domingo, 19 de janeiro de 2014

Fafá de Belém na campanha das Diretas-Já

folha de são paulo
ARQUIVO ABERTO
MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
Duas gargalhadas poderosas
Rio, 1983
FAFÁ DE BELÉMEm março de 1983 recebi uma música de Milton Nascimento e Fernando Brant. A canção chamava-se "Menestrel das Alagoas". E eu me perguntei: por que eles me mandaram uma música em homenagem ao Djavan?
Quando chamei Wagner Tiso para fazer o arranjo, sabia que somente ele poderia colocar a música no tamanho dela, mas nunca imaginei que estaríamos escrevendo uma página rumo à redemocratização do Brasil.
Em agosto, Teotônio Vilela soube da gravação e quis ouvi-la. Ele chegou, muito abatido, com Miro Teixeira e João Araújo, ao estúdio da Som Livre. Ouviu a gravação e, a cada passo, um cheiro de almíscar se espalhava pelo estúdio. Ele estava chegando de Pouso Alegre (MG), de mais uma visita ao paranormal Thomas Green Morton e de uma nova tentativa para deter um câncer avassalador.
Ensimesmado, o senador pediu para dizer algumas palavras. E foram essas palavras que conduziram o Brasil rumo à democracia! Em determinado momento, ele deu uma poderosa gargalhada, e eu, outra.
Então, surpreendentemente, me disse: "Minha filha, nossas gargalhadas, juntas, podem fazer o chão deste país tremer!". E continuou : "Saio desta caminhada pela anistia com muita dor e ainda cheio de sangue, mágoas, tristeza. Penso em cruzar o país pedindo eleições diretas, e já! Para isto, é preciso que nenhum partido se aposse... Terá que ser um movimento suprapartidário, e somente o espírito desarmado conseguirá agregar a todos. Uma caminhada que não pertença à ninguém; que tenha alegria e seja leve. Só assim faremos a transição democrática".
E assim foi. Vilela morreu aos 66 anos, no dia 27 de novembro de 1983, em Maceió. Naquele mesmo dia, 15 mil pessoas se reuniram na praça Charles Miller, em São Paulo, para a primeira grande manifestação pelas eleições diretas, depois de quase 20 anos de ditadura.
Eu estava em Curitiba, no teatro Guaíra, quando soube da morte do senador. Peguei um táxi e viajei, a noite toda, até chegar a São Paulo, onde tomei um avião para Maceió. Ao sair do enterro, um sertanejo muito simples me segurou pelo braço e, com lágrimas nos olhos, disse: "Não deixe a gente só! Sem ele, o que vai ser de nós?".
Voltei para São Paulo, e o pedido do sertanejo permanecia em minha cabeça. Liguei para Teozinho (Teotônio Vilela Filho, hoje governador de Alagoas) e contei-lhe a história. Falei-lhe da ideia de lançarmos o Movimento Suprapartidário pelas Eleições Diretas no dia 1° de janeiro, em Maceió, homenageando o velho Teotônio. Mas ele achou que poderia não dar certo, já que o evento seria durante as festividades de fim de ano.
Liguei para o político Marcos Freire (1931-87), que veio a São Paulo entusiasmado com a ideia. Combinamos o movimento para o dia 4 de janeiro, no pátio de São Bento, em Olinda, sob as bênçãos de dom Hélder Câmara.
Havia, porém, um problema: como divulgar o evento? O disco que tinha a canção "Menestrel das Alagoas" era da Som Livre, gravadora que produz e comercializa trilhas sonoras de programas da TV Globo. Dei a ideia de fazermos um show de lançamento para que a Globo pudesse anunciar. E assim foi.
Quando a voz de Vilela surgiu no meio da canção, bandeiras de todos os partidos de esquerda foram levantadas. Muitas faixas continham a expressão "Diretas Já!". Era a voz de Vilela ecoando pelas ladeiras democráticas e libertárias de Olinda. Emocionante!
No dia 12 de janeiro de 1984, em Curitiba, ocorreu o lançamento nacional Diretas-Já, mas o comando da campanha, que era do PMDB paulista, não me convidou.
No 25 de janeiro (há 30 anos), dessa vez na praça da Sé, o mesmo comando cortou meu nome, alegando que eu não fazia parte de nenhum grupo historicamente ligado às lutas democráticas.
Mas um querido amigo chamado Luiz Inácio Lula da Silva, que fazia algumas reuniões em meu apartamento, quando a sede do PT não era segura o suficiente para certos encontros políticos, bateu o pé e disse : "Fafá, vem conosco!".
Assim, reunimo-nos em minha casa para irmos, posteriormente, para o centro de São Paulo. E, da sede do Partido dos Trabalhadores, saímos de mãos dadas para nos encontrarmos com outros grupos, que também caminhavam de mãos dadas, comandados por Fernando Henrique Cardoso.
A nós juntaram-se outros, outros, e muitos outros... E seguimos, sempre de mãos dadas e democraticamente, para a praça da Sé.
Em minha mão, a caixa com a pomba branca que voaria naquele dia (e em muitos outros) levando a mensagem de esperança e construção de um novo país. Tudo ideia do genial Henfil, amigo pessoal de Vilela, que sugeriu que eu soltasse a pomba da paz enquanto a voz do senador ecoasse no silêncio das multidões.
Aí, começou a grande caminhada, a campanha das Diretas: a voz de um povo que estava sem garganta para falar.

    São Paulo,460

    folha de são paulo
    SÃO PAULO, 460
    Um ano de 433 dias
    Picasso, João Cabral e outros besouros no quarto centenário paulistano
    DANIEL SALLESRESUMO A capital paulistana, que faz aniversário no próximo sábado, 25, teve sua mais longa festa há 60 anos. A celebração do quarto centenário da cidade, entre dezembro de 1953 e fevereiro de 1955, incluiu a estelar 2ª edição da Bienal, a inauguração do parque Ibirapuera, uma chuva de papel de prata e índios em parada militar.
    Impaciente para dar início às comemorações do quarto centenário de São Paulo, o industrial Ciccillo Matarazzo antecipou a festa em 48 dias. Na noite de 8 de dezembro de 1953, abriu as portas da segunda edição de um evento que criara dois anos antes, a Bienal.
    Ciccillo a incluiu no calendário de comemorações na condição de presidente da Comissão do Quarto Centenário, instituída em junho de 1951 pelo governo estadual e pela prefeitura para orquestrar as celebrações, previstas para todo o ano de 1954. A Bienal ocupou pela primeira vez dois dos edifícios do então inóspito parque Ibirapuera, o maior legado dos festejos, que seria aberto ao público meses mais tarde. Tratavam-se do Palácio das Nações, hoje Museu Afro Brasil, e do Palácio dos Estados, atual Pavilhão das Culturas Brasileiras.
    "O Parque do Ibirapuera, dentro da noite, era um eclipse com apenas duas faixas acesas: o Palácio das Nações e o Palácio dos Estados. O resto permanecia nas trevas, como blocos de folhinha a serem desvendados em datas próprias." O relato, do romancista e crítico de artes plásticas José Geraldo Vieira, foi publicado em 13 de dezembro na "Folha da Manhã".
    Apesar do aspecto ainda vago e inacabado do conjunto, no meio do qual "a grande marquise dormia como um trabalhador na plataforma de uma estação antes do horário", o romancista registra que "para as duas estrias de luz no eclipse escuro do Parque do Ibirapuera rumavam carros e transeuntes, atraídos como besouros e mariposas para aqueles dois focos retangulares de luz".
    Na ocasião, apenas besouros e mariposas que fossem jornalistas, fotógrafos, críticos de arte ou artistas, como os pintores Alfredo Volpi e Tarsila do Amaral, puderam conferir aquela que até hoje é tida por muitos a melhor edição da Bienal --uma cerimônia para as autoridades teria lugar no sábado seguinte, véspera da abertura para o público geral.
    Para os brasileiros, era a primeira oportunidade de contemplar num mesmo endereço obras de tantos representantes da arte moderna --3.374 nomes no total, contra 729 da Bienal de 1951. A lista incluía o americano Alexander Calder, o holandês Piet Mondrian, o suíço Paul Klee e o espanhol Pablo Picasso, que expôs sua monumental "Guernica".
    Houve outros marcos culturais notáveis, no âmbito das comemorações. No concurso literário, a comissão julgadora --que contava com os escritores Carlos Drummond de Andrade e Paulo Mendes de Almeida e o crítico literário Antonio Candido-- deu o prêmio de poesia ao pernambucano João Cabral de Melo Neto, pelo seu poema "O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaribe de sua Nascente à Cidade do Recife".
    Na cerimônia de premiação, em 23 de janeiro de 1954, presidida pela mulher de Ciccillo, Yolanda Penteado (tão ativa no cenário artístico quanto ele), foram contemplados ainda o também pernambucano Gastão de Holanda (melhor romance, com "Os Escorpiões"), o paulistano Walter George Durst (melhor roteiro cinematográfico, com "Quase uma Guerra de Troia") e Edgar da Rocha Miranda (em teatro, com a peça "E o Noroeste Soprou").
    Parecia não haver outro assunto. No Rio de Janeiro, promoveu-se na Academia Brasileira de Letras uma sessão em homenagem à efeméride paulistana. Terminou em debate. Os acadêmicos se perguntavam: quem deveria ser considerado o fundador da cidade, o missionário português Manoel da Nóbrega, que havia tido a ideia de criar um colégio naquelas lonjuras em 1554? Ou o jesuíta espanhol José de Anchieta, presente à missão de inauguração do colégio e que continuara a obra do português?
    Convencida pelo poeta paulista Menotti del Picchia, a maioria saiu em defesa do catequista espanhol. Entusiasmado, o ensaísta paraense Osvaldo Orico sugeriu que se comunicasse o placar ao governador de São Paulo, Lucas Nogueira Garcez.
    ZERO HORA No dia 25 de janeiro de 1954, a festa do aniversário começou à zero hora. Quem não havia se posto em vigília para saudar a data foi acordado pelo badalar conjunto dos sinos da cidade, acompanhado pelo buzinaço dos motoristas e o espocar de rojões.
    Às 8h30, houve uma cerimônia no Pátio do Colégio. Diante do monumento da fundação de São Paulo, Getúlio Vargas depositou uma palma de louros. O presidente assistiu depois à missa inaugural da nova catedral da Sé, ainda com as torres inacabadas.
    A programação seguiu com parada militar no vale do Anhangabaú. Sob o viaduto do Chá, índios de torso nu e calça e sapatos brancos perfilavam-se diante de um palanque, de dentro do qual o indigenista Orlando Villas Bôas assistiu ao desfile abraçado a um curumim e ladeado por indígenas do Brasil Central, conforme registrou o fotógrafo German Lorca. Um dos que mais retrataram os eventos da data, Lorca, 91, relembra: "Fazia um calor danado e mesmo assim a população não arredava o pé".
    O mesmo vale ainda veria, no dia 9 de julho, data da Revolução Constitucionalista de 1932, São Paulo ser banhada por uma chuva de prata. Ela caiu no final da tarde, espessa e luminosa: 9 milhões de pequenos triângulos de papel prateado, despejados por aviões da Força Aérea Brasileira e iluminados por holofotes do Exército. Mais uma produção da Comissão do Quarto Centenário, a essa altura já não comandada por Ciccillo, que se demitira do cargo em março, após se desentender com o prefeito Jânio Quadros. Havia sido substituído pelo Príncipe dos Poetas Brasileiros, Guilherme de Almeida.
    Coube a ele liderar, na manhã fria do dia 21 de agosto, a inauguração mais esperada do ano, a do parque Ibirapuera, que começara a sair da prancheta do arquiteto Oscar Niemeyer em 1951. Seus pavilhões abrigavam a Exposição do Quarto Centenário, uma exaltação da "pujante indústria paulista", em meio a exemplos culturais de outros Estados e países.
    "Para isto São Paulo viveu seus bem vividos 400 anos", perorou Almeida às 11h, diante de autoridades. "Aqui se concentra, e ao mundo todo se mostra, todo um mundo de crenças, de ideais, de esperanças, de vontades, de esforços, de lutas, de obstáculos, de complacência, de incertezas, de sacrifícios, de dores, de reações, de alegrias e de vitórias. Amigos, entrai e testemunhai."
    No estande da Holanda, fez grande sucesso um canteiro de flores, protegido por uma legião de escoteiros. No Palácio das Indústrias (atual pavilhão da Bienal), o que mais causou frisson perdura até hoje: a primeira escada rolante da cidade. "Uma fila imensa de pessoas que fazem questão de experimentar o novo aparelho estende-se por ali", anotou um jornalista da "Folha da Manhã".
    Do meio-dia à meia-noite, os visitantes puderam circular dentro do parque em trenzinhos disponibilizados pela prefeitura. Rotas extras de ônibus foram traçadas. Temendo um congestionamento recorde ao redor do Ibirapuera, a diretoria do Serviço de Trânsito, a CET da época, alterou o sentido de algumas vias, fechou acessos e avisou: "O trânsito nas ruas que circundam o parque será feito em circulez'". Em outras palavras, se um motorista estacionasse para tirar uma foto, correria sérios riscos de ouvir de um guarda: "Cavalheiro, faça o favor de circular!".
    AMANHàInaugurado o parque, a missão da Comissão do Quarto Centenário foi dada por cumprida. Àquela altura talvez já não houvesse quem ignorasse a efeméride. O comércio vendia toda sorte de produtos com a estampa do quarto centenário. Muitos eram apresentados como revolucionários, como se pertencessem ao amanhã. O chuveiro da marca Sintéx lançado para os festejos, por exemplo, era apresentado como "de duração praticamente infinita".
    Circulavam slogans como "São Paulo não pode parar" e "São Paulo, a cidade que mais cresce no mundo". "Acreditava-se que a cidade estava de posse de passaporte garantido para o futuro", diz o jornalista Roberto Pompeu de Toledo, autor de livro sobre os primeiros 370 anos da cidade ("A Capital da Solidão", Objetiva, 2003).
    Parte desse futuro, porém, chegou com atraso. O Theatro Municipal --cuja reabertura estava prevista inicialmente para o feriado de 9 de Julho, após uma reforma iniciada mais de um ano antes--, só voltou a abrigar espetáculos em outubro de 1955. As obras ficaram paralisadas por quatro meses, depois que Jânio Quadros cortou boa parte das verbas necessárias. O palco mecânico, grande novidade do projeto, escapou da tesoura por pouco --julgando-o dispensável, o prefeito só aceitou custeá-lo depois de Guilherme de Almeida argumentar que se tratava de item crucial para a realização de montagens líricas.
    Escalado para reabrir a casa, o Balé do Quarto Centenário pôs-se em condição de atuar no prazo estipulado. Sob a direção artística do coreógrafo Aurel Milloss, um húngaro radicado na Itália, com passagens pelo Scala de Milão e pela Ópera de Roma, o grupo deu início à profissionalização da dança no Brasil. No final do ano seguinte, Jânio decidiu desfazer o balé. Não via sentido em custear um grupo formado para uma celebração que já havia acabado.
    E quando tinha acabado? A julgar pelo calendário do Campeonato Paulista do Quarto Centenário só em 1955. A partida decisiva se deu no dia 6 de fevereiro, no estádio do Pacaembu. Com três pontos de vantagem e jogando pelo empate, o Corinthians enfrentou o Palmeiras sob o olhar de 55 mil torcedores. O jogo terminou em 1 a 1, gols do alvinegro Luizinho e do alviverde Nei. Protocolar, a última rodada ocorreu no sábado seguinte, dia 13, pondo fim a um ano que havia durado 433 dias.

      Percursos da memória na cidade do poeta - JORGE CALDEIRA

      folha de são paulo
      SÃO PAULO, 460
      Um rolê com Paulo Bomfim
      Percursos da memória na cidade do poeta
      JORGE CALDEIRA
      Paulo Bomfim não apenas vive fisicamente em São Paulo há 87 anos. A cidade para ele tem história, de modo que muitos lugares não lhe aparecem como paisagens prosaicas do tempo que vive, mas como testemunhos ancestrais. O parque da Luz é o lugar da ermida que Domingos Luís, o Carvoeiro, construiu no século 16; a praça do Patriarca, o ponto de refúgio do Mirinhão, um ancestral seu do século 18; a rua Espírita, no Cambuci, o quilombo espiritual do negro Batuíra, no século 19.
      Outros pontos da cidade ganham colorido porque evocam memórias pessoais, testemunham encontros que os tornaram especiais. A praça Marechal Deodoro atravessada pelo Minhocão tem outros ares quando descrita como ponto de encontro com o cantor Nelson Gonçalves, seu irmão Quincas e o palhaço Piolim. A praça da República aparece com garapa, sorvete, normalistas e o guarda Antônio, protetor dos boêmios. Até o velório de Mário de Andrade muda, quando nele se mistura o desnudamento da tradutora Leonor Aguiar.
      A cidade é também o centro de sua escrita, tema constante de seus 26 livros de poesia (e mais meia dúzia de antologias, no Brasil e na Espanha) ou prosa -seu livro mais recente, "Insólita Metrópole", lançado em 2013, é uma antologia de crônicas sobre São Paulo, organizada por Ana Luiza Martins (Ateliê Editorial). Assim, outros aspectos da cidade são descritos por suas características metafísicas.
      Com tudo isso, a São Paulo de Paulo Bomfim é tecida por casos que, contados na sequência de sua prosa viva, dão uma dimensão bem diferente daquela da metrópole que quase se esquece da alma encantadora de suas ruas. A seguir, o registro de um desses passeios, na voz do escritor.
      A FUNDAÇÃO MÍSTICA
      "O corpo de São Paulo foi formado pela carne e o sangue de João Ramalho e Tibiriçá. A cabeça veio de Manoel da Nóbrega. Mas a alma de São Paulo veio de José de Anchieta. Já o governo veio de Santo André, a vila dos parentes de João Ramalho."
      R. JAGUARIBE
      WALDEMAR ZUMBANO
      "Um dia estava no Instituto Jaguaribe, no ringue de boxe. Vejo chegar um homem muito míope, ele tira os óculos com cuidado. Era pequeno, tinha cara de poeta, nenhuma musculatura. Sobe no ringue e me convida para fazer luvas. Tentei, tentei, e nada de acertar um soco nele. Cansei, parei e perguntei: 'Quem é você?'. E ele: 'Waldemar Zumbano'. Ficamos amigos o resto da vida. Ele era comunista, como aliás eram quase todos os pugilistas da cidade."
      CEMITÉRIO DA CONSOLAÇÃO
      MARQUESA DE SANTOS
      "Toda vez que vou ao cemitério da Consolação visitar o túmulo de meus ancestrais, deixo uma rosa no túmulo da marquesa de Santos, que fica ao lado. Uma vez, quando estava depositando a flor, havia uma preta velha ajoelhada, rezando. Ela virou-se para mim e perguntou: 'O senhor também é devoto da marquesa?'. Eu digo: 'Sou'. E ela: 'Comigo fez milagre. Pedi à marquesa para interceder junto ao professor Bardi. Consegui fazer uma exposição no Masp e estou aqui pagando a promessa'."
      R. LOPES CHAVES
      MÁRIO DE ANDRADE
      "As tias dele tocavam piano para as crianças dançarem nos saraus da casa de meu avô. Ele ia sempre, cantava e tocava. Numa festa de Ano-Novo estava todo mundo meio desanimado. Ele puxou cordão pela sala de casa, as tias na frente e eu criança no fim da fila. Ficou todo mundo alegre. E não esqueço do velório dele, na casa da rua Lopes Chaves. A Leonor Aguiar era uma figura extraordinária, uma mulher inteligentíssima, fora da época, traduzia, falava e declamava russo. Ela entrou com uma roupa. Quando chegou no caixão, resolveu trocar. Tirou o vestido, ficou de combinação na frente do morto e de todo mundo, colocou o outro sem a menor cerimônia."
      PÇA. MARECHAL DEODORO
      PIOLIM E QUINCAS
      "Havia ali o bilhar do Quincas, irmão do Nelson Gonçalves. Joguei com ele muitas vezes, porque o lugar era um ponto de encontro de boêmios. Mas também ia até a Marechal Deodoro para conversar com o Piolim, palhaço que foi muito meu amigo a vida inteira e que então montava seu circo em plena praça."
      R. EPITÁCIO PESSOA
      CATULO DA PAIXÃO CEARENSE
      "Na esquina com a Rego Freitas ficava a casa de meu avô, onde passei a infância. Minha tia Cecília era cantora, todos os poetas e compositores da época iam aos saraus que aconteciam sempre: Olavo Bilac, Vicente de Carvalho, Coelho Neto, Paulo Setúbal. Uma de minhas lembranças mais antigas, quando tinha algo como cinco anos, foi a de ver o Catulo da Paixão Cearense de joelhos, tocando violão e cantando."
      PÇA. DA REPÚBLICA
      GUARDA ANTÔNIO
      "Passei minha infância brincando lá, minha adolescência tomando sorvete na Japonesa ou garapa no Nosso Engenho, enquanto esperava a saída das alunas da Caetano de Campos. E havia um português muito bom, o Antônio, que era guarda do jardim. De noite ele cobria os mendigos com jornal, protegia os boêmios que ficavam dormindo nos bancos para curar a bebedeira."
      PARQUE DA LUZ (HISTÓRICO)
      DOMINGOS CARVOEIRO
      "Era a ermida de Domingos Luís, o Carvoeiro, uma figura mítica da história de São Paulo. Séculos depois o frei Galvão construiu o convento lindo que está ali até hoje."
      PÇA. DO PATRIARCA
      MIRINHÃO
      "Era o território de um antepassado meu, o Mirinhão, que largou o bandeirismo no século 17 para se tornar um ermitão, tomando conta de uma pequena capela que havia ali. Cuidou da capelinha de Santo Antônio e fez um testamento onde exigiu ser enterrado no altar-mor -e nem era ainda a igreja atual, com o teto do frei Jesuíno de Monte Carmelo."
      AV. SÃO LUÍS
      MANUEL BANDEIRA
      "Minha mulher Emy e eu ficamos sócios de uma galeria de arte que ficava no prédio Zarvos, onde antes era a casa do barão de Souza Queiroz, na av. São Luís, bem em frente à biblioteca. Um dia, no lançamento de um livro do Manuel Bandeira, fizemos cartazes com os poemas. Chega o Lima Barreto, o cineasta que fez 'O Cangaceiro'. Ele entra, olha os cartazes e vai direto para a mesa de autógrafos falando: 'Bandeira, naquele poema tem um erro de português'. Ele largou o copo de uísque, nem precisou arregaçar os punhos, porque costumava cortá-los quando ficavam puídos. Levantou e gritou: 'Erro de português é você, seu fotógrafo lambe-lambe. Ponha-se daqui para fora'. E expulsou o desafeto."
      RUA ESPÍRITA
      BATUÍRA
      "No século 19, nessa ruazinha do Cambuci morava o Batuíra, que ali fazia uma mistura de cultos espíritas e africanos. Além disso ele mantinha um pequeno teatro na região da atual rua Senador Queiroz. Com o dinheiro das récitas ele ajudava a libertar escravos."
      PARQUE DA LUZ (PRÁTICO)
      LUIS HUMBERTO GELFI
      "Ele era de Bergamo, foi parar no Cairo, teve algum problema com uma mulher, teve de fugir. Veio sem dinheiro no navio, dando aula de dança para os passageiros. Desembarcou em São Paulo sem um centavo, na estação da Luz. Atravessou para o jardim, olhou dali a torre da estação. Voltou, foi procurar o diretor, ofereceu-se para limpar o relógio. Foi o primeiro dinheiro que ganhou na cidade. Como sabia guiar, acabou ensinando os filhos de dona Veridiana Prado a dirigir automóveis -e acabou casando com uma amiga francesa dela, a Luíza. Ambos viriam a ser meus sogros."
      AV. IPIRANGA
      ARACY DE ALMEIDA
      "Eu era recém-casado. Um dia toca a campainha do apartamento. Era a Aracy de Almeida, dizendo: 'Paulo, eu estou com muita angústia, não queria ficar no hotel. Posso ficar em sua casa dois ou três dias?'. Peço para a Emy [Emma Gelfi Bomfim] tirar as crianças do quarto, ela se instalou. Foi ficando. Voltava das boates de madrugada, fazia interurbanos intermináveis para a boate Vogue, no Rio de Janeiro, conversava com o Vinicius de Moraes, o Antonio Maria, até o amanhecer. Eu estava começando na vida e tinha de pagar contas de telefone astronômicas. Quase três meses depois, trouxe uma arara que ganhou de presente da boate Jangada. Quando tentei falar alguma coisa, ela cortou: 'Eu respondo pela arara'. Levou o bicho para o quarto, ele comeu meus móveis, não aguentei e expulsei a ave. E ela: 'Em solidariedade à arara, também me retiro'. Mas ela foi a mulher que melhor conhecia a Bíblia que vi em toda a minha vida -e também a que sabia mais palavrões."
      QUATRO CANTOS
      CASTRO ALVES
      "O Castro Alves morou um tempo no Hotel Itália, que foi mais tarde o Hotel de França de meu avô. Ficava no único cruzamento da cidade, conhecido como Quatro Cantos, esquina da Direita com São Bento. E eu conheci uma velhinha, que era menina nos tempos em que o poeta morava lá, que me contou que ele, quando ia para a faculdade, dava um dinheirinho para ela e dizia: 'Você fica na janela que é para ver se não aparece algum admirador da Eugênia Câmara'."
      R. TABATINGUERA
      D. PEDRO 1º
      "D. Pedro 1º chegou na tarde de 7 de Setembro de 1822, entrou na cidade pela rua Tabatinguera. Os sinos da igreja da Boa Morte anunciaram a chegada. A meu modo de ver, ele se hospedou no casarão do brigadeiro Jordão, que mais tarde foi o hotel de meu avô, Guilherme Lebeis. De lá foi para o teatro da Ópera, que ficava no pátio do Colégio. Ali ele sentou-se no piano e tocou o hino da Independência - com um olho em Domitila, a futura marquesa de Santos, nos braços de quem se tornaria um adulto."
      CACIQUE CAIUBI
      "A única rua de São Paulo que nunca mudou de nome. Nela ficava a taba do cacique Caiubi, irmão de Tibiriçá e Piquerobi, que morreu como uma espécie de santo, usando vestes religiosas, depois de uma conversão linda."

      Ruy Castro mede a estatura de Woody Allen

      folha de são paulo
      Ruy Castro 
      RESUMO Prêmio especial dado ao cineasta Woody Allen na cerimônia do Globo de Ouro, há uma semana, gerou protestos de Mia, sua ex-mulher, e de Ronan Farrow, filho do casal, nas redes sociais. Acusado por ambos de pedofilia e incesto, Allen é notório exemplo de que a arte não deve ser avaliada pela vida de quem a produz.
      *
      No domingo último, na entrega do prêmio Globo de Ouro a figurões do cinema, em Los Angeles, havia um prêmio especial para Woody Allen. Como sempre, ele não foi recebê-lo pessoalmente. A tarefa coube a Diane Keaton, sua ex-namorada, amiga e atriz. Quem assistia à cerimônia pela TV e fazia comentários pelas redes "sociais" era a ex-mulher de Woody, a também atriz Mia Farrow. Ao ouvir o nome de Woody Allen, ela escreveu: "Hora de pegar um sorvete e mudar de canal para assistir a 'Girls'".
      Seu filho com Woody, Ronan, 26 anos, foi mais enfático: "Perdi a homenagem a Woody Allen", escreveu. "Eles colocaram a parte em que uma mulher confirmou publicamente que ele a molestou aos sete anos?".
      Reprodução/Twitter/RonanFarrow
      Ronan Farrow acusa Woody Allen de pedofilia pelo Twitter
      Ronan Farrow acusa Woody Allen de pedofilia pelo Twitter
      Os comentários se referem a um escândalo de 1992 envolvendo Woody Allen, Mia Farrow e seus filhos naturais e adotivos -os dois formavam um casal, embora não fossem casados e vivessem em apartamentos separados, em Nova York. Como muitos usuários dessas redes ainda não eram nascidos quando a história aconteceu, é provável que as mensagens tenham caído no vazio. Mas ainda há quem se lembre.
      Em janeiro daquele ano, ao visitar o apartamento de Woody na Quinta Avenida com ele ausente, Mia encontrou fotos de sua filha adotiva, a coreana Soon-Yi, nua e em poses sensuais. O choque foi grande -Woody era um pedófilo, seduzira sua filha, 37 anos mais nova do que ele. Foi esta a versão que, pouco depois, em seu apartamento no outro lado do Central Park, Mia apresentou para seus dez filhos -nove adotivos, um deles a pequena Dylan, de 7 anos, e o que tivera com Woody, Ronan (então chamado Satchel), 4. O caso foi para os tribunais, onde aflorou a chocante acusação de que Woody também abusara sexualmente de Dylan.
      Pode-se imaginar a repercussão desse julgamento. Woody e Mia já tinham feito 13 filmes juntos, entre os quais três dos maiores da carreira do diretor, como "A Rosa Púrpura do Cairo" (1985), "Hannah e Suas Irmãs" (1986) e "A Era do Rádio" (1987). As plateias tendiam a identificá-lo com seu personagem nas telas -o homem tímido e inseguro, mas decente e digno de proteção. Mia, ex-mulher de Frank Sinatra e do compositor e pianista André Previn, também renascera para o mundo: depois de uma estreia explosiva como protagonista em "O Bebê de Rosemary", de 1968, eclipsara-se e só se provara de novo uma atriz sensível e competente nos filmes de Woody. Era um relacionamento perfeito. Por que aquilo estava acontecendo?
      Nos seis meses que durou o julgamento, sobraram versões e contraversões que deixaram todo mundo mal. Mia teria inventado a história de Dylan para se vingar de Woody por ele a ter trocado por Soon-Yi. Woody e Mia estariam juntos apenas formalmente, porque a vida sexual entre ambos acabara desde que ela tivera Satchel em 1987. Mia seria uma neurótica, dada a tentar salvar seus casamentos adotando crianças asiáticas e africanas, física ou mentalmente deficientes -mas como ser uma boa mãe para dez filhos ao mesmo tempo, cada qual falando uma língua? E, quanto a casos com homens maduros, ela própria tinha o que contar: aos 21 anos, em 1966, casara-se com Sinatra, 51. "Algumas gravatas de Frank são mais velhas do que Mia", disse um amigo do cantor.
      O casamento durou apenas dois anos, em parte porque Mia nunca quis aprender a cozinhar macarrão. Em 1969, ela tomou André Previn de sua amiga Dory Previn, que tinha o dobro de sua idade. Com Previn, Mia começou seu programa de adoção em massa de crianças do Terceiro Mundo, o que levou alguém a defini-la como "baby-sitter da Unicef".
      REPUTAÇÃO
      As acusações abalaram também a reputação de Woody. Ao rever seus filmes, as pessoas se deram conta de que, em vários deles, algum de seus personagens faz sexo com a enteada, a cunhada, a mulher do amigo, a sogra e até com uma ovelha (Gene Wilder, em "Tudo o que Você sempre Quis Saber sobre Sexo e Tinha Medo de Perguntar", 1972). E, claro, havia "Manhattan" (1979), que trata de seu romance com a adolescente Tracy, vivida por Mariel Hemingway. A própria Tracy seria baseada em Stacey -atenção para a sonoridade- Nelkin, uma menina de 17 anos que ele teria namorado em 1976 e que faz uma ponta em "Annie Hall" ("Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", 1977).
      Mas, se Allen podia ser um pedófilo e incestuoso -como Mia o acusou no tribunal-, não seria com Soon-Yi, porque ela tinha 18 anos em 1992 e não era sua filha, nem adotiva. Era uma moça feita e ambiciosa, queria ser atriz ou modelo. Woody tinha 56 anos, mas essa diferença era pouco maior que a de Sinatra para Mia em 1966. Quanto à outra história, bem mais grave, Mia nunca conseguiu provar que Woody tivesse molestado Dylan.
      Quando isso estava acontecendo, há 22 anos, eu próprio comecei a achar que era o fim de Woody Allen. Seus filmes tinham prestígio, mas não eram sucessos comerciais. As plateias não o perdoariam e seus financiadores iriam abandoná-lo. Havia um precedente triste: o caso de "Fatty" Arbuckle (1887-1933), um dos grandes da comédia muda, mestre de Buster Keaton e amado pelo público. Uma garota de programa morreu numa orgia promovida por ele num hotel em San Francisco, em 1921. Depois de três julgamentos, "Fatty" saiu inocentado e o tribunal lhe pediu perdão. Mas o público nunca mais quis saber dele.
      O caso de "Fatty" Arbuckle foi uma exceção. Charles Chaplin, Carlitos (1889-1977), ainda mais querido, foi a julgamento em 1944 nos EUA por tráfico de brancas e saiu quase sem arranhões. Entre muitos outros, o poeta François Villon (1431-63) conheceu longamente a prisão por assassinato; o Marquês de Sade (1740-1814), por libertinagem; o também poeta Paul Verlaine (1844-96), por tentar matar seu namorado Rimbaud; o teatrólogo e "wit" Oscar Wilde (1854-1900), por homossexualismo; o contista O. Henry (1862-1910), por latrocínio; e o romancista e teatrólogo Jean Genet (1910-86), por renitente vadiagem. Alguns morreram em função da prisão, outros a superaram em vida mesmo, e todos foram reabilitados pela posteridade. O próprio Sinatra levou a vida sob suspeita de ligações com a máfia, mas qual de seus fãs se importava com isto?
      O britânico P.G. Wodehouse (1881-1975), um dos humoristas mais adoráveis do século 20, colaborou por ingenuidade com os nazistas na ocupação de Paris na Segunda Guerra e foi preso pelos aliados. Mas acabou perdoado -ninguém podia passar sem seu delicioso personagem, o mordomo Jeeves. O poeta americano Ezra Pound (1885-1972), declaradamente torcedor do fascismo, também foi preso e condenado por traição no pós-Guerra, mas fosse você perguntar a Augusto e Haroldo de Campos e a Décio Pignatari -e à maioria dos grandes poetas internacionais- se isto lhes fazia diferença.
      E o racista e antissemita Richard Wagner (1813-83), cuja música embalava Hitler e pode ter sido tocada em campos de concentração na Alemanha? Nunca foi tão admirado quanto hoje. O francês Louis-Ferdinand Céline (1894-1961) era igualmente antissemita, o que nunca turvou a apreciação mundial por seu romance "Viagem ao Fim da Noite" (1932). E ninguém desconhece a história do cineasta Elia Kazan (1909-2003), que entregou nomes no macarthismo e carregou para sempre a pecha de dedo-duro -o que não o impediu de continuar trabalhando e fazer grandes filmes, como "Sindicato de Ladrões" (1954), "Vidas Amargas" (1955) e "Terra do Sonho Distante" (1963).
      Esses nomes são sempre citados quando se discute se a estatura da obra de arte deve ser medida pela largura ou fundura do artista. A resposta, pelo visto, é não -ou não necessariamente-, mesmo quando se refere ao pensamento puro. Vide Martin Heidegger (1889-1976), já estabelecido como o filósofo do século quando se descobriu que fora também nazista.
      Woody Allen, embora um caminhão lhe tenha passado por cima, não foi destruído pelo escândalo. Levantou-se, voltou a produzir e já fez 22 filmes desde então. Todos continuam a querê-lo -inclusive o Rio, que lhe acena com milhões para que venha filmar aqui. Na vida real, ele também vai bem: casou-se em 1997 com Soon-Yi e estão juntos até hoje, com duas filhas adotivas.
      Mia Farrow não se conforma. Há meses, deixou escapar numa entrevista que Ronan "poderia ser filho de Sinatra", não de Woody. E, de fato, pelas fotos do garoto, isso parece uma certeza -os mesmos olhos azuis, a boca insolente, o rosto desafiador. Para Mia, que melhor vingança contra Woody do que, tantos anos depois, insinuar que o corneou?
      Mia só se esquece de que, em 1986, quando isso teria acontecido, ela estava com 41 anos. E Sinatra, com 71. Não apenas Soon-Yi via nos coroas o ó do borogodó.
      RUY CASTRO, 65, jornalista e escritor, é colunista da Folha e autor de "Carmen - Uma Biografia" (Companhia das Letras) e de "Letra e Música" (Cosac Naify), entre outros. 

      Janio de Freitas

      folha de são paulo
      O solitário do mensalão
      Único a citar companheiro de partido em depoimento, Pizzolato foi isolado pelo PT ao longo do processo
      Na CPI que se ocupou do chamado mensalão, foi o depoente mais inseguro, titubeante, no próprio rosto o ritus do medo, senão pânico mesmo. Até muito mais do que o outro sufocado pela insegurança, Marcos Valério. Foi o único, também, a citar companheiro de partido e de governo de modo a transferir responsabilidades que lhe cobravam.
      Já consumadas as condenações, participei de uma mesa de conversa sobre o processo, no Sindicato dos Advogados do Rio. À chegada, Henrique Pizzolato me esperava na saída do elevador, com a mulher. Trazia uma pasta para me entregar, com documentos dados como comprovantes da realização de trabalhos, pela agência de Valério, negados na acusação do Ministério Público e pelo relator Joaquim Barbosa. A votação da maioria, no Supremo Tribunal Federal, acompanhou a negação.
      A tibieza de Pizzolato me impressionou. Quem falou foi sua mulher, um ou dois minutos. Não consegui dizer mais do que os cumprimentos, fixado na imagem de Pizzolato. Mais tarde, registrei parte do indicado pelos documentos, em princípio mais convincentes do que a acusação aparentemente mais fundada no desejo de acusar e condenar do que em fatos e provas bem apurados.
      A fuga do casal Pizzolato não significou admissão de culpa. É natural o desejo de evitar a prisão, facilitado, no caso, pela dupla nacionalidade do condenado. Mas um pormenor ficou, para mim, como indagação cuja resposta poderia ser valiosa, diante de tanta coisa mal explicada, ou inexplicada, no processo e nas intervenções do julgamento. Os petistas, tanto os envolvidos no processo como os outros dirigentes, puseram Pizzolato à parte. É dele esta queixa, registrada por um dos seus defensores fora do tribunal: "O PT me abandonou".
      Por quê? Mais uma vez, Pizzolato foi o único. E não poderia faltar um motivo importante, a ponto de ser significativo para tantas pessoas que com ele conviveram em duradoura confiança, e o prestigiaram em indicações para cargos disputados. O que constatei ou deduzi a respeito não confirma nem conflita com a notícia, do "Estado de S. Paulo", de uma conta na Suíça com possível movimento pelo foragido Henrique Pizzolato. Mas permite a convicção de que no rastro desse fato há numerosas consequências enfileiradas, capazes de mudar muitos aspectos estabelecidos sobre o chamado mensalão.
      DEVERES EM FALTA
      A propósito de nota aqui publicada, o governo gaúcho acusa o juiz da 1ª Vara de Execuções Criminais de difundir dúvida, sem provas, sobre perícias que indicaram doenças como causa de mortes no Presídio Central, em Porto Alegre. O juiz, a rigor, não precisa apresentar provas para lançar a suspeita, bastam-lhe indícios. Além disso, a cobrança da Comissão Interamericana de Direitos Humanas ao Brasil não trata só de mortes, mas também das condições carcerárias calamitosas no Presídio Central. E o governador Tarso Genro continua devendo explicações ao país.
      Em tema paralelo, o desembargador Rogério Medeiros Garcia de Lima, de Belo Horizonte, em mais uma mensagem ao Painel do Leitor diz-se "cético sobre discursos de defensores dos direitos humanos só para criminosos'". Não indica o autor da citação que faz. Mas, na seguimento, diz: "Não concordo com todas as posições de Janio de Freitas", conexão que sugere minha autoria da proposta "só para criminosos". Eu nem precisaria desmenti-la, mas o desembargador precisa, por dever ético, indicar a autoria de citações que faz. Jamais vi ou ouvi a frase por ele apresentada.
      Já que, diz também, seu ceticismo vem do seu "desamparo na resolução de problemas relativos a presos e menores infratores", aí estaria fortíssima razão para defender os direitos humanos de presos, e não para sua posição oposta. Ainda mais porque não consta, na legislação brasileira, que a expressão direitos humanos leve o adendo "exceto para presos e infratores".

      Em 10 anos, reservas particulares na mata atlântica crescem 80%

      folha de são paulo
      Rafael Garcia 
      O número de propriedades particulares na mata atlântica transformadas em reservas por iniciativa dos próprios donos aumentou 80% nos últimos dez anos, indica levantamento de ONGs ambientalistas. Apesar do crescimento, porém, a área somada dessas unidades de conservação ainda é menor que o município de São Paulo.
      As RPPNs (reservas particulares do patrimônio nacional) existem desde a década de 1990, quando o Ibama viu uma oportunidade para engajar proprietários de terra em esforços de conservação. A iniciativa é particularmente importante na mata atlântica, onde 80% do que resta da vegetação original está em propriedades privadas.
      Joel Silva/Folhapress
      Eugenio e Kirsten Follman, em sua propiedade em Mairiporã
      Eugenio e Kirsten Follman, em sua propiedade em Mairiporã
      Hoje, há 762 RPPNs no bioma espalhadas em 14 Estados, somando 142 mil hectares. Segundo ambientalistas que dão suporte técnico a proprietários de RPPNs, apesar de existirem alguns incentivos, como a isenção de ITR (imposto territorial rural), a principal motivação para a criação das reservas ainda é a consciência ambiental.
      "Muitos proprietários de terra permanecem por muito tempo nessas áreas e acabam desenvolvendo um carinho especial por elas", conta Mariana Machado, coordenadora do programa de incentivo a RPPNs das ONGs SOS Mata Atlântica e Conservação Internacional. "Alguns têm a preocupação de que as próximas pessoas a serem donas da área não cuidem dela."
      Como a RPPN é uma unidade de conservação criada em caráter perpétuo, porém, alguns proprietários temem que suas terras percam valor e que talvez precisem vendê-las no futuro. Mas há quem aposte que a criação da reserva valorize o terreno.
      MAIS VALOR
      Donos de hotéis, agricultores orgânicos e agentes de ecoturismo são o novo perfil de proprietário que tem procurado a SOS Mata Atlântica atrás de ajuda para criar RPPNs. A ONG oferece auxílio no trâmite burocrático e no plano de manejo das áreas conservadas das reservas.
      Editoria de Arte/Folhapress
      Muitas novas RPPNs são pequenos negócios com mata intocada ao redor. Para o jornalista João Yuasa, que constrói uma pousada em São Luiz do Paraitinga (SP), onde já tinha um sítio, a motivação principal para criar uma reserva é a vontade de preservar. Ele diz crer, porém, que a iniciativa acrescente valor ao seu novo investimento.
      "O perfil de hóspede que a gente quer é a pessoa com um pouco de consciência ecológica, que valoriza a preservação ambiental, o silêncio e a tranquilidade", diz Yuasa.
      Segundo o Global Environment Facility, fundo que banca iniciativas de conservação, o aumento do número de RPPNs é essencial para preservar a região, onde matas remanescentes são apenas 8,5% da cobertura original e estão muito fragmentadas.
      "A mata atlântica não é como a Amazônia, onde US$ 3 milhões criam uma reserva de 1 milhão de hectares", diz Gustavo Fonseca, coordenador de biodiversidade do fundo. "Aqui o setor público não tem como arcar com o custo. O preço da terra é muito alto, e é preciso ter o envolvimento da sociedade para preservar essas áreas importantes." 
      "Amigos me diziam que eu estava louco"
      ENVIADO A MAIRIPORÃEm 1991, quando comprou um sítio em Mairiporã (SP), o luthier Eugenio Follmann costumava frequentar o escritório regional do Ibama. Construtor de instrumentos musicais, ele recorria ao órgão para se informar sobre compra de madeira certificada, não oriunda de desmatamento. Foi lá que viu pela primeira vez o cartaz de uma campanha para a pessoas "tombarem" suas propriedades privadas.
      "Assim que eu pude, dei entrada com o pedido de criação de uma reserva aqui", conta. "Amigos diziam que eu estava louco."
      A decisão rápida de Follmann, imigrante húngaro que deixara seu país durante a Segunda Guerra Mundial, fez com que se tornasse o primeiro proprietário de uma RPPN em São Paulo. Hoje, o órgão federal que homologa as reservas, o Instituto Chico Mendes, lista no Estado a criação de outras 41.
      Follmann diz que não passou pela cabeça a possibilidade de sua propriedade se desvalorizar e de que ele perderia dinheiro caso tivesse de vendê-la.
      "Não temos necessidades financeiras prementes, então posso me dar ao luxo de pensar que não vou ter de vender o sítio", diz. "Eu considero a propriedade uma coisa ilusória. Nunca fiz nada para merecer este terreno aqui. Eu tive o dinheiro para comprar, claro, mas isso é uma coisa circunstancial."
      Hoje, ele mora com sua mulher, Kirsten, em uma casa modesta que construiu na propriedade. O sítio é também seu local de trabalho. Só permanecendo no local, diz, é possível protegê-lo também. Na porta de seu ateliê fica permanentemente encostado um abafador de fogo.
      "Há vândalos de plantão que botam fogo no mato só para se divertir", diz. O pior período é o de seca, de junho a agosto, quando chamas se alastram rápido. Ele e a mulher, de 82 anos, apagavam incêndios sozinhos até o ano passado, quando ela fraturou a perna. "Agora tem de ficar um pouco de molho."

        Marcelo Gleiser

        folha de são paulo
        Universo-máquina e liberdade
        Se o Cosmo é determinístico, a "máquina" existe além de nossa capacidade de cálculo, como uma versão de Deus
        na Semana passada, escrevi sobre a questão do livre-arbítrio, se somos ou não agentes de nossas próprias decisões. Essa reflexão foi despertada pelo livro de Sam Harris sobre o assunto e por minha participação numa mesa redonda sobre o tema. Harris, que tem doutorado em neurociências, é um autor conhecido nos EUA. No livro, diz que a sensação que temos de controlar nossas ações não passa de uma ilusão.
        Harris não tirou sua conclusão do nada. Vários experimentos realizados nas últimas duas décadas mostram que a decisão é tomada antes que o sujeito tenha consciência disso. Nesses experimentos, o cérebro age antes da mente.
        Argumentei que a questão não é tão simples, que não pode ser reduzida a um simples sim (o livre-arbítrio existe) ou não (escolhas são todas de forma subconsciente). Há todo um espectro de decisões que tomamos na vida que exige ponderação mais profunda. Esses casos são muito diferentes dos investigados no laboratório. E, aqui sim, me parece que o livre-arbítrio, compreendido como nossa habilidade de fazer escolhas mesmo sob uma série de condições, tem seu papel.
        Porém, não mencionei a questão do determinismo, essencial numa discussão sobre o livre-arbítrio. Na física, um sistema é determinístico se seu comportamento futuro (e passado) pode ser obtido de seu comportamento presente. Na prática, sistemas físicos determinísticos são descritos por equações que permitem esse avanço preciso no tempo.
        A imagem que temos é a de um relógio que vai avançando seguindo as leis da mecânica. Daqui vem a metáfora do Universo-relógio, que foi tão importante nos séculos 18 e 19, culminando com a declaração do francês Pierre Laplace: se uma supermente conhecer a posição e a velocidade de todas as partículas existentes no Cosmo em um determinado instante, poderá prever suas posições futuras com precisão. Nesse caso, tudo é predeterminado pelas leis da mecânica: eu ter escrito este ensaio, o país que ganhará a Copa, a inflação no ano 2045.
        É claro que, no caso de um determinismo perfeito, o livre-arbítrio não existe. Somo todos autômatos, seguindo uma coreografia predeterminada. Não é à toa que os românticos detestavam a mecanicidade da ciência do século 19.
        Felizmente, esse determinismo é impossível. Não podemos saber a posição e velocidade de todas as partículas que existem num mesmo instante: como medir à distâncias de bilhões de anos-luz? Ademais, sistemas com interações complexas (do Sistema Solar a um cérebro) são sensíveis à precisão com que sabemos a posição e velocidade de seus componentes. Como nenhuma medida tem precisão absoluta, não podemos prever o futuro distante.
        A física quântica também impõe limites na precisão das medidas de posição e velocidade de uma partícula. Do nosso ponto de vista, o determinismo é inviável, especialmente para sistemas complexos como o cérebro ou a sociedade.
        A alternativa é que o Cosmo seja determinístico e que nós sejamos incapazes de saber como isso ocorre. A "máquina" existiria além de nossos instrumentos ou capacidade de cálculo. Me parece que esse tipo de determinismo é uma outra versão de Deus: onisciente, inescrutável e impossível de ser comprovado.

          Calor e luz - Sérgio Dávila

          folha de são paulo
          Calor e luz
          SÃO PAULO - Pela primeira vez, Barack Obama citou Edward Snowden pelo nome. Foi na sexta, quando fez uma prestação de contas pro forma sobre o alcance da arapongagem norte-americana. "Não vou me alongar sobre as ações ou motivações do sr. Snowden. Mas direi que nosso sistema de defesa depende em parte da fidelidade daqueles a quem foram confiados os segredos de nosso país."
          Para ele, a discussão sobre se o ex-prestador de serviços da CIA é herói ou traidor levantou um debate que "tem gerado mais calor do que luz".
          O presidente respondia a setores da opinião pública que pedem perdão ao ex-analista de inteligência, exilado na Rússia. Em 2013, o delator revelou ao mundo a invasão de privacidade sem precedentes de pessoas e países feita pela NSA, o leviatã da espionagem americana.
          O ministro da Justiça de Obama já escrevera ao colega russo pedindo extradição. Na carta, afirma que o ex-técnico não será condenado à morte nem submetido a tortura --curiosa época a nossa, em que os EUA têm de prometer à Rússia que não torturarão um prisioneiro.
          Snowden tem três opções. Continuar em Moscou, o que ele não quer; conseguir asilo em outro país, e aqui o Brasil tem sua preferência; ou voltar para casa e sofrer as consequências.
          O caso a favor do asilo brasileiro não é fraco. Snowden é uma fonte jornalística tão importante quanto a que revelou o Watergate. Mas parece pouco provável que Dilma compre essa briga.
          Sobra a volta aos EUA. Um juiz já entendeu que com seus atos o governo viola a 4ª Emenda da Constituição, que proíbe buscas arbitrárias. Críticos dizem que se Snowden viu algum malfeito deveria ter levado a seus superiores, não ao público.
          O seu julgamento, se acontecer, pode provocar a regulamentação e o redimensionamento por governos e empresas de tecnologia do uso de ferramentas de invasão de privacidade. Um debate com calor e luz, eis o verdadeiro legado de Snowden.

          Carlos Heitor Cony

          folha de são paulo
          Deus
          RIO DE JANEIRO - A pergunta fundamental, a única que realmente é pergunta, pois todas as demais são respostas disfarçadas, é a da existência de Deus. Se Deus existe ou não, é problema da filosofia. Se eu creio ou não em Deus, é o meu problema.
          Ao terminar um romance coloquei na boca de um personagem a frase que podia ser minha: "Deus acabou". Friso: não fiz o personagem afirmar: "Deus não existe". Ou: "Não creio em Deus". Faço-o dizer como eu mesmo me digo nas horas de angústia e tédio: Deus acabou.
          Nos idos do passado, fui participar de um programa de TV apresentado por Ary Barroso, que mantinha uma espécie de debate sobre determinado assunto. Fui lá com o Austregésilo de Athayde debater a emocionante questão: Deus existe? Austregésilo defendeu a afirmativa, a mim coube defender a negativa.
          Evidente, discutiu-se uma tese e não um problema pessoal. Ressuscitamos velhas questões, os argumentos de causalidade, os cinco famosos argumentos de São Tomás, a tese da realidade manifesta. O debate foi erudito e não se chegou a nenhuma conclusão. Athayde saiu de lá crendo, eu saí não crendo e Ary Barroso saiu ora crendo, ora não crendo.
          Posso hoje confessar: não fui sincero naquele programa. Não que realmente acredite em Deus, mas escamoteei meu verdadeiro pensamento. Não me interessa saber se Deus existe ou inexiste. O que importa é que Deus acabou para mim. Tive Deus e gastei Deus demais. Fui um perdulário de Deus. Errei nos meus cálculos. Gastei demasiadamente um capital inesgotável. Ora, cada um de nós tem uma determinada quota de Deus. Meu capital não era tão grande como pensava, e gastei muito e depressa.
          Como o filho pródigo, fui impaciente e me atirei a gozar a fundo. Um dia, amanheci pobre e nu, disputando com os porcos os restos de comida que sobravam da mesa dos mais prudentes.

            O Maranhão de verdade - Flávio Dino

            folha de são paulo
            FLÁVIO DINO
            TENDÊNCIAS/DEBATES
            O Maranhão de verdade
            O choque entre o potencial rico e a pobreza abundante é o triste retrato do Maranhão de verdade. Quem está no topo do regime está desorientado
            Em artigo nesta Folha, a governadora Roseana Sarney sustenta que o Maranhão é um Estado rico e que vai muito bem ("O Maranhão de verdade", 12/1).
            De fato, o Maranhão tem muitas riquezas, mas isso não se reflete na qualidade de vida de grande parte da população, como revelam os indicadores sociais do nosso Estado.
            Esse é o paradoxo maranhense que a crise na segurança pública sublinhou para todo o Brasil.
            Temos um extenso território cortado por ferrovias e rodovias. Diferentemente de outros Estados do Nordeste, há água abundante em rios e lagos. Nosso litoral é o segundo maior do Brasil, propício à pesca em grande escala.
            O complexo portuário maranhense está localizado próximo aos principais mercados consumidores do mundo, o que aumenta a sua competitividade. A agricultura e a pecuária são intensamente exploradas em nossas terras.
            Nosso potencial para o turismo é reconhecido por todos, por exemplo com a beleza única dos Lençóis Maranhenses. Somos a terra de Gonçalves Dias, Ferreira Gullar, Nauro Machado e Zeca Baleiro, do bumba meu boi e de centenas de outros valiosos grupos culturais.
            No entanto, o Maranhão frequenta assiduamente as piores posições em todos os rankings de medição da qualidade de vida. Os maranhenses são atendidos pelo menor número de médicos e de policiais por habitante do país.
            Entre 2009 e 2013, o Maranhão seguiu o caminho inverso do Brasil no quesito educação. O número de analfabetos cresceu no Estado, passando de 19% dos maiores de 15 anos para 20,8% nessa faixa etária.
            Essas contradições entre o potencial riquíssimo e a pobreza abundante é o triste retrato do Maranhão de verdade. Após 50 anos de mando, os que estão no topo desse regime estão desorientados e descolados da realidade.
            Nada mais revelador do que o governo do Estado comprar toneladas de lagostas, camarões e caviar, complementadas por champanhes e uísques importados, para o consumo dos altos escalões do poder enquanto bárbaras cenas nos presídios maranhenses são veiculadas pelo mundo inteiro e as famílias ainda choram por seus parentes.
            É fundamental compreender que há direta conexão entre os problemas sociais e a configuração da política maranhense. O patrimonialismo praticado no Maranhão é o mais exacerbado da história brasileira.
            Isso faz com que os recursos públicos sejam direcionados visando, acima de tudo, à acumulação privada de bens, e essa é a causa principal para que tantas riquezas não se traduzam em serviços públicos minimamente razoáveis.
            Essa terrível crise do sistema penitenciário mostra que é urgente virar essa página em nosso Estado, assegurando a igualdade de todos perante a lei, o primado dos direitos fundamentais e a honesta aplicação do dinheiro público. Os valores da República precisam chegar ao Maranhão para que o nosso povo seja rico de verdade. Essa é uma causa que interessa a todo o Brasil.

            Liderança em downloads ilegais 'é melhor que Emmy' para Time Warner

            folha de são paulo

            Nelson de Sá

            Aos poucos, Hollywood aprende a parar de se preocupar e a amar a pirataria.
            Questionado sobre downloads ilegais ao anunciar o balanço da empresa há seis meses, o presidente da Time Warner, Jeff Bewkes, disse que "Game of Thrones", pelo jeito, "é a série mais pirateada do mundo". "E isso é melhor que um Emmy."
            Para a maior corporação de mídia do mundo, com subsidiárias como a HBO, a pirataria "é um tremendo boca a boca" e serve de porta de entrada para futuros clientes, dispostos a pagar.
            Terminou o ano e, de fato, a Time Warner acaba de ganhar seu prêmio "melhor que um Emmy". Pelo levantamento do site holandês TorrentFreak, referência mundial em downloads ilegais, "Game of Thrones" foi a série mais pirateada de 2013.
            O site cobre pirataria, mas não faz. Em entrevista, seu fundador e editor, de pseudônimo Ernesto van der Sar, afirma que "uma das principais razões para as pessoas piratearem é não haver alternativas legais à disposição".
            Dá como exemplo o que acontece com "muitos novos filmes e séries de TV dos Estados Unidos", inclusive por aqui: "É frequente o caso no Brasil, devido aos atrasos nos lançamentos".
            Além dos atrasos, cita "outras barreiras, como o preço, que tende a pesar mais nos países em desenvolvimento" —como Brasil e China, que a associação dos estúdios americanos (MPAA, na sigla em inglês) considera "mercados notórios" de pirataria.
            Jeff Bewkes não ficou no discurso. Na segunda, a HBO liberou os primeiros episódios da nova temporada de "Girls" no YouTube 12 horas após a exibição na TV nos EUA.
            E a Time Warner não está sozinha. Duas semanas atrás, a BBC liberou o acesso on-line ao primeiro episódio da nova temporada de "Sherlock", via Youku Tudou, o YouTube chinês, duas horas após ir ao ar no Reino Unido.
            Confirmando que a indústria começa a lidar com a questão de forma mais complexa, o Netflix afirmou, ao lançar seu serviço on-line na Holanda, que usa downloads ilegais como parâmetro.
            "Na compra de uma série, miramos o que tem bom desempenho nos sites piratas", declarou a vice-presidente mundial de compra de conteúdo do Netflix, Kelly Merryman, ao site holandês Tweakers, citando "Prison Break" como exemplo.
            Editoria de Arte/Folhapress
            HÁBITO
            Se parte de Hollywood já vê utilidade na pirataria, não faltam alertas do contrário.
            Para cada Vince Gilligan, produtor de "Breaking Bad" que diz que os downloads ilegais "ajudaram" a popularizar a série, há uma Gale Hurd, de "The Walking Dead", que chama as evidências de efeito positivo de "piada".
            "Colegas meus têm uma crença equivocada de que pirataria é bom e quem vê desenvolve o hábito de pagar", disse Hurd há um mês, em evento antipirataria, acrescentando que "cria um hábito sim": não pagar nunca.
            Ernesto, do TorrentFreak, diz que a crença "tem sua razão: nem sempre é fácil para o pirata abandonar o hábito, mesmo com alternativas legais gratuitas". Cita a estreia de "The Walking Dead" neste ano: mesmo liberada por "streaming" pelo AMC, foi alvo de "download em massa".
            A Fox, de séries como a recém-premiada "Brooklyn Nine-Nine", vai além.
            "Não podemos justificar a pirataria para ganhar audiência", diz Daniel Steimetz, "oficial-chefe antipirataria" da Fox International Channels. "Pelo contrário, temos de criar consciência na sociedade, fazendo-a entender que é um ato desprezível, punido pela lei, que afeta toda a indústria." A Fox, relata Steimetz, está "à frente da luta contra a pirataria na última década, tendo sido a primeira da América Latina a criar alianças estratégicas".
            Duas semanas atrás, por outro lado, a mesma Fox veiculou nos EUA um episódio de "Os Simpsons" em que Homer, diante da dificuldade em assistir a um filme do qual todos falam, aprende com Bart como fazer download no site fictício The Bootleg Bay. 
            Canais aceleram trabalho de legendadores
            GIULIANA DE TOLEDODE SÃO PAULOSe os canais correm para lançar as séries no Brasil cada vez mais perto da data de estreia no exterior, o trabalho das empresas que legendam episódios também precisou ser acelerado.
            O tempo de preparação das legendas de um capítulo caiu pela metade: em média, de uma quinzena para uma semana, conforme Drei Marc e Gemini, empresas líderes no serviço no país. Ambas têm como clientes grandes canais de TV por assinatura.
            Apesar de reduzido nos últimos dois anos, o prazo ainda é longo se comparado ao de 24 horas, estabelecido por equipes amadoras de legendagem, que publicam suas traduções gratuitamente na internet.
            Esses arquivos são usados para acompanhar vídeos baixados em sites piratas antes do lançamento oficial no país.
            "A pirataria estimula a criação de legendas não oficiais", diz Carlos Neves, diretor de proteção de conteúdo da divisão latino-americana da MPAA. A entidade, composta pelos estúdios Sony, Warner, Fox, Paramount, Disney e Universal, se diz contrária às "legendas piratas".
            A equipe inSUBs, a maior do site legendas.tv --página que reúne diversos grupos brasileiros--, traduz em até um dia cada novo capítulo de algumas das 26 séries de que cuida. As atrações mais famosas têm prioridade na entrega.
            A inSUBs tem cerca de 140 membros --número semelhante ao de colaboradores das empresas. Cada capítulo é dividido em até oito pessoas, que o traduzem simultaneamente, para compor o arquivo final.
            "Fica um Frankenstein", avalia Marcelo Leite, diretor do controle de qualidade da Drei Marc, sobre o método amador. "Aqui priorizamos a qualidade e a unidade, não a velocidade", explica.
            Além da rapidez, a tradução informal privilegia o gosto do tradutor, e os envolvidos não ganham nenhuma remuneração.
            "A gente cuida das séries de que gosta. É um trabalho de fã. Não recebemos nada a não ser gratidão", diz à Folha Ivanz (apelido), 28, um dos administradores da inSUBs.
            O morador de Brasília, que não revela seu nome, trabalha na área administrativa de um banco e, nas horas vagas, se dedica a revisar as legendas da série "The Good Wife". A tarefa lhe exige dez horas de dedicação a cada episódio.
            No mercado formal, cada episódio rende ao tradutor de R$ 150 a R$ 500, a depender do grau de dificuldade do conteúdo.
            Com a experiência adquirida na informalidade, muitos passam a trabalhar também como profissionais. Moacyr Lopes, diretor da Gemini, calcula que 20% dos seus atuais freelancers tenham começado na internet.

              José Simão

              folha de são paulo
              Ueba! Maranhão vira Lagostão!
              'Senadores fazem inspeção em Pedrinhas.' E ninguém se lembrou de trancar a porta por fora? Rarará
              Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Piada Pronta: "Polícia flagra racha de charretes em Botucatu". É remake de "Ben Hur"? E como eles dão cavalo de pau em charrete? Rarará.
              "Senadores fazem inspeção em Pedrinhas". E ninguém se lembrou de trancar a porta por fora? Rarará.
              Três fatos abalaram a semana: Maranhão, rolezinhos e o terno vermelho do Messi! Ele tava parecendo garçom de puteiro! Cantor de festa de casamento! Mágico do Circo Vostok!
              Mas nada bate aquele smoking do ano passado: preto com bolinhas brancas. Galinha de Angola! O Messi tem duas estilistas: a filha do Dunga e a estilista do Faustão!
              E o Maranhão? Ops, Lagostão! Maranhão vira Lagostão! Roseana Sarney é desgovernadora do Estado do Lagostão! E aí perguntaram pro Sarney: "Como é que os presídios ficaram nessa barbárie?". "Culpa do meu antecessor!". "Quem?". "Dom Pedro 2º". Rarará!
              E os rolezinhos? Posso entrar no shopping de bermuda Bob Marley? Não, só com polo de gola levantada e Visa no bolso!
              Facebook Urgente! Represália! Tá agendado um rolezinho de coxinhas em Heliópolis. No bar do Russo! Com manobrista e transmissão direta do "Cidade Aleta". E um participante: "Como é que tá o asfalto lá? Meu Fusion é rebaixado".
              E as autoridades estão atentas! Alckmim lança rodízio de rolezinhos e pedágio em porta de shopping. E o Haddad vai criar faixa exclusiva para rolezinhos dentro dos shoppings. E o mauricinhos estão agendando um rolezinho na periferia de Miami. Rarará.
              E a PM chama bala de borracha de "munição elastômera". Já imaginou? "Cuidado! Lá vem uma munição elastômera". PUNF! Rarará!
              E socuerro! Todos para o abrigo! Me mate um bode! Começou o "BBB"! Abriram o açougue! A Turma do Friboi! As Gostosas do Friboi e os Rinocerontes de Sunga! E a pérola do programa: "A maldade tá no olho de quem vê e no volume da sua sunga". PAF!
              E eu já disse que a próxima geração no Brasil vai nascer falando "Oi, Bial!". Papai, mamãe e oibial. Oibial virou uma palavra só! Rarará!
              E um amigo está numa pousada no Nordeste com o cartaz: "Quem quiser café na cama, vá dormir na cozinha". Concordo! Rarará!
              Nóis sofre, mas nóis goza.
              Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

              Antonio Fagundes faz dobradinha com o filho caçula, Bruno, no palco e na TV - Monica Bergamo

              folha de são paulo
              Diante de uma entrada de mexilhões, Antonio Fagundes, 64, é taxativo: "Só posso comer o limão", brinca o ator, ao dispensar o prato. Vai degustar no almoço no restaurante da Casa das Rosas um filé de saint peter grelhado com legumes e salada.
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              Ele explica à repórter Eliane Trindade que está fazendo a dieta da proteína. "Não é para emagrecer, é saúde. Quero ficar bem e ir emagrecendo devagarinho. Vai levar dois anos pra chegar no que quero. Sem ansiedade."

              Antonio e Bruno Fagundes

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              Eduardo Anizelli/Folhapress
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              Fagundes e o filho se tornaram sócios de uma cooperativa para viabilizar a produção da peça sem patrocínios
              No dia anterior, confessa logo depois, passou na padaria e desequilibrou a equação 20% de carboidratos/80% de proteínas diárias. "Não aguentei, comi um pãozinho saído do forno." Com um personal trainer, ganhou disciplina de malhação. "Tô fazendo ginástica. Tô tão orgulhoso de mim mesmo."
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              Seu caçula, Bruno, 24, é ainda mais econômico no consumo de calorias: fica só na salada. Ergue a taça de espumante para o brinde, mas não bebe. "É meu janeiro seco, sem álcool", explica, no propósito de atravessar o mês também sem ingerir doces.
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              Tanto o pai, peso-pesado da dramaturgia nacional, agora na pele de César em "Amor à Vida", quanto o filho, que estreia na TV na próxima novela das seis da Globo, estão em sintonia alimentar e no trabalho. Na sexta, reestrearam a peça "Tribos", que já levou 30 mil espectadores ao teatro em São Paulo, em três meses em cartaz.
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              É a segunda experiência da dupla em cena. Em "Vermelho", de 2012, o convite foi paterno. Agora, a iniciativa partiu de Bruno, que descobriu em Nova York o texto sobre uma família disfuncional que precisar lidar com um deficiente auditivo.
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              "Quando o pano abre, não somos pai e filho, mas dois profissionais. Não carrego o parentesco para o trabalho", diz Bruno. "Estou lutando pelo meu espaço, humildemente. Quem me vê atuando percebe que tenho dedicação." O pai dá uma piscadela e diz em tom de confidência: "O cara é bom". E emenda: "A cobrança maior é minha e dele".
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              São também produtores (investiram R$ 100 mil do próprio bolso para dar início ao projeto). "Metade cada um", salienta o filho. Criaram uma cooperativa com 17 colegas para viabilizar o espetáculo sem patrocínios.
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              "Criamos uma empresa, todos entraram de sócios encarando o risco de bilheteria", explica Bruno. Abriram mão de ir à caça do R$ 1,8 milhão, aprovado pelo Ministério da Cultura, que poderiam captar pela Lei Rouanet. "Há um equívoco do governo ao dar esse patrocínio [via lei de incentivo], que virou espécie de cala-boca para a classe teatral", diz Fagundes.
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              Com 50 produções teatrais em 48 anos de carreira, o ator conta nos dedos quantas vezes recebeu dinheiro de patrocinadores: três. "A única coisa que o governo faz é decidir quem não pode [contar com Lei Rouanet]. O que funciona como certa censura. Envia-se o projeto, eles analisam e apoiam ou não a possibilidade de ir atrás de patrocínio. Não fazem mais nada."
              A crítica se estende à "segunda censura econômica", após o filtro ministerial. "É quando você vai falar com o gerente de marketing das empresas. São pessoas estudiosas, mas de suas áreas. Alguns até gostam de teatro, mas não são capazes de avaliar um texto. Sem falar que, se passar por essa etapa, seu trabalho vira brinde de empresa."
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              O filho faz coro: "Eles querem usar nossa visibilidade para estampar a marca deles na nossa testa". Relatam ter ouvido de um diretor de marketing de uma grande corporação que a peça "era cultural demais". O pai rechaça o argumento de que se trata de uma troca. "Seria, caso colocassem recurso do bolso deles, mas não põem."
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              Sem dinheiro do contribuinte por meio de renúncia fiscal, "Tribos" se pagou com casa cheia. "Nossa média de público foi de 589 por dia. 89% da ocupação", contabiliza Bruno. A conta fecha alavancada pelo protagonista de um folhetim das oito. "Fico feliz quando a novela faz sucesso, pois vai levar 30% a mais de público ao teatro", diz Fagundes, o produtor.
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              Há 38 anos batendo ponto na maior emissora do país, o galã sai em defesa de Walcyr Carrasco, autor de "Amor à Vida", detonado por colegas de elenco. "Criticam a novela como se fosse uma obra definitiva. Não é. A proposta é entreter. Se mantém 70 milhões de pessoas ligadas, cumpriu o propósito."
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              Fagundes vai emendar outra novela. Foi escalado para a próxima trama de Benedito Ruy Barbosa, "Meu Pedacinho de Chão", com direção de Luiz Fernando Carvalho. Mesmo trio de "O Rei do Gado" (1996) e "Renascer" (1993). "Fiz teste e só soube que meu pai tava no elenco depois de aprovado", diz Bruno.
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              O estreante será um médico que percorre o interior do país. "Estava até pensando em fazer com sotaque", brinca, em referência aos estrangeiros do Mais Médicos. Começam a gravar no fim do mês. "Será uma novela diferenciada, com cem capítulos e poucos núcleos."
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              O sistema industrial de produção dos novelões tradicionais levou Fagundes a encabeçar movimento entre os astros globais. "Estamos conversando com a Globo tentando nos entender para melhorar artisticamente a nossa participação. Naturalmente, vamos mexer com problemas de carga horária e de tempo para estudar em casa."
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              Querem receber horas extras pelas 12, 13 horas de gravação diárias? "Elas são pagas, não é esse o caso", explica. "Disseram que a gente estava pensando em dinheiro. Não se tocou nisso. Por enquanto, estamos buscando formas de retomar o nosso prazer artístico, sem a aflição de ter 40 cenas para fazer."
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              Fagundes pede a salada para fechar o menu light e encara o papo indigesto das próximas eleições presidenciais. "Tá ruim, né? Sinto muito não termos uma oposição." Não se empolga com o tucano Aécio Neves nem com a terceira via representada por Eduardo Campos (PSB). "Parece que ele é um ótimo administrador, mas uma coisa é Pernambuco, outra é o Brasil."
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              Marina Silva também não o convence. "O purismo dela é burro. Vai governar como? Terá que fazer alianças. Ao mesmo tempo, essa história de governabilidade é um problema. Tudo bem, é preciso fazer aliança pra governar, mas logo com bandido?"
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              Não vê distinção entre PT e PSDB. "É um sistema inteiro comprometido." Cobra punição para o mensalão mineiro. "Ninguém está tocando no assunto. É só o PT? Não." Lembra ainda denúncias de cartel no metrô de SP. Dilma Rousseff decepcionou: "Tinha condição de fazer mais".
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              Pai e filho dispensam a sobremesa e voltam a se empolgar ao falar da "acessibilidade total" de "Tribos" para portadores de deficiência. No último sábado do mês, contam com intérpretes de Libras para traduzir o espetáculo aos cerca de 2.000 deficientes auditivos que já foram vê-los.
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              Bruno está estudando a língua brasileira de sinais. "Aprender Libras é tão difícil quanto mandarim." Serão pioneiros em acessibilidade também para portadores de deficiência visual, por meio de audiodescrição da peça.
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              É hora do cafezinho e de falar de cinema. Fagundes estreia, dia 31, "Quando Eu Era Vivo", de Marco Dutra, ao lado de Sandy. O longa é adaptação de um livro de Lourenço Mutarelli. "Li tudo dele, adoro. Quando me chamaram, dei pulos de alegria."
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              E se alegra também com o fato de o filme de baixo orçamento seguir sua lógica de produtor teatral. "O movimento certo é fazer projetos que possam se pagar e sermos menos dependentes de patrocínios." E conclui: "Estamos em um momento de repensar a profissão e de se perguntar: 'Eu quero continuar sendo ator, diretor, produtor de cinema, teatro e TV ou vou ser captador e empresário?'". 
              mônica bergamo
              Mônica Bergamo, jornalista, assina coluna diária publicada na página 2 da versão impressa de "Ilustrada". Traz informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde ab