terça-feira, 4 de março de 2014

Rosely Sayão

folha de são paulo
Shoppings e famílias
Crianças se encantam com vitrines, querem comprar coisas e, quando os pais dizem não, fazem birras
Conheço muitas mães que, num feriado como o de hoje ou num domingo qualquer, adoram levar os filhos ao shopping. Eu não sei se são elas que gostam do passeio ou se elas acham que os filhos gostam mesmo desse tipo programa. De qualquer maneira, encontrar mães ou casais no shopping acompanhados de crianças de qualquer idade é rotina nos dias atuais.
E o que pode acontecer com crianças no shopping? Tudo! Elas se encantam com as vitrines que as chamam, querem comprar muitas coisas e, quando os pais não compram, fazem birras, por exemplo.
Ah! As birras das crianças no shopping chamam a atenção de todos. Aliás, é por isso mesmo que elas fazem. Alguns pais ficam constrangidos, outros reagem como podem e conseguem naquela hora, outros conseguem domar a birra do filho com doçura e firmeza e outros, ainda, perdem a paciência rapidamente.
Os que testemunham as birras também reagem de diferentes maneiras. Há os olhares reprovadores, há quem tente ajudar --esses são raros-- e há também quem teça comentários críticos a uma altura que permita que os pais da criança consigam ouvir, é claro.
Perder-se dos pais também é algo comum de acontecer no shopping, principalmente se a criança tem menos de seis anos. É que ela fica tão seduzida por tantas coisas para ver, com tantos estímulos luminosos e visuais, que se encaminha a eles na certeza de que seus pais a seguirão. De repente, ela se dá conta de que está sozinha, e lá vem o berreiro de puro medo.
Nesses casos, não sei quem se perde de quem. Nessa idade, por que os pais deixam o filho solto nos corredores do shopping? Por que o perdem de vista? Até parece que não conhecemos mais as crianças, não é verdade?
Não nos lembramos de que elas não têm responsabilidade --e nem podem ter ainda--, de que não sabem se cuidar sozinhas e tampouco de que não conseguem resistir às inúmeras tentações que o shopping lhes apresenta.
Também nos esquecemos de que não adianta assustar a criança para que ela aprenda a estar sempre perto dos pais nesses locais amplos e movimentados. Eu já vi pais deixarem o filho pequeno achar que estava perdido no shopping só para tentar dar a ele uma lição. Qual mesmo?
Apesar de tantos percalços, dá para entender os motivos que levam os pais a gostarem desse passeio com o filho. Primeiramente, porque as cidades oferecem poucos lugares públicos para que crianças e suas famílias possam desfrutar. Eles existem, claro, e procurando bem dá para encontrá-los. Até pela internet, com direito à informação de programas pagos ou gratuitos.
Mas há outro motivo muito importante também que motiva os pais a fazerem esse programa com os filhos: o fato de vivermos em sociedades que priorizam o consumo acima de quase tudo.
A boa notícia é de que dá para resistir a isso. Cresce o número de mães e de pais que não consideram o shopping um lugar adequado para crianças. E eles não deixam de ter boas razões para isso. Afinal, há programas bem melhores para as crianças. Brincar sem nenhum apelo ao consumo, por exemplo, com tranquilidade, e em locais bem mais apropriados. Pode ser em casa.
Por que temos de, necessariamente, fazer programas com as crianças? Só porque consumimos a ideia de que elas precisam --precisam!-- disso. E, caro leitor, vou contar um segredo a você: elas não precisam.

Não foi brincadeira [minha história] - Johanna Nublat

folha de são paulo
MINHA HISTÓRIA
Não foi brincadeira
Levado por engano em van escolar roubada em Brasília, menino de 11 anosconta como se escondeu e conseguiu fugir dos bandidos
RESUMO João (nome fictício), 11, estava numa van escolar quando dois criminosos anunciaram o roubo do veículo. O garoto se escondeu no fundo da perua com outra criança, e, por meia hora, os dois circularam com os criminosos por uma cidade-satélite de Brasília até conseguirem escapar da van. O menino, surpreendentemente articulado para uma criança de sua idade, contou ontem os detalhes da fuga espetacular.
(...) Depoimento a
JOHANNA NUBLATDE BRASÍLIAEu saí do colégio [anteontem], era um dia comum, [a van escolar] tinha deixado grande parte dos alunos.
Quando a van parou numa esquina, dois bandidos chegaram e mandaram o motorista descer. Nessa hora, a gente entendeu que tinha alguma coisa diferente.
A única reação que eu e a garota [também de 11 anos, que ficou na van roubada] tivemos foi a de nos abaixar no último banco para que os bandidos não nos vissem. Pensamos que, quando eles dessem bobeira, a gente poderia sair.
Só um estava armado. Eles continuaram dirigindo, rápido, falavam bastante palavrão e brigavam. Um perguntava se tinha alguém atrás e o outro respondia que não.
Ficamos com muito medo, principalmente na hora que um deles deixou a arma cair. Eu estava agachado. Ele pegou e balançou a arma.
Em alta velocidade, entrando na contramão, ele pegou a BR e virou num balão que dava num núcleo rural.
Quando eles abordaram a van, joguei meu celular embaixo do banco, porque pensei que era um assalto --que eles pegariam as coisas e iriam embora. Só que eles pegaram a van, e vi que foi uma besteira ter jogado meu celular lá embaixo.
Quando chegaram numa área escura, eles pararam e desceram. Eu fui atrás do meu celular para poder falar com a minha mãe ou com a polícia. Meu celular estava ligado, com som e a luz [da tela] no máximo.
Quando peguei o celular e estava voltando para o banco de trás, consegui colocar no silencioso e diminuir a luz da tela. Então um dos ladrões voltou e vasculhou uns folhetos.
Quando ele saiu de novo, consegui ligar para minha mãe e falar que a van tinha sido roubada com a gente dentro em Sobradinho dos Melos [a cerca de 20 km da Esplanada]. Eu já sabia mais ou menos me orientar por lá.
Minha mãe falou: "Fica dentro da van e deixa na ligação". Mas, no nervosismo, ela desligou o telefone.
Minha colega estava nervosa e chorava às vezes. Eu falei :"Vamos sair daqui". A gente não sabia onde os ladrões estavam, mas era melhor a gente sair do que ficar lá dentro e eles voltarem.
Fomos subindo em direção à BR. Tinha uma pista de terra e muito mato, sem luz. Carros passavam em alta velocidade. A gente chegou no meio do caminho e ela pediu para voltar e pegar a mochila.
Eu disse: "Não, esquece da mochila, agora a gente tem que se salvar". Minha mãe sempre me falou: "Esquece tudo, vai embora e cuida da sua vida. Bens materiais você pode deixar para trás, só preserve a vida".
Eu estava procurando um modo de escapar dali. A gente pediu ajuda para motoristas, e ninguém parava.
Um cara parou e perguntou o que faziam duas crianças sozinhas, caminhando na escuridão. E ele nos levou para a delegacia.
Minha mãe ligou para o coronel do batalhão do Paranoá, e ele me ligou. Eu já estava fora da van.
Na delegacia, o policial me chamou para vasculhar o local e encontrar a van. Quando a gente chegou, ela não estava mais lá. A gente teve que rodar a área rural inteira. Até que a gente conseguiu achar a van, em um desmanche, do lado de uma escola e de uma igreja.

    Sons graves e fortes da bateria põem o cérebro quase que em transe - Suzana Herculano-Houzel

    folha de são paulo
    Batuque de Carnaval
    Sob o estímulo de sons graves e fortes, o cérebro recebe o sinal de que você está se movendo no ritmo da música
    EU SOU DAQUELAS que se escondem no Carnaval e lamentam a perda da liberdade de ir e vir enquanto foliões bloqueiam as ruas, latinhas de cerveja em punho. Mas tem uma coisa do Carnaval que eu adoro: a bateria das escolas de samba.
    A sensação que se tem da arquibancada bem em frente ao recuo da bateria, que é onde eu estava no domingo, é de que é impossível ficar parado. Em vez de ser considerado apenas ensurdecedor, o som grave e intenso coloca o cérebro quase que em transe. Curiosamente, esse prazer do Carnaval é devido não à audição, mas a seu vizinho de ouvido, tão desprezado: o equilíbrio.
    O que nos mantém em pé é a habilidade de monitorar a posição da cabeça, graças a sensores vestibulares de movimento situados no labirinto, na mesma caixa óssea nos seus ouvidos que contém a cóclea auditiva. Além de vizinhos, os sensores de som e de posição respondem ao mesmo estímulo: a deformação mecânica de pequenos "cabelinhos" nas células receptoras.
    Normalmente, as intensidades de som que movimentam os "cabelinhos" dos receptores auditivos não fazem nem cócegas nos receptores vestibulares, que têm outra faixa de sensibilidade. Por isso, no dia-a-dia, quem cuida de sons é a apenas a cóclea, e portanto a audição.
    Mas tudo muda na frente de uma bateria de escola de samba (ou orquestra, baile funk ou sua rave favorita). Como mostrou Neil Todd, pesquisador da Universidade de Manchester, no Reino Unido, sons graves (abaixo de 200 Hz) e fortes o suficiente (acima de 90 dB, comparáveis a uma furadeira ou caminhão na estrada), como a levada dos surdos e caixas, conseguem estimular ambos os tipos de receptores, auditivos e vestibulares. Resultado: o cérebro recebe o sinal de que você está se movendo no ritmo da música. Daí a começar a se mover de fato no ritmo da música, incorporando a atividade vestibular, é um pulinho. A bateria de fato sacode seu corpo.
    E ainda é prazerosa --ao menos para quem gosta de estimulação vestibular, como balanços e montanhas-russas. Até 90 dB, sons graves mais fortes são apenas cada vez mais irritantes --mas, assim que começam a estimular o sentido vestibular, voltam a ser prazerosos (enquanto os agudos só ficam mais desagradáveis). Por isso não dá para ouvir baticum baixinho. Ou é alto, ou não tem efeito.

      #100diaspraCopa - Ronaldo Nazário

      folha de são paulo
      RONALDO NAZÁRIO
      #100diaspraCopa
      Não colocar em perspectiva os investimentos da Copa é uma bola fora. Deixar de viver a maior festa do futebol na nossa casa também
      Faltando exatos #100diaspraCopa, várias perguntas vêm à mente dos brasileiros. Quem será nosso camisa 9? O craque será Neymar, Messi ou Cristiano Ronaldo? O atacante Klose, da seleção da Alemanha, vai bater o meu recorde de gols? Estaremos prontos? Qual é o legado da Copa? O dinheiro público investido deveria ir para outro lugar?
      Jamais uma Copa do Mundo causou tanta expectativa. São muitas perguntas, mas gostaria mesmo de falar de uma certeza que tenho.
      A Copa do Mundo precisa de investimentos e muito trabalho, mas rende frutos para o país e para a população, representando uma chance única de ter os olhos do mundo voltados para o Brasil por 32 dias.
      Vamos imaginar que o país seja uma família e a sua renda mensal o Orçamento da União em 2014. Essa família tem uma renda mensal de R$ 2.480. Desse orçamento, R$ 188 vão para a saúde e educação dos filhos. Essa mesma família, nos últimos sete anos, sem qualquer prejuízo ao orçamento mensal, tirou R$ 3,90 da "poupança" e investiu num negócio, que vai gerar empregos e pagar impostos.
      O "novo negócio" são os estádios da Copa. Segundo a matriz de responsabilidades publicada pelo Ministério do Esporte, R$ 3,9 bilhões do investimento total das arenas serão financiados pelo BNDES, sem qualquer relação com o Orçamento da União destinado à saúde e educação, que de acordo com dados oficiais só aumentou desde a escolha do Brasil como sede da Copa.
      Valor semelhante está sendo investido diretamente nos estádios pelos governos locais, que viram na Copa uma oportunidade única de tirar do papel projetos de mobilidade urbana e infraestrutura, ganhar projeção internacional e lucrar com os R$ 25 bilhões que a Embratur estima que os turistas gastarão. E --por que não?-- ter arenas multiuso que ofereçam a qualidade que nossos torcedores merecem.
      Na semana passada, ao mesmo tempo em que se discutia em Porto Alegre o investimento de R$ 40 milhões em estruturas complementares necessárias para transformar o "gigante da Beira-Rio", do Internacional-RS, num estádio de Copa, um estudo do governo do Rio Grande do Sul mostrava que o evento deve significar um aumento de R$ 500 milhões no PIB gaúcho. Acho injusto que os investimentos feitos para a Copa não sejam colocados lado a lado dos números do retorno que o evento trará ao nosso país e às 12 sedes. Fora valores incalculáveis como o retorno de mídia espontânea gerado por um evento assistido por metade da população mundial.
      A Copa se faz com estádios, sim. E sem escolas e hospitais, não se faz um país. Essas duas afirmações são complementares, não excludentes. Saúde e educação são áreas prioritárias: basta comparar os R$ 758 bilhões investidos nelas desde 2007, quando o Brasil comemorou a sua escolha como país-sede, com o investimento total de R$ 8 bilhões nos estádios. E é assim que deve ser.
      Sim, vai ter Copa. Eu acredito no Brasil, dentro e fora de campo. Somos pentacampeões, mas também nos destacamos em biocombustíveis, exploração de petróleo, produção de aviões e temos uma agroindústria que alimenta boa parte do planeta. Realizamos com sucesso a ECO-92, a Rio+20 e a Copa das Confederações. Temos inúmeras celebrações regionais, uma das maiores festas de Réveillon do mundo e o Carnaval. Não tenho dúvidas de que temos competência para sediar uma grande Copa do Mundo.
      O Brasil vem avançando muito, social e economicamente, e corrigindo desigualdades nos últimos anos. Precisamos continuar buscando um país melhor. Essa final se joga de dois em dois anos, e em outubro, não em julho. Não colocar os investimentos que a Copa está trazendo e acelerando em perspectiva é uma tremenda bola fora. Para mim, deixar de viver a maior festa do futebol na nossa casa também.

      Mais médicos, menos falácias - Rogerio Cezar de Cerqueira Leite

      folha de são paulo
      ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
      Mais médicos, menos falácias
      Um contrato como o que Cuba assinou com o Brasil serve para garantir a sobrevivência de centenas de milhares de indivíduos daquele país
      O eminente jurista Ives Gandra acusa Cuba e o Brasil de serem responsáveis pela condição que classifica como de escravatura do contrato que rege o programa do governo federal Mais Médicos ("O neoescravagismo cubano", 17/2).
      Sua argumentação exclusivamente burocrática ignora as condições em que Cuba se encontra. Para entendermos a realidade daquele país, comecemos por uma analogia.
      Quando um país é ameaçado, o seu governo atribui a um grupo de cidadãos, voluntária ou compulsoriamente, a missão de defendê-lo. Essa é uma prática universal.
      Com frequência, os salários desses soldados são insignificantes. Não obstante, se qualquer um se recusar a servir seu país, será considerado um criminoso.
      Há mais de 50 anos, os Estados Unidos impuseram drásticas sanções econômicas contra Cuba, resultando na extrema pobreza daquele povo. Sua principal fonte de renda de então, a indústria de açúcar, perdeu competitividade e hoje está em frangalhos.
      Para sobreviver e assegurar insumos vitais, tais como remédios, certos alimentos, combustíveis etc., conta Cuba quase que exclusivamente com a exportação de tabaco (charutos), rum e, intermitentemente, dos serviços prestados pelos seus médicos no exterior.
      Podemos imaginar o quanto de renúncia do povo de um país pobre como Cuba significa custear a formação desses médicos.
      Um contrato como esse que Cuba assinou com o Brasil não serve apenas para reduzir a miséria das famílias dos participantes do programa Mais Médicos, mas antes de tudo serve para garantir a sobrevivência de centenas de milhares de indivíduos daquele país.
      Pergunto àqueles que argumentarem que os recursos provenientes do programa Mais Médicos vão para o bolso dos "opressores", baseados exclusivamente em hipóteses, sem evidências concretas, se sua atitude não poderia ser enquadrada naquilo que os juristas chamam de difamação.
      Se meia dúzia de médicos cubanos oportunistas se valeu desse subterfúgio para se refastelar nas praias da rica Miami, às custas de um programa ignóbil da potência americana, não deveríamos enaltecê-la, mas deplorá-la, pois apenas 1 em 1.000 traiu o seu compromisso com o Brasil e com o seu povo.
      Quantos na sua própria família e em seu país vão sofrer por causa da fuga de cada inadimplente?
      Apoiar esses poucos infensos não é apenas uma falta de percepção da questão social envolvida, mas é, antes de tudo, falta de humanidade.
      Reduzir a questão do Mais Médicos a uma infringência burocrática ou, pior ainda, a um conflito partidário ou ideológico --o que certamente não é o caso do jurista-- é uma indignidade.

      Vladimir Safatle

      folha de são paulo
      Destruir o cinema
      "Quando vejo um filme, interesso-me pelo jogo de sentimentos mais do que pelos personagens. Imagino que podemos chegar a um cinema sem personagens psicologicamente definidos, no qual o jogo dos sentimentos circularia. Como em uma pintura contemporânea, o jogo das formas chega a ser mais forte do que a história". Foi assim que o diretor francês Alain Resnais, morto no último domingo, fez do cinema uma arte que não temia sua própria destruição.
      Em 1959, Resnais apareceu com seu primeiro longa-metragem, "Hiroshima Mon Amour" ("Hiroshima, Meu Amor"). Em 1961, saia esta que é uma das maiores obras-primas do cinema, "L'Année Dernière à Marienbad" ("O Ano Passado em Marienbad"), com seu roteiro escrito por Alain Robbe-Grillet e fotografia dirigida por Sacha Vitry.
      Com ela, Resnais produziu, no cinema, a forma do que a França procurava pensar por meio do setor mais avançado de sua literatura na época (o "nouveau roman", de Grillet, Marguerite Duras, Samuel Beckett e Natalie Sarraute), da psicanálise (Jacques Lacan) e da filosofia (não por acaso, é de Deleuze uma das mais belas páginas sobre Resnais).
      Resnais nos forneceu a imagem de um mundo no qual não éramos mais sujeitos, ao menos no sentido tradicional que demos a esse termo. Não nos encarnávamos mais em personagem portadores de narrativas cheias de conflitos psicológicos que pareciam todos descritos em um romance de Balzac. Não habitávamos mais o tempo linear de uma história, mas o tempo simultâneo, no qual passado, presente e futuro entravam continuamente em colapso. Um tempo no interior do qual não se progride, mas no qual se circula.
      Tempo no qual a circulação do jogo de afetos produz repetições que nos fazem repetir os mesmos gestos, falar as mesmas palavras para, apenas dessa forma, habitar vários instantes. Essa repetição, que incomoda mais de um espectador de Marienbad, é a procura de movimentos imperceptíveis que anunciariam uma outra percepção.
      Este mundo de outros tempos e movimentos, que se apresentava em um grande hotel, que podia também ser um sanatório ou um espaço termal de repouso, era um gesto de adeus às ideias que haviam se colado em nós, moldando nossa forma de ver e filmar. Ideias que produziram nosso cinema.
      O mundo desvelado por Resnais continuou a produzir obras-primas nos lugares mais improváveis. Não haveria a fúria antinarrativa de Peter Greenaway ou o tempo libidinal de David Lynch, só para ficar em dois cineastas mais recentes e conhecidos, sem a destruição produzida por Resnais.
      Sua condição de antecipador marcou para sempre a arte de nossa época.

      Carlos Heitor Cony

      folha de são paulo
      Rosas amarelas
      RIO DE JANEIRO - Cada cidade tem, mais ou menos, o Carnaval que merece. No Paraná, o Carnaval é alegre. Em Recife e Olinda, predominam a tradição, a festa burilada pelas troças, os maracatus.
      Mas meu assunto é o Rio: aqui nasci e vivo, aqui pretendo morrer. A pichação é livre: trata-se do pior Carnaval do mundo. Tirante a folia, que inundam as ruas e salões, o que sobrou foi tristeza e aflição de espírito.
      Acontece que me canso de ser humano e já estou enjoado de alegria, tanto a espontânea, sadia e varonil pela glória do Brasil --como é a alegria baiana, quanto a industrializada, careta e debochada que explode no Rio. No fundo, dão na mesma.
      Fui ao Jardim da Saudade, lá nos fins do Rio, onde o subúrbio acaba e começa o nada. Era aniversário da morte de minha mãe, e eu acordei pensando nela. Levei-lhe flores, "restos arrancados da terra", segundo o soneto machadiano, e me perdi pelas ruas do subúrbio que não mais conheço.
      E vi um Carnaval que ainda perdura ao longo dos trilhos da Central e da Leopoldina: blocos de sujos, crianças fantasiadas --uma perseguição em cima de mim-- o folião simples que vai de nada mesmo, mas veste uma alegria que parece estar acabando para sempre em vários lugares.
      O cemitério vazio --vazio de vivos, para ser exato. Eu era o solitário visitante que na manhã de Carnaval levou rosas amarelas para um pouco de terra marcada pela placa simples, de granito. Não pensei em nada, nem de rezar sou mais.
      Carnavalesco a meu modo, senti uma bruta alegria de saber que as rosas amarelas ali ficariam, vivendo o espaço da manhã de todas as rosas. E que lá fora, no dia e na vida que me esperavam, nada importava além da verdade de ter pisado o chão, a terra única onde nossos mortos nos esperam, sem pressa, sem apelos, mas com o amor provado pela eternidade do nada.

      Raul Juste Lores, Rodrigo Salem e André Barcinski

      folha de são paulo
      Não acabou em pizza
      A cerimônia foi chata e sem graça, mas o Oscar 2014 premiou talentoestrangeiro em ano de boa safra
      RAUL JUSTE LORESEM NOVA YORKPara filmar "Gravidade", Sandra Bullock recebeu de adiantamento US$ 20 milhões de cachê, o mesmo valor total do orçamento de "12 Anos de Escravidão".
      Apesar de ter custado uma pechincha para Hollywood, "12 Anos de Escravidão" não teria nem chegado às telas se Brad Pitt não tivesse topado virar produtor e, assim, facilitado o financiamento.
      O filme foi inteiramente rodado com uma só câmera em 35 dias. Nos EUA, arrecadou modestos US$ 50 milhões. Só a participação nos lucros de "Gravidade" que vai para a Bullock vale mais que isso.
      Talvez o Oscar de melhor filme, o primeiro dado ao trabalho de um diretor negro, ainda faça "12 Anos de Escravidão" ter uma bilheteria melhorzinha nos mercados internacionais, de onde saem os maiores lucros de Hollywood ultimamente.
      Mas até o "New York Times" fez reportagem recente perguntando por que filmes feitos por negros e com negros têm bilheterias magras no exterior.
      Sem um bom retorno comercial, é difícil acreditar que os produtores de Hollywood comecem a colocar mais dinheiro em filmes que coloquem o negro americano no centro da tela.
      DIVERSIDADE ÉTNICA
      A Academia de Cinema ainda está distante de representar a diversidade étnica americana, apesar das bem-vindas mudanças.
      A nova presidente da entidade é mulher e negra, mas 94% dos membros da Academia são brancos, sendo que 76%, homens. Só 2% dos membros são negros, apesar de representarem 11% da população americana.
      Outros 2% deles têm origem hispânica (na população americana são 17%), o que demonstra o feito dos Oscar aos mexicanos Alfonso Cuarón e Emmanuel Lubezki pela direção e fotografia do longa "Gravidade", respectivamente.
      A facilidade de Hollywood em absorver talento estrangeiro foi chancelada.
      Uma australiana e uma queniana venceram os prêmios de interpretação feminina, os dois vencedores no masculino foram dirigidos por um canadense, "12 Anos" foi dirigido por um britânico que mora em Amsterdam e "Gravidade" por um mexicano radicado em Londres.
      A lésbica Ellen DeGeneres foi a anfitriã da cerimônia e o ator Jared Leto homenageou os gays ao receber o Oscar de melhor ator coadjuvante por sua atuação como o travesti de "Clube de Compras Dallas", mesmo com a inexistência de um único galã fora do armário em pleno 2014.
      E como Cate Blanchett bem falou ao receber seu prêmio por "Blue Jasmine", filmes protagonizados por mulheres "ainda são tratados como filmes de nicho".
      Mas nem tudo é mimimi. Depois de décadas de esquecimento, livro e filme "12 Anos de Escravidão" serão adotados nos currículos escolares americanos no próximo ano letivo. O Brasil da branca "Escrava Isaura" não está melhor na foto que Hollywood.
      E a safra 2013 foi mesmo boa, com grandes filmes pequenos ("Nebraska", "Philomena") e bons filmes-pipoca ("Trapaça", "Gravidade" e "O Lobo de Wall Street"). Ao contrário de outros anos, havia o que se premiar.

      Tapete vermelho tem clima de churrasco (de luxo) de domingo
      RODRIGO SALEMCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE LOS ANGELES

      Diante da miniarquibancada na frente do Dolby Theatre, onde aconteceu a premiação do Oscar, anteontem, Meryl Streep não se cansa de dar atenção a todos. Já Joseph Gordon Levitt é impassível.
      Na arquibancada, reservada para 15 pessoas, a Folha ficou entre o jornal britânico "The Guardian" e o portal americano "Huffington Post".
      De cima, via-se Bono, do U2, falando animadamente com Jared Leto, ganhador do Oscar e músico do 30 Seconds From Mars. Christian Bale, um dos últimos a chegar, ficou o tempo todo com o diretor David O. Russell. Clima de churrasco de luxo.
      Na sala de entrevistas, os vencedores falam, enquanto o show continua passando em 20 TVs --para escutar a cerimônia ali, só de fone de ouvido. É uma escolha: piadas de Ellen DeGeneres ou Matthew McConaughey discursando com a estatueta?
      O melhor? Não há mau humor por lá. Todos estão felizes. Um exemplo foi a queniana nascida no México Lupita Nyong'o. Quando perguntada se seu prêmio era um Oscar do México, disse, sorridente: "Esse Oscar é meu".

      OPINIÃO
      Ellen tentou vender festa 'espontânea'
      ANDRÉ BARCINSKIESPECIAL PARA A FOLHAA cada ano, a cerimônia de entrega do Oscar se torna mais enfadonha e previsível.
      Anteontem, a premiação de uma das melhores safras de filmes dos últimos tempos foi um evento televisivo tedioso, com discursos ensaiados, poucas surpresas e uma apresentadora --comediante Ellen DeGeneres-- sem graça e mais interessada em fazer merchandise de celulares do que em fazer rir.
      A única surpresa da noite foi a vitória de "A Um Passo do Estrelato" na categoria "melhor documentário", batendo os favoritos "O Ato de Matar" e "The Square".
      De resto, foi tudo previsível, incluindo mais uma esnobada da Academia em Leonardo DiCaprio ("O Lobo de Wall Street"), que perdeu na categoria de melhor ator para Matthew McConaughey.
      Parece que DiCaprio só vai mesmo levar um Oscar quando interpretar algum personagem que se redime no fim do filme, bem a gosto da caretice da Academia.
      DeGeneres foi um fiasco. Para tornar a transmissão mais "espontânea", ela passou boa parte do tempo na plateia, se misturando aos astros e fazendo piadas sem graça, como dividir pizzas com Brad Pitt, Harrison Ford e Meryl Streep, numa tentativa de mostrar como eles são "gente como a gente".
      Mas o Oscar não é um evento qualquer. É a celebração de uma certa "magia" do cinema, e o público quer ver astros que se comportam como astros, não como coadjuvantes de "sketches" cômicos.
      Se a piada não fosse tão extensa --se alongou por vários momentos da cerimônia-- poderia até ter sido charmosa, mas acabou constrangedora.
      Mas o pior momento foi uma "selfie" --essa foto irritante que pessoas fazem delas mesmas-- que Ellen tirou com um elenco estelar: Brad Pitt, Julia Roberts, Meryl Streep e Bradley Cooper, entre outros. A imagem logo bateu o recorde de "retuites", com mais de um milhão em uma hora, deixando para trás a imagem de Obama abraçado à esposa, Michelle, depois de vencer a eleição de 2012.
      Tudo lindo e divertido, se não fosse um truque promocional. Assim que a imagem chegou às redes sociais, jornalistas de tecnologia afirmaram que não havia passado de propaganda de uma marca de celulares disfarçada de momento espontâneo. Se for confirmado, é o ponto mais baixo de beija-mão corporativo a que chegou o Oscar.
      A cerimônia teve poucos momentos emocionantes. O discurso choroso da vencedora do prêmio de melhor coadjuvante, Lupita Nyong'o ("12 Anos de Escravidão") foi bonito, assim como a menção ao nosso Eduardo Coutinho, no tributo aos artistas que morreram no último ano. Dois momentos de brilho numa cerimônia chatíssima.

        Obras antigas são usadas para debater protestos

        folha de são paulo
        CRÍTICA - ARTES PLÁSTICAS
        Obras antigas são usadas para debater protestos
        Em '140 caracteres', pouco envolvimento da produção atual com as ruas faz museu recorrer a peças dos anos 1970
        UMA QUESTÃO DA MOSTRA É A POUCA QUANTIDADE DE TRABALHOS CONTEMPORÂNEOS QUE PROMOVEM UMA REFLEXÃO DE FATO A RESPEITO DO BRASIL
        FABIO CYPRIANOCRÍTICO DA FOLHAÉ muito oportuno --apesar de bastante raro por aqui-- que museus proponham uma reflexão sobre o atual contexto do país.
        A mostra "140 caracteres", em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), parte das manifestações públicas que ocorreram no país em junho do ano passado para revisitar seu acervo com questões que poderiam surgir desse fenômeno.
        A exposição ganha ainda destaque pelo caráter coletivo de sua concepção: foi organizada por 20 integrantes de um laboratório de curadoria do museu, sob a coordenação de Felipe Chaimovich, o diretor da instituição.
        O título indica uma das leituras que o grupo deu aos protestos: 140 é uma referência ao limite de caracteres para uma mensagem no Twitter, atribuindo assim às redes sociais um crédito pela iniciativa das mobilizações.
        Do título, a mostra conserva ainda o número de obras, trocadilho fácil, mas aceitável.
        Contudo, uma das primeiras questões é a baixa quantidade de obras contemporâneas que promovem uma reflexão de fato sobre o país.
        RESGATE
        A resposta a esse problema pode buscar dois caminhos: ou o museu tem poucas obras que tratam do país nos anos recentes, ou a produção atual parece distante das ruas, sendo que esta última possibilidade parece a mais correta.
        Assim, restou à curadoria um exercício de resgate, ao trazer muitas obras dos anos 1970 --que aí sim enfrentavam a ditadura de forma explícita, como em trabalhos em Marcello Nitsche e Rubens Gerchman.
        Ou então apresentar trabalhos recentes que ganham atualização após os conflitos, como os vidros quebrados de Iran do Espírito Santo ("Ato Único" 3 e 5) ou o cavalete de vidro com estilhaços de bala de Marcelo Cidade ("Tempo Suspenso de um Estado Provisório").
        É um tanto estranho que as máscaras feitas por artistas para os bailes do museu sejam também expostas em referencia aos black blocs, assim como alguns textos de parede um tanto piegas, como "minha pátria é minha língua, verde grito de esperança". Mesmo assim, refletir o contexto a partir de um acervo é exercício necessário.

          João Pereira Coutinho

          folha de são paulo
          O declínio do Ocidente
          É de bradar aos céus que a Casa Branca tenha um presidente que se limita a proclamações vagas
          1. EXISTEM ALGUMAS regras na política internacional. Mas a primeira de todas é que as grandes potências não agem apenas de acordo com os seus interesses. Também é importante antecipar a forma como os outros reagem a eles.
          Meses atrás, escrevi nesta Folha que Barack Obama tinha cometido um erro brutal com o "dossiê" sírio ao afirmar que Bashar al-Assad não poderia cruzar certas "linhas vermelhas" ("Baratinhas tontas", 10/9/2013). Quando se fazem ultimatos desses, é bom que o autor esteja disposto a agir se a outra parte não respeita a ameaça.
          Bashar al-Assad foi o único que agiu, cruzando as "linhas vermelhas", ou seja, usando armamento químico contra o seu povo. E que fez Obama?
          Para além do vexame internacional de não ter feito nada, contou ainda com a crítica de Vladimir Putin (em artigo no "New York Times" de uma hipocrisia humanista arrepiante) e com a intermediação russa para que o carniceiro de Damasco entregasse uma lista com todo o seu arsenal químico --uma farsa que só otários são capazes de engolir.
          Sabemos agora que a principal consequência do "flop" de Obama na Síria emigrou para a Ucrânia.
          Os fatos são conhecidos: por pressão russa, o anterior presidente ucraniano, Viktor Yanukovich, não assinou um acordo com a União Europeia. O caso foi visto na Ucrânia como uma rendição a Moscou --que pagou o gesto com a promessa de um cheque generoso e a redução do preço do gás-- e como uma dolorosa despedida a qualquer hipótese de Kiev virar para Ocidente.
          No momento em que escrevo (domingo), e sabendo que a situação muda a cada minuto, o país ameaça quebrar em duas metades: a primeira, pró-ocidental, com um governo interino em Kiev que recusa a pata do urso moscovita; a segunda, sobretudo concentrada na região da Crimeia, onde já existem tropas russas "informais" nos lugares-chave (edifícios de governo, televisões, aeroporto etc.).
          E paira sobre todo o caos a decisão unânime da Câmara Alta da Rússia de autorizar a invasão do país. Nada disso deveria espantar. No "Wall Street Journal", o antigo presidente da Geórgia, Mikheil Saakashvili, resumiu em uma única palavra a estratégia preferida do Kremlin: "balcanizar". No caso, balcanizar as antigas repúblicas da URSS --uma forma de as enfraquecer e de as manter sob a órbita de Moscou. Isso aconteceu na Geórgia, claro, quando a Rússia marchou sobre a Ossétia do Sul e a Abkhazia em 2008.
          Perante essa estratégia, qual a resposta de Obama? Não passa pela cabeça de ninguém um confronto militar em larga escala. Até porque a situação na Ucrânia é mais propícia a uma guerra civil do que a um conflito internacional.
          Mas é de bradar aos céus que a Casa Branca tenha um presidente que se limita a proclamações vagas ("haverá custos") ou ameaças patéticas (não participar na reunião do G8, por exemplo) quando a atitude só poderia ser uma: fazer da Rússia um pária internacional, que não respeita os acordos que assina (como o "memorando de Budapeste", onde a integridade territorial da Ucrânia era sacrossanta), e por isso merece sanções diplomáticas, políticas e econômicas pesadas.
          Que Obama não tenha sido claro na hora decisiva só mostra como a sua eleição é um sintoma trágico do declínio ocidental.
          2. E por falar em declínio ocidental: parece que o Google perdeu uma ação para manter on-line o filme "Intolerância dos Muçulmanos", um vídeo onde Maomé é tratado de forma desrespeitosa.
          Não assisti ao vídeo porque o meu tempo é precioso e lixo não é a minha praia. Mas se a sentença vai fazer doutrina, espero que católicos, protestantes, mórmons, testemunhas de Jeová, judeus, hindus, brâmanes, budistas, confucionistas, taoístas, cientologistas, druidas e qualquer outra seita "religiosa" ou "espiritual" (como a seita ateia) possa conhecer igual tratamento na proibição de qualquer livro, filme, pintura, música ou programa de TV capaz de ferir a sensibilidade do crente.
          Se isso implicar um mundo de silêncio radical, tudo bem. Desde que o silêncio não seja ofensivo para satânicos ou ocultistas, que normalmente gostam de algum barulho à mistura.