segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Lições de boemia - Elvia Bezerra

Edição 88 > _questões etílicas > Dezembro de 2013 - Revista Piauí

Lições de boemia

O álcool e os bares nos cadernos de Paulo Mendes Campos
por ELVIA BEZERRA 

"Por que bebemos tanto assim?”, quis saber Paulo Mendes Campos na crônica que incluiria em Homenzinho na Ventania,de 1962, seu segundo livro no gênero. Estava com 40 anos de idade quando escreveu, e tinha a resposta: “Bebemos para empatar com o mundo. O mundo está sempre a ganhar da gente, de 1 a 0, 2 a 0... bebe-se na esperança de igualar o marcador.” Até chegar a essa conclusão, fizera um percurso respeitável pelas mesas do planeta – declarava-se conhecedor de botequins de Minas Gerais à China e à Rússia. Como homem viajado, anotara suas preferências de bares em Xangai e Leningrado, cidades que visitou em 1957, passando pela alemã Göttingen até a mineira Sabará, entre dezenas de outras. Além de ter se dedicado ao tema em crônicas, voltou a tratá-lo na poesia e mesmo nas escolhas que fez para a sua produção de tradutor.
A boemia nunca impediu Paulo Mendes Campos de trabalhar, e muito, em quase todos os periódicos do Rio de Janeiro a partir de meados da década de 40, época em que eram abundantes. Somou às rodadas de chope e à produção jornalística uma disciplina incomum: é o que revelam os 55 cadernos de notas que deixou em seu arquivo de 5 520 documentos, sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde abril de 2011.[1] Não sem motivo, muitos dos seus pares o consideravam o mais preparado dos “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”, expressão que Otto Lara Resende criou para denominar o quarteto completado por ele mesmo, Fernando Sabino e o psicanalista Hélio Pellegrino. Todos nascidos em Minas Gerais na década de 20, o que levou Mário de Andrade a nomeá-los “os vintanistas”.
Quando atingiu 60 anos e já tinha feito história nas boates Vogue, Maxim’s e Sacha’s, na Copacabana do final da década de 40, início de 1950, Mendes Campos disse em entrevista ao colega Joel Silveira: “Hoje me defino como um erudito sem erudição. [...] Tenho uma facilidade danada para guardar coisas, relacionar coisas, e tal. Daria um grande arquivista da onu, talvez pudesse ser um grande historiador, qualquer coisa assim. Mas não desenvolvi essa qualidade de guardar as coisas, e isso principalmente porque na minha vida eu sempre preferia mais o Vogue, o Sacha’s do que a Biblioteca Nacional.”
Em carta a Otto de 1o de dezembro de 1945, quando sofria de saudades dos amigos que tinham ficado em Belo Horizonte, ele confessava: “Assim como, sem o Hélio, somos um hospício sem loucos, sem o Fernando somos um
parque de diversões sem roda-gigante. E, sem mim, sem mim vocês são um compêndio sem prolegômenos e sem erratas.” Anos depois, em entrevista à revista O Prelo, reafirmava seu “gosto paciente pela procura, pela comparação, pela classificação, pela pequena vitória e pelo fracasso instrutivo”.
Seus manuscritos dão testemunho de muitas horas destinadas a leituras e reflexões sobre a solidão e a morte – há um caderno para cada um desses nós da existência –, assim como à bebida e ao álcool. Ao título “Bares do meu caminho”, no topo de um dos seus cadernos, segue-se uma relação dos quase vinte textos que publicou sobre o tema. Às vezes anotava parágrafos ou aforismos, dando a impressão de que a frase lhe saltara inesperada e precisava registrá-la imediatamente. É assim que, em meio a considerações sobre música, lê-se: “Aviso aos jovens abstêmios: a velhice é uma ressaca diária. E sem cura.” Ou ainda: “Sabedoria... seria anoitecer como um bêbado e amanhecer como um abstêmio.”
Salpicou muitos desses aforismos no seu repertório de cronista, que admite desde o texto curto, convencional, passando por parágrafos extensos e independentes, até coletâneas de frases, poemas em prosa, de modo a oferecer, também na forma, uma “peculiar paleta literária”, nas palavras do jornalista Flávio Pinheiro, superintendente-executivo do ims e organizador da reedição[2] das obras do autor.
 
Ao estudar o álcool, Paulo Mendes Campos preparou em um de seus cadernos uma “Galeria de bêbados famosos”. Listava nela os bons de bico por nacionalidade. Começando pela Grécia, com Anacreonte, passando pela China, com o poeta Li Po (ou Li Bai), até o Brasil, com Vinicius de Moraes e Lima Barreto, sem levar em conta o nível de relação de cada um com o álcool. Bêbados, apenas. “Dá-me mais vinho, porque a vida é nada” concluiu Fernando Pessoa, um dos incluídos na galeria, no poema em que considera os inelutáveis sofrimentos humanos. Pessoa morreu de uma crise hepática, e Edgar Allan Poe se foi depois de cinco dias de internação com um episódio de delirium tremens. Não precisaram de justificativa para beber. Bêbados, apenas. Para Mendes Campos o pior bêbado é o que tem razão para beber. De olho no assunto, ele transcreveu notícia publicada na imprensa americana: dos seis americanos que ganharam o Prêmio Nobel de Literatura, quatro (Eugene O’Neil, Sinclair Lewis, William Faulkner e Ernest Hemingway) eram alcoólatras, e um quinto (John Steinbeck) bebia pra valer.
Paulo Mendes Campos podia utilizar os cadernos igualmente para rascunhar uma crônica, como fez com “Réquiem para os bares mortos”, publicada em
O Anjo Bêbado, de 1969. No esboço lê-se: “Prosa para os bares mortos: as tardes lentas da Brahma.” A partir disso, pode-se constatar o processo de depuração por que passou o texto. Processo que restringe, neste caso, a linhagem dos inimigos dos bares. Em vez de escrever “lugares detestados por mães, esposas, filhos dos filhos, maridos e pais”, como no rascunho, o cronista optou por: “Antros de perdição – é verdade –, os bares são odiados por mães, esposas, filhos.” Maridos, pais e netos foram poupados na versão final.
Na sua opinião, a mesa de bar, de certa maneira, foi criada nos altares das reli-giões antigas, nos momentos em que o homem se punha em comunicação com o espírito divino. “Ligava céu e terra, transcendia-se”, afirma ele, ainda em “Por que bebemos...”, e arremata: “O homem entra no bar para transcender-se – eis a miserável verdade.” Aos que tendem a simplificar seus argumentos, alerta: “Queira entender-me com um pouco mais de sutileza, se me faz o favor. [...] O uísque não me interessa, o que me interessa é a criatura humana, esta pobre e arrogante criatura, já confrangida por um destino obscuro.”
A curiosidade quase científica pela bebida aparece numa espécie de fichamento encontrado em seu arquivo sob o título
“O álcool no meu laboratório de pesquisas”. Resulta da leitura que fez de The
Neutral Spirit: A Portrait of Alcohol
, do jornalista e médico americano Berton Roueché, que escreveu sobre sua área durante cinquenta anos narevista New Yorker. A aprendizagem no livro de Roueché rendeu a Mendes Campos três crônicas para a Manchete, publicadas em março de 1968, em sequência, a primeira delas sob o título “Álcool, amigo e inimigo (1)”.
Sobre o livro de Roueché, ele escreve: “Eu o recomendaria a bêbados e abstêmios, e sobretudo aos nossos editores, que deveriam mandar traduzi-lo.” Pare-ce que o apelo foi em vão; não consta que a obra tenha sido traduzida no Brasil.
Ao lado do interesse científico, se evidencia o gosto pelo vinho, que mereceu outras tantas páginas de estudo e mais algumas crônicas. Numa delas, sob o título “Bleublancrouge”, fez vinte caracterizações saborosas de vinhos associadas a nomes de escritores ou artistas: Un Beaujolais fruité/ comme la langueur de Verlaineou Un malvoisie tendre/ comme les enfants de Renoir,[3]para citar duas.
 
Longe de devotar-se à bebida sem pensar no dia seguinte, o escritor anotou, provavelmente traduzindo do inglês, algumas receitas para ressaca. Estão em folhas avulsas e até hoje inéditas de seu arquivo, intituladas “Revivers (levanta-defunto)” ou “Profiláticas”, e rechearam a crônica “A verdadeira receita”, publicada naMancheteem 22 de fevereiro de 1963 e até hoje não incluída em livro. Depois de fornecer dicas preciosas ao adepto do copinho, o cronista resume: “Enfim, o negócio é o seguinte: da próxima vez, você engula uns tabletinhos de sal, mastigue pílulas de hidrato de alumínio, meta na geladeira aquela mistura de frutose, guarde umas aspirinas no bolso. E vá em frente.”
Receitava com a autoridade de quem queria “empatar com o mundo” desde o tempo de juventude em Belo Horizonte, no Minas Tênis Clube e nos bons botecos da cidade. As horas ritualísticas nos bares do Rio de Janeiro começaram em 1945, no momento em que Paulo Mendes Campos fez as malas e rumou para a então capital do Brasil, a fim de conhecer Pablo Neruda, que visitava a cidade.
Aos 23 anos, o mineiro não ofereceu qualquer resistência ao espontâneo aliciamento que se fez entre os amigos para festejar o poeta chileno. Da casa de Vinicius de Moraes, no Leblon, na época casado com Tati, ao bar Alcazar, na altura do Posto 4, em Copacabana, o grupo dos happy fewque recepcionava Neruda incluía, além de outros, Rubem Braga, Fernando Sabino e o arquiteto e artista plástico Carlos Leão. Na casa de Vinicius todos tomaram muito uísque, conversaram madrugada adentro e ouviram a leitura de “Alturas de Machu Picchu” da boca de seu autor, que depois o incluiria em Canto General, de 1950.
No perfil que escreveu de Paulo Mendes Campos, depois coletado emO Príncipe e o Sabiá e Outros Perfis, Otto Lara Resende se refere à invasão do grupo, em sua maioria abaixo dos 30 anos de idade, à casa do poeta Augusto Frederico Schmidt, na época morador do 10º andar do edifício Alcazar, na avenida Atlântica. O bar homônimo representou a primeira bússola do cronista no Rio, além da casa de Fernando Sabino, que inicialmente hospedou o conterrâneo em seu apartamento na avenida Nossa Senhora de Copacabana, 769: “O Alcazar do Posto 4 era tudo em nossa vida: o bar, o lar, o chope emoliente, a arte, o oceano, a sociedade e principalmente o amor eterno/casual” – escreveria Mendes Campos na crônica “Copacabana-ipanemaleblon”. Ao recém-chegado, as uiscadas em torno de Neruda não foram mais que um aperitivo para as numerosas e mesmo contínuas noitadas que ele teria no Rio, onde morou até que a morte o apanhasse em sua casa, aos 69 anos, em 1º de julho de 1991. A causada morte foi um ataque cardíaco.
 
Naquela segunda metade da década de 40, a tradição dos bons boêmios se mantinha no Centro da cidade, onde a Casa Pardellas era das mais prestigiadas. O bar, no fundo da loja, era protegido pelas frutas, biscoitos e doces que se projetavam bem na frente, disfarçando as altas funções etílicas do local. Imagino que usavam o feminino, aPardellas, os que- ali buscavam a quitanda. O masculino ficava para os frequentadores do fundo, além dos produtos alimentícios. Do Pardellas, que tinha em Mendes Campos um freguês diário, pulava-se para as cadeiras de palha do Vermelhinho, em frente ao edifício da Associação Brasileira de Imprensa (a ABI), ou deste para aquele, sem medo de ferir a hierarquia. Em “Copacabana-ipanemaleblon”, o autor lembraria que “bebia-se com destemor, é verdade, mas naquele tempo o uísque era sempre do melhor e os nossos fígados jovens ainda podiam transformar o álcool etílico em arroubos de amor e poesia”.
Quando Paulo Mendes Campos aportou no Rio, um café não se diferenciava de um bar ou restaurante populares, também conhecidos como casas de pasto. Tuberculoso diligente, mas sem abrir mão de uma boemiazinha moderada, Manuel Bandeira conta que no Restaurante Reis, na década de 20, um bife à moda da casa dava para cinco pessoas, “mas reforçado com muito pão e muito arroz”. Foi no Bar Nacional, ele relata na crônica “O Bar”, que lhe “relumeou de repente a célula de muito poema de Libertinagem e deEstrela da Manhã”, coletâneas lançadas em 1930 e 1936, respectivamente. Bandeira deu sua cota para preservar a memória desses bares onde se podia até deixar recado, bilhete ou encomenda para um amigo (inimigo também). E Paulo Mendes Campos recolheu e transmitiu em sua obra boa parte dos hábitos e dos menus das mesas para além dos lares cariocas. Na crônica “Os bares morrem numa quarta-feira”, ele louva as instalações do Juca’s Bar, na rua Senador Dantas, que inovou com o ar-condicionado; homenageou o rosbife servido de entrada no bar do Hotel Central, na praia do Flamengo; exaltou o Nacional e o Lidador, dos bares mais tradicionais que conheceu nos primeiros meses de Rio de Janeiro.
Foi para o Centro do Rio, onde se concentravam as redações dos jornais, que ele se dirigiu assim que Augusto Frederico Schmidt lhe pôs em contato com Paulo Bittencourt, dono do Correio da Manhã. Quando o novo redator publicou o artigo “Paul Valéry” no Correio, em dezembro de 1945, dando início à vida de jornalista morador da cidade, despediu-se das areias de Copacabana, onde até então era visto entre dez da manhã e 13h30, em frente ao Alcazar. Como a admissão no jornal não dispensasse o bar, passou a frequentar o Pardellas e o Vermelhinho, mais perto da avenida Gomes Freire, 471, onde ficava a sede do jornal.
No Diário Carioca ele assinava, a partir de 1946, a coluna “Semana literária”, que em 1950 passaria a ser diária, sob o título de “Primeiro plano”. Como naquele tempo o Diário ficava na praça Tiradentes, no prédio colado à gafieiraEstudantina, precisava pegar o bonde de Copacabana para o Centro. O bondee o bar, e isso demandava perícia. Advertiu ele que “tão desagradável quanto tomar um bonde errado é tomar um bar errado”.
 
Ninguém da turma de Paulo Mendes Campos se opunha à convocação que fizera Baudelaire num de seus famosos poemas em prosa: era preciso embriagar-se sempre – de vinho, de poesia ou de virtude, à escolha de cada um. Quanto ao cuidado para não tomar o bar errado, a intuição do grupo não costumava falhar. O apelo do poeta francês, atendido prontamente por Mendes Campos e amigos como Sérgio Porto, Fernando Lobo, Antônio Maria, José Lins do Rego, Ary Barroso e tantos outros, recebia adesões entusiasmadas. Quando a Casa Villarino Bar foi inaugurada, em 1953, lá estavam os companheiros reunidos em muitas aventuras que Fernando Lobo, freguês vitalício, contou em À Mesa do Villarino.
Tão masculino quanto o Pardellas, o Villarino nunca saiu da avenida Calógeras, 6, esquina com a avenida presidente Wilson, onde resiste até hoje. Passou por reformas, é natural, e se não conserva os desenhos, autógrafos e rabiscos feitos em suas paredes por artistas como Antonio Bandeira, poetas como Vinicius de Moraes ou compositores como Ary Barroso, a foto panorâmica da mesa com os frequentadores célebres em torno, Paulo Mendes Campos inclusive, permanece lá, como registro do passado de glória da Casa, ou do Bar, dependendo do gosto e do perfil do freguês. Fernando Lobo conta que de lá mesmo Adolfo Bloch arrebanhou Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Antônio Maria e outros para revigorar a Manchete, cujos primeiros números, com muitas cores e fotos, mas pouco miolo, não a faziam concorrente d’O Cruzeiro. Passaria a ser depois da chegada do time de boêmios e bambas.
 
Vendo hoje os documentos do arquivo de Paulo Mendes Campos, fica-se assombrado diante da lista de periódicos em que ele trabalhou. São quatro páginas manuscritas, feitas por ele mesmo, reveladoras de uma atividade febril na imprensa. Atuou em pelo menos 25 títulos. Só na Manchete escreveu aproximadamente 770 crônicas entre 1958 e 1974. Num dos textos para o jornal Sombra, de Niterói, ele cita Machado de Assis: “A embriaguez é causada pelo bacilo zigue-zague.” Na pontuação originalmente machadiana, lê-se em A Semana, de 9 de dezembro de 1892: “O bacilo zigue-zague, causa da embriaguez.”
Por volta de 1952, já era evidente a migração dos boêmios para Copacabana, onde Nora Ney sangrava corações com o clássicoNinguém Me Ama, de Antônio Maria e Fernando Lobo. Joaquim Ferreira dos Santos diz no perfil biográfico Antônio Mariaque, no início da década de 50, “quem sabia das coisas frequentava o Vogue e o Maxim’s”. Mendes Campos não negava erudição: tomava uísque no Pardellas e de lá seguia para o Vogue. Apesar de não ser exatamente um pé de valsa, colava o rosto no de um broto disponível para, uh-la-lá, dançar C’est Magnifique.
A primeira coisa que reparava numa mulher, “depois da qualidade de expressão, era a tonalidade da voz”. Atributo indispensável na moça a quem se enlaçava para deslizar seu corpo de homem magro, de 1,67 metro, ao som de Unforgettable, que também arrancava suspiros, ainda que não passassem de uma noite. Isso até conhecer a inglesa Joan Abercrombie, futura senhora Mendes Campos, com quem dançou no Vogue algumas vezes, antes que em 1955 um incêndio destruísse a casa.
Os bolsos da rapaziada preferiam os chopes, mas ninguém deixou de sucumbir ao uísque, mais do que referendado por Vinicius de Moraes. Aos que não compreendiam como jornalistas que tinham de brigar “pelo dinheirinho de cada dia” se esbaldavam no bom scotch, Paulo Mendes Campos justificava na crônica “Sérgio e Stanislaw Ponte Preta”: “Já que o dinheiro era pouco, o jeito era gastá-lo no essencial: o apartamento próprio que esperasse.”
No caso dele, valeu a pena esperar. Tratou de publicar A Palavra Escrita, seu primeiro livro de versos, em 25 de outubro de 1951, mesmo dia em que se uniu a Joan Abercrombie. Ainda que o casamento não o tenha feito abdicar dos conselhos baudelairianos, o trabalho continuava frenético. Foi imbatível na conjugação de boemia com disciplina, até, na última década de vida, ser castigado pelo alcoolismo, que, em crônica, chamou de “vício roaz”. O assunto certamente lhe doía: quando, em março de 1984, Maria Julieta Drummond de Andrade o entrevistou para OGloboe quis saber o que o álcool representava para ele, Mendes Campos preferiu responder com o conselho que ouvira do pai: “Meu filho, o álcool é um dos maiores amigos do homem. Insensatez é transformá-lo em inimigo.”
O inglês Chesterton tinha, afinal, razão ao confessar: “Quando tomo um drinque me sinto um outro homem, e este outro homem pede logo um drinque.” Nos últimos 25 anos de sua vida, o cronista morou na rua Carlos Gois, no Leblon, mas não abandonou os bares ipanemenses Jangadeiros e Zeppelin, este reconhecível pelas “paredes revestidas pelo verde mais arrogante e desentoado que já existiu: o verde-Oskar. Oskar, que chegou ao Brasil com o circo Sarrazani, era forte, bonito e alemão”, conforme sua descrição. Trabalhava no escritório de sua casa – o seu “laboratório de pesquisas” –, e lá produziu a admirável obra de poeta, cronista e tradutor, sob as bênçãos de Li Po, boêmio exemplar do século viii, representado sempre com um copo na mão. A estátua do poeta, em marfim, fica até hoje na estante que foi do autor de O Anjo Bêbado, conservada pela família.
 
Aos 60 anos, Paulo Mendes Campos foi visto com Joan, de mãos dadas, tomando vinho branco e sussurrando no cantinho de um restaurante em Petrópolis. Ela se recorda muito bem dessa noite. O restaurante chamava-se Le Moulin, e já foi posto abaixo. Eram casados havia trinta anos. Juntos tinham criado o casal de filhos e visto os netos crescerem. Paulo atribuiu o êxito do casamento à bondade e pa-ciência da mulher, que deu azar – dizia ele – de encontrá-lo, enquanto ele tivera a sorte de conhecê-la. A verdade é que a ternura de Joan Abercrombie Mendes Campos pelo marido é reconhecível até hoje no olhar e na voz. Conserva um pouco do sotaque – pronuncia o paspirado, do inglês, quando fala “Paulo”. Sorri, delicada, ao evocar a memória do companheiro ou episódios vividos juntos. Entendeu profundamente que “mesmo abstêmio, o poeta costuma ser um anjo bêbado”. 
 


[1]O presidente do IMS, João Moreira Salles, é um dos fundadores depiauí.
[2]Os títulos estão sendo lançados pela Companhia das Letras. Um dos fundadores de piauíé sócio minoritário da editora.
[3]Um Beaujolais frutado/ como o langor de Verlaineou Uma malvasia tenra/ como as crianças de Renoir.

Daniel Pellizzari

Matriarca aos crocodilos
Mas começamos a aceitar a ausência de justiça, conformados com mais esse elemento de realismo
Jamais sairia recomendando "7 Grand Steps" por aí. Mesmo assim, todas as vezes que comecei a jogar levei horas para me livrar dele. Em contraste com o "grinding" de um JRPG tradicional, em que ações repetitivas geram um bem-estar quase hipnótico, aqui as mecânicas inspiram apenas uma ansiedade indistinta. Uma sensação de "o que diabos estou fazendo?", acompanhada pela impossibilidade de parar.
Ambientado nos primórdios da civilização, com elementos que lembram o Crescente Fértil e o Antigo Egito, o jogo é uma mistura de estratégia e simulação com "puzzle" e gerenciamento de recursos, mecânicas de jogos de tabuleiro e estética de máquinas de salão do início do século 20.
É uma saga familiar que se confunde com a história humana: o objetivo é criar uma linhagem que sobreviva ao tempo. Educar filhos, aprender habilidades, ascender socialmente, superar rivais, tudo se faz a partir de fichas.
É enganosamente simples. A cada geração que escapa de ser devorada pelos crocodilos sempre à espreita, uma história gradualmente mais complexa vai se construindo. Relações entre irmãos ganham importância, avós deixam saudade, ambições começam a escapar do controle. Ao mesmo tempo, o jogo começa a parecer desonesto, vulnerável demais ao acaso. Mas começamos a aceitar a ausência de justiça, conformados com mais esse elemento de realismo. E jogamos só mais um turno.
Tenho 241 outros jogos no Steam. Mesmo assim, sempre voltava a "7GS". Sem entender o porquê. Quando minha compulsão era, por exemplo, "Crusader Kings II", o impulso era fácil de entender. "CK2" é uma experiência muito rica, uma obra-prima de narrativa emergente feita sob medida para fanáticos por história. Mas "7GS" é quase oposto: em vez do prazer de infinitas possibilidades, rotina. Trabalho. Cansaço. E, no máximo, um muito vago senso de realização.
Quando chegamos à última (digamos) fase, a família ascende enfim à classe dominante e a mecânica ganha uma bem-vinda nova camada: além de escrever a crônica da família é preciso gerenciar o reino. É uma implementação de "Hamurabi", o primeiro game de estratégia, criado em 1968, mas figurinha carimbada nos micros dos anos 1980. É quase um recado dos desenvolvedores: tudo aqui é o primeiro passo. O início da civilização, o começo dos arcades, o princípio dos jogos de estratégia.
E este "7GS" é também apenas o primeiro passo, com o subtítulo "Step 1: what ancients begat". É difícil até imaginar no que consistirão os próximos seis passos. Além da progressão de tempo na ambientação, a estética também vai mudar? E as mecânicas? Nem faço ideia. Mas estarei lá, jogando, para descobrir.
Acabei entendendo o que me fazia voltar ao jogo ao observar meu filho de seis anos. Chegava perto enquanto eu jogava e ficava ali, olhando. "Esses são os pais?", apontava. "Posso colocar uma fichinha?". "Cuidado com os crocodilos!". E então percebi como o jogo apela como poucos ao nosso instinto de sobrevivência. Tudo lembra a sensação cotidiana de estar vivo. E contra isso é difícil resistir. Só mais um turno. Só mais um dia.

'Fui criticada até a morte', diz Marina Abramovic

folha de são paulo

'Fui criticada até a morte', diz Marina Abramovic

Marina Abramovic, 67, já arrastou multidões ao MoMA, em Nova York, que esperavam horas só para ficar cara a cara com ela. Protagonizou uma ópera sobre a própria vida, conduzida pelo diretor de teatro Bob Wilson, e, em quase 50 anos de carreira, se consagrou como o maior nome da performance de todos os tempos, um mito vivo.
Mas bastou fazer um clipe com o rapper Jay Z e dar umas aulinhas de performance para Lady Gaga, que a artista sérvia radicada nos EUA virou alvo de um bombardeio de críticas, ao mesmo tempo em que conquistou novos -e jovens- seguidores.
Em São Paulo para visitar o Sesc Pompeia e o Sesc Belenzinho, onde fará mostras paralelas marcadas para março do ano que vem, com obras históricas e inéditas, Abramovic deu entrevista à Folha. Leia a seguir trechos da conversa.
*
Folha - No ano passado, você não saiu dos holofotes e ganhou projeção maior ainda ao fazer um clipe com o rapper Jay Z e se associar a Lady Gaga. Como julga a repercussão midiática de tudo isso?
Marina Abramovic - Fui criticada até a morte por causa dessa história. Mas é muito interessante que as pessoas não vejam o lado maior disso. Só pensam que eu sou uma vendida, que agora estou lá só passeando com os rappers, com as estrelas do pop.
Não veem minhas razões para fazer isso. A Lady Gaga tem 43 milhões de seguidores no Twitter. É algo gigantesco, nenhum artista visual tem esse público. Ela tinha estudado minha obra, queria conhecer meus métodos.
Levei a Lady Gaga para o meio do mato e ficamos lá aprendendo a respirar, sentar, deitar. Ela é uma ótima aluna, muito "hardcore". E é um exemplo para crianças, adolescentes ainda perdidos.
E, agora que ela entrou no meu método, não está mais usando drogas, está fazendo experimentos, esses jovens começam a me procurar no Google, querem saber quem eu sou.
Ou seja, de uma forma indireta, consigo ser uma influência para uma geração mais nova. Isso é importante.
Todos os artistas da minha geração, que já não fazem nada porque estão meio mortos, odeiam o que estou fazendo porque não conseguem entender que tudo é possível.
Mas não acredita que as celebridades também buscam certa legitimidade automática só por estar ao seu lado?
Esses mundos, da moda e da música pop, podem ser superficiais, mas por isso se tornam um terreno perfeito para mim. Posso entrar neles para plantar novas ideias e dali emergir diante de um público novo, muito além do mundo da arte, que se restringe a uma elite reduzida.
Quero ampliar o espectro, pensar em como posso influenciar alguém que é um trabalhador comum, um gari varrendo a calçada e de repente decide entrar no Sesc.
Como serão suas mostras em São Paulo no ano que vem?
Decidi fazer duas exposições. No Sesc Belenzinho vou mostrar a documentação dos meus trabalhos mais importantes, de 1968 até hoje. Haverá vídeos e fotografias.
Mas, como o Sesc Pompeia tem uma energia incrível, com pessoas indo e vindo, tomando café, lendo o jornal, a ideia é criar um lugar em que o público faça suas próprias performances.
Eles vão chegar, vão receber jalecos brancos, deixar suas coisas num armário e poderão entrar numa performance também.
Performance é uma forma muito direta de arte, não é como uma pintura na parede. É uma arte baseada no tempo, está acontecendo daquele jeito, naquela hora e, se você não prestar atenção, perdeu.
Raquel Cunha/Folhapress
Marina Abramovic posa para retrato no Sesc Belenzinho
Marina Abramovic posa para retrato no Sesc Belenzinho
Mas esse é um gênero que caiu em decadência e hoje tenta se recuperar. Como vê ações polêmicas, como a do estudante britânico que anunciou que vai perder a virgindade anal diante da plateia em Londres?
Existe arte boa e arte ruim. Não importa se ele vai mesmo perder a virgindade ali. O que importa é a energia que ele cria com esse trabalho, se isso for capaz de atingir alguma ressonância para aqueles que estão ao redor.
Suas ideias com relação ao poder da performance não mudaram depois de estrelar uma ópera, ou seja, entrar para o teatro mais tradicional?
Jamais teria pensado em fazer um espetáculo desses quando era jovem, porque eu odiava o teatro. Se você gosta de performance, não pode gostar de teatro, porque performance tem tudo a ver com realidade, enquanto o teatro é pura artificialidade.
Demorou anos para eu entender esse formato. Mas agora que já desenvolvi minha linguagem estou em paz.
Foi muito difícil trabalhar com o Bob Wilson, mas divertido. Como todas as histórias do espetáculo são muito tristes, cada vez que ensaiava, acabava chorando. E ele gritava comigo: "Você não deve chorar, isso é tudo mentira. É o público que tem de chorar".
Toda essa atenção, da ópera a Jay Z, ajudou na arrecadação de fundos para o museu da performance que você quer criar ao norte de Nova York?
Já consegui US$ 660 mil em doações na internet. Usei primeiro as redes sociais para medir o pulso das pessoas comuns. Olho a pessoa no olho durante uma hora se ela me dá US$ 5.000, então, mesmo que seja alguém na Austrália, ficamos cara a cara pelo Skype uma hora. É uma loucura.
Agora preciso de mais US$ 20 milhões para construir o museu. Fiz uma lista de 25 artistas que são verdadeiras commodities, a maioria pintores, que vende um quadro por US$ 20 milhões.
Só preciso que um deles me dê um quadro e construo tudo. O museu deve se ancorar nas redes sociais e nos artistas. E também nas estrelas do pop. 

Evgeny Morozov

folha de são paulo

Como sanar o deficit de democracia exposto por Snowden

As sociedades democráticas têm duas escolhas, na era pós-Snowden. A mais fácil é deixar tudo como está e fingir que o insaciável apetite por dados da NSA (Agência Nacional de Segurança) norte-americana é apenas uma aberração que pode ser retificada por meio de mudanças menores no aparato técnico e judicial existente. Assim, poderíamos tornar mais severos os protocolos frouxos quanto ao uso de dados, usar mais cifragem em redes de comunicações e aprovar novas leis que fiscalizem a NSA.
Mas também poderíamos adotar a opção, mais desafiadora, de aceitar que as revelações de Snowden expuseram mais que ações administrativas ambiciosas e sistemáticas da parte de burocratas descontroladas. Se aceitarmos essa interpretação, as revelações apontam para uma ameaça emergente e ainda não reconhecida ao espírito da democracia, que só irá se agravar à medida que os meios de coleta, registro e análise de volume cada vez maior de dados se tornam mais ubíquos.
O motivo para que seja tão difícil para nós reconhecer essa ameaça é bastante simples: uma conclusão como essa contradiria a rósea narrativa da economia da informação, que presume que o crescimento possa continuar para sempre. Google, Facebook e mil empresas que os imitam no Vale do Silício operam sob a premissa de que não existe limite para o volume de dados que pode ser produzido, recolhido, trocado e compartilhado. Mais informação é sempre melhor: esse é seu slogan.
O paralelo para com as porções da economia que ainda não estão abrigadas sob o espaçoso guarda-chuva da "informação" pode ser esclarecedor. Por muito tempo, a suposição de que poderia haver crescimento infinito –com o Produto Interno Bruto (PIB) servindo como único instrumento de avaliação da eficácia das políticas governamentais– reinou suprema por aqui, igualmente. As primeiras vozes críticas, surgidas nos anos 70, foram logo afogadas pelos slogans em defesa do livre mercado proferidos por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, mas o questionamento crítico ao crescimento como único foco da atividade econômica foi retomado na década passada, propelido pelas preocupações quanto ao aquecimento global.
Essa agenda crítica vem sendo defendida por adeptos do movimento de "decrescimento" –popular na Europa mas sem muita força nos Estados Unidos. O objetivo do movimento é não só esquadrinhar a sabedoria ecológica de manter o atual espírito favorável ao crescimento mas também atacar a primazia intelectual do uso de indicadores como o PIB a fim de avaliar e formular políticas públicas. Como aponta o sociólogo canadense Yves-Marie Abraham, um dos proponentes da agenda de decrescimento, "não estamos falando de uma queda do PIB, mas do fim do PIB e de todos os demais indicadores quantitativos usados como indicadores de bem-estar".
Não pretendo discutir aqui os méritos da agenda de decrescimento com relação à economia. Mas é difícil negar que ela apresenta muitos desafios intelectuais interessantes às ideias econômicas dominantes. Uma defesa robusta da agenda de crescimento, hoje, requer encarar preocupações como a mudança do clima. E quanto ao inconveniente fato de que não existe relação linear simples entre crescimento e felicidade? E se mais crescimento não serve para tornar mais pessoas mais felizes, por que exatamente deveríamos dar a isso um papel central em nossa política econômica?
Como paradigma alternativo para o arranjo das atividades produtivas, o "decrescimento" resultou pelo menos em algumas formas provocadoras de pensamento sobre a política e a economia. Não existe um paradigma alternativo como esse com relação à informação. Os esforços existentes para pensar em maneiras de relacionamento com a tecnologia e a informação levam jeito de soluções privatizadas e transcendentais que podem funcionar no plano individual mas não coletivo; somos encorajados a estudar a "desintoxicação digital" a fim de revigorar nosso senso de realidade, a instalar apps que nos tornam permitem exercitar a "atenção plena" e a passar algum tempo em acampamentos que proíbem o uso de engenhocas eletrônicas.
Nenhuma dessas soluções oferece uma alternativa intelectual coerente ao atual paradigma de "mais informação é sempre melhor". O motivo para isso é simples: os teóricos do "decrescimento" têm o conveniente, mas real, fantasma do aquecimento global como exemplo do desastre final, e o evocam para reorientar nossos processos mentais. Existe melhor maneira de estimular as pessoas a agir do que lembrá-las de que estão lentamente destruindo a civilização?
A visão de um tal desastre, no entanto, não existe até o momento no debate sobre a informação. Tudo que vemos são preocupações sobre a saúde pessoal, a redução nos intervalos de atenção, a distração. Trata-se de preocupações sobre indivíduos, e não sobre coletividades. Não admira que se prestem a soluções privadas tais como apps que ajudam a dominar técnicas de atenção plena.
Mas não é preciso um gênio para perceber qual seria o equivalente apropriado ao aquecimento global, nesse caso: a gradual evaporação do espírito democrático em nosso sistema político.
Essa evaporação está em curso, à medida que uma crença ingênua em serviços de "big data" reduz os espaços que antes estavam abertos à deliberação pública –quem precisa desses complicados debates sobre fins alternativos quando temos dados que permitem selecionar os melhores meios possíveis?– e ao mesmo tempo produz cidadãos que, presos aos ciclos intermináveis de realimentação dos modernos sistemas burocráticos, entregam o controle do processo político aos tecnocratas, que gostam muito de direcionar e de mexer com o nível micro mas raramente se interessam por mudanças sistêmicas em nível macro.
Em lugar de contestar o Vale do Silício quanto a dados específicos, por que não simplesmente reconhecer que os benefícios que seus serviços oferecem são reais mas que, como um utilitário esportivo ou um sistema de ar condicionado em funcionamento permanente, podem não compensar os custos? Sim, a personalização de buscas pode oferecer resultados fabulosos, informando-nos sobre a pizzaria mais próxima em dois segundos, em vez de cinco. Mas os três segundos de tempo economizado requerem que dados fiquem armazenados nos servidores do Google em algum lugar e, depois de Snowden, ninguém está certo quanto ao que realmente acontece com esses dados e quanto às inúmeras maneiras pelas quais eles podem ser alvo de abusos.
Por isso, vamos deixar de lado as discussões semânticas: para a maioria das pessoas, o Vale do Silício oferece produtos excelentes e convenientes. Mas se esses produtos vierem a sufocar o sistema democrático, talvez devamos reduzir nossas expectativas e aceitar dois segundos a mais em nossas buscas –mesma forma que devemos aceitar carros menores e mais lentos -, porque isso é um preço razoável a pagar por um futuro decente.
As soluções de mercado para o problema da privacidade propostas por alguns dos críticos do atual sistema –Jaron Lanier, por exemplo, argumenta que as pessoas deveriam ser proprietárias de seus dados pessoais e que deveriam poder negociá-los como preferissem, com apoio de um forte regime de proteção aos dados– dificilmente serão mais efetivas para combater essa lenta erosão da democracia do que as soluções de mercado propostas como resposta ao aquecimento global. Você se lembra do Esquema de Transação de Emissões, um dia celebrado pela União Europeia como grande solução? Foi um notável fracasso.
O problema que enfrentamos não é o de falta de controle sobre dados individuais; é o fato de que, armados com tantos dados, os sistemas políticos modernos parecem acreditar que é possível dispensar os cidadãos –enquanto os cidadãos, desfrutando da cornucópia do "conteúdo", não hesitam em abandonar o reino político. Criar um mercado de dados pessoais sob essas condições só aceleraria o declínio já rápido do sistema democrático.
Quer seja pela aplicação das ideias de decrescimento ou pela adoção de algum outro paradigma intelectual capaz de desafiar a fórmula de que "mais informação é sempre melhor", precisamos seriamente de novos modelos que nos permitam pensar sobre maneiras de escapar ao deficit democrático revelado por Snowden. Hackers e advogados não nos salvarão: o debate quanto a Snowden precisa de pensadores que tenham tanta fluência em códigos de software e lei constitucional quanto em economia e política.
Tradução de PAULO MIGLIACCI 
evgeny morozov
Evgeny Morozov é pesquisador-visitante da Universidade Stanford e analista da New America Foundation. É autor de "The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom" (a ilusão da rede: o lado sombrio da liberdade na internet). Tem artigos publicados em jornais e revistas como "The New York Times", "The Wall Street Journal", " Financial Times" e "The Economist". Lançará em 2012 o livro "Silicon Democracy" (a democracia do silício). Escreve às segundas-feiras, a cada quatro semanas, no site da Folha.

    Maconha poderá ser tão importante quanto a penicilina - Lester Grinspoon

    folha de são paulo
    ENTREVISTA DA 2ª - LESTER GRINSPOON
    Maconha poderá ser tão importante quanto a penicilina
    APROVAÇÕES DO USO MEDICINAL DA ERVA SÃO SÓ O COMEÇO DA LONGA LISTA DE APLICAÇÕES DA DROGA, DIZ PESQUISADOR PIONEIRO DA MACONHA
    MONIQUE OLIVEIRADE SÃO PAULOO Estado de Nova York tornou-se, no início deste mês, o 21º nos Estados Unidos a permitir o consumo da maconha para fins medicinais. Também em janeiro, a França aprovou o Sativex, medicamento à base de seu princípio ativo para tratar sintomas da esclerose múltipla.
    Antes, o Estado do Colorado, nos EUA, liberou sem restrições o consumo da droga. Sem falar no Uruguai que, no fim de 2013, permitiu que qualquer cidadão maior de 18 anos cultive a maconha para consumo pessoal.
    Loucura? Não é o que vozes históricas a favor da liberação da erva pensam. E uma das que mais fizeram coro não só para o uso médico da Cannabis mas para o fim de qualquer lei proibitiva foi o psiquiatra Lester Grinspoon, 86, autor de um dos primeiros artigos a desmistificar os males da maconha, "Marihuana", publicado em dezembro de 1969, na revista "Scientific American". No texto, ele condena a proibição da droga.
    Grinspoon também é autor de duas obras fundamentais para qualquer um que se interessa pelo tema.
    Professor-assistente emérito do departamento de psiquiatria da Escola Médica de Harvard e membro do conselho administrativo da Organização para Reforma das Leis da Maconha nos Estados Unidos, o médico está longe de abandonar seu empenho para a aprovação da erva.
    Ele ainda grita para que descobertas feitas nos 1960 sejam conhecidas --como o fato de, segundo ele, a Cannabis ser o remédio menos tóxico já registrado na literatura médica com potencial terapêutico para uma infinidade de doenças.
    Segundo ele, quando cientistas começarem a testar diferentes formulações dos subprodutos da maconha, novas aplicações devem surgir. "Ela será a maravilha do nosso tempo, como foi a penicilina no passado", diz.
    Grinspoon falou à Folha por Skype.
    -
    Folha - Nos 21 Estados americanos onde o uso medicinal da maconha é permitido, os pacientes de fato têm acesso à droga?
    Lester Grinspoon - Depende. Na Califórnia, onde a erva é aprovada para esse fim desde 1996, ela pode ser prescrita até para dor nas costas. Mas a maioria dos Estados é muito restritiva. Em Nova Jersey, essa deliberação ainda não saiu do papel.
    Por que isso acontece?
    Pelo pequeno número de enfermidades para as quais ela é indicada e pela ausência de prescrição.
    Minha posição é que o uso medicinal da maconha só será colocado em prática com a aprovação irrestrita. Ou seja, se qualquer um acima de 21 anos puder usar.
    Nenhum Estado colocaria entre suas indicações, por exemplo, o tratamento da tensão pré-menstrual --como bem fazia a rainha Vitória, na Inglaterra, no século 19-- ou de soluços. Eu descobri sozinho que a maconha alivia náuseas.
    Historicamente, a maconha já foi usada para disenteria, alívio da dor de cabeça, da febre, como antidepressivo, anticonvulsivante e para crises de asma e enxaqueca. Essas aplicações se demonstraram eficazes?
    Muitas delas. A maconha é o tratamento por excelência da dor de cabeça.
    Até para asma? Um dos malefícios já registrados da maconha é justamente sobre o aparelho respiratório.
    A asma tem uma dualidade porque, se [a maconha for] fumada, irrita a traqueia e isso obviamente não é interessante para um asmático.
    Mas, uma vez no organismo, ela não tem efeito deletério sobre o pulmão --pelo contrário, atua como um relaxante muscular. A traqueia tem esses músculos pequenos que, quando relaxados, ficam mais abertos e facilitam a respiração.
    O senhor confirma estudos que relacionaram a maconha com a esquizofrenia?
    A esquizofrenia tem um forte componente genético e conta com prevalência de apenas 1% da população mundial. É impossível que seja causada pela maconha.
    A droga pode ser usada por pessoas com histórico de doença psiquiátrica?
    A erva tem ação antidepressiva e pode ser uma aliada na depressão moderada, além de eficaz no transtorno bipolar na fase de mania. Outra aplicação seria na versão adulta do deficit de atenção.
    Mas não posso afirmar que todos responderiam à erva. Tivemos muitos obstáculos para a realização de estudos clínicos. O caminho é longo para romper com esse atraso.
    A maconha causa danos à memória?
    Conheço pessoas que usam a erva há muitos anos. Eu mesmo uso há 40 anos. Posso dizer que se causasse problemas de memória a essa altura eu já saberia.
    De qualquer forma, a literatura médica e a experiência mostram que essa perda de memória é temporária, no auge do "barato".
    E eu a classificaria como uma distração. Esse é mito mais famoso sobre o seu uso. Então, a resposta para a sua pergunta é não.
    Como começou a usar? E por qual motivo?
    Eu era um conservador. Em 1967, era comum o uso da droga em festas e eu era o primeiro a dizer: "Não, isso faz mal à saúde". Comecei a questionar as minhas afirmações sobre a droga. Percebi que eu, um médico, assim como todas as outras pessoas, estava acreditando cegamente no que era dito sem o necessário fundamento.
    Primeiro eu fui à biblioteca de Harvard e comecei a tentar encontrar qual era a base científica para a proibição da maconha. Fiquei estupefato, tive epifanias ao ler todos os estudos: "Meu Deus, sofri uma lavagem cerebral, assim como todas as outras pessoas nesse país".
    Em 1973, comecei a fumar, para não ser criticado, já que era um defensor. Não parei desde então.
    O senhor tem controle sobre a dose que usa? Chegou a estabelecer alguma frequência?
    Uso à noite, quando é hora de relaxar. Mas para algumas pessoas e alguns casos eu aconselho dar um trago e não dar outro em seguida --esperar dois minutos e sentir o efeito. Para aliviar a dor de cabeça, por exemplo, eu preciso repetir esse procedimento cinco vezes.
    No livro "Marihuana: The Forbidden Medicine", há uma seção que estabelece uma relação entre o uso de maconha e o envelhecimento. A erva o ajuda a lidar melhor com o avanço da idade?
    Eu tenho gastroparesia [demora para passagem do alimento pelo estômago] por complicações da diabetes, e isso me dá episódios terríveis de náusea. Então, eu carrego um pouco da erva no meu bolso porque, se num restaurante eu tenho uma crise, eu uso [mastigo] e consigo relaxar e continuar a comer.
    O efeito antidepressivo da maconha também ajuda, além de sua ação analgésica e anti-inflamatória.
    Há diferentes moléculas na Cannabis com diferentes funções? Seria possível isolá-las para que umas fossem mais ou menos potentes que outras e, com isso, sofisticar sua composição química para diminuir efeitos psicoativos ou fabricar diferentes medicamentos?
    As moléculas da Cannabis são chamadas de canabinoides. O tetrahidrocanabinol (THC), o mais estudado, é basicamente responsável pelo "barato". Agora, nos últimos anos, estamos estudando o canabidiol (CBD), que não dá barato e, na verdade, atua contra ele, além de ter um poderoso efeito terapêutico.
    Já temos medicamentos à base de CBD?
    Há uma erva, chamada Charlotte's Web, com grandes quantidades de CBD. Ela é muito útil para o tratamento da síndrome de Dravet, uma forma de epilepsia comum na infância causadora de centenas de convulsões por dia. O cérebro dessas crianças nem se desenvolve. Quando administrado o CBD, o número de convulsões passa de 300 diárias para cerca de três. Isso é incrível e ainda não há nenhum efeito psicoativo, pelas baixas dosagens de THC.
    Na semana passada, foi aprovado na França o Sativex, indicado para o alívio de sintomas da esclerose múltipla. Também o dronabinol é um medicamento clássico para o alívio dos efeitos colaterais da quimioterapia. Acredita que esses medicamentos são mais eficazes que a erva?
    O Sativex não é um bom medicamento. Sua composição química é de metade THC e metade CBD. Então não tem muita sofisticação do ponto de vista da proporção entre as moléculas. Mas o principal problema é o fato de ser administrado em pequenas gotículas --o que demora para fazer efeito. E se você está com sintomas e espasmos agudos, certamente não quer que demore tanto pra passar.
    O dronabinol é puro THC. Não possui os demais canabinoides presentes na maconha igualmente terapêuticos. A erva, assim, ainda é o melhor remédio.
    A maconha tem potencial para oferecer benefícios para mais doenças?
    Quando a ciência começar a manipular frações moleculares e mexer com o CBD, certamente teremos mais surpresas quanto aos benefícios da Cannabis. Ela será a maravilha do nosso tempo, como foi a penicilina no passado.
    Não tem nenhuma restrição quanto ao uso da erva?
    Em jovens com o cérebro em formação. Não há estudos que analisem os efeitos da droga em menores de 22 anos. No mais, o uso é livre para quem gosta.
      RAIO-X LESTER GRINSPOON
      IDADE
      86 anos, nascido em Newton, Massachusetts (EUA)
      FORMAÇÃO
      Psiquiatria pela Universidade Harvard; hoje é professor-assistente emérito de psiquiatria na universidade
      LIVROS
      "Marihuana Reconsidered" (2º edição, Quick American Archives, 1994); "Marihuana: The Forbidden Medicine" (edição revista, Yale University Press, 1997)
        Uso terapêutico precisa de mais cautela, diz OMS
        DE SÃO PAULOA OMS (Organização Mundial da Saúde) reconhece que a maconha pode ajudar no tratamento de náusea em pacientes de câncer e Aids, mas diz que outras aplicações da erva ainda precisam ser respaldadas por pesquisas.
        A entidade lista estudos clínicos que têm tido bom resultado no tratamento de glaucoma, anorexia, depressão e convulsões, mas afirma que ainda é preciso elucidar a biologia básica da ação da maconha nessas doenças.
        Com relação a efeitos colaterais, a OMS diz que a droga eleva o risco de dano cognitivo de longo prazo, doenças respiratórias e esquizofrenia.

          Fabio Zanini

          folha de são paulo
          Vício estatal
          SÃO PAULO - A estratégia de governos para lidar com o vício de seus cidadãos sempre se dividiu em duas: largar mão ou sentar a mão. Deixar drogados ou alcoólatras entregues ao problema, ou usar de força policial para tentar resolver a situação na marra.
          Haveria uma terceira via? Em São Paulo, na semana passada, a prefeitura começou a pagar R$ 15 diários a usuários de crack para que varram ruas. Em Amsterdã, na Holanda, a administração faz algo parecido com dependentes de álcool. Só que lá é mais direta: paga em latas de cerveja para que recolham lixo de locais públicos.
          "Vim pela cerveja. Se não houvesse cerveja, por que eu viria?", disse, com crua franqueza, um dos participantes do programa holandês à rede britânica BBC.
          Pode parecer chocante usar dinheiro público para incentivar o vício, mas a lógica da iniciativa é assumida: comprar (a palavra é essa) a atenção de pessoas que só se relacionavam com o Estado para fugir da polícia. Atraí-los usando suas próprias armas para, num segundo momento, dar a eles algum sentido de responsabilidade e tentar gradativamente reduzir, com acompanhamento especializado, a dependência.
          Desde que o programa holandês foi implantado, há 12 meses, a policia percebeu uma queda no índice de roubos na região onde os alcoólatras-catadores atuam.
          Em São Paulo, ainda é impossível ter um diagnóstico da ousada iniciativa. No primeiro dia, os novos garis terminaram o expediente como fazem milhões de trabalhadores mundo afora, acendendo um cigarrinho para relaxar. A diferença é que era de crack. Não que se esperasse algo diferente, num dos vícios mais escravizantes de que se tem notícia.
          Mas os sinais desanimadores não deveriam deter a prefeitura. Se não esmorecer, o prefeito Fernando Haddad tem a chance de criar uma rara marca positiva numa gestão desesperada por mostrar algo de bom.

            Ruy Castro

            folha de são paulo
            Sentença de morte
            RIO DE JANEIRO - O Rio vai perder uma instituição de 78 anos: a Livraria São José. Seus proprietários não têm como atender ao reajuste do aluguel do predinho na rua Primeiro de Março, de R$ 8.000 para R$ 20 mil. Um valor dessa monta só pode ser honrado por bancos, farmácias ou lojas de colchões. Não por um sebo de livros --nem mesmo um com a história, desde 1935, da Livraria São José.
            Foi o sebo mais importante do Rio no século 20. Suas lojas originais, nos números 38, 40 e 42 da própria rua São José, no Castelo, formaram mais leitores e escritores do que qualquer outra. Eu próprio me considero um deles. Em meados dos anos 60, matei incontáveis aulas na Faculdade Nacional de Filosofia para passar as manhãs entre suas bancadas, lambendo com os olhos os livros que ninguém conseguiria ler no espaço de uma vida.
            O homem por trás da São José chamava-se Carlos Ribeiro. Foi dele a ideia de formar balconistas e familiarizá-los com autores, estilos e escolas --vender livro não era vender biscoito. Foi também quem lançou no Brasil as então tardes de autógrafos, com madrinha e belisquetes. Mas não era preciso ir a uma delas para ver Drummond, Lispector ou Bandeira entre seus clientes --eles iam lá quase todos os dias.
            Nos anos 80, com a pressão imobiliária, a São José foi para a rua do Carmo. Cansado, Carlos Ribeiro repassou-a a seus funcionários mais antigos. Que, por sua vez, tiveram de levá-la, já reduzida a livros jurídicos, para a Primeiro de Março. Era o começo do fim.
            Deu a louca nos preços do Rio, e isso é uma sentença de morte para qualquer comércio mais delicado. A São José é só o primeiro de outros sebos que, para desgraça da cidade, também ameaçam fechar. As ruas que, por décadas, beneficiaram-se do seu charme agora os enxotam, como se eles não tivessem mais o direito de existir.

            Alô - Obras Sonoras

            folha de são paulo

            Artistas passam a usar o telefone como suporte para obras sonoras

            "Num dos meus sonhos, eu era um monstro horrível, inventado por um cara do mal. Era meu corpo, mas não era eu", diz a voz de um homem. Do outro lado da linha, uma mulher interpreta.
            "Pode ser o seu corpo querendo dizer alguma coisa que lá no fundo está atormentando você."
            É uma conversa telefônica entre dois desconhecidos, conectados às 3h da manhã por um discador automático.
            Uma vez por semana, o sistema inventado pelo artista norte-americano Maxwell Hawkins liga ao mesmo tempo para 3.700 pessoas que se cadastraram nos Estados Unidos e no Canadá para serem despertados no meio da noite e discutir seus sonhos e devaneios pelo telefone.
            "Tem algo na voz que é muito atraente para mim. E o telefone parece dar acesso ao subconsciente das pessoas. Você tem conversas mais cruas", diz Hawkins. "Sem ver o rosto, dá para sentir a respiração, o ritmo da fala. É como se aquele desconhecido sussurrasse seus segredos mais íntimos no seu ouvido."
            Em tempos de mensagens de texto telegráficas e redes sociais ultravelozes, Hawkins, um rapaz de 23 anos, parece estar descobrindo as proezas do aparelho telefônico, inventado no século 19.
            Mas o artista deu um salto no tempo ao criar um sistema capaz de identificar o assunto das mais de 300 horas de conversas gravadas. Ele pretende montar programas de rádio com os relatos sobre temas específicos -um banco de dados sonoro e onírico.
            "Falar de sonhos dá uma sensação de proximidade e de distância ao mesmo tempo", diz Hawkins. "Quando você está na cama à noite, acordado, preocupado com seus problemas, acha que está sozinho. Mas pode haver milhares de outras pessoas nessa mesma situação."
            Também há uma série de artistas contemporâneos que vêm transformando o tom retrô da voz ao telefone em obras sonoras.
            Na última Bienal do Mercosul, encerrada em novembro em Porto Alegre, o artista argentino Nicolás Bacal distribuía papeizinhos com um número telefônico -seu trabalho, um longo poema, só poderia ser ouvido.
            Em jantares e até na mesa do bar, havia gente que não desgrudava do aparelho por mais de 50 minutos, ouvindo versos gravados pela mulher que, desde os anos 1970, é a voz da hora certa no Brasil.
            Bacal encontrou a locutora original do serviço que informa o horário do país e pediu que ela gravasse, no mesmo tom e cadência em que anunciava as horas, uma longa divagação sobre a sensação da passagem do tempo.
            "Essa voz sempre esteve associada ao telefone", diz Bacal. "Meu trabalho tem a ver com encontrar um valor agregado na voz, que se transforma num fio condutor poético. Dirigindo a gravação, eu regulava a expressividade dela para que ficasse igual à das horas, com carga humana mínima, que surge só às vezes."
            Em tom robótico, ela fala do "cheiro das pedras em abril", das "luzes dos barcos ancorados à beira do mundo", de "um pássaro voando por cabos de fibra ótica", do "tique-taque da voz, correndo paralelo ao café dos bares, ao açúcar dos canaviais, à fúria das máquinas de costura", de "mulheres intranquilas".
            Uma dessas mulheres pode muito bem ter sido María Teresa, personagem real que virou celebridade na Argentina quando sua voz, gravada numa fita de secretária eletrônica comprada num mercado de pulgas de Buenos Aires, virou trilha sonora e enredo de um curta-metragem.
            No filme, uma atriz é dublada pela voz de María Teresa numa série de telefonemas obsessivos ao marido, indo de um estado de calma fingida ao descontrole total.
            "Estou falando sempre com um aparelho. Quando falo com você, estou sozinha", ela apela. "Você foi só ausência, ausência, ausência em toda a minha vida e nunca diz nenhuma palavra de amor."
            Essa última frase acabou dando nome a "Ni Una Sola Palabra de Amor", o curta de Javier Rodríguez, que foi visto mais de 1 milhão de vezes no YouTube e detonou uma busca frenética pelos donos das vozes daquela fita.
            "Minha ideia era conservar a gravação verdadeira, então fizemos como se faz um desenho animado, que já tem a voz e depois a imagem é criada em cima", diz Rodríguez. "A atriz só teve de aprender o ritmo da fala, a respiração."
            MÚSICA DE ESPERA
            Esses elementos, quase uma assinatura da voz, também intrigaram tanto o curador Adriano Casanova que ele decidiu montar uma exposição com obras sonoras tocadas no lugar da música de espera nos telefones da galeria Baró, em São Paulo.
            "Quando eu ligava para a galeria, ficava irritado com a música de espera", conta Casanova. "Então, tive a ideia de fazer uma mostra que funcionasse só pelo telefone."
            Em junho do ano passado, quem ligava para a Baró se deparava com obras de artistas como Dora Longo Bahia, que gravou um estrangeiro lendo uma versão em português de "Ulisses", e Lourival Cuquinha, que interceptou chamadas de orelhões que instalou em Belém e Recife.
            Todos os que usavam seus aparelhos podiam ligar de graça para qualquer lugar do mundo, mas tinham de concordar em ter a conversa gravada para virar obra de arte.
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            POEMA DAS HORAS
            Na última Bienal do Mercosul, encerrada em novembro, em Porto Alegre, o argentino Nicolás Bacal apresentou sua obra, um longo poema, em português, sobre a sensação da passagem do tempo, por um número de telefone para o qual os visitantes da mostra podiam ligar de graça. "Vetor da Saudade" era lido pela mesma locutora que dá voz à hora oficial no Brasil desde os anos 1970 -hoje só disponível no site do Observatório Nacional (www.on.br). Bacal pediu que ela lesse seus versos no ritmo e cadência robótica com que gravou todas as horas e minutos do dia segundo o horário de Brasília.
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            SECRETÁRIA ELETRÔNICA
            Mensagens deixadas na secretária eletrônica por uma mulher desesperada a um marido que não atende acabaram virando enredo e trilha sonora de um curta-metragem do cineasta argentino Javier Rodríguez. Ele usou a fita comprada num mercado de pulgas em Buenos Aires para sonorizar o curta "Ni Una Sola Palabra de Amor", visto mais de 1 milhão de vezes no YouTube. Nele, uma atriz encarna María Teresa, que liga enlouquecida para Enrique, seu marido. Com o sucesso do curta, acabaram sendo descobertos os donos das vozes originais, que viraram celebridades na Argentina.
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            ONDA ONÍRICAS
            Maxwell Hawkins, um jovem artista norte-americano, inventou uma máquina inspirada na ideia de gravar sonhos. Uma vez por semana, um discador automático conecta dois desconhecidos pelo telefone para que contem sobre o sonho que estavam tendo na hora em que foram acordados. No total, 3.700 pessoas nos EUA e no Canadá já se cadastraram para fazer parte do experimento. As mais de 300 horas de gravação acumuladas vão virar um programa de rádio sobre sonhos de temas específicos, que Hawkins pretende lançar no primeiro semestre deste ano.
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            MASSA SONORA
            Numa parceria com uma empresa de telefonia, Lourival Cuquinha instalou nas ruas de Belém e do Recife orelhões que faziam ligações de graça para qualquer lugar do mundo. Mas impôs a condição de que gravaria todas as conversas para usar numa obra de arte. Ele conta que transformou as conversas numa "massa sonora", já que aplicava efeitos aos diálogos. "É um comentário sobre como o mundo da rede oferece vantagens, mas nada é gratuito", diz Cuquinha, que vai repetir o projeto este ano em Ribeirão Preto (SP). "É de graça, mas [na rede] podem fazer o que quiserem com a informação."