorrer mesmo de ele se dirigir a toda velocidade para o despenhadeiro.
        Que o conhecimento do passado nos ajude, então, a puxar os freios de emergência, na bonita expressão do filósofo Walter Benjamin. São meus votos para 2014.

        Ruy Castro

        folha de são paulo
        Monumento sonoro
        RIO DE JANEIRO - O resultado de 12 anos de trabalho se materializou. A caixa "Ary Barroso - Brasil Brasileiro", com 20 CDs contendo os 316 fonogramas originais da obra de Ary entre 1928 e 1963 --por Mario Reis, Aracy Cortes, Carmen Miranda, Francisco Alves, Silvio Caldas, Aracy de Almeida, Ciro Monteiro, Dircinha e Linda Batista, Orlando Silva, Jorge Goulart, Elizeth Cardoso, Marlene, muitos mais-- estará nas lojas em janeiro.
        A façanha é do pesquisador Omar Jubran, que, em 2000, já tinha nos prestado igual serviço sobre Noel Rosa. Aqui é assim: um homem se encarrega, sozinho e por amor, de uma empreitada que, nos EUA, exigiria uma equipe bancada por uma instituição. Sendo que, no Brasil, os discos antigos não vão para arquivos quando morrem, mas agonizam em sebos, porões, sótãos --sujos, riscados, rachados-- ou, com sorte, sobrevivem na coleção de algum abnegado.
        Da obra de Ary, com ou sem parceiros, saíram pelo menos 30 obras-primas, das quais "Aquarela do Brasil", "Na Baixa do Sapateiro", "Camisa Amarela", "Faceira", "É Luxo Só", "No Rancho Fundo", "Na Batucada da Vida", "Morena Boca de Ouro", "Os Quindins de Iaiá" e "Boneca de Piche" foram só algumas, e outras tantas que mereciam a mesma glória.
        Há sempre surpresas em integrais como esta. Uma é constatar que Ary, nascido em Minas Gerais, já tinha composto 11 sambas sobre a Bahia antes de homenagear seu Estado natal com "Aquarela Mineira", em 1950. Outra é que, depois da consagração de "Aquarela do Brasil", em 1939, Chico Alves só voltaria a gravar Ary em 1948 --Ary brigou com Chico por este ter transformado o "mulato inzoneiro" em "rizoneiro", que não existe.
        A cultura brasileira deve este monumento sonoro ao MIS-SP e à fábrica NovoDisc, de Manaus. As gravadoras comerciais, coerentes com sua história, não se interessaram.

          Viagem espiritual

          folha de são paulo

          Filme mostra Marina Abramovic, a avó da performance, em visita a lugares no Brasil

          MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
          DE NOVA YORK
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          Depois de subir aos céus, no sábado passado, no ato final da temporada nova-iorquina de "Vida e Morte de Marina Abramovic", a "avó da performance", como ela se intitula, prepara-se para desembarcar no próximo fim de semana em São Paulo.
          Abramovic visitará instalações do Sesc, onde fará, em março de 2015, uma grande retrospectiva de sua obra e mostrará trabalhos inéditos.
          Ela também vai se encontrar com o diretor de cinema Marco Del Fiol, que prepara com o também diretor Cauê Ito um documentário com lançamento previsto para a época da exposição.

          Marina Abramovic

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          Divulgação
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          Marina Abramovic segurando um cristal de quartzo em Corinto (MG)
          O longa, ainda em fase de edição, foi filmado durante uma viagem de 40 dias da artista pelo Brasil em dezembro do ano passado.
          Seguindo a expressão do mexicano Carlos Castaneda em seus livros sobre ensinamentos do índio Don Juan, Abramovic quis conhecer pessoas e lugares "de poder".
          "Ela é curiosa em relação a situações que envolvem espiritualidade e formas não tradicionais de conhecimento", diz Del Fiol, que tem em mãos mais de cem horas de filme — registros da viagem, performances e conversas.
          A incursão começou por Abadiânia, em Goiás, local em que o médium João Teixeira de Faria mantém a Casa Dom Inácio de Loyola, instituição que funciona como "hospital espiritual". O roteiro seguiu pelo Vale do Amanhecer, em Alto Paraíso, na entrada da Chapada dos Veadeiros, onde se reúne uma comunidade mediúnica.
          A seguir, a artista conheceu o Jardim de Maitreya, também em Goiás, e viajou a Salvador.
          A capital baiana foi um ponto de descanso e também uma oportunidade para ver igrejas e e rituais de candomblé — o que aconteceu na cidade histórica de Cachoeira, um dos berços da religiosidade afro-brasileira.
          A esticada final foi pela Chapada Diamantina, com direito a experiência com ayahuasca, e Corinto, em Minas, a "terra dos cristais".
          "Uma das coisas interessantes do filme é o registro dos diários que ela fazia. Ela sentava de olhos fechados diante da câmera e começava a falar", conta Del Fiol, que tem se dedicado nos últimos anos a filmes sobre arte e artistas contemporâneos — do baiano Marepe ao dinamarquês Olafur Eliasson.
          Abramovic conhece o Brasil de outros carnavais. Em 1989, visitou as minas de cristais em Marabá — um dos elementos recorrentes em sua obra. Recentemente, em 2011, mostrou trabalhos na galeria Luciana Brito, em São Paulo.
          FUNERAL
          Conhecida pelas experiências radicais e penosas a que submete seu corpo, a artista, 67, anda obcecada pelo tema da morte. Já planejou seu funeral — uma performance, que prevê três sarcófagos— e vem apresentando, na Europa e nos EUA, uma peça sobre o tema, que encomendou ao diretor Bob Wilson.
          "Vida e Morte de Marina Abramovic", com Willem Dafoe no papel de um sinistro e cômico narrador, repassa a biografia da artista, que entra em cena como ela mesma e no papel da mãe disciplinadora. É uma espécie de culto irônico à própria personagem — autocomplacente, na opinião de alguns críticos— que termina com sua ascensão, numa cena que remete diretamente ao santo imaginário do cristianismo.

          Painel das Letras - Raquel Cozer

          folha de são paulo

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          A nova leitura
          Quanto maior um thriller, mais provável que o leitor pule para o fim em busca da solução do mistério. Biografias têm mais chance de ser lidas na íntegra do que livros de negócios --que dirá de ioga, dos quais um capítulo em geral basta. Leitores têm 25% mais chance de terminarem um livro se ele tiver capítulos curtos.
          As constatações integram as primeiras análises de dados dos serviços americanos de leitura Scribd e Oyster --nos quais os usuários pagam uma mensalidade pelo acesso a milhares de títulos. Lojas como a Amazon já têm dados do gênero, mas os mantêm privados.
          A Scribd e a Oyster, informa o "New York Times", querem oferecê-los a autores e editores como parte do negócio. Há quem tema o processo: isso pode restringir mais ainda a criatividade do mercado editorial, já tão dependente das listas de mais vendidos.
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          // TROCA E CRESCE
          Na virada para 2014, a rede social de leitores brasileiros Skoob completa cinco anos com quase 1,3 milhão de usuários e a previsão de lançar seu aplicativo para celulares e nova versão do site, que aceitará parcerias com blogs para produção de conteúdo.
          O site ganhou em novembro seu primeiro grande patrocinador, o banco Itaú. Entre os serviços que oferece, está o de troca de livros entre usuários, que ganham créditos para receber novos títulos conforme repassam aqueles já lidos a outros usuários.
          Em 2013, 42 mil pessoas usaram esse serviço, com "A Culpa É das Estrelas" (Intrínseca), de John Green, no topo.
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          // O PARAÍSO DE KIOSKERMAN
          A atmosfera onírica das tiras do argentino Kioskerman ganhará tradução pela Lote 42 em 2014. A editora prepara "Portas do Éden", com historietas surrealistas como esta acima ("Estou tomando rum. Minhas plantas falam comigo. Me aproximo para ouvir. Calma... Tem para todas'").
          De Kioskerman (pseudônimo de Pablo Holmberg, 34), já saiu no Brasil, em 2011, o volume "Éden" (Zarabatana).
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          Olho nos bispos Depois de vender mais de 2 milhões de cópias dos dois volumes da biografia "Nada a Perder", de Edir Macedo, a Planeta prevê para abril a criação do selo Pórtico, voltado ao público evangélico.
          Olho nos bispos 2 Com isso, a Ediouro terá concorrência para sua editora Thomas Nelson Brasil, fruto de parceria com a Thomas Nelson americana. A TNB ganhou terreno enquanto outras casas só queriam saber de padres. Bateu em setembro as metas de vendas deste ano.
          Cartas de Joyce Dentro da série de títulos relacionados a James Joyce (1882-1941) que Dirce Waltrick do Amarante e Sergio Medeiros vêm traduzindo nos últimos anos, a Iluminuras prevê para 2014 um volume com cartas do irlandês à sua mecenas Harriet Shaw Weaver (1876-1961).
          Cartas de Joyce 2 Nas missivas, o autor expõe projetos literários e mazelas familiares à amiga, responsável pela publicação de obras como "Retrato do Artista Quando Jovem" e "Ulysses".
          Antes da tempestade A um ano da Primeira Guerra, aconteceu de tudo nas artes, do balé "A Sagração da Primavera", de Stravinski, ao primeiro volume de "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust. A história está em "1913, o Verão do Século", de Florian Illies, que ficou meses nas listas de mais vendidos alemãs e sai em abril pela Estação Liberdade.
          Gêneros sexuais A N-1 publica no ano que vem dois títulos da filósofa feminista Beatriz Preciado, "Manifesto Contrassexual", em maio, e "Testo Junkie", em setembro. A meta é trazer a espanhola para uma série de palestras.
          Lista "O Filho Eterno", de Cristovão Tezza, foi um dos oito melhores livros estrangeiros de ficção em 2013 segundo o "Financial Times", junto a títulos como "Pow!", de Mo Yan, e "Se Vivêssemos em um Lugar Normal", de Juan Pablo Villalobos.
          Lista 2 O livro de Tezza, que saiu lá fora em agosto, foi descrito como "obra de honestidade inabalável e humanidade lancinante".

            Drauzio Varella

            folha de são paulo
            Os maiores avanços de 2013
            Revista 'Science' aponta as maiores descobertas do ano nas áreas da medicina, da física e da química
            Todo final de dezembro, os editores da revista "Science" se reúnem para eleger os dez maiores avanços científicos do ano que termina.
            Em 2013, a área que ficou em primeiro lugar foi a da imunoterapia como forma de tratamento do câncer. Ganhou a capa da revista.
            As primeiras ideias sobre a possibilidade de tratar casos de câncer por meio de estímulos imunológicos surgiram na época de Paul Ehrlich, no início do século 20. Nos últimos cem anos, inúmeras tentativas nessa área chegaram a resultados imprevisíveis e contraditórios.
            Graças às técnicas laboratoriais desenvolvidas nas últimas décadas, no entanto, o conhecimento mais aprofundado da fisiologia do sistema imunológico abriu as portas para tratamentos que seguem duas linhas gerais.
            A primeira envolve anticorpos que atuam sobre os linfócitos T (um subtipo de glóbulo branco), de forma a torná-los mais agressivos contra as células tumorais. A segunda procura modificar geneticamente, in vitro, os linfócitos T retirados do paciente, para aumentar sua capacidade de destruir células malignas quando forem reinfundidos na circulação.
            Respostas clínicas surpreendentemente duradouras têm sido descritas em portadores de melanoma maligno, leucemias e linfomas. A possibilidade de tratar outros tipos de tumores por manipulações imunológicas semelhantes hoje desperta grande interesse entre os oncologistas.
            Os nove outros avanços foram:
            1) Microcirurgia genética
            Foi descoberto um gene (CRISPR) que as bactérias ativam para cortar em pedaços o DNA dos vírus que as atacam. Esse gene dá origem a uma proteína (Cas9) que pode ser utilizada como um bisturi para cortar e dissecar genes de animais e plantas, com a finalidade de entender suas funções. Em 2013 houve uma explosão de pesquisas que empregam essa tecnologia.
            2) Claridade e transparência
            Neste ano foi inventada uma técnica que permite substituir os lípides das membranas das células do cérebro por moléculas pequenas de um gel claro, que deixa o tecido cerebral transparente, mantendo intactos os neurônios e demais células. As imagens obtidas permitem enxergar como nunca a distribuição dos neurônios nos diversos centros cerebrais e de que maneira eles reagem quando estimulados.
            3) Clonagem humana
            Porcos, cachorros, ratos e ovelhas, como Dolly, têm sido clonados, mas a clonagem de células humanas demonstrou ser mais complexa. Depois de uma década de insucessos, finalmente foram obtidas células-tronco de embriões humanos clonados.
            4) Construção de miniórgãos
            Embora células pluripotentes possam formar qualquer tipo celular, organizá-las em tecidos é outra história. Este ano, houve grande progresso na produção de organoides em laboratório: miniaturas de fígados, rins e até de cérebros.
            5) Aceleradores de partículas cósmicas
            O Fermi Gamma-ray Space Telescope comprovou que prótons de alta energia e outras partículas do espaço sideral são acelerados nas ondas de choque que emanam das supernovas. Algumas dessas partículas colidem com átomos no espaço, dando origem a partículas subatômicas, chamadas píons, que por decaimento podem formar raios gama.
            6) A "limpeza" do cérebro
            Durante o sono dos ratos, os canais entre os neurônios se expandem de modo a permitir que o liquor retire os detritos de proteínas que se acumulam em placas --como ocorre na doença de Alzheimer-- duas vezes mais depressa do que na vigília.
            7) Germes e saúde
            Vivem em nosso corpo mais de 100 trilhões de bactérias, com seus 3 milhões de genes. Em 2013, avançamos muito no conhecimento das interações dessas células e genes com o organismo humano na saúde e na doença.
            8) Novas baterias solares
            Foi descoberto um novo material (perovskites) muito barato, capaz de converter 15% da energia solar em eletricidade. O rendimento ainda é baixo, mas pode ser aumentado com o aprimoramento da tecnologia.
            9) Design de vacinas
            Depois de cristalizar um anticorpo que o organismo produz contra o vírus sincicial respiratório (RSV), que leva aos hospitais milhões de crianças, um grupo de cientistas desenhou um imunógeno (o componente ativo das vacinas) que é o principal candidato para vencer a corrida pela descoberta da vacina anti-RSV.