domingo, 29 de dezembro de 2013

Marcelo Leite

folha de são paulo
Água e energia
Belo Monte ainda está longe de dar um exemplo de civilização à altura da engenharia que a ergueu
Nos últimos meses este colunista esteve mergulhado nas águas turbulentas da hidrelétrica de Belo Monte (PA), uma travessia para esgotar a energia de qualquer um. O resultado, "A Batalha de Belo Monte", pode ser conferido emfolha.com/belomonte, em português, folha.com/belomonte-en, em inglês.
Não é dessas águas passadas nem da energia drenada que saiu o título da coluna, todavia. Ele surgiu de uma pausa para refletir sobre o que significa, afinal, erguer um colosso desses para barrar o majestoso rio Xingu e tomar de empréstimo um pouco da força que o move.
O país precisa de eletricidade, ponto. Muita eletricidade. Provavelmente não tanta quanto projetam os burocratas do Ministério de Minas e Energia, que só têm olhos para obras faraônicas e seus dividendos. Conservação de energia, usinas eólicas, solares? Esquece.
Se a alternativa for entre hidrelétricas e termelétricas (combustível fóssil ou nuclear), é melhor ficar com as primeiras. Poluem menos. Mas o potencial remanescente está concentrado na Amazônia, onde há muita água, mas o terreno tende a ser plano, o que implica inundar grandes áreas para gerar energia.
Durante a produção de "A Batalha de Belo Monte", e também depois, a equipe de reportagem ouviu várias vezes a pergunta: contra ou a favor? Não é uma resposta fácil.
As soluções de engenharia para Belo Monte são em muitos aspectos admiráveis. Gerar 4.571 megawatts (MW) médios alagando "apenas" 500 km2 (um terço do município de São Paulo), ainda que meros 41% da potência instalada de 11.233 MW, é melhor que inundar quase o quíntuplo disso (2.350 km2) para instalar ridículos 250 MW, como na criminosa usina de Balbina (AM).
Muita coisa mudou, no país e no projeto de Belo Monte, desde os anos 1980. Reconhecer isso não permite, contudo, deixar de apontar a repetição de barbaridades na mitigação --mal planejada, tardia, "para inglês ver"-- dos impactos sobre o ambiente ímpar da Volta Grande do Xingu e sobre as populações ribeirinha, indígena e citadina.
Belo Monte ainda ficou longe de dar um exemplo de civilização e responsabilidade social à altura da engenharia que a ergueu. Se você for atropelado por um trator, pouco importará que ele seja guiado por GPS e que na cabine com ar condicionado o volante seja manipulado por um presidente da República petista e popular.
Há outra maneira de enxergar a pequenez de Belo Monte, porém, para a qual chamou a atenção Antonio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.
Nos poucos meses em que Belo Monte funcionar a plena carga, se operar 24 horas por dia, passará por suas 18 turbinas principais 1,2 bilhão de metros cúbicos de água. No mesmo dia, a floresta amazônica evaporará ""pela simples transpiração de suas plantas"" um volume quase 20 vezes maior.
A comparação em termos da energia envolvida é mais humilhante. A água enviada pela mata para os céus emprega pelo menos 60 mil vezes mais energia que a colhida pelos rotores da usina, que precisaria de 165 anos a toda força para empatar com que move a máquina de chuva amazônica num único dia.

    Curso forma integrantes do Femen na Espanha

    folha de são paulo
    LUISA BELCHIOR
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM MADRI
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    Corrida, flexões de braço, postura corporal, expressão facial (sempre com cara de brava), táticas de fuga e até noções de costura.
    Não basta fazer topless para ser integrante do Femen, o grupo de ativistas conhecidas mundo afora por protestar sem camisa, com flores na cabeça e dizeres no corpo.
    Entrar para o movimento exige disciplina e esforço físico, como a Folha constatou ao participar do curso preparatório da filial espanhola da organização, em Madri.
    Durante um mês, a reportagem teve aulas práticas e teóricas, que incluíram a maneira correta de gritar, correr, resistir à polícia e mostrar os seios sem cair na armadilha da "sensualização" –pecado mortal para elas.
    Divulgação
    Protesto do Femen na Espanha; cartazes dizem "mulheres livres", "luta nua", "exército do Femen" e "exército nu"
    Protesto do Femen na Espanha; cartazes dizem "mulheres livres", "luta nua", "exército do Femen" e "exército nu"
    Além da repórter (que se identificou como tal), havia outras cinco alunas no programa, que é gratuito. O curso segue à risca o manual internacional do Femen, grupo fundado na Ucrânia há cinco anos para protestar contra a opressão às mulheres no país.
    Aos poucos, os protestos nada convencionais começaram a angariar a atenção do mundo, e o grupo abriu representações na Europa e na América. Seu quartel-general foi transferido para Paris, onde acontecem treinamentos anuais das ativistas de todo o mundo.
    Além de França, Ucrânia e Espanha, o Femen está presente na Alemanha, na Holanda, na Suécia, no Canadá, na Turquia e no México e se prepara para entrar no Reino Unido.
    No Brasil, o movimento ensaiou uma abertura no ano passado, mas a então líder no país foi desligada do grupo por "conflitos ideológicos".
    Os protestos, sempre comunicados ao quartel-general, seguem as três principais premissas do grupo: exterminar todos os regimes ditatoriais, acabar totalmente com a prostituição no mundo e separar o Estado de qualquer religião.

    Protesto do Femen em Bruxelas

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    Georges Gobet/AFP
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    Integrantes do Femen pedem a libertação da ativista tunisiana Amina Tyler em frente à embaixada da Tunísia em Bruxelas, na Bélgica
    A seguir, quatro lições básicas de como ser uma Femen, segundo o curso.
    LIÇÃO 1: O TREINO
    Ser Femen exige esforço físico e disciplina. As ativistas fazem um treino semanal com cooper, abdominais, flexões, corrida de explosão e simulações de protestos.
    Tudo para manter a forma física –o que, segundo as líderes do movimento, nada tem a ver com a estética.
    A ideia é que as ativistas estejam sempre fortes e preparadas para as vezes em que têm de correr da polícia ou se agarrar em alguma pilastra para não serem retiradas de onde estão protestando.
    Quanto mais força para resistir, por mais tempo a mensagem será ouvida. E, para isso, há que treinar muito.
    Nos exercícios de Madri de que a Folha participou, o grupo corre pelas ruas, saindo da base do Femen, um pequeno escritório sem identificação (para garantir a segurança das componentes).
    O Femen aceita mulheres com qualquer nível de preparação física, mas exige esforço. Na hora da corrida, todas as ativistas tiveram de manter o mesmo ritmo, sob frio de 5ºC. Ao fim da corrida, de cerca de meia hora, em um parque da cidade, todas praticam exercícios de explosão seguidos das simulações de um protesto.
    Aprende-se a gritar os lemas do grupo –como "foda-se sua moral", "meu corpo, minhas regras" e "muçulmanas, vamos nos desnudar"–, que devem ser sempre entoados com expressões de raiva, para, segundo o grupo, expressar o sentimento com que se protesta.
    A mesma expressão, acompanhada de desaforos, é reproduzida a pedestres que, via de regra, fazem gracinhas com as meninas correndo.
    LIÇÃO 2: O TOPLESS
    Uma das principais críticas ao Femen é direcionada à forma com que protestam, praticando topless. Para as ativistas, a explicação é lógica: querem colocar em questão a ideia de que o corpo da mulher só pode ser mostrado com conotação sexual e em ocasiões esperadas.
    "Usar o corpo como arma política é uma estratégia para lutar contra o sistema com algo que ele sempre teve sob controle. E não tem nada a ver com mostrar o corpo para atrair gente. Não mostramos o corpo como um instrumento erótico, mas combativo", diz à Folha a líder do Femen na Espanha, Lara Alcázar.
    Com 21 anos, a estudante espanhola participou do treinamento na sede do Femen em Paris e no início do ano foi nomeada líder do movimento em seu país.
    Desde então, ela se mudou para Madri, de onde comanda todos os atos e treinamentos do grupo espanhol.
    Com os corpos pintados, elas vão de encontro a seus alvos, que podem ser desde manifestantes de causas contrárias às suas a mandatários em atos oficiais.
    O objetivo é causar espanto e chocar, o que acontece –com raras exceções.
    Numa das vezes em que não deu certo, o presidente russo, Vladimir Putin, foi interpelado pelas ativistas em um encontro na Alemanha com a chanceler Angela Merkel, em abril. Ele olhou calma e diretamente os seios de uma delas e fez o sinal de OK.
    Mas as ativistas do Femen não são obrigadas a fazer topless. Podem participar na organização dos atos ou na estrutura interna do grupo, que na Espanha conta com 20 integrantes.
    A reportagem acompanhou atividades paralelas como a confecção de coroas usadas nos protestos, feitas com flores artificiais delicadamente costuradas e coladas em arames e fitas.
    LIÇÃO 3: A POSTURA
    Para deixar bem claro que as ativistas mostram os seios por um ato político, o "código de conduta" do Femen ensina as ativistas a eliminar vícios de postura que possam parecer sensuais.
    Ao protestar, é preciso estar com o corpo ereto, não se apoiar sobre o quadril e evitar deixar a cintura cair para um dos lados.
    As ativistas são instruídas também a protestar com os punhos cerrados em riste ou sobre a cintura.
    A cara deve ser sempre de indignação, para refletir o sentimento do movimento sobre os temas contra os quais protestam. A voz, firme e alta. Sorrir, jamais.
    Nos treinos, as ativistas aprendem a não se intimidar com a pressão de policiais. Para isso, são postas cara a cara com outras componentes do grupo, ou empurradas e puxadas por elas sem deixar de gritar os lemas. Quem parar na metade é punida com flexões (o que aconteceu com a repórter da Folha).
    LIÇÃO 4: A IDEOLOGIA
    Embora os pleitos políticos do Femen sejam muitos, dos direitos da mulher ao fim de ditaduras, o grupo não é muito adepto de criar teorias.
    A tática é levar, com poucas palavras e temas concretos, o movimento feminista para as ruas, em lugar de discuti-lo em debates e congressos.
    Suas ideologias são defendidas com frases curtas e estampadas nos corpos ou em cartazes, como "meu corpo, minha decisão" e "não mais papa". Além das lutas comuns, em cada país o movimento tem temas diferentes. Na Ucrânia e na Rússia, brigam contra a repressão. Na Espanha, a bandeira é a nova e restritiva Lei de Aborto.

    Freud e uma nova origem da espécie

    folha de são paulo
    Freud e uma nova origem da espécie
    O centenário de "Totem e Tabu"
    MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
    RESUMO No final de 1913, Sigmund Freud publicou um de seus mais célebres textos, "Totem e Tabu". Nesse ensaio, o fundador da psicanálise visava recontar a história da formação do homem, tomando como mito fundador da cultura e símbolo do mecanismo sacrificial de nossa sociedade um parricídio antropofágico.
    "Eu sou todo 'Totem e Tabu'"
    (Freud em carta a Sándor Ferenczi, em 11/8/1911)
    Pode-se dizer que a recepção do ensaio "Totem e Tabu", de Sigmund Freud, condensa de modo exemplar a história da recepção da psicanálise. Se esta foi recebida, desde o seu início, de maneira ambígua, com detratores radicalmente destrutivos e leituras entusiásticas, esse ensaio, escrito a partir de 1912 e publicado em 1913, até hoje divide seus leitores.
    "Totem e Tabu", esse trabalho que procurava um público mais amplo, para além dos psicanalistas, como escreveu Freud na apresentação ao livro, visava formular nada menos do que uma nova "cosmologia": Freud se coloca, assim, não só ao lado de Sófocles, como escreveu Lévi-Strauss, mas ao lado de Hesíodo, autor da "Teogonia".
    Os homens, na era de Darwin, não descendem mais de deuses, mas, sim, de macacos. Freud assume a tarefa de narrar a origem da hominização a partir de um passo fundante, que o jogou dentro da vida em sociedade, regida por regras (tabus) e não mais apenas pela força do patriarca despótico (figura cuja força se manifesta nos totens).
    Essa narrativa do pacto social já tinha sido feita por inúmeros filósofos modernos: mas Freud foi o primeiro a realizá-la na era de Darwin, ou seja, após a "queda" de nossa origem nobre e divina e no contexto da modernidade avançada.
    Foi justamente um pensador que, aos olhos da Europa antissemita, "veio de fora", ainda que tenha vindo de seu interior mais profundo (nasceu no antigo Império Austríaco, em cidade que hoje integra a República Tcheca), quem tomou sua pena para redigir novamente a história de nossa origem.
    Se Darwin tornara "indigna" e abjeta nossa origem, Freud deu um passo a mais, ao colocar no centro da cultura um assassinato e um repasto antropofágico. Para ele, tornamo-nos humanos após uma insurreição dos filhos, membros da horda primeva, que, revoltados contra o despotismo do pai, tomaram-lhe o poder, o mataram e o devoraram. Essa história estaria esquecida, enterrada na origem da humanidade.
    Mas, do ponto de vista de Freud, não existe esquecimento. Essa verdade está apenas recalcada. Sua sombra se lança sobre toda nossa história e o complexo de Édipo é a atualização individual de um drama social. Essa narrativa sintetizava todo um saber antropológico, etnológico, filosófico, histórico, social e psicanalítico.
    A partir da sua ciência e de sua posição histórica, Freud teve a possibilidade aberta de redesenhar nossa origem e, assim, nossa identidade. De seu lugar deslocado, dentro e fora, ele se sentiu à vontade para realizar pontes entre diversas áreas, pôr em circulação um saber que tendia a se cristalizar em disciplinas estanques, alienadas de seu objeto: o ser humano.
    De representante de um grupo social que era vítima de uma razão monológica e cega à diferença que tendia, por meio de uma identificação mecânica com o próprio e de uma rejeição feroz do "outro", a excluir e matar o "diferente", Freud conseguiu dar uma virada histórica e se tornar um designer da nova humanidade pós-Darwin.
    OUTROFÓBICO Seu design, no entanto, era tudo menos uma teoria monológica. Ao invés de uma antropologia calcada na exclusão, Freud vai descrever e desconstruir esse mecanismo outrofóbico e a razão genocida tanto em "Totem e Tabu" quanto em ensaios como "Psicologia das Massas e Análise do Eu" ou "O Mal-estar na Cultura".
    Sua percepção crítica do mecanismo sacrificial na base da costura do amálgama social leva-o a sair do local do sacrificado (o judeu como bode expiatório) para galgar a posição de um analista desconstrutor desse mecanismo.
    Sua busca incessante pela aceitação da psicanálise deve ser posta em paralelo com a sede de aceitação dos judeus em meio a uma sociedade de gentios. Freud e seu desejo de "ocupar o lugar do pai" -pai de uma nova ciência, mas também pai e criador da imagem desse novo humano, caracterizado por seus traumas e faltas- respondeu assim também à demanda dos judeus de reconhecimento e integração na cultura iluminista europeia.
    Sua obra testemunha sua época e a posição dos judeus na sociedade austro-húngara. Aquele que "vem de fora" (desse fora de dentro) tem a vantagem de possuir uma outra mirada, uma visão crítica que lhe faculta uma análise da sociedade e de seus mecanismos. Desse local outro, dentro e fora, Freud se debruça sobre a humanidade para novamente narrar sua história. Seu mito fundador -ao lado da descrição darwinista da origem da humanidade- se tornou a pedra de toque de nossa autoimagem.
    Se existe uma noção recorrente na obra freudiana é a que remete à estrutura temporal complexa, multiestratificada tanto da construção de nossa psique como da cultura. Um termo-chave para a compreensão do sujeito e da cultura como complexos que reúnem convergindo diversas temporalidades em um ponto é, sem dúvida, o conceito de trauma, que atravessa toda a história da psicanálise.
    Se existem traumas que nos constituem individualmente, Freud, sobretudo a partir da Primeira Guerra Mundial, enfatiza também os desastres e catástrofes que deixam nossa cultura e sua memória como uma paisagem comparável a um acúmulo de escombros.
    Ao abordar, em "Totem e Tabu", a origem da nossa espécie, ele vai justamente destacar nosso trauma constitutivo, aquilo que nos humaniza: um assassinato, um parricídio. Freud pretendia iluminar os "paralelos do desenvolvimento ontogenético e filogenético da vida anímica". Pacientes que sofriam de demência precoce teriam criações fantasiosas que apresentam concordâncias com cosmogonias mitológicas dos povos antigos.
    A vida anímica infantil, que é comum aos "primitivos" e aos pacientes com doenças psicológicas, deveria explicar essa proximidade. A infância da humanidade se cruza com nossa infância ontogenética.
    Como Freud formula no prefácio de "Totem e Tabu": "Faz-se neste livro uma tentativa de deduzir o significado original do totemismo dos seus vestígios ['Spuren'] remanescentes na infância -das insinuações dele que emergem no decorrer do desenvolvimento de nossos próprios filhos"¹.
    Observamos aqui uma complexa estrutura temporal, com várias camadas, que faz com que se vislumbre irrompendo no ser humano adulto moderno tanto o "primitivo", que ainda viveria dentro dele, como sua infância, que o estruturaria psicologicamente.
    Os que sofrem de doenças psíquicas servem como exemplos privilegiados, já que neles nossa estrutura "traumática" estaria como que exposta à luz do dia. Apesar de, ao tratar dos povos ditos "primitivos", Freud não ter conseguido se livrar da visão linear, evolucionista e eurocêntrica, suas conclusões são totalmente sustentáveis ainda hoje.
    Toda a leitura que Freud realiza de nosso passado tem a ver com uma dupla necessidade. Por um lado, ele buscava comprovar a psicanálise com base na história da humanidade -e consequentemente afirmar sua verdade e validade.
    Por outro lado, sua leitura do passado da espécie humana deriva de uma nova possibilidade de interpretação desse passado comum que apenas a psicanálise poderia nos abrir. Essa interpretação se dá na chave do trauma.
    CHOQUES Freud fez na ciência aquilo que, antes dele, Baudelaire havia feito na poesia e na literatura: a construção do indivíduo moderno como aquele que tem de conviver com choques, traumas e catástrofes. A modernidade é traumática, arranca o indivíduo da tradição e o lança no desabrigo, no "Unbehagen", mal-estar que nos define.
    A esse indivíduo, Baudelaire e Freud fornecem uma nova mitologia. A experiência prosaica do homem moderno está repleta de choques, de embates com o perigo.
    Freud, nesse ensaio brilhante, está todo o tempo traçando e apagando as fronteiras entre o pensamento mágico e o científico. Para ele, "um sistema é mais bem caracterizado pelo fato de pelo menos duas razões poderem ser descobertas para cada um de seus produtos: uma razão baseada nas premissas do sistema (uma razão, que pode ser, então, delirante) e uma razão oculta, que devemos julgar como sendo a verdadeiramente operante e real ['eigentliche wirksame und reale']."
    Com relação a "Totem e Tabu" caberia-nos perguntar, para além do motivo sistêmico evidente, por que o mito do parricídio teve que ser descrito? Qual a razão verdadeiramente operante e real para sua existência?
    Creio que o determinante desse mito violento é o próprio século de catástrofes que deu luz a esse mito -e Freud o projetou no alvorecer da humanidade.
    Tem como fundo real a realidade da violência: Freud publicou "Totem e Tabu" às vésperas da Primeira Guerra Mundial e seu texto "irmão", "Moisés e o Monoteísmo", às vésperas da Segunda Guerra. Mera coincidência?
    Os dois maiores rituais violentos e sacrificiais do século 20 foram de certo modo antecipados teoricamente por esses ensaios -que contêm a ideia e sacrifício no seu centro. O "delírio" tem de fato uma função mais do que sistêmica, ele também deve expressar um "real" que estava ali se anunciando, irrompendo.
    GRANDE ESTILO Quando, no terceiro item do quarto capítulo, Freud anuncia a visada psicanalítica como aquela que poderia esclarecer os debates em torno do totemismo, ele o faz em grande estilo, com um pequeno parágrafo de uma linha: como o anúncio de um grande espetáculo.
    Após ter apresentado no item anterior a descrição que Darwin deu da horda primeva, com a exogamia sendo imposta pela força do macho mais forte que tomava para si todas as fêmeas do bando, e após ter apontado para uma confusão quanto à origem dessa exogamia com relação ao totemismo, Freud inicia assim sua narrativa: "Nessa obscuridade, um raio de luz isolado é lançado pela observação psicanalítica".
    Ele passa então, em um movimento típico do método de "Totem e Tabu" (e de seus ensaios sobre teoria da cultura), para os exemplos e descobertas advindos dos estudos de caso na psicanálise: Freud lança luz no arquivo da cultura a partir dos esclarecimentos que a psicanálise obteve no estudo do arquivo-indivíduo. O microcosmo é a chave do macrocosmo, como na tradição cabalística.
    Assim como, segundo Aristóteles, no centro da tragédia devemos ter a ação, o mesmo se passa com a cena de nossa origem narrada por Freud. "No início foi o ato"² é a frase que ele utiliza para concluir esse ensaio, citando as palavras do "Fausto", de Goethe.
    As tragédias são para ele irrupções do histórico, da violência e (re)encenação de sua força destruidora em um presente. Devemos ver como também a própria construção freudiana deve ao seu presente de guerras, de antissemitismo, de autoafirmação dos judeus europeus, de ruptura com a tradição -e com os pais.
    "Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal." Como em uma história dos irmãos Grimm, ou em um mito, a narrativa de nossa origem inicia-se com a expressão "Certo dia". Uma ciência lastreada em um mito? Sim, mas qual não o é, perguntaria Freud.
    A diferença é que a psicanálise como ciência "sui generis" permite-nos assumir esse elemento mítico-imagético-narratológico no interior do pensamento mais rigoroso.
    Com essa imagem em mãos, Freud apresenta a chave de leitura de toda a história da cultura: "Todas as religiões posteriores são vistas como tentativas de solucionar o mesmo problema. [...] todas têm o mesmo fim em vista e constituem reações ao mesmo grande acontecimento com que a cultura começou e que, desde que ocorreu, não mais concedeu à humanidade um momento de descanso"³.
    Também as tentativas de organização social são fundamentalmente determinadas por aquele evento. Afinal, "um acontecimento como a eliminação do pai primevo pelo grupo de filhos deve inevitavelmente ter deixado traços inerradicáveis ['unvertilgbare Spuren'] na história da humanidade".
    Trata-se do inapagável por excelência, da fundação da cultura, por mais profunda na noite do tempo que ela se encontre. Freud reatualiza toda uma tradição hobbesiana que vê na política uma arte de controlar o outro pela violência, assim como introduz na ciência política, com energia, uma potente teoria do sacrifício, que vem sendo reatualizada nos últimos anos por autores como
    Giorgio Agamben e sua figura do "homo sacer" (figura essa que pode ser muito bem lida/construída a partir de "Totem e Tabu").
    Grosso modo, Freud nos apresenta dois modelos básicos de organização social: o despótico, vertical, da horda, que depois é reatualizado na família, e, por outro lado, o do clã fraterno, horizontal, criado pelos filhos. Mas a crise sacrificial habitaria o coração da sociedade.
    A religião de Deus surge em resposta à saudade do pai -sendo que a ambiguidade com relação a essa figura atravessa toda a história da espécie. A sequência sanguinolenta das gerações de deuses da Grécia Antiga recebe uma explicação a partir dessa imagem freudiana, bem como a história das religiões, tema desenvolvido mais tarde no artigo sobre Moisés.
    Já em 1913 Freud vê que, por exemplo, no cristianismo "uma religião filial substituía a religião paterna"4.
    Retomar hoje esse texto de Freud (que ele considerava, ao lado de "A Interpretação dos Sonhos", sua melhor obra) permite não só frequentar um dos maiores e mais inteligentes ensaios do século 20 mas também repensar o local da violência e do dispositivo sacrificial hoje.
    O início do século passado, com as novas tecnologias industriais, políticas e de guerra, já indicava a Freud o futuro destruidor que esses tempos teriam. A dialética do progresso e da razão instrumental iluminista é posta a nu por ele em ensaios como "Totem e Tabu". Cabe a nós, no centenário dessa obra, restituir-lhe também o local que merece em nosso pensamento crítico.

    Mauricio Stycer

    folha de são paulo
    Humor feminino
    Tina Fey não vê diferença entre homens e mulheres, mas admite que, às vezes, um não entende a piada do outro
    A comediante Tina Fey recorda que, no primeiro programa em que trabalhou como roteirista do "Saturday Night Live", em setembro de 1997, o ator Sylvester Stallone seria o convidado especial.
    Ela conta que houve uma dúvida no momento de escalar um dos integrantes da turma do "SNL" para imitar Adrian, a mulher de Rocky, vivida por Talia Shire nos filmes da série. A humorista Cheri Oteri queria o papel, mas "alguém achou que seria mais engraçado colocar o comediante Chris Kattan de vestido".
    "Eu me lembro de achar que aquilo era ridículo", escreve Tina Fey. "Na época em que fui embora, nove anos mais tarde, isso nunca teria acontecido. Ninguém teria imaginado nem por um segundo que um cara de vestido seria mais engraçado que uma mulher."
    A história está relatada no livro "A Poderosa Chefona" (Best Seller, 272 págs., R$ 35), no qual Tina descreve, com bom humor, a sua infância e a sua trajetória profissional.
    A questão de gênero perpassa todo o livro, ainda que Tina evite uma abordagem feminista.
    Ao lembrar que Jerry Lewis disse não gostar de nenhuma mulher comediante, ela sugere: "Quando der de cara com a discriminação sexual [...], pergunte a você mesma: Essa pessoa está entre mim e o que quero fazer?'. Se a resposta for não', ignore e siga em frente".
    Tina, como se sabe, entrou para a história como a primeira mulher a chefiar a equipe de roteiristas do "SNL", um dos mais tradicionais e importantes programas de humor da TV americana. Na sequência, foi convidada pela rede NBC para desenvolver uma série própria, o que resultou na premiada comédia "30 Rock", com Alec Baldwin, exibida entre 2006 e 2013.
    Em 2008, Tina voltou ao "SNL" para uma participação especial que a tornou mundialmente famosa. Por seis semanas, imitou Sarah Palin, então candidata a vice-presidente dos Estados Unidos, na chapa do republicano John McCain. Explorando o despreparo e a caipirice da política, a paródia teve um efeito devastador na campanha.
    A certa altura, Tina teve a oportunidade de conhecer Palin, que se ofereceu para contracenar com ela no programa. Diante das críticas que ouviu, ela observa: "Eu não sou cruel e a Sra. Palin não é frágil. Insinuar o contrário é um desserviço a nós duas".
    Em outra passagem do livro, Tina diz que sempre perguntam a ela qual é a diferença entre comediantes masculinos e femininos. A sua reposta é evasiva, mas ela admite que, muitas vezes, os homens não fazem ideia do que as mulheres estão falando e vice-versa.
    Sempre rindo, ela dá "dicas práticas sobre como se dar bem num ambiente dominado por homens". A saber: "Não use rabo de cavalo nem tomara que caia. Chore moderadamente. Ao escolher parceiros sexuais, lembre-se: o talento não é sexualmente transmissível. Mais uma coisa: não coma nada diet em reuniões".
    Capa de inúmeras revistas ao longo de sua carreira, ela diz: "Deveria ser completamente obrigatório as revistas darem crédito à pessoa que fez o Photoshop, assim como fazem com a maquiadora e o cabeleireiro". Como todo bom humorista, homem ou mulher, Tina Fey sabe rir de si mesma.
    mauriciostycer@uol.com.br
    @mauriciostycer

      Ferreira Gullar

      folha de são paulo
      Alquimia na quitanda
      A realidade é impermeável, enquanto a outra, feita de palavras, amolda-se a nossa insatisfação com o real
      Pode ser que, no final das contas, isso que vou dizer aqui não interesse a ninguém, mas é que, numa crônica em que falava das poucas coisas que lembro, esqueci de mencionar uma das que mais me lembro: as bananas que, às vezes, ficavam sem vender e apodreciam na quitanda de meu pai.
      Aliás, se bem me lembro, não era na quitanda dele e, sim, na de uma mulata gorda e simpática que, na rua de trás, vendia frutas: bananas, goiabas, tamarindo, atas, bagos de jaca e manga-rosa. Mas o que é verdade ou não, neste caso, pouco importa, porque o que vale é o momento lembrado (ou inventado) em que as bananas apodrecem. E mais que as bananas, o que importava mesmo era seu apodrecer, talvez porque o que conta, de fato, é que ele se torna poesia.
      Essas bananas me vieram à lembrança quando escrevi o "Poema Sujo". Jamais havia pensado nelas ao longo daqueles últimos 30 anos. Mas, de repente, ao falar da quitanda de meu pai, me vieram à lembrança as bananas que, certo dia, vi dentro de um cesto, sobre o qual voejavam moscas varejeiras, zunindo.
      Haverá coisa mais banal que bananas apodrecendo dentro de um cesto, certa tarde, na rua das Hortas, em São Luís do Maranhão? Pois é, não obstante entrei naquele barato e vi aquelas frutas enegrecidas pelo apodrecer, um fato fulgurante, quase cósmico, se se compara o chorume que pingava das frutas podres ao processo geral que muda as coisas, que faz da vida morte e vice-versa.
      E essas bananas outras --não as da quitanda, mas as do poema-- inseriram-se em mim, integraram-se em minha memória, em minha carne, de tal modo que são agora parte do que sou.
      Agora, se tivesse de dizer quem sou eu, diria que uma parte de mim são agora essas bananas que, no podre dourado da fantasia, me iluminaram, naquela tarde em Buenos Aires, inesperadamente, tornando-me dourados os olhos, as mãos, a pele de meu braço.
      Entenderam agora por que costumo dizer que a arte não revela a realidade e, sim, a inventa? Pois é, as bananas de dona Margarida, apodrecendo num cesto, numa quitanda em São Luís --e que ela depois, se não as vendesse, as jogaria no lixo--, ganharam outra dimensão, outro significado nas palavras do poema e na existência do seu autor. Porque a banana real é pouca, já que a gente a torna mais rica de significados e beleza.
      Veja bem, não é que a banana real não tenha ela mesma seu mistério, sua insondável significação. Tem, mas, embora tendo, não nos basta, porque nós, seres humanos, queremos sempre mais. Ou seria esse um modo de escapar da realidade inexplicável?
      Se pensamos bem, a banana inventada pertence ao mundo humano, é mais nós do que a banana real. E não só isso: a realidade mesma é impermeável, enquanto a outra, feita de palavras, amolda-se a nossa irreparável insatisfação com o real.
      Depois que as bananas podres surgiram no "Poema Sujo", numa situação de fato inventada por mim, e mais verdadeira que a verdadeira, incorporaram-se à memória do vivido, de modo que, mais tarde, elas voltaram, não como invenção poética, mas como parte da vida efetivamente vivida por mim.
      Sim, porque criar um poema é viver e viver mais intensamente que no correr dos dias. Por isso, como se tornaram vida vivida, me fizeram escrever outros poemas, já que a memória inventada se junta à experiência real, quando novos momentos também se tornarão memória. Até esgotarem-se, e se esgotam.
      Do mesmo modo que não sei explicar como a lembrança das bananas apodrecidas na rua das Hortas voltou inesperadamente naquela dia em Buenos Aires, nem por que, depois de cinco reincidências, a lembrança das bananas cessou, apagou-se, nenhum poema mais nasceu daquela experiência banal, vivida por um menino de uns dez anos de idade sob o calor do versão maranhense.
      Foi o que pensei, mas o assunto não morrera. Ao ver uma folha de jornal suja de tinta, onde limpava os pincéis, pareceu-me ser a mesma cor das bananas podres. Recortei o papel em forma de bananas e fiz uma colagem. Logo me veio a ideia de fazer outras para ilustrar os poemas sobre elas. E disso resultou um livro de colagens, com os poemas que preferi escrever a mão.

      Antonio Prata

      folha de são paulo
      Três soluções para São Paulo
      O plano não só cura uma das maiores chagas paulistanas, o trânsito, como move a economia
      Eis que, aos 44 minutos do segundo semestre, Deus já olhando o relógio para apitar o fim da duomilésima décima terceira volta da Terra em torno do Sol, o pessoal começa a pensar em suas resoluções de ano novo: largar o cigarro, entrar num pilates, sair do Twitter, ler "Em Busca do Tempo Perdido", e por aí vai --ou não vai, dependendo da força de vontade de cada um. Eu também tenho uma lista, mas, apesar de estorvá-los tantas vezes com picuinhas da minha irrisória existência, desta vez resolvi ser menos egocêntrico, alargando a circunferência do meu umbigo até atingir o diâmetro do Rodoanel: compartilho aqui, nesta coluna cidadã, algumas ideias que me ocorreram nos últimos 12 meses para transformar São Paulo numa cidade mais humana. Lá vai.
      Cauterização - Em julho, fui a Chicago. Sem dúvida, a metrópole mais agradável que já conheci. Os arranha-céus ficam todos no centro, moderno e imponente; ao norte e ao sul, bairros residenciais, com casas, prédios baixos e ruas arborizadas. Como a cidade beira o lago Michigan, há em toda a sua extensão uma espécie de aterro do Flamengo, comprido como o Chile. No verão, crianças patinam pela ciclovia, aposentados deitam-se na grama: nas praias lacustres, mulheres fazem topless; por uns momentos, o brasileiro se esquece da vida e acha que o mundo é um lugar justo e bom.
      Qual o segredo de Chicago? O segredo, amigo, é que a cidade pegou fogo em 1871: eles tiveram que reconstruir tudinho, do zero. Minha proposta é simples: a gente vai pra serra da Cantareira, leva um piquenique, uns binóculos e incendeia SP. Quando o fogo acabar, voltamos pra reerguer --ORGANIZADAMENTE.
      Elevados - Talvez o leitor ache a solução anterior um tanto radical. Ok. Aqui vai meu segundo plano para SP, mais comedido. Espera-se um desses congestionamentos monstro, de 300 km. Quando estiver aquele murundu, abandonamos os carros: desliga-mos os motores, tiramos as fitinhas do Bonfim dos retrovisores e vamos andando pra casa. Aí, basta aterrar a teia metálica e começar de novo, dois metros acima, planejando faixas de ônibus, ciclovias, bondes, riquixás, o que quisermos. A solução não só elimina uma das maiores chagas paulistanas (o trânsito) como gera empregos e dinheiro: aterrar inteiramente a nossa malha urbana e produzir novos veículos fará as duas pernas mancas da economia correrem como as de um Forrest Gump.
      Simbora, macacada - A terceira solução não é bem uma solução, mas uma desistência. Quem disse que a gente precisa morar aqui? Vamos comprar um bom pedaço de terra, sei lá, em Mato Grosso, e construir uma cidade nova, do jeito que quisermos. Podemos chamar aqueles arquitetos suíços do Ninho de Pássaro, o Paulo Mendes da Rocha ou qualquer um dos excelentes escritórios brasileiros. Quando a Nova São Paulo estiver pronta, a gente se muda. (Vai rolar um pouco de trânsito na saída, mas será o último.) A cidade antiga a gente demole, aterra e dá pros mato-grossenses, em troca do nosso terreno. De Perus a Marsilac, do Itaim Paulista ao Capão, só se verá soja. Sugiro deixarmos de pé apenas o Borba Gato, como um espantalho, uma lembrança do horror e um aviso para que a história não se repita.
      Feliz 2014 a todos. Nos vemos domingo que vem --na Marginal.

        Suzana Singer [folha ombudsman]

        folha de são paulo
        Uma boa-nova
        O dossiê sobre Belo Monte, inspirado no "NYT", tenta criar um formato jornalístico de qualidade para a internet
        O produto multimídia "Tudo sobre Belo Monte" (www.folha.com/belomonte), espécie de presente de Natal para os leitores da Folha, impressiona porque fazia muito tempo que não se via tamanho investimento em reportagem. Foram dez meses de preparo, 19 profissionais envolvidos e várias viagens à Amazônia.
        O conteúdo foi apresentado em textos, (lindas) fotos, vídeos, infográficos animados e até em um game. O objetivo era mostrar o andamento da obra da mega-hidrelétrica, a terceira maior do mundo, e discutir seu impacto numa região vital para o país.
        A iniciativa lembra os projetos multimídia do "New York Times". O primeiro deles, chamado "Snow Fall", descrevia uma avalanche numa estação de esqui em Washington que matou três pessoas (http://www.nytimes.com/projects/2012/snow-fall). Com infográficos impressionantes, depoimentos em vídeos e texto quase literário, ganhou um Prêmio Pulitzer neste ano e obteve 3,5 milhões de visualizações.
        É uma aposta inovadora: em vez da mera transposição do impresso ou da linguagem de televisão para o on-line, busca-se um formato jornalístico próprio da internet que subverta a máxima de que só textos telegráficos fazem sentido na rede.
        Embora não tenha o mesmo padrão de excelência de seu modelo inspirador, o dossiê sobre Belo Monte teve a vantagem de abordar um assunto de relevância nacional. A polêmica sobre a construção da hidrelétrica está superada, mas acompanhar as obras é fundamental.
        Pena que a edição no impresso tenha sido desastrosa. A Folha picotou as reportagens, começou a publicá-las na véspera da "estreia" de fato e colocou o principal material num caderno que não comporta fotografias nem infográficos ("Ilustríssima", 15/12).
        Além disso, em vez de resumir o que havia de mais importante, o impresso trouxe apenas um capítulo do dossiê, suprimindo as partes sobre "ambiente", "sociedade" e "povos indígenas", o que passou a impressão de que o jornal deu pouca importância aos problemas decorrentes do empreendimento.
        Faltou também uma narrativa um pouco mais envolvente, que pudesse atrair o leitor desinteressado das questões ambientais. Ninguém duvida da importância da Amazônia, mas a floresta fica longe, a conversa dos ambientalistas mais exaltados costuma ser chata, as imagens dos ribeirinhos são sempre iguais...
        A pauta sobre Belo Monte foi importante para tentar reverter esse quadro de apatia. Um levantamento de textos sobre desmatamento publicados entre 2007 e 2012 em jornais e revistas, feito pela ONG Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância), mostrou que apenas 11% das pautas nasceram de iniciativas das Redações (não eram reportagens sobre ações do governo) e só 1% caberia na definição de jornalismo investigativo.
        "Tudo sobre Belo Monte" conseguiu apresentar a usina sem um viés a favor ou contra, o que é um grande feito num tema tão controverso. Faltou, talvez, jogar a discussão um pouco para a frente, mostrando, por exemplo, se hidrelétricas na Amazônia são uma boa alternativa para o crescimento energético do país.
        A meta da Folha é publicar quatro dossiês digitais como o de Belo Monte em 2014. Em um momento em que as Redações estão mais enxutas e sobrecarregadas (precisam alimentar o impresso e o on-line), a decisão de mobilizar recursos para a produção de reportagens de fôlego é, sem dúvida, uma boa-nova.
        MACUMBA E A VIRGEM MARIA
        Em menos de uma semana, a Folha conseguiu desagradar a dois grupos religiosos. No último dia 20, o título "Não multa que é macumba" chamava para uma reportagem que informava que oferendas religiosas em locais públicos não serão enquadradas no Programa Lixo Zero, criado neste ano pela Prefeitura do Rio. O termo "macumba", de conotação pejorativa, deve ser evitado, como recomenda o "Manual da Redação".
        Na quarta-feira passada, judeus reclamaram, com razão, da reportagem "Um muro no caminho de Maria", que elencou os percalços que a Virgem teria que enfrentar se fizesse hoje o trajeto entre Nazaré e Belém. O texto trazia várias críticas a Israel, inclusive o depoimento de um padre que acusou o Estado de querer transformar o Santo Sepulcro numa discoteca, sem nenhum outro lado.
        SUZANA SINGER ombudsman@uol.com.br @folha_ombudsmanfacebook.com/folha.ombudsman

          Janio de Freitas

          folha de são paulo
          Bestialidade à vontade
          Quatorze decapitados, entre 59 assassinados desde janeiro. O que explica tamanha ferocidade?
          Quatorze decapitados, entre 59 assassinados de janeiro às vésperas do Natal. Primeiro, o que explica tamanha ferocidade? Além disso, o que fez com que tais crimes e números pudessem se acumular, com o decorrer do ano, sem alarmar o meio político, social e cultural que os circundaram, ainda hoje não alarmados? Por fim, a localização e a situação onde tamanhas monstruosidades podem ocorrer serão mesmo um país, um regime constitucional democrático, um Estado de Direito?
          O horror é ainda mais extenso, sem parecer que pudesse sê-lo. Mulheres e irmãs em visita a presos são obrigadas a deixar-se estuprar, para que seus parentes não sejam assassinados naquele "complexo prisional" de Pedrinhas, São Luís, Maranhão.
          A bestialidade como forma de vida em Pedrinhas não se torna conhecida, afinal, porque o sistema administrativo que a mantém -- governo e varas de execuções penais -- decidisse combatê-la. Foi, sim, por força do inesperado. Uma rebelião causou mais quatro mortes, com três decapitações, e representantes do Conselho Nacional de Justiça e do Ministério Público foram verificar o que houvera. Contra a submissão imposta nas cadeias, e a todo risco, detentos tiveram a hombridade de defender suas mulheres e denunciar as violências sexuais.
          Pensava-se ter noção da desumanidade que o nosso pretenso Estado Democrático de Direito e seus Direitos Humanos mantêm nos cárceres do Brasil todo. A decapitação como método e a violação de familiares levam a perguntar menos sobre o sistema carcerário do que sobre quem está fora e acima dele. Nos governos, no Ministério Público e, sobretudo, no Judiciário.
          CAUSA PRÓPRIA
          Enquanto os honrados do PSDB bloqueiam as investigações de seus feitos contra os cofres públicos de São Paulo, o líder de sua bancada na Câmara, deputado Carlos Sampaio, se ocupa com incriminações também do governo ou do PT. Sua ideia mais recente é uma ação contra Dilma Rousseff, na Justiça Eleitoral, por mandar cartões de Boas Festas aos funcionários. Sampaio, promotor de origem, considera que os cartões são abuso de poder, com finalidade eleitoral.
          Então Dilma faz campanha desde o primeiro ano de governo. E Carlos Sampaio, para ser coerente, terá de processar muitos ministros, governadores e secretários de governo, inclusive do PSDB. Mas tem alternativa a esse trabalhão: é ser um pouco mais sério e menos ridículo, já que está pensando na sua própria reeleição.
          VIAS DE ROUBO
          Os estragos feitos pelas enchentes nas estradas expõem, e as fotos e vídeos mostram, um elemento comum tão importante quanto desprezado: o asfaltamento finíssimo das pistas, diretamente sobre terra instável, contra a necessária técnica de camadas preliminares de sustentação. Daí a curta duração dos asfaltamentos e a péssima qualidade das estradas, com a buraqueira causadora de tantos danos e desastres.
          Mas, para as empreiteiras, um modo de aumentar ainda mais os lucros, com a realização apenas parcial do serviço necessário e a repetição dele em futuro muito mais próximo.
          Estradas são vias de roubo em muitos sentidos.