quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Eu.2 - Francisco Daudt

folha de são paulo
Eu.2
Tal unidade não existe. São meus desejos acionados a cada momento que tirarão um rosto desse poliedro
"Carlos, eu não sou três, nem trinta e três, sou trezentos e trinta e três", escrevia Mário de Andrade para seu amigo, o poeta Carlos Drummond de Andrade ("A lição do amigo", 1982).
Ele se dava conta de como é difícil (e inútil) responder à pergunta "Quem sou eu?". Tal unidade não existe. São meus desejos acionados a cada momento que tirarão um rosto desse poliedro multifacetadíssimo, que é como roda o programa Eu em nossa mente.
Quem sou eu que te escreve, leitor? Acionado por desejos que contêm vaidade, vontade de cuidar, de ser claro e me fazer entender, de raiva dos psicogentes que falam enrolado e que se escondem atrás de um silêncio que lhes dê uma aura de importância (que não têm).
Pela vontade que a psicanálise cumpra um papel social, já que, como terapia, ela é irremediavelmente elitista (ok, um pouco atrás da neurocirurgia).
Enfim, essa é a cara que aqui se dá a tapa, que põe o bacalhau na porta da venda para o freguês ver se ele presta ou não, é este um Eu aqui presente.
"Eu" (Ego; Le moi; das ich) está em permanente risco de construção ou de consumição.
Ele se encontra entre poderosas forças internas e externas. As internas o pressionam com o desejo de agregar e de desagregar (Eros e o impulso de morte), esses desejos ardem por satisfação, de formas que "Eu" não considera possível, já que outro programa, o superego (o acima de mim; Le surmoi; das überich), vem com todo o seu poder de crítica, de culpa, de exigências de pureza e perfeição, como um censor cruel a dizer, "como você ousou pensar nesse desejo?".
Sim, para um superego poderoso existe pecado de pensamento, e seu poder vem de suas ferramentas punitivas (ameaças físicas, de "sifudências", de ridículo, e a pior delas, de culpa) a dizer, "olha só o que vai te acontecer se..."
As forças externas acabam por ser internas também, já que não temos outro jeito de lê-las senão por nossos sentidos, que as jogam para dentro e as modificam: ora para pior (baratas monstruosas), ora para menos (negação: um elefante na sala varrido para debaixo do tapete).
Tendo que atender esses guichês todos, nosso "Eu" vira um reles diplomata atarantado, ou, nas palavras de Fernando Pessoa: "Começo a conhecer-me. Não existo. / Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram".
Já temos então um caminho para que o Eu exista, e não seja só um chinês dos pratos, eternamente apavorado e correndo de um lado para o outro para não deixar que nenhum deles caia.
É preciso que ele conheça seus inimigos, como dizia Sun Tzu, ou, como na síntese de Spinoza, que ele saiba mais sobre os cordéis que o manipulam.
Essa é a função da psicanálise e do conhecimento da natureza humana, de como a genética influencia nosso comportamento.
É o que meu Eu vem tentando fazer, primeiro em meu próprio benefício, depois em cada espaço que me abrem, seja aqui, seja no consultório, seja na TV.
A ética com que mais simpatizo é a utilitarista, de John Stuart Mill: a infelicidade dos outros atrapalha a minha felicidade, donde, quero que todos possam ser felizes.

Elio Gaspari

jornal o globo
Kennedy e a deposição de Jango
O osso duro de roer não está no que os EUA fizeram em 1964, mas no que fizeram entre 1968 e 1976
No dia 7 de outubro de 1963, 46 dias antes de ser assassinado, John Kennedy presidiu uma longa reunião na Casa Branca e nela, em poucos segundos, fez a pergunta essencial a Lincoln Gordon, seu embaixador no Brasil: "Você vê a situação indo para onde deveria, acha aconselhável que façamos uma intervenção militar?". Gordon mostrou-lhe que esse era um cenário já discutido, porém improvável.
Um ano antes o presidente americano pusera no seu baralho a carta de um golpe militar para depor João Goulart. A associação de Kennedy ao golpe está amparada nos fatos, mas ao longo do tempo pareceu mais fácil jogar a responsabilidade em Lyndon Johnson, seu detestado sucessor. Desse truque participou até mesmo Jacqueline, sua adorável viúva.
Tudo ficaria mais fácil se Jango tivesse sido derrubado pelos americanos, mas ele foi deposto pelos brasileiros, numa sublevação militar estimulada e apoiada por civis. A Casa Branca, contudo, sagrou a insurreição reconhecendo o novo governo enquanto Jango ainda estava no Brasil, cuidando de suas fazendas, a caminho do Uruguai.
Passados cinquenta anos, numa época em que o aparelho de segurança americano grampeia comunicações pelo mundo afora e mata gente com seus drones, vale recordar outro momento da ditadura brasileira. Em 1971, o presidente Emílio Médici visitou Washington e foi festejado pelo presidente Richard Nixon com a frase "para onde for o Brasil, também irá o resto do continente latino-americano". Discutiram a derrubada do presidente chileno Salvador Allende (ela ocorreria dois anos depois) e o general brasileiro ofereceu-se para ajudar no que fosse possível para derrubar Fidel Castro.
Em agosto de 1970, a embaixada americana em Brasília mentia para o Departamento de Estado informando que a tortura estava sendo substituída por métodos "mais humanitários" de interrogatório. Citava dois casos de mulheres presas em São Paulo. Pura patranha. Ambas haviam sido torturadas no DOI, onde o consulado americano mantivera um pesquisador-visitante. Ademais, endossara uma versão falsa da morte de um preso. (O cônsul no Rio, Clarence Boonstra, desmentia essa informação.) Num depoimento ao Senado americano, o chefe do programa de segurança pública do programa de ajuda ao Brasil disse que não sabia o que era o Codi e não lembrava o que fosse uma "Operação Bandeirante". A fraternidade da diplomacia americana com o DOI rompeu-se com a chegada a São Paulo de um novo cônsul, Frederic Chapin, personagem injustamente esquecido na história do período.
A cumplicidade do governo americano com o regime brasileiro terminou em 1977, quando assumiu o presidente Jimmy Carter. (Um ano depois da demissão do general Ednardo D'Avila Mello pelo presidente Ernesto Geisel por causa da morte de um preso no DOI de São Paulo.) Empunhando a bandeira dos direitos humanos, Carter afastou-se das ditaduras latino-americanas. Com essa reviravolta, os Estados Unidos fizeram melhor que os franceses, que mandaram ao Brasil como adido militar o general que se intitularia "maestro" da tortura na Argélia, ou que os ingleses, que forneceram a tecnologia de celas especiais para o DOI do Rio. Nelas, som e silêncio, calor e frio, alternavam-se para desestruturar os presos.

Antonio Delfim Netto

folha de são paulo
Caiu a ficha
A grande vantagem do calendário é que ele, psicologicamente, define um período ao qual damos significação. Temos a sensação de que 31 de dezembro encerra um período. Em 1º de janeiro inicia-se outro, novinho, como se houvesse uma descontinuidade física no tempo vivido.
Tudo se passa como se os fogos do Ano-Novo tivessem consumido consigo as alegrias e decepções, os erros e acertos de 2013. As contas são fechadas de forma inexorável e definitiva. É inútil ficar triste. É inútil blasfemar. É inútil arrepender-se. É inútil recorrer a contrafactuais que eram então oportunidades mas foram perdidas. O tempo terminou: 2013 foi o que nossas escolhas (do governo e do setor privado) fizeram dele! O que está feito está feito. Não pode ser não feito! Talvez possa ser refeito!
O problema é que a realidade física do mundo de janeiro é a mesma de dezembro à qual insistimos dar nomes diferentes na busca de novas esperanças que não se concretizarão se não houver convergência mais rápida do entendimento da realidade (e das limitações que ela impõe) por parte do governo e do setor privado. Três anos de desconfianças, suspeitas e incompreensões do setor privado e de um longo aprendizado do governo no tempo contínuo de 1.095 dias produziram um resultado pobre: 1) taxa de crescimento do PIB de 6%; 2) taxa de inflação de 19% e 3) deficit em conta corrente de US$ 187 bilhões.
Pobre, mas em relação a que? Àquilo que era razoável esperar, descontado o efeito da menor expansão mundial: 1) crescimento de 3% ao ano (ou 9% no período) contra os 6% (2/3 do esperado); 2) uma taxa de inflação declinante, a partir dos 5,9% de 2010, de 0,5% ao ano, para entregar a "meta de 4,5%" em 2013. Algo como 16% contra os 19% verificados (20% acima do esperado) e 3) um deficit em c/c de 2,7% do PIB, contra 1,8% do triênio anterior, o que o aumentou de US$ 127 bi para US$ 187 bi (47% acima do que ocorreu no triênio anterior cujo PIB cresceu 13% contra os 6% atuais!).
Não adianta sofisticar os diagnósticos e as receitas que eles sugerem. Com a enorme desconfiança recíproca entre o governo e o setor privado empresarial, existente até há pouco, não havia política econômica que funcionasse. Felizmente "caiu a ficha": a Casa Civil e os ministérios da Fazenda e dos Transportes, que "escutavam, mas não ouviam", passaram a "ouvir". E o setor privado, por sua vez, entendeu que "modicidade tarifária" não era "socialismo". Os primeiros resultados são visíveis: os sucessos dos leilões de infraestrutura mostram que o diálogo está restabelecendo a confiança. Com ela virão os investimentos!
Talvez essa seja mesmo uma descontinuidade temporal que fará um 2014 melhor do que a média do triênio 2011-13.

    Fígado no pirex - Ruy Castro

    folha de são paulo
    Fígado no pirex
    RIO DE JANEIRO - Em criança, habituei-me a ver nas revistas compradas por minha mãe anúncios de gelatinas, suflês e arroz de forno acondicionados em pirex. Não me lembro se a estrela desses anúncios eram os quitutes ou o próprio pirex, então novidade por aqui. Mas uma foto outro dia nos jornais não deixou margem a dúvidas. Era a de um pirex contendo um fígado humano --um fígado criado por uma impressora 3D.
    A foto, apesar do realismo, era uma simulação do que ainda está para vir: a reprodução de um órgão humano a partir do zero --uma "bioimpressão". A notícia é a de que um laboratório americano em breve conseguirá imprimir células reais de um fígado, com os competentes sangue, nutrientes e outras gosmas, camada por camada, até formar um órgão capaz de exercer todas as funções de um fígado real. Que, num primeiro instante, não servirá para transplantes, mas é questão de tempo.
    É fabuloso, pena que não tenham pensado nisso antes. A literatura, por exemplo, agradeceria. Apenas entre os escritores americanos dos últimos 100 anos, Eugene O'Neill, Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Dorothy Parker, Robert Benchley, William Faulkner, Dashiell Hammett, Raymond Chandler, John Steinbeck, Tennessee Williams e Truman Capote, em algum momento, teriam se beneficiado de um fígado novo. Entre os atores, John Barrymore, W.C. Fields, Errol Flynn, Spencer Tracy, Joan Crawford, William Holden, Montgomery Clift, Ava Gardner e Marilyn Monroe.
    No Brasil, Lima Barreto, Pixinguinha, Ary Barroso, Noel Rosa, Grande Otelo, Vinicius de Moraes, Lucio Cardoso, Dalva de Oliveira, Isaurinha Garcia, Jânio Quadros, Paulo Mendes Campos, Nelson Cavaquinho, Garrincha, Maysa, Baden Powell e metade dos jornalistas da minha geração, inclusive eu, poderiam ter recorrido a esse apêndice.
    Qualquer um seria perfeito como piloto de provas do fígado 3D.

      Banquete totêmico - Igor Gielow

      folha de são paulo
      Banquete totêmico
      BRASÍLIA - As estarrecedoras imagens da barbárie no presídio de Pedrinhas constituem rotina.
      Para ficar na memória pessoal: desde meus tempos de repórter de polícia, no fatídico 1992 que tornou Carandiru sinônimo de massacre, até hoje, pouco mudou. Busque no Google: há dezenas de notícias sobre estupros, esquartejamentos e decapitações intramuros Brasil afora.
      O que o vídeo revelado por esta Folha traz é uma espiada rara para nós, o mundo exterior. Observamos com horror aqueles que esquecemos se comportando como a mítica horda primitiva de Freud em "Totem e Tabu", matando não só os companheiros, mas acima de tudo o "Pai" dominador representado pelo Estado.
      O texto clássico completou 100 anos recentemente, e o termo "banquete totêmico" é tristemente adequado para o que se vê. Na brilhante análise freudiana, as regras da sociedade (e, por extensão, do indivíduo) surgem do remorso decorrente do assassinato e antropofagia do "Pai" pelos filhos renegados. A consciência moral advém, pois, da culpa.
      Nas prisões sem "padrão mensalão", símbolos do exílio imposto pelo Estado, não parece haver espaço para essa esperança de ordem. A brutalização, que espelha de forma aguda o mal-estar de uma sociedade na qual a desconfiança do outro é a regra, soa insolúvel. Não há intervenção federal pontual que resolva.
      -
      Sábado passado, confundi-me aqui ao comentar as parcerias entre empresas de defesa que competem entre si e citar que o radar do sueco Saab Gripen deverá ser francês como o Dassault Rafale derrotado por ele na disputa da FAB. Deveria: o modelo francês escolhido inicialmente foi substituído por um da italiana Selex.
      Isso não altera o argumento em si. O Gripen segue tendo componentes franceses, e a Saab é parceira da Dassault em um projeto de avião não-tripulado, por exemplo.

        Helio Schwartsman

        folha de são paulo
        Por que educação é importante?
        SÃO PAULO - Para um indivíduo prosperar, basta que ele consiga um trabalho. Mas, para a sociedade progredir, é preciso que as pessoas façam seu trabalho, ou seja, que efetivamente criem bens e serviços.
        Essa diferença já era conhecida dos economistas clássicos. Frédéric Bastiat (1801-50), em seus impagáveis "Sofismas Econômicos", imagina uma petição ao rei para que todos os súditos sejam proibidos de usar a mão direita. A razão do pedido é explicada na forma de silogismo: quanto mais uma pessoa trabalha, mais rica ela fica; quanto mais dificuldades precisa superar, mais trabalha; logo, quanto mais dificuldades uma pessoa tem de superar, mais rica ela se torna.
        Quando a coisa é colocada assim de forma escancarada, percebemos o ridículo da situação. O problema é que raciocínios muito parecidos com esse, quando vendidos sob a palavra de ordem da preservação de empregos, ganham sólido apoio popular. Esse é, na opinão de Bryan Caplan, uma espécie de viés econômico que compromete a noção de democracia.
        Fazendo coro a Bastiat e outros economistas ortodoxos, Caplan sustenta que, enquanto a população vê o desemprego como "destruição de postos de trabalho", especialistas nele veem a "essência do crescimento econômico, a produção de mais com menos". Um exemplo esclarecedor é o da evolução da mão de obra agrícola nos EUA: "Em 1800, era preciso utilizar quase 95 de 100 americanos para alimentar o país. Em 1900, 40%. Hoje, 3%... Os trabalhadores que deixaram de ser necessários nas fazendas foram usados na produção de casas, móveis, roupas, cinema...".
        E onde entra a educação nessa história? Uma força de trabalho intelectualmente preparada não apenas produz com maior eficiência como ainda pode ser mais facilmente readaptada para outras funções, quando seus trabalhos se tornam obsoletos. Cada vez mais, a educação se torna matéria-prima do crescimento.

          Barbárie maranhense - Editorial Folha SP

          folha de são paulo
          Barbárie maranhense
          Selvageria em unidades prisionais do Estado e fraca resposta do governo fazem com que ganhe adeptos tese de intervenção federal
          A esta altura, mesmo a governadora do Maranhão, Roseana Sarney (PMDB), mostra-se convencida de que unidades prisionais de seu Estado se transformaram em antros de barbárie, onde detentos para lá enviados pelo Poder Judiciário agem como verdadeiros monstros em plena luz do dia.
          Há dois dias, a mandatária ainda parecia disposta a negar, ou pelo menos minimizar, as violações que têm ocorrido no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís --com 1.700 vagas e 2.500 presos.
          Por meio de nota, acusou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de escrever um relatório contendo "inverdades" sobre o sistema carcerário maranhense. O objetivo seria "agravar ainda mais a situação" nas cadeias, a fim de "descredibilizar medidas" adotadas.
          Agora a governadora já não pode insistir na negação. Vídeo divulgado ontem por estaFolha não deixa lugar para dúvidas --e evidencia, com força rara, o grau de desumanidade a que ali se chegou.
          A mera descrição das imagens basta para embrulhar o estômago. Assistir ao filme na íntegra, gravado pelos detentos com a câmera de um celular, é tarefa para poucos. Durante dois minutos e 32 segundos, três homens decapitados são exibidos de perto; em volta, presos amotinados parecem se divertir com o "documentário".
          Desde o ano passado, disputas entre facções criminosas resultaram na morte de 62 presos e, segundo consta, inúmeros estupros de mulheres que visitavam os presídios. Sem conhecer limites, o horror ganhou a região metropolitana de São Luís em ataques incendiários a ônibus. Em um deles, uma menina de seis anos teve 95% do corpo queimado e não resistiu.
          Governado pelo clã Sarney há quase meio século (com um breve interregno de dois anos), o Maranhão tem se destacado sobretudo pelos indicadores negativos.
          Sua renda per capita média, de R$ 360, é a pior do Brasil; 96% de seus domicílios não têm acesso adequado à rede de saneamento básico; mais de um quinto de sua população com 15 anos ou mais não sabe ler ou escrever.
          Não por acaso ganha adeptos a ideia de que o Estado deveria sofrer intervenção federal, prevista na Constituição, entre outras hipóteses, a fim de garantir a observância dos direitos humanos --dependendo, neste caso, de manifestação do Supremo Tribunal Federal.
          A medida é extrema, sem dúvida, e seus efeitos, duvidosos. Como recurso para proteger a democracia, deve ser usada apenas quando o governo local não estiver procurando interromper as violações, ou quando for absolutamente incompetente para tanto.
          Trata-se de análise subjetiva, mas que o governo de Roseana Sarney, ao tentar negar o óbvio ou criticar quem revela a selvageria, torna cada vez mais objetiva.

            Pornomania - Chico Felitti

            folha de são paulo

            Novo filme de Lars von Trier esquenta onda de filmes de arte com sexo explícito


            CHICO FELITTI

            DE SÃO PAULO

            Ouvir o texto


            Trinta e oito falos flácidos, de todas as cores e tamanhos, passam pela tela em 30 segundos. O filme não está nos pulguentos cinemas de sexo explícito, e sim em circuito nacional: "Ninfomaníaca" entra em cartaz nesta sexta.
            Como o título insinua, o novo filme do dinamarquês Lars von Trier é sobre uma mulher viciada em sexo.

            A obra mostra, sem tarja preta ou contraluz, a história sexual de Joe. A inglesa comum é interpretada por Charlotte Gainsbourg quando adulta, por Stacy Martin na fase jovem e por atrizes-mirins a partir dos dois anos, quando nasce seu desejo.
            Divulgação
            A inglesa Stacy Martin dá uma aula de educação sexual em cena de 'Ninfomaníaca'
            A inglesa Stacy Martin dá uma aula de educação sexual em cena de 'Ninfomaníaca'
            "É claro que foi tudo assustador. Eu precisava ter certeza de que os atores não fariam as cenas de sexo. Quando tive, fiquei tranquila", diz Gainsbourg em entrevista disponível no site do filme.
            As partes pudendas na tela são de dublês pornô, para a tristeza dos fãs de Shia LaBeouf, que faz o desvirginador (por encomenda) de Joe.
            Von Trier, diretor de "Anticristo" (2009) e "Melancolia" (2011), entregou um filme pornô de mais de cinco horas, que foi limado e desmembrado em dois episódios de quase duas horas —o segundo deve estrear em março.
            E adotou uma postura come-quieto com a obra. Não dá entrevistas desde que, em maio de 2011, disse "eu entendo Hitler" no festival de Cannes, no qual desde então é "persona non grata".
            CORES QUENTES
            O diretor bad boy não está só. Há quatro outros longas com cenas eróticas em cartaz: "Azul É a Cor Mais Quente", "Jovem e Bela", "Tatuagem" e "Um Estranho no Lago".
            São filmes de arte realistas, defendem especialistas. "Não é uma cena de sexo explícito que faz um filme pornográfico, assim como não é uma cena com pessoas cantando que define um filme como musical", diz o sociólogo Rodrigo Gerace, que publica em 2014 o livro "Cinema Explícito".
            A divisão, entretanto não é muito clara nem para os diretores. Alain Guiraudie, de "Um Estranho...", queria pôr dois atores pornôs para protagonizar. Só evitou a sodomia explícita porque os dublês se negaram a transar sem camisinha, como estava no roteiro e ele queria preservar.
            Já "Azul", filme sobre o amor de duas jovens na França, ganhou a Palma de Ouro em 2013 mesmo depois de uma das protagonistas dizer ter se sentido "uma prostituta" nas filmagens.

            Pornomania

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            Divulgação
            AnteriorPróxima
            7 MINUTOS tem a cena de sexo lésbico mais vigorosa de 'Azul É a Cor Mais Quente', em que foram usadas próteses de vulvas
            Espectadores sentiram outras coisas. "Desperta a quinta série em você esse tipo de filme", diz o publicitário Gabriel Altoé, que teve um acesso de gargalhadas em "Azul" no Reserva Cultural.
            "Aquela coisa de esfrega a parte uma na cara da outra e as pessoas ao redor paradas, como se nada estivesse acontecendo, olhando pra arte, me fez perder a linha." Foi expulso da sala. No cinema do shopping Frei Caneca, um casal foi vaiado ao fazer som de nojo durante a cena.
            Hilton Lacerda, diretor do filme brasileiro "Tatuagem", vê peso político na sacanagem. "Eu acho superimportante a desmoralização. Mostrar um pênis parecia mais violento que mostrar uma arma que mata. Não é."
            Tanto que pediu classificação etária para 16 anos, quando colegas davam a exigência de maioridade como certa. Conseguiu —enquanto "Azul" e "Ninfomaníaca" ficaram só para adultos.
            E a polêmica em torno dos pelados do seu filme? "Polêmico é alguém achar sexo no cinema polêmico em 2014."

            CRÍTICA - DRAMA
            Dinamarquês retrata sexualidade sem afeto, mas em busca de sentido
            INÁCIO ARAUJOCRÍTICO DA FOLHAAntes, as pessoas cultivadas diziam não assistir aos filmes brasileiros "porque só têm sexo". Agora, será o caso de inverter o discurso: não verão filmes brasileiros "porque só eles não têm sexo".
            É o que nos deixam os estrangeiros "Azul É a Cor Mais Quente", "Um Estranho no Lago" e, agora, "Ninfomaníaca", primeira parte do pornô prometido pelo dinamarquês Lars von Trier --e que completaria o que já denominaram "trilogia da depressão" (com "Anticristo" e "Melancolia").
            São filmes que solapam a cuidadosa arquitetura da indústria (americana, em particular), em que o normal e o pornô devem fingir que são de mundos diferentes, como se a sexualidade só pudesse ser exercida verbalmente.
            Com uma hora e cinquenta minutos, esta é a primeira parte das aventuras de Joe --a segunda terá duas horas e dez minutos, mas trata-se, no dizer de Von Trier, mestre do marketing cinematográfico, de "versão censurada".
            Joe (Charlotte Gainsbourg) é encontrada num beco por Seligman (Stellan Skarsgard), sensível o bastante para acolher a mulher batida e abatida. E não uma qualquer: Joe garante-lhe que não é exatamente uma boa menina.
            A primeira parte do filme vai se dedicar às experiências eróticas que Joe narra e Seligman tenta compreender. Para Joe, a sexualidade se mostrará evidente e misteriosa, prazerosa e tortuosa.
            Podemos observá-la em dois aspectos: a iniciação sexual é o mais estranho deles, pois envolve uma competição, com uma amiga, para ver quem transa mais durante uma viagem de trem.
            Estamos, portanto, longe da ideia de afeto, mas também da de prazer. Assim como em "Anticristo" e "Melancolia", parece haver algo de irrecuperável no humano. A sexualidade, em Joe, não é angústia, felicidade, gozo. Não é nada, a rigor. É um ato desprovido de sentido, embora sempre em busca de sentido.
            O segundo aspecto, ao contrário, é carregado de sensibilidade e envolve a infância, a ligação com o pai e a falta de ligação com a mãe. Ligações pesadas, à maneira nórdica, de que resultará uma das cenas mais fortes, no leito de morte do pai (Christian Slater).
            Algo de muito próprio no cinema de Von Trier, além do humor, se manifesta com clareza: as relações pessoais, em particular as familiares, são movidas por forças incontroladas (talvez incontroláveis), misteriosas, que se manifestam sob as convenções.
            Isso faz delas eventos muito particulares e, em especial em "Ninfomaníaca", daqueles que o espectador tateia, em busca de um significado, mas nunca escapa ao encantamento estranho das imagens.
            Em "Ninfomaníaca", o que se vê são cenas de "pornô soft". Versão censurada? Talvez. Em todo caso, nessa fase mais juvenil de Joe, quem se destaca é Stacy Martin, atriz de uma beleza que lembra Sylvia Kristel, artista que teve a carreira arruinada pelas cenas de sexo de "Emmanuelle". Espera-se que Martin tenha sorte melhor.

              José Simão

              folha de são paulo
              Ueba! Chegou a frente frita!
              E com a morte do Nelson Ned, o único anão celebridade do Brasil agora é o ACM Neto
              Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Previsão pra 2014: a Dilma vai ser reeleita e a Argentina vai ganhar a Copa do Mundo. Rarará!
              E aviso pros urubus de plantão: "Vai ter Copa!". E você acredita que, no primeiro dia útil do ano, segunda de manhã com chuva, cidade vazia, uma mulher conseguiu bater no único carro da esquina daqui de casa? Essa entrou o ano com o pé direito. No acelerador! Rarará!
              E se em Nova York você encontrar um boneco de neve com um monte de sacolas na mão, é brasileiro! E se você encontrar um monte de neve com uma sacola em cima, pode cavoucar que é brasileiro! Um amigo meu tá trazendo neve na mala pro Brasil! Rarará!
              E com a morte do Nelson Ned, o único anão celebridade do Brasil agora é o ACM Neto. E a manchete do Piauí Herald: "Dilma decreta meio minuto de silêncio pela morte de Nelson Ned". Rarará!
              E esse calor? Bafo dos infernos! Sensação térmica: test drive pro inferno! Os gaúchos já mudaram o nome de Porto Alegre pra Forno Alegre! E olha essa num site de Campinas: "Frente frita derruba temperatura em 10 graus em 2 horas". Errou acertando! Tá tendo frente frita no Brasil. Chegou a frente frita!
              Tem que aproveitar ar condicionado de banco. Um amigo meu levou a cadeira de praia pra agência do Banco do Brasil!
              Ontem eu dormi no freezer ligado no modo nevar. E anteontem dormi deitado no chão com o travesseiro dentro do frigobar!
              E um amigo foi dormir no terraço e perguntou pra mulher: "Se os vizinhos me virem pelado o que eles vão dizer?". "Que eu me casei com você pelo dinheiro". Rarará!
              E hoje eu acordei loiro, com os miolos derretidos! Aqui em casa é ar condicionado ecológico: um respira e o outro aspira. Um respirando na cara do outro! Rarará!
              E lá no Rio os relógios de rua estavam marcando a temperatura: "Fudex"! Sensação térmica: FUD*#! Rarará! É mole? É mole, mas sobe!
              E um amigo foi pra Caldas Novas e desejou Feliz 2014 para todos os operadores de pedágio. Resultado: passou o Réveillon rouco!
              Ai que saudades da leitoa que eu comi no Natal. Do focinho ao rabicó! E sabe por que em São Paulo tivemos 24 horas de fogos? Eram os corintianos e os são-paulinos desovando os fogos do ano passado! Rarará! Nóis sofre, mas nóis goza. Hoje só amanhã
              Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

              Marcelo Coelho

              folha de são paulo
              Cuidado com seus projetos
              No centenário da Primeira Guerra Mundial, o perigo das previsões merece ser lembrado
              Previsões e planos, duas coisas comuns nesta época do ano, costumam sofrer depressa o desmentido dos fatos. Raras vezes esse desmentido foi tão brutal, contudo, quanto na Primeira Grande Guerra, cujo início faz cem anos agora em 2014.
              Comecei a ler um pouco sobre o assunto, para depois resenhar os livros que estão programados para a efeméride. Pelo que andei vendo, um bom ponto de partida é o estudo de Barbara Tuchman, publicado pela primeira vez em 1962.
              Chama-se "The Guns of August" e representou uma virada nas interpretações sobre o período. Ela relativiza, por exemplo, a importância do famoso assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo --tantas vezes mencionado, numa síntese que nunca explica muita coisa, como sendo o "estopim" da Primeira Guerra.
              A autora de "A Marcha da Insensatez" (Bestbolso) dá ênfase a toda a verdadeira máquina infernal de preparativos militares, tanto da Alemanha como das demais potências, que tornava qualquer ameaça de conflito praticamente impossível de reverter. Na narrativa de Tuchman, planos desse tipo se chocam com as previsões, que eram muitas também. Como em todo ano novo, 1914 encenou dramaticamente a ironia entre o que se quer que aconteça e o que se pensa que vai acontecer.
              Nunca entendi por que o famoso filme de Jean Renoir sobre a Primeira Guerra se chamava "A Grande Ilusão". Que ilusão? A de que pessoas de diferentes nações são diferentes entre si? A de que a amizade entre um alemão e um francês pode superar rivalidades? A ilusão é a paz? Ou a ilusão é a guerra?
              Graças ao livro de Tuchman, aprendi que "A Grande Ilusão" é o título de um estudo escrito pelo inglês Norman Angell (1872-1967). A obra fez sensação na "belle époque".
              Demonstrava-se, ali, a improbabilidade absoluta de uma nova guerra europeia. Os recursos técnicos e humanos à disposição de cada país eram tão vastos que qualquer conflito seria suicídio: mesmo a nação vitoriosa emergiria dele totalmente arruinada e destruída. Num mundo interessado no lucro, quem apostaria em prejuízos de tal monta?
              O livro saiu em 1910. Ninguém menos do que o chefe do Conselho de Guerra do Império Britânico, Lord Esher, entusiasmou-se com a tese e tratou de divulgá-la em palestras e cursos. Uma das figuras máximas do militarismo alemão, o marechal Von Moltke (1800-1891), já enunciara ideias semelhantes. As guerras por vir jamais seriam curtas, e o seu preço, mesmo para o país vencedor, seria catastrófico.
              Enquanto as previsões iam nessa toada, os planos caminhavam em sentido contrário. Ou melhor: levando em conta os mesmos fatos, conduziam a uma conclusão oposta.
              Sabendo-se que todas as potências eram fortíssimas, e que uma guerra longa e custosa poderia acontecer, o único método para garantir a vitória consistiria em atacar de uma vez, o mais cedo possível...
              Beneficiando-se de uma ofensiva-surpresa, que passasse por cima da Bélgica, tão fraca e tão neutra, os alemães contavam chegar a Paris em questão de semanas. Do lado francês, o Estado-Maior concluía, em 1913, que "só a ofensiva conta".
              Estabelecido o dogma militar, parece pesar pouco a vontade dos participantes no momento em que o drama se aproxima. Esta, pelo menos, é a interpretação de Barbara Tuchman, que narra um episódio arrepiante com o Kaiser alemão.
              Não se tratava, evidentemente, de nenhum pacifista. Mas a guerra entre Alemanha e Rússia já estava declarada, e era do interesse de qualquer estrategista evitar que França e Inglaterra entrassem no conflito. Para os alemães, sempre seria um pesadelo dar conta de duas frentes --a do Oeste e a do Leste-- ao mesmo tempo.
              Surge uma chance. Eram cinco horas da tarde do dia 1º de agosto de 1914 quando aparece, em Berlim, um telegrama em código informando que os ingleses estavam dispostos a manter-se neutros na guerra, caso os alemães se comprometessem a não atacar a França.
              Mas todos os planos para o ataque já estavam em movimento. O Kaiser hesita: e se for um blefe? E se os franceses atacarem antes do mesmo jeito? Conversa com seu chefe de Estado-Maior.
              Moltke, o Jovem (sobrinho daquele marechal do mesmo nome que previa ruína e exaustão para os vencedores), já não tinha paciência para com os palpites do imperador. Como se lê em "Os Três Imperadores", de Miranda Carter (Objetiva), Guilherme 2º desde cedo manifestava grande vaidade intelectual, achava que entendia de tudo.
              Moltke chorou ao ver aquelas tentativas apaziguadoras do Kaiser. Era hora de deixar a guerra para os militares, que entendiam do assunto. Assim foi feito.
              Previsões e planos para 2014? Por vezes, não fazer nada já é uma iniciativa e tanto.