segunda-feira, 10 de março de 2014

Sala da injustiça - Daniel Lisboa

revista são paulo da folha do mesmo lugar.

SOCIEDADE

Sala da injustiça

Homens acusados de agredir mulheres se encontram semanalmente, sob pôsteres de ícones feministas, para dialogar (e tentar reduzir a pena)
DANIEL LISBOA
Um cômodo repleto de retratos de ícones feministas não seria, a princípio, um lugar onde homens acusados de agredir suas companheiras seriam bem-vindos. Mas é exatamente numa sala assim que dezenas deles, autuados com base na Lei Maria da Penha (que protege a mulher contra violência doméstica e familiar), reúnem-se toda semana desde 2009.
O objetivo dos encontros, realizados às segundas numa em Pinheiros, zona oeste, é estimular os participantes a falar sobre o que os teria levado aos atos de violência doméstica e como evitar que aconteçam novamente. A participação não é obrigatória e está aberta a qualquer interessado (tel. 3812-8681).
Porém, ao frequentar pelo menos 16 sessões, o autuado pode, caso seja condenado, ter sua pena suavizada.
Cerca de 50 homens passam pelo Grupo de Reflexão durante o ano. Trata-se de um bate-papo em que nenhuma técnica terapêutica específica, como os métodos utilizados nas sessões para lidar com a raiva ou vícios, é empregada.
O papel dos orientadores, os psicólogos Leandro Andrade e Tales Furtado e o filósofo Sergio Barbosa, é fomentar a discussão, o que normalmente é feito de maneira sutil. "Se eu apertar muito a corda, o cara não volta mais", explica Leandro.
Do empresário ao manobrista
No grupo estão homens das mais diversas profissões, níveis culturais e classes sociais (um deles, quase um clone do empresário Abilio Diniz, senta-se ao lado do rapaz que poderia manobrar seu carrão num estacionamento próximo).
Opiniões equilibradas surgem ao lado de promessas de distância eterna das mulheres. Um dos participantes clama que "hoje em dia o homem está totalmente indefeso perante a lei", enquanto outro, ao saber da presença de um jornalista no encontro, pede uma "cruzada contra a lei Maria da Penha".
Um terceiro frequentador, homem magro que fala baixo e mal encara os outros nos olhos, conta que nunca tinha bebido na vida até sua mulher convencê-lo a entornar uma garrafa de conhaque. "A partir daí não lembro mais de nada. Já acordei preso", relata.
A sensação de injustiça é a mais frequente entre os participantes, de acordo com Leandro, envolvido com o trabalho desde 2006, quando o grupo se encontrava em outro local.
A reunião nasceu para "homens agressores de mulheres" e, depois da promulgação da lei, em 2006, passou-se a ser dirigida a "homens autuados pela Lei Maria da Penha".
Abundam na conversa relatos de frequentadores que não teriam chegado de fato a agredir suas companheiras, mas que acabaram encrencados com a Justiça.
Dono de um bar perto do largo do Arouche, Levy deve terminar suas 16 sessões em março e afirma ser um desses injustiçados. "Minha ex apareceu com um saco de tijolos, distribuiu pedradas no bar e eu quem terminei autuado", afirma. "Levei três testemunhas para depor a meu favor e elas nem sequer foram ouvidas. Agora estou aguardando pela minha sentença."
Um dos poucos voluntários a frequentar o grupo –ele não foi autuado pela Justiça, mas procurou ajuda depois de agredir a mulher–, Marcelo critica alguns de seus colegas. "Em vez de admitir o que fizeram, eles vêm para ficar papeando e discutindo tecnicalidades sobre a Lei Maria da Penha. Acho a proposta do trabalho interessante, mas eu esperava outra coisa", diz.
Essas dezenas de homens fazem parte de um universo muito maior, que não caberia na sala observada por rostos de feministas famosas como Frida Kahlo e Camille Claudel.
A ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, disse à Folha que, só em 2013, 38 mil homens foram autuados pela lei. Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada de setembro do ano passado aponta que, entre 2009 e 2011, o Brasil registrou 16,9 mil feminicídios –mortes de mulheres, especialmente cometidas por parceiros.

Dinheiro já está fluindo de volta para o jornalismo [Steve Coll] - Raul Juste Lores

folha de são paulo
ENTREVISTA DA SEGUNDA STEVE COLL
Dinheiro já está fluindo de volta para o jornalismo
Diretor de uma das melhores faculdades do mundo, na universidade Columbia, diz que época é de desafios, mas futuro é promissor
RAUL JUSTE LORESENVIADO ESPECIAL A NOVA YORK
Famoso por best-sellers que investigaram mundos muito fechados (CIA, Exxon Mobil, a família Bin Laden), o jornalista Steve Coll, 55, da revista "The New Yorker", assumiu a direção da Faculdade de Jornalismo da Universidade Columbia, uma das melhores do mundo na área, "em tempos de desafio para a mídia". "Mas sou um grande otimista", completa.
Para ele, a recessão nos EUA já acabou e há muitos novos investimentos em mídia a caminho. E uma cada vez maior consciência de que o jornalismo de qualidade "é caro, mas fundamental para a democracia".
Crítico de redes sociais como o Facebook, ele saiu da rede social "porque o contrato entre a empresa e os usuários é muito confuso" e "esses espaços comerciais não podem substituir os espaços públicos".
O diretor da Columbia recebeu a Folha em seu escritório, onde falou ainda sobre os investimentos de Jeff Bezos, da Amazon, no "Washington Post", jornal do qual Coll foi editor por uma década.
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Folha - O sr. se diz otimista com o jornalismo. Por quê?
Steve Coll - A recessão nos EUA acabou, então as receitas de jornais, revistas e TVs não estão caindo como durante a recessão.
Há um enorme boom de investimento em mídia. Tanto em Nova York quanto no Vale do Silício, está todo mundo atrás do novo "Buzzfeed", que, por sua vez, está contratando correspondentes no exterior.
Por último, há um reconhecimento cada vez maior, por parte de quem preza a democracia e valoriza o bom jornalismo, do seu valor.
É nesse mundo que está Pierre Omidyar e sua iniciativa de nova mídia, "First Look", e várias ONGs que patrocinam jornalistas e investigação. Cada vez há menos dúvida da importância do jornalismo para investigar políticos, trazer a prestação de contas e transparência dos órgãos públicos.
O sr. é otimista quanto ao financiamento do jornalismo também?
Há um desafio quanto ao financiamento do jornalismo e os jovens jornalistas terão que inventar suas carreiras de forma mais empreendedora. Terão que mudar de patrão mais frequentemente. A minha geração é a última dos servidores públicos do jornalismo.
Mas há modelos bem-sucedidos por aí. A revista "The Atlantic" fez um transição muito bem-sucedida do papel para o digital e o "Buzzfeed" já conseguiu transformar sua audiência em receita.
E o jornalismo na TV paga aqui é imensamente lucrativo, basta ver os lucros da Fox News, da MSNBC, e da Bloomberg.
Elas podem bancar várias estratégias em novos meios.
O editor do site "Buzzfeed", Ben Smith, diz que as redes sociais se transformaram na nova "primeira página" dos jornais, que é onde se informam os leitores. O sr. saiu do Facebook dizendo que ele é confuso. Perdem os leitores?
O papel do editor de jornal ou da TV é de tomar decisões profissionais. Fazer um mix do que é importante, do que é divertido, do que é local e global. Essas discussões nem sempre servem ao leitor, mas não há dúvida de que temas sérios de investigação ou reportagens de assuntos globais tinham seu espaço.
Eles seriam negligenciados se tratássemos a primeira página como uma disputa de voto popular, do que é mais pop. Todas as Redações profissionais estão no Twitter, e elas estão usando seu pensamento de primeira página no site. Já o Facebook é muito poluído pelo comércio.
O sr. anunciou sua saída do Facebook no seu blog na "New Yorker" como "um exercício de cidadania". Poderia explicar melhor?
Decidi sair em 2012 e não sinto falta nenhuma.
O Twitter é mais sob medida às minhas necessidades. Não me sinto tão explorado quanto no Facebook.
Eu li o contrato e as regras do site e tudo me pareceu muito pretensioso, escrito como uma Constituição, mas de um Estado do qual eu não gostaria de ser cidadão.
Muitos usuários parecem não se importar com o uso de seus dados para fins comerciais.
Muita gente não se importa com essa praça pública porque não está sob risco de vida ou de atrair violência por suas opiniões, ou não está tão preocupada com sua privacidade ou o uso comercial dela.
Eu gostaria de ver mais consciência pública de que esses espaços comerciais não podem substituir os espaços públicos de debate.
Seria como um shopping center substituir a calçada ou a praça.
O sr. foi o número 2 do "Washington Post" por uma década. O que sabe das mudanças no jornal desde que foi comprado por Jeff Bezos, dono da Amazon?
Do que escuto de amigos e colegas, o começo da gestão Bezos é bem positivo. Ele manteve o editor-executivo, Marty Baron, que é forte, um bom sinal para a Redação.
Ele disse aos repórteres "vocês não vão escutar nada de mim, vocês já têm um editor". E ainda houve anúncios de vários investimentos, contrataram bons nomes para a Redação, reforços na equipe.
Ainda é difícil saber a visão dele para o jornal, mas ele tem dinheiro e pode usar seus talentos para os problemas do negócio, pode trazer soluções sobre como usar dados e incrementar o varejo, o que ele fez na Amazon.
Tanto Chelsea Manning [militar que divulgou informações confidenciais pelo Wikileaks] quanto Edward Snowden [ex-analista de inteligência que divulgou informações sobre espionagem nos EUA] preferiram fazer suas revelações a jornalistas e meios de comunicação no exterior. Diferentemente de Daniel Ellsberg, que entregou seus papéis do Pentágono ao "New York Times" e ao "Washington Post". A nova geração não acredita na imprensa americana?
Manning estava atraído pela promessa de transformação radical do Wikileaks e ele não podia se aproximar facilmente de jornalistas.
Acho que Snowden pensou mais em como editar e controlar a divulgação e buscou algo intermediário, Greenwald, um colunista do "The Guardian", e um jornalista do "Washington Post". A decisão diferente foi revelar sua identidade logo de cara.
O que mudou mesmo foi como a informação se tornou facilmente portátil para um delator. A maior dificuldade para Ellsberg foi como circular aquela papelada toda. Hoje tudo cabe em um pen drive.
O sr. escreveu em seu blog que a elite americana desprezou as denúncias de Snowden "porque todo mundo espia todo mundo".
Entre as deficiências que ficaram evidentes após as denúncias de Snowden é que há uma falta de julgamento político sobre as operações de inteligência e que a NSA estava complacente e arrogante, presumindo que a espionagem nunca seria revelada.
A CIA, muito acostumada a vazamentos, faz revisões anuais sobre suas operações. "E se esta operação for descoberta e exposta, vale a pena ser feita?", eles sempre calculam o prejuízo político.
A NSA parece que nunca julgou se grampear o celular da Angela Merkel valeria a pena. O estrago político é muito alto, só valeria se um líder estrangeiro é suspeito de complô. Insultar aliados ou países amistosos cria custos maiores que os benefícios.
O sr. também escreveu que Obama talvez não soubesse da escala da espionagem. É possível?
A historia é cheia de conselheiros que não informam os presidentes, então eles podem negar sem culpa. Se mostram a ele um relatório sobre uma alta autoridade alemã que estava conversando com Putin e disse isto e aquilo, só pode ser a Merkel, claro, mas vamos fingir que não sabemos. É como o mundo funciona.
QUEM É QUEM ENTENDA AS MENÇÕES
Buzzfeed - Site que mistura jornalismo e entretenimento, fez fama com listas e é sucesso no conteúdo viral
Jeff Bezos - Criador da loja virtual Amazon, comprou em 2013 o jornal "Washington Post" por US$ 250 mi
Nate Silver - Jornalista e blogueiro que acertou os resultados da eleição presidencial americana em 2012 a partir do cruzamento de estatísticas e pesquisas
NSA - Agência de Segurança Nacional
Pierre Omidyar - Bilionário americano de origem iraniana que criou o site de leilões virtuais eBay. Anunciou o investimento de US$ 250 milhões em uma nova mídia digital, "First Look", com os jornalistas Glenn Greenwald e Jeremy Scahill e a documentarista Laura Poitras

RAIO-X STEVE COLL, 55
Cargo:
Diretor da Faculdade de Jornalismo da Universidade Columbia (Nova York)
Best-sellers:
"Ghost wars" [Guerras-fantasma], "Private empire: Exxon Mobil and the American Power' [Imperio Privado: Exxon Mobil e o Poder Americano] e "The Bin Ladens" [os Bin Laden]
Ganhou dois prêmios Pulitzer
Trajetória:
Ex-presidente do centro de estudos New America Foundation
Ex-secretário de Redação do jornal "Washington Post"
Repórter licenciado da revista "The New Yorker", na qual ainda mantém um blog

    Ricardo Melo

    folha de são paulo
    O PMDB e a água que rola em SP
    A possibilidade de ocorrer rompimento ou crise séria na aliança governamental é próxima de zero
    Não há nada certo na vida, exceto a morte e os impostos. Aplicada à política brasileira, a frase de Benjamin Franklin poderia muito bem receber um adendo: e o jogo de cena de peemedebistas ameaçando romper com o presidente de plantão.
    O líder do partido da Câmara, Eduardo Cunha, é o porta-voz do momento. Político de biografia atribulada, alvo de processo no Supremo Tribunal Federal, Cunha tem a fama de não engolir desaforo.
    Aproveitou o Carnaval para içar a bandeira de "repensar a aliança" com Dilma Rousseff e trabalhar por um tal de blocão no Congresso.
    O motivo? Alega menosprezo do Planalto. Com isso, tenta ampliar a fatia dos cunhistas na administração federal, pois nunca dá para falar a seco em peemedebista numa legenda recortada em condomínios. A característica, como se sabe, é que torna a agremiação tão forte e tão fraca ao mesmo tempo.
    Mesmo sem conhecer, quando escrevo, o resultado da reunião entre Dilma e representantes do partido, dá para dizer com bastante segurança: a possibilidade de rompimento ou de crise séria na aliança governamental é próxima de zero.
    A troco de que os cardeais do PMDB romperiam com um governo com tamanho grau de aprovação, líder das pesquisas de opinião, favorito nas eleições e no qual o partido tem cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão aos montes? Para ficar com Eduardo Campos, Aécio Neves, Marina Silva, Joaquim Barbosa? Fala sério.
    Outra razão. O Congresso, normalmente não muito chegado ao batente, este ano terá pouca, ou quase nenhuma influência na ordem das coisas. Com a Copa do Mundo batendo às portas, convenções partidárias e eleições gerais fechando o calendário, já se pode inferir como será o expediente da moçada. Não há bloquinho nem blocão que resista.
    O que deve comandar a agenda política daqui para a frente, aí sim, são as tais alianças estaduais. Uma delas em especial concentra as atenções: São Paulo.
    Além da óbvia importância política e econômica, a batalha pelo Bandeirantes tem um significado particular e simbólico para o PT.
    Trata-se de desbancar o PSDB em seu principal bastião, com tudo o que isso implica no redesenho da política nacional.
    Por mais que o governador Geraldo Alckmin ostente números aceitáveis de aprovação, até o tucano mais xiita tem consciência do perigo do momento. A administração estadual tem sido alvejada de todos os lados por escândalos envolvendo a dinastia tucana.
    Três proeminentes secretários estaduais, entre eles o chefe da Casa Civil, homem forte do governo, estão encrencados na Justiça.
    A coisa é tão séria a ponto de o governador enfrentar dificuldade para achar peças de reposição.
    Não é automático ver isto revertido em perda de votos --afinal os petistas foram reeleitos mesmo com todo o barulho do chamado mensalão. Mas num partido onde o cada um por si sempre falou mais alto do que o jogo em grupo, o clima de salve-se quem puder se soma a novos e velhos problemas.
    A imagem de um poder paralelo agindo de dentro das próprias cadeias é corrosiva para qualquer governo.
    As últimas denúncias sobre o PCC chocam ainda mais quando, até outro dia, o então secretário de Segurança Pública falava que o grupo só existia na cabeça de jornalistas! Agora o fantasma do racionamento de água, que já afeta quase meio milhão de moradores na região de Campinas, assombra a própria capital. E não adianta culpar São Pedro. Por mais não fosse, números mostram que 25% da água captada pela Sabesp é desperdiçada por vazamentos, problemas técnicos e má administração.
    É neste cenário que um partido como o PMDB tende valer bem mais que seu valor de face, como fiel da balança de uma disputa das mais emocionantes. O resto é a bravata de sempre.

      Valdo Cruz

      folha de são paulo
      Seca democrática
      BRASÍLIA - Democrática, a seca atípica deste início de ano não poupou nem tucanos nem petistas, revelando a imprevidência dos dois grupos políticos que se digladiam pela Presidência da República.
      A São Paulo de Geraldo Alckmin sofre com o risco de desabastecimento de água. O Brasil de Dilma Rousseff vê o custo da energia disparar e o fantasma do racionamento voltar a assombrar.
      Dissabores gerados por equívocos e falta de planejamento dos dois lados, que estão rezando para que as chuvas sejam generosas e descartem a adoção de medidas impopulares no ano eleitoral.
      Nada mais arriscado. Se são Pedro não ajudar, a demora em baixar medidas para evitar a falta de luz e de água, adiadas pelo medo de exploração política de adversários, vai cobrar um preço bem elevado.
      Até aqui, a seca está longe de afetar os reservatórios de intenção de votos de Dilma e Alckmin, ainda no nível de favoritos. Principalmente o da petista, que se dá ao luxo de deixar aliados na maior secura.
      Tudo, porém, tem seus limites. Tanto que Dilma foi obrigada a abrir espaço em sua agenda, em pleno domingão, para discutir a crise peemedebista. Algo que, no seu mundo ideal, não faria nem amarrada.
      Ela segue disposta a manter na seca a turma do líder do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha, que ensaiou romper com seu governo --ameaça que não a sensibiliza.
      Afinal, se o tempo da natureza não joga hoje a seu favor, o da política, sim. Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB) enfrentam um período de estiagem de votos.
      O risco é a petista esticar demais a corda e perder o tempo de TV do PMDB no horário eleitoral, irrigando o canteiro dos adversários.
      Sem falar que a seca, que foi embora, volta no meio do ano. A depender de sua intensidade, as agruras de hoje podem ser maiores perto da eleição. Aí sairá muito mais caro matar a sede dos aliados.

        Ruy Castro

        folha de são paulo
        Gafes
        RIO DE JANEIRO - Gafes pululam no noticiário. O papa Francisco cometeu uma em sua última fala na janela do Palácio Episcopal, no Vaticano. Querendo dizer "caso", pronunciou "cazzo", que não soa bem numa homília. Sua Santidade logo se corrigiu, mas as redes "sociais" espalharam o lapso. Ora, o Papa pode ser infalível, mas só em questões de Estado, como em suas conversas particulares com são Pedro. Ao falar para as massas, ele tem direito a deslizes.
        Muito menos santo, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, também tropeçou há pouco na própria língua, ao referir-se em discurso a uma multiplicação de pênis ("penes") quando queria dizer de pães ("panes"). Devido à situação de seu país, os venezuelanos se assustaram com a primeira hipótese --já se consideram bastante sacrificados.
        Em São Paulo, há dias, três catadores de meleca roubaram o smartphone de um publicitário. Horas depois, tiraram "selfies" à vontade com o aparelho, sem saber que a vítima usava um serviço on-line que guardava as fotos tiradas de seu celular e que ele podia acessar de seu computador. Ao entrar nesse porta-arquivos, o homem encontrou as fotos dos ladrões posando idiotamente para a câmera. Baseado nelas, a polícia pode chegar a eles.
        Uma gafe significativa foi a da faxineira que, há duas semanas, destruiu uma obra de arte no valor de € 10 mil exposta numa galeria de Bari, no sul da Itália. A obra constava de pedaços de jornal e de papelão e de restos de biscoitos espalhados pelo chão. Sem entender a proposta da "instalação", a moça varreu tudo para o lixo. Faxineira e artista preferiram ficar anônimos.
        E, finalmente, há um mês, em Bagdá, no Iraque, um instrutor de homens-bomba detonou sem querer um explosivo e matou 22 de seus alunos. Pena. Mas, como eram terroristas-suicidas, apenas foram para o céu mais cedo.

        Gregorio Duvivier

        folha de são paulo
        A caravana passa
        A esquerda acha que a gente é vendido. A direita acha que a gente é petista. Os petistas acham que a gente é tucano
        A primeira peça que eu fiz foi uma peça de improvisação, numa época em que não se faziam peças de improvisação. Chamava-se (até hoje não sei o porquê) Zé - Zenas Emprovisadas. Éramos quatro estreantes: Fernando Caruso, Marcelo Adnet, Rafael Queiroga e eu. Nenhum teatro queria nos receber, porque a peça não tinha texto. A única maneira de aprovar uma peça que ainda não foi feita era lendo o texto. "Mas a nossa peça não tem texto." Então não é uma peça.
        Estreamos numa sala de dança de 50 lugares graças à benevolência de uma amiga bailarina e logo passamos para um teatro de 150 lugares e de repente estávamos num teatro de 1.200 lugares, fazendo três sessões lotadas. Era um sucesso, essa palavra cafona que causa horror em tanta gente.
        Nossos detratores não paravam de aumentar. Ouvimos toda sorte de coisas. "Essa é a peça mais ofensiva que eu já vi na vida." "Essa é a peça mais careta que eu já vi na vida." Assim que a peça virou moda, virou moda odiar a peça. O pessoal do teatro contemporâneo achava que a gente fazia comédia escrachada (o que era verdade). O pessoal da comédia dizia que nosso ingresso era muito barato (realmente era) e só por isso fazíamos sucesso (talvez fosse). E os dois pessoais achavam que a gente fazia stand-up comedy.
        Uma vez o Renato Aragão (que eu admiro muito, apesar das discordâncias) disse que, quando os trapalhões chegaram do Nordeste, eles foram taxados de "retirantes que faziam um humor subnutrido". Quando foram pra Globo, vestiram um smoking e investiram numa grande produção. A crítica meteu o pau, disse que perderam a graça. "A graça de vocês é serem pobres", disseram-lhes. "Descaracterizou." Mas foi um sucesso.
        A fórmula é batida: odiar o que esperam que você goste. Chico Buarque é uma fraude. Caetano Veloso é uma besta. Tom Jobim é um porre. Quanto mais unânime é o alvo da sua crítica, mais inteligente você vai parecer. A fórmula funciona e paga as contas de muita gente.
        O Porta dos Fundos se parece com o Z.É. Agrada a muita gente, mas todo dia ganha um novo detrator. A esquerda acha que a gente é vendido. A direita acha que a gente é petista. Os petistas acham que a gente é tucano. Os tucanos acham que a gente é chavista. Os chavistas acham que a gente é da Globo. A Globo acha que a gente é a Record. A Record acha que a gente é o demônio. O demônio nunca se manifestou. Mas deve achar que a gente é católico.
        Nessas horas, é bom lembrar do Cervantes: "Se os cães ladram, é porque estamos avançando". Ou da Valesca Popozuda: "Late mais alto que daqui eu não escuto".

          Luiz Felipe Pondé

          folha de são paulo
          Moral de amadores
          Você pode identificar um mau filósofo quando percebe que ele se dedica a condenar o comércio
          Quando não existe comércio, não há esperança. Afirmação estranha, eu sei, para um país atrasado como o nosso, que ainda não descobriu que quem faz "justiça social" verdadeira é o comércio.
          Um amigo esquisito que eu tenho me disse certa feita que, no século 19 no Brasil, era comum se usar a expressão "comércio de ideias". A expressão me soou familiar de alguma forma. Acho que ela é melhor do que "mundo cultural" ou "ciências humanas", porque ela descreve de forma mais precisa o que acontece quando as pessoas de fato debatem ideias.
          Um dos traços do atraso ancestral do Brasil está no fato de que a elite acha que as ideias não valem dinheiro. Hoje em dia, mesmo em pânico com a crescente violência de certas ideias totalitárias no país e com o crescimento do perigoso ressentimento social, a elite continua pensando como gente atrasada: quer que o produto (as ideias) caia do céu, como se amadores pudessem construir aviões ou erguer bancos. Triste país esse que ainda vive num mundo antes da escrita. Estamos às portas de uma guerra cultural e política.
          O comércio é o coração de toda civilização que se preza. Os delírios políticos dos últimos 250 anos têm sua pedra de toque na condenação sistemática do comércio. Enquanto pensarmos assim, não sairemos do buraco em que nos encontramos. Você identifica um mau filósofo quando ele se dedica a condenar o comércio. Toda ética que exclui o comércio é moral de amadores.
          O pior é que na prática todos nós sabemos disso, inclusive quem trabalha no comércio de ideias verdadeiro, aquele que faz circular ideias nos livros, nas revistas, nos jornais, na mídia, mesmo nessa masmorra sem luz, paraíso dos linchamentos e das bobagens, chamada redes sociais.
          No dia a dia, comercializamos terapias, aulas de ioga, esperanças transcendentais, sonhos futuros, curas, amores. Mas, ainda assim, insistimos na ideia primitiva de que um mundo sem comércio seria um mundo melhor. Quando vendemos algo, nem por isso partimos do pressuposto de que o que vendemos é "sujo" porque vendemos. Mas, como sempre acontece, condenamos no outro o mesmo interesse que temos em nós: ganharmos algo ao longo da vida.
          Sei que os primitivos dirão que a ganância estraga tudo. Mas o comércio institucionaliza a ganância, fazendo com que ela seja mais do que si mesma, fazendo com que ela produza todo um mundo material no qual nosso espírito sobrevive.
          Só gente semiletrada acredita que o espírito humano precisa de menos comércio do que o corpo. Na verdade, o espírito costuma ser mais caro do que o corpo, basta comparar o preço do amor com o do sexo. Sexo é sempre barato, mesmo que você pague R$ 5.000 por ele --por isso, aliás, é que seu efeito é tão efêmero se comparado ao do amor.
          Na Pré-História, por exemplo, dados arqueológicos mostram como, entre 30 mil e 20 mil anos atrás, na região que vai da Israel moderna até as fronteiras ocidentais da Índia, se desenvolveu uma robusta (para a época) rede de comércio entre vários povoados, que assegurou uma redução da violência generalizada que caracterizava a Pré-História.
          Quando você vai ao cinema, quando vai jantar com amigos, quando vai à praia, quando vai a uma exposição de arte, quando vai à Europa ou ao Vietnã, quando toma remédios, quando dá um presente, você está fazendo comércio.
          Quando acaba o comércio, perde-se a fé no mundo. A forma mais rude dessa ideia se manifesta no uso impensado da expressão "queda do crédito", que nada mais é do que a redução do "quantum" de fé que se deposita nas relações de trabalho e de troca que sustentam uma sociedade. Homens civilizados se relacionam fazendo comércio.
          Nada aqui significa um mundo perfeito, mas um mundo possível. Mesmo os semiletrados sabem, apesar de não dizerem, que é o comércio que sustenta a civilização, principalmente a liberdade das ideias. Do que viveria o espírito se não existissem grandes livrarias, físicas ou virtuais, que fazem chegar até nós Shakespeare e Machado de Assis?
          Espero que um dia o Brasil saia desse pesadelo pré-histórico do ódio ao comércio.