segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Debate sobre retocar fotos esquenta na internet


Debate sobre retocar fotos esquenta na internet

Jodi Kantor
Divulgação/Vogue
  • Em 2012, a Vogue alemã fez um editorial com modelos sem uso de Photoshop
    Em 2012, a Vogue alemã fez um editorial com modelos sem uso de Photoshop
Há algumas semanas, duas publicações que se consideram defensoras das mulheres se enfrentaram – com um resultado inesperado.
Jezebel, um site que ganhou fama protestando contra a artificialidade nas revistas femininas, anunciou o que parecia um golpe subversivo feminista. Ele ofereceu uma recompensa de US$ 10 mil para quem pudesse oferecer as versões cruas, sem retoques, de fotos de Lena Dunham da nova edição da Vogue, com o objetivo de "revelar quantos quilos Dunham perdeu na dieta Vogue" de alteração digital, como colocou o The Cut. No dia seguinte, o Jezebel publicou as fotos originais.
As fotos sem edição conseguiram mais de 1 milhão de page views – mas o exercício também pareceu ter sido um tremendo fracasso. Dentro de poucas horas, o Jezebel foi acusado de ser insensível e fazer bullying, enquanto a Vogue, uma revista que há muito é o alvo favorito do ódio de algumas feministas, atraiu elogios por mostrar uma mulher cujo corpo não se parece em nada com o de uma supermodelo.
Para muitos leitores, o Jezebel pareceu ter escolhido o alvo errado, uma escritora e atriz que havia conseguido colocar seu próprio corpo "diferente" – quer dizer, normal – na televisão. E embora a Vogue tenha feito uma grande cirurgia reconstrutora nos cenários das fotos, havia deixado o corpo de Dunham, criadora e estrela da série "Girls" da HBO, essencialmente intacto.
"Eles queriam fotos sem retoques de Lena Dunham? Vou vender a eles meu DVD da primeira temporada de 'Girls'", ironizou o crítico de TV James Poniewozik no Facebook, referindo-se às cenas de nu estilo aceitem-me-como-sou de Dunham. "Jezzies" de longa data, como são chamados os leitores do site, reclamaram dos comentários. Até Anna Holmes, editora-fundadora do site, disse numa entrevista que ficou "surpresa" com o que seus sucessores haviam feito.
O esquema pode ter fracassado por outro motivo: as femininas podem finalmente declarar vitória – ou, pelo menos, celebrar grandes passos – em sua antiga luta contra essas revistas.
Em vez de conselhos sobre como agradar os homens, a capa de fevereiro da Cosmopolitan alerta suas leitoras a não deixar de fazer um acordo pré-nupcial no caso de virem a ganhar mais que seus maridos. Na última edição da Glamour, as primeiras páginas mostram várias modelos e atrizes negras e uma atleta deficiente. Na Vogue, a carta da editora Anna Wintour diz que Dunham é "tão perfeita" para revista por não ser uma escolha convencional.
"Não entendo por que, com ou sem Photoshop, colocar uma mulher que é diferente da capa típica da Vogue pode ser uma coisa ruim", disse Dunham à French Slate em resposta à polêmica.
Durante décadas, as revistas femininas fizeram às feministas o favor de oferecer alvos claros, exemplos mensais das atitudes sociais repressoras contra as quais elas lutavam.
Em março de 1970, quase 100 mulheres ocuparam o escritório do editor do Ladies' Home Journal por 11 horas. No ano seguinte, Gloria Steinem e colegas fundaram a Ms. Magazine. As revistas nem sempre foram tão enfadonhas quanto as caricaturas sugeriam: a Cosmopolitan mapeou seu próprio tipo de liberação, os artigos exploravam tópicos então tabus como o câncer de mama, e a Seventeen ofereceu salários e casas a escritoras como Sylvia Plath, Ann Patchett e Adrian Nicole LeBlanc. Mas o carro-chefe ainda eram modelos brancas e magras; ganhar a aprovação masculina; e criar "inseguranças e depois tentar resolvê-las", como coloca Holmes.
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Mancadas no Photoshop: modelos e famosas ficam distorcidas em anúncios e revistas42 fotos

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A fotógrafa Anna Hill divulgou um projeto em seu site (http://zip.net/bflNN8) para mostrar como o Photoshop cria mulheres irreais. A legenda da imagem acima, em que a própria Anna aparece como modelo (à direita, após recursos de edição), oferece o kit de beleza tudo-em-um do Photoshop. Ele contém lápis de olho, sombra, rímel, lentes coloridas, batom, base, tintura de cabelo e cirurgia plástica (para aumentar o olho, arrumar o nariz e esticar o rosto). ""Imortalize sua beleza. Ninguém nunca saberá, desde que você não deixe ninguém vê-la pessoalmente"" Reprodução/Nebulaedecay
Em 2007, Holmes lançou o Jezebel, de propriedade da Gawker Media, como uma alternativa e um ataque às revistas como Glamour e InStyle, ambas publicações onde ela havia trabalhado.
Em seu primeiro ano, quando publicou a versão sem retoques da capa da Redbook com a estrela country Faith Hill, o Jezebel foi elogiado por inspirar uma nova onda de escrutínio sobre as imagens que não se pareciam em nada com mulheres reais. A Redbook apagou as bolsas sob os olhos de Hill, bem como uma porção significativa de gordura corporal.
Mas desde então, as chamadas de capa e o conteúdo mudou. "As mulheres mudaram e nossa cultura mudou em geral", disse Cindi Leive, editora-chefe da Glamour, numa entrevista. A Vogue prometeu no ano passado não usar mais modelos que "parecem ter um distúrbio alimentar" e a Glamour ampliou o uso de modelos de medidas grandes. Em 2011, Gloria Steinem aceitou o prêmio de "Mulher do Ano" da Glamour, abraçando um gênero que antes ela criticava.
Em entrevistas, Joanna Coles, editora-chefe da Cosmopolitan, e Leive disseram que estão constantemente acompanhando, por Twitter e outros meios digitais, o que as leitoras sentem e se são representadas com precisão. "Você pode parecer datada e antiga se não fizer isso", disse Leive. A edição de fevereiro da Cosmopolitan, por exemplo, oferece conselho sobre como "falar o que pensa & se destacar no trabalho" e um artigo sobre casais que tomam decisões conjuntas sobre abortos.
A editora da Jezebel, Jessica Coen, disse numa entrevista que ainda vale a pena lutar contra as revistas femininas. "Ainda estamos falando de um setor e estética que nos diz que círculos em volta dos olhos são errados", disse ela, defendendo a exposição que fez das fotos de Dunham.
Entretanto, Roxane Gay, parte da nova safra de críticas feministas que ganhou atenção online, disse que a Vogue e suas iguais não são a principal preocupação. "As linhas de frente no momento não são as revistas femininas", disse ela. Em vez disso, Gay disse que prefere se concentrar na "erosão da classe média" – e desfrutar das revistas pelas fantasias que elas são.   
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Ferramentas grátis para PC ou smartphone editam fotos sem uso do Photoshop; conheça31 fotos

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Apesar de ser um dos programas de edição mais completos no mercado, o Photoshop não é gratuito e nem sempre o usuário está disposto a pagar pela licença de uso do software. Mas há várias opções sem custo que ajudam em pequenos ajustes nas fotos na web, PC ou smartphone. Dá para cortar, endireitar e até mesmo corrigir elementos como saturação e contraste da imagem. Conheça a seguir Arte/UOL
Tradutor: Eloise De Vylder  

Ronaldo Lemos

folha de são paulo
INTERNETS
RONALDO LEMOS @lemos_ronaldo
WeChat exporta leis da China para o mundo
Cada vez mais gente no Brasil usa o app WeChat. Ele é um "remix" do Facebook, do Twitter e do WhatsApp com algumas funções originais.
O que nem todo mundo sabe é que o WeChat é um aplicativo chinês, da empresa Tencent. Ele tem 300 milhões de usuários (a maioria na Ásia) e quer chegar a 400 até o fim do ano. Para isso, aposta em mercados como o Brasil para crescer. Com isso, o valor da Tencent já atingiu US$ 100 bilhões.
Só há um problema. O WeChat "exporta" para o mundo as leis da China. Todas as informações coletadas dos usuários, tais como localização, lista de contatos, fotos, textos e hábitos sujeitam-se às leis da China.
Como se sabe, a China não é bem um exemplo de boas práticas na internet. Há censura e reclamações de vigilância e monitoramento de dados por parte do governo chinês. A Tencent nega problemas e diz que não armazena mensagens. De qualquer forma, os termos de uso do WeChat dizem claramente que são governados pela lei de Hong Kong. Qualquer disputa deve também ser resolvida pelo Centro de Arbitragem de Hong Kong.
Leis que inspiram confiança são um ativo importante para países que querem se projetar na rede. Por isso os EUA estão correndo para mitigar a crise pós-Snowden. No discurso sobre espionagem e privacidade de Barack Obama, ele deu alfinetadas: "Ninguém espera que a China tenha um debate aberto sobre seus programas de vigilância, ou que a Rússia leve em conta as preocupações sobre privacidade de seus cidadãos". Quem protege direitos para valer gera confiança na rede. Essa é mais uma razão para o Brasil aprovar um bom Marco Civil para a internet.
READER
JÁ ERA Exercícios e internet em mundos separados
JÁ É Medir os dados da corrida com aplicativos de celular
JÁ VEM Medir os dados da partida de tênis com raquete conectada à rede (bit.ly/raqcon)

    Luli Radfahrer

    folha de são paulo
    Abertura ampla, geral e irrestrita
    Abrir dados leva a administrações mais saudáveis, transparentes, enxutas e acessíveis
    Vivemos em uma época contraditória. Tecnologias conectam o mundo, distribuindo dados científicos, estimulando a colaboração e acelerando as descobertas, ao mesmo tempo em que muitas empresas insistem em trancar suas descobertas em caixas pretas, como um iPhone.
    O movimento pelos dados abertos é uma das principais ferramentas para combater esse enclausuramento da informação. Governos do mundo todo estão abrindo o acesso a suas bases de dados em busca de maior eficiência nos processos, combate à corrupção e mensuração do impacto de políticas públicas. O nosso, por meio da Lei de Acesso à Informação Pública, liberou o acesso aos dados do governo em um portal que, nos próximos três anos, deve abrir a consulta aos dados publicados por todos os órgãos do governo federal, além de dados de saúde pública, transporte, segurança, educação, gastos governamentais e processo eleitoral das administrações estaduais e municipais.
    Algumas empresas inovadoras seguem o mesmo caminho. Informações corporativas estão se tornando mais fluidas, circulando pela economia à medida que empresas compartilham seus dados com seus parceiros comerciais e, até certo ponto, com seus consumidores. Essas informações, enriquecidas por agregadores de dados, que compilam grandes volumes de informações anônimas vindas de interações com websites e serviços de mídia social, podem gerar um progresso sem precedentes. Um bom exemplo está no GPS. Se ele não tivesse deixado os segredos militares, não estaria nos carros e telefones hoje, movimentando uma grande quantidade de negócios e empresas.
    Dados abertos vão além do que é proporcionado pela internet hoje. Muito conteúdo, registrado em formas não textuais, pode ser compilado e administrado por máquinas, gerando uma inteligência inédita. Mapas, genomas, fórmulas químicas, matemáticas e científicas, práticas e resultados médicos, localizações geográficas e topográficas, pesquisa científica, dados financeiros e estatísticos são alguns exemplos.
    Para quem tem medo que os dados compartilhados revelem segredos ou comprometam vantagens competitivas, a internet mostra que a abertura leva a exatamente o oposto: administrações mais saudáveis, transparentes, enxutas e acessíveis. Essas estruturas criam seus próprios sistemas regulatórios, que, como boa parte dos sistemas operacionais da rede, são mais resistentes e evoluem mais rápido que seus concorrentes fechados.
    Abrir os dados não é um processo complexo nem caro, e pode gerar grande valor e economias. A consultoria McKinsey estimou que dados abertos podem gerar de US$ 3 trilhões a US$ 5 trilhões anuais em valor econômico em apenas seis setores: educação, transporte, bens de consumo, energia, saúde e finanças.
    É uma transformação muito mais ampla do que pode supor nossa vã tecnologia. Ela pode levar a uma transformação completa do que se entende hoje por governança pública e privada, transformando-as em plataformas de transparência, acesso, compartilhamento e reutilização.
    Para o cidadão e consumidor os benefícios são muitos: transparência, participação direta, serviços mais eficientes e novos conhecimentos gerados a partir de combinações de grandes volumes de dados. A mudança é tão grande que até parece fictícia. No entanto, nunca esteve tão próxima.

    Raquel Rolnik

    folha de são paulo
    Um presente para São Paulo
    O maior presente que São Paulo ganha vem de sua população: a ocupação e apropriação da cidade
    Às vésperas de completar 460 anos, São Paulo ganhou dois presentes: o anúncio da reabertura do Cine Belas Artes e o decreto que autoriza a criação de um parque na rua Augusta.
    Fechado há quase três anos, o Belas Artes finalmente será reaberto graças a um convênio firmado entre a Secretaria Municipal de Cultura e a Caixa, que viabilizará o cinema.
    Isso só foi possível em função da mobilização liderada pelo Movimento pelo Belas Artes (MBA) e da atuação da prefeitura.
    O caso do Parque Augusta, por sua vez, ainda está inconcluso. O decreto avança no sentido de sua criação, mas não o viabiliza, pois não torna a área automaticamente pública. Pagar R$ 100 milhões dos cofres públicos para desapropriá-la parece uma solução fácil para quem não pensa o conjunto da cidade.
    Outros instrumentos podem viabilizar o parque. Por exemplo, os proprietários podem vender o potencial construtivo correspondente à área do parque para terrenos localizados em outras regiões da cidade e, em seguida, doar a área para o parque.
    Esses dois casos têm em comum o conflito entre o interesse público em torno do uso de um imóvel e o interesse do proprietário que, evidentemente, busca utilizá-lo da forma mais lucrativa.
    Porém, o uso mais lucrativo para o proprietário não é necessariamente o melhor uso pra cidade. E o imóvel, além de pertencer a seu dono, é um pedaço da cidade. Por isso a Constituição determina que a propriedade, pública ou privada, tem uma função social.
    A área do Parque Augusta é uma das últimas áreas verdes de uma região bastante adensada e verticalizada. É absolutamente legítima a reivindicação de seu uso como parque.
    No caso do Belas Artes, seu uso como cinema de rua faz parte do patrimônio afetivo de São Paulo, ou seja, é relevante como parte de seu tecido histórico-cultural para muitos cidadãos.
    Infelizmente, as regras que definem hoje as funções sociais de cada imóvel da cidade, traduzidas nas leis de zoneamento e outras normas, não incorporam questões desse tipo.
    Embora seja possível --e desejável-- que, sob a liderança da prefeitura, se encontrem soluções pontuais e negociadas para conflitos como esses, há um desafio mais amplo que é necessário enfrentar: como o marco regulatório da cidade trata desses temas?
    Não dá mais pra continuarmos balizando o zoneamento da cidade somente em termos de verticalização sim ou não, comércio sim ou não, como se não houvesse outros valores implicados --históricos, culturais, afetivos, ambientais, sociais-- que também precisam ser levados em conta.
    A solução encontrada para o Belas Artes foi acertada e esperamos o mesmo para o Parque Augusta. Mas não podemos depender eternamente da discricionariedade do prefeito de plantão. O momento de pensar as funções sociais de cada pedaço da cidade é agora, com a revisão em curso do Plano Diretor e zoneamento da cidade.
    O Belas Artes de volta e, se concretizado, um parque na Augusta serão belos presentes para a cidade. Mas o maior presente que São Paulo ganha ao completar 460 anos vem de sua população: a ocupação e apropriação muito mais intensas da cidade, manifesta nestes e em outros movimentos.

      Ricardo Melo

      folha de são paulo
      Assim caminha a impunidade
      Enquanto o mensalão petista foi julgado com celeridade, o dos tucanos recebe tratamento diferente
      Meio na surdina, como convém a processos do alto tucanato, a Justiça livrou mais um envolvido no chamado mensalão mineiro. O ex-ministro e ex-vice-governador Walfrido dos Mares Guia safou-se da acusação de peculato e formação de quadrilha, graças ao artifício de prescrição de crimes quando o réu completa 70 anos. Já se dá como praticamente certa a absolvição, em breve, de outro réu no escândalo. Trata-se de Cláudio Mourão, ex-tesoureiro da campanha do PSDB ao governo mineiro em 1998. Ao fazer 70 anos em abril, Mourão terá direito ao mesmo benefício invocado por Mares Guia.
      Vários pesos, várias medidas. Enquanto o chamado mensalão petista foi julgado com celeridade (considerado o padrão nacional) e na mesma, e única, instância suprema, o processo dos tucanos recebe tratamento bastante diferente. Doze anos (isso mesmo, doze!) separam a ocorrência do desvio de dinheiro para o caixa da campanha de Eduardo Azeredo (1998) da aceitação da denúncia (2010). Com o processo desmembrado em várias instâncias, os réus vêm sendo bafejados pelo turbilhão de recursos judiciais.
      Daí para novas prescrições de penas ou protelações intermináveis, é questão de tempo. Isso sem falar de situações curiosas. O publicitário Marcos Valério, considerado o operador da maracutaia em Minas, já foi condenado pelo mensalão petista. Permanece, contudo, apenas como réu no processo de Azeredo, embora os fatos que embasaram as denúncias contra o PSDB mineiro tenham acontecido muito antes.
      Se na Justiça mineira o processo caminha a passo de cágado, no Supremo a situação não é muito animadora. A ação contra Azeredo chegou ao STF em 2003. Está parada até agora. Diz-se que o novo relator, o ministro Barroso, pretende acelerar os trabalhos para que o plenário examine o assunto ainda este ano. Algo a conferir.
      Certo mesmo é o contraste gritante no tratamento destinado a casos similares. Em todos os sentidos. Tome-se o barulho em torno de um suposto telefonema do ex-ministro José Dirceu de dentro da cadeia. Poucos condenam o abuso de manter encarcerado um preso com direito a regime semiaberto. Isso parece não interessar. Importa sim reabrir uma investigação sobre uso de celular, que aliás já havia sido arquivada. Resultado: com a nova decisão, por pelo menos mais um mês Dirceu perde o direito de trabalhar fora da Papuda.
      Por mais que se queira, é muito difícil falar de imparcialidade diante de tais fatos, que não são os únicos. As denúncias relativas à roubalheira envolvendo trens, metrô e correlatos, perpetrada em sucessivos governos do PSDB, continuam a salvo de uma investigação séria. Isso apesar da farta documentação colocada à disposição do público nas últimas semanas. Vê-se apenas o jogo de empurra e muita, muita encenação. Alguém sabe, por exemplo, que fim levou a comissão criada pelo governo de São Paulo para supostamente investigar os crimes? Silêncio ensurdecedor. Mesmo assim, cabe manter alguma esperança na Justiça --desde que seja a da Suíça.
      Depois da operação estapafúrdia na cracolândia e dos acontecimentos nas manifestações de sábado, ou o governador Geraldo Alckmin toma alguma providência para disciplinar suas polícias, ou em breve ele terá aquilo que todo governante sempre deveria temer: um cadáver transformado em mártir.

        Ruy Castro

        folha de são paulo
        Disco ocupado
        RIO DE JANEIRO - Na próxima vez que você esquecer o nome do seu neto, não tiver certeza se já tomou banho ou não se lembrar por que saiu de casa com um envelope endereçado e fechado contendo uma carta, não se desespere. Pode não ser --ainda-- a chegada do velho Al (Al Zheimer, conhece?) ou de alguma outra forma de demência senil. Estudos recentes de cientistas alemães indicam o contrário: quem mais esquece é o homem que sabe demais.
        Segundo eles, o cérebro do idoso, se não reage de pronto a certas solicitações, não é porque esteja com as porcas e arruelas enferrujadas ou sendo apagado aos poucos como um quadro-negro. É porque levou décadas armazenando informações. E, por ele conter gigantescos blocos de informações, mais complexa e lenta será a busca entre elas de informações novas. É como o disco rígido do computador que, por estar "cheio", demora mais para processar os dados.
        Essa não é uma imagem, mas um diagnóstico. Os alemães simularam em computador o desempenho de bancos de dados maiores e menores --esses últimos, equivalentes ao cérebro de um jovem adulto-- e constataram que a diferença não estava no desgaste do material, aliás inexistente, e sim na carga de dados.
        Gostei dessa descoberta, mas eu próprio já havia chegado a ela sem precisar de simulações. Há tempos venho percebendo que minha lentidão para gravar certas informações se dá porque o espaço na cabeça está ocupado com detalhes da trama de romances como "Scaramouche", "O Pimpinela Escarlate" e "Elzira, a Morta-Virgem", gibis de Mandrake, Dick Tracy e Brucutu, cenas de beijo de filmes de Marisa Allasio, frases do Millôr, tratados de fenomenologia de Husserl e letras de marchinhas de Carnaval como "Aurora", "Saçaricando" e "Tem Nego Bebo Aí".
        Não que as ditas informações novas merecessem ocupar o lugar dessas maravilhas.

        Gregorio Duvivier

        folha de são paulo
        Horóscopo
        Modere com moderação. Moderação demais é um exagero. Modere menos: exagere. Com moderação
        ÁRIES: cuidado com o futuro. Ao contrário do passado, ele ainda não aconteceu. Por isso, é muito difícil saber o que pode acontecer. Cuidado.
        TOURO: De todos os sentimentos pelos quais você pode passar, o amor é um deles. Talvez seja o mais perigoso. Talvez seja apenas um deles. Talvez não seja nem uma coisa nem outra. Cuidado.
        GÊMEOS: Termine o que você começou. Desde que valha a pena terminar. Caso você não tenha terminado pois percebeu que não valia a pena terminar, não termine. Deixe como está.
        CÂNCER: Más notícias. É pouco provável que o amor venha bater na sua porta. Afinal de contas, o amor é um sentimento abstrato. Quem bate nas portas são apenas seres humanos. Ou testemunhas de Jeová. Cuidado.
        LEÃO: A Lua está em Saturno, ao contrário de você, que está na Terra. Isso significa que você não está na Lua, posto que ela está em Saturno, desde que Saturno não esteja na Terra, é claro. Aproveite a Terra.
        VIRGEM: O mês é propício a viagens. Sejam para fora do país, sejam viagens de casa pro trabalho, e do trabalho pra casa. Ou viagens de ácido. Ou talvez algum parente viaje. Ou você verá aviões no céu. Ou anúncios da Decolar.com. Cuidado.
        LIBRA: O ano vai ser ótimo para a sua saúde, desde que você não fique doente. Caso você fique doente, é capaz que melhore. Caso piore, não significa que você vá morrer. Mas tome cuidado.
        ESCORPIÃO: Será um ano de mudanças. Tudo vai mudar. Inclusive a maneira que as coisas mudam. Vai mudar. Então se as coisas sempre mudam, talvez parem de mudar. Cuidado.
        SAGITÁRIO: O ano vai depender muito de você. Corra atrás do que você quer. Não espere que as coisas aconteçam sozinhas. Elas não vão acontecer. A não ser coisas que acontecem sozinhas, claro. Como a chuva, por exemplo. Não precisa correr atrás. Não vai adiantar.
        CAPRICÓRNIO: Beba com moderação. Durma com moderação. Acorde com moderação. Modere com moderação. Moderação demais é um exagero. Modere menos: exagere. Com moderação.
        AQUÁRIO: Esse é o primeiro ano do resto da sua vida. A não ser que seja o último. Nesse caso: esse é o primeiro resto do ano da sua vida. Ou: essa é a primeira vida do resto do seu ano.
        PEIXES: hoje, exatamente, faltam 32 anos e 20 dias pra você morrer. Ou talvez faltem 54 anos. Ou talvez faltem 12 dias. Não importa. O que importa é que agora, exatamente agora, começou uma contagem regressiva. Cuidado.

          Luiz Felipe Pondé

          folha de são paulo
          Euzinho
          Tradição nada tem a ver com se pintar como aborígenes pra defender reservas indígenas
          A modernidade é uma declaração de guerra à ideia de tradição. Mas nós, modernos, continuamos a não perceber isso, e o resultado é que suspiramos como bobos diante do que pensamos ser uma tradição, apesar de detestarmos qualquer sinal verdadeiro de tradição.
          Procuramos tradições em workshops xamânicos, espaços budistas nas Perdizes, livros baratos sobre como viviam os druidas.
          São muitas as definições de tradição. Não vou dar mais uma, mas sim elencar atitudes que estão muito mais próximas do que é uma tradição do que cursos de cabala nos Jardins. Nada tenho contra estudar culturas antigas, apenas julgo um equívoco confundir a ideia de tradição com modas de uma espiritualidade de consumo.
          Não existe xamã na Vila Madalena. A cabala não vai salvar meu casamento. Meditação não fará de mim uma pessoa melhor no trabalho. Imitar a alimentação de monges tibetanos não aliviará minha inveja. Frequentar cachoeiras indígenas não fará de mim uma pessoa menos consumista. Tatuar palavras védicas não me impedirá de fazer qualquer negócio pra viver mais. Visitar templos no Vietnã não fará de mim alguém menos dependente das redes sociais. Desejar isso fará de mim apenas ridículo.
          Uma tradição, pra começo de conversa, nada tem a ver com "escolha". Não se escolhe uma tradição. Neste sentido, muitos rabinos têm razão em desconfiar de conversos ao judaísmo por opção. Uma tradição funciona sempre contra sua vontade, à revelia de sua consciência, submetendo-a ao imperativo que escapa à razão mais imediata. A única forma de tradição a que a maioria de nós ainda tem acesso é a língua materna.
          Colocar os filhos pra dormir todos os dias é mais próximo do que é uma tradição do que estudar velhos símbolos indígenas ou brincar com eles em pousadas nas chapadas. Não poder sair à noite porque um dos filhos tem febre é tradição. Velá-lo durante a noite é tradição. Morrer de medo durante esta noite é tradição. Nada menos tradicional do que uma mulher sem filhos. Ela até pode aprender capoeira, mas será apenas iludida, se sua intenção for experimentar a tradição afro.
          Nada tenho contra mulheres não terem filhos, digo apenas, de forma modesta, o que é uma tradição.
          Homens que sustentam sua mulher e filhos são tradicionais, mesmo em tempos como os nossos em que todo mundo mente sobre isso. Levar seus velhos ao hospital, enterrá-los, em agonia ou com absoluta indiferença, é tradição. Andar pela casa à noite pra ver se tem algum ladrão, enquanto sua mulher e filhos ficam protegidos no quarto, é tradição. Ser obrigado a ser corajoso é uma tradição, maldita, mas é.
          Pular sete ondas numa Copacabana lotada nada tem de tradicional, é apenas chato. Tradição é ir pra guerra se não sua mulher achará você covarde. Lavar louça, fazer o jantar, lavar banheiros, morrer de medo diante do médico. Falar disso pra quem vive uma situação semelhante a você. Ter que passar nas provas na escola. Ter que ser melhor do que os colegas. Sangrar todo mês.
          Tradição é pagar contas, enfrentar finais de semana vazios e não desistir. É sonhar com um futuro que nunca chega. Engravidar a namorada. Ter ciúmes. Odiar Deus porque somos mortais. Ter inveja da amiga mais bonita, do amigo mais forte e inteligente. É cuidar dos netos. É educar os mais jovens e não deixar que eles acreditem nas bobagens que inventam.
          Tradição funciona como hábitos que se impõem com a força de um vulcão, de um terremoto, de um tsunami, de uma febre amarela. Nada tem a ver com se pintar como aborígenes pra defender reservas indígenas ou abraçar árvores.
          Evolução espiritual é um dos top em quem quer "adquirir" uma tradição. Mas esta nada tem a ver com "buscar" uma evolução espiritual como forma de fugir de filhos que têm febre ou compromissos afetivos. A evolução espiritual verdadeira é algo que nos acomete como uma disciplina aterrorizante.
          Teste definitivo: você busca evolução espiritual pra aperfeiçoar seu "euzinho"? Lamento dizer que qualquer evolução espiritual (se existir) começa com você esquecer que seu euzinho existe.
          ponde.folha@uol.com.br