quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O rei 'remix' - Jairo Marques

folha de são paulo
O rei 'remix'
Imagino minha 'santa' desesperada dizendo que trocaram a caixa do regalo que enviei de Natal para ela
Meninos com mães apaixonadas pelo rei Roberto Carlos, como eu, aguardam ansiosos o lançamento do trabalho de final de ano do cantor, presente certeiro de Natal, que vai render um sorrisão gostoso e olhos marejados. Mas, neste ano, tudo vai ser diferente. Inventaram um intragável "rei remix".
Sim, é Roberto Carlos dando soquinhos na voz: "Quando eu estou aqui, aqui, aqui, aqui. Eu vivo esse momento lindo, lindo, lindo". É Roberto Carlos tocando em boate tendo as curvas da estrada de Santos iluminadas por feixes de luz verdes, azuis e laranjas. É Roberto Carlos, o "cara", caramelizado com passos combinados na pista de dança.
Imagino minha "santa" desesperada ao telefone dizendo que os Correios trocaram a caixa do meu regalo para ela e que, em sua a vitrola, em vez de tocar "não adianta nem tentar me esquecer", saiu um som insuportável que, resumidamente, só dizia "titum, titum titum".
Até agora, os plebeus aceitaram tudo vindo do reino: "Cavalgada" meio sertanejada, "A Montanha" em ritmo de pagode, "Cama e Mesa" em versão black music, "Um milhão de Amigos" meio axé, mas me recuso a curtir "Fera Ferida" remixada. Não dá!
Tudo bem que não foi um ano dos mais fáceis para o rei, que ora era contrário que escrevessem sua riquíssima biografia sem autorização, a reboque do grupo "Procure Saber", ora dizia, de maneira bem confusa, que estava tudo liberado. Mas mexer com o final de ano da mãe da gente não tem justificativa.
Discos do Roberto são para ser ouvidos pensando no grande amor e imaginando com ele aquelas cenas do tipo "se amar na relva escutando o canto dos pássaros". É para desafogar a fé de um ano tão difícil ouvindo "Nossa senhora, me dê a mão, cuida do meu coração".
Não sou contrário à repaginada do rei, à modernização de seus ritmos e de seus sucessos, mas também não acho justo transformar em balada eletrônica aquilo que mamãe tem como "Sonho Lindo", desde a Jovem Guarda.
Será que vão ter a "cachorra", como diria uma tia minha que já morreu, de botarem o Roberto para sacolejar "É Proibido Fumar", à moda discoteca, com requinte de gelo seco pairando no ar e pessoas rodopiando de cabeça para baixo no especial natalino da TV?
Preciso me precaver e reforçar o estoque de erva-cidreira lá de casa. O aborrecimento de saber que não haverá Fafá de Belém, mas, sim, uma tal de Anitta, já foi tremendo para minha velha. Todo cuidado é pouco em casos de corações apaixonados pelo rei.
Em alguns Estados do país, ainda dá tempo de adotar uma carta escrita por crianças carentes ou por seus familiares, enviada a Papai Noel e acolhida pelos Correios.
Como diz a campanha da instituição realizada neste ano, é possível tirar sonhos do papel aten- dendo uma das mensagens que pedem de tudo: roupas, tablets, bonecas, bicicletas e comida. Ajude da forma que puder!
Não caio naquele papinho tosco dos chatos que afirmam não adiantar nada fazer uma boa ação apenas no final do ano. Sou do time dos que defendem que sempre é hora e bom fazer algo que colabore com a felicidade e o bem-estar alheio.
jairo.marques@grupofolha.com.br

    Ruy Castro

    folha de são paulo
    Para salvar a face
    RIO DE JANEIRO - Em toda essa triste melódia envolvendo a Portuguesa de Desportos, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva e o rebaixamento (ainda dependendo de recurso) do clube à segunda divisão, o nome mais citado nos artigos e reportagens --e sem o qual não é possível entender a história-- é o do meia Héverton. Aquele que, expulso no jogo da Lusa contra o Bahia e suspenso por dois jogos, cumpriu um e foi escalado irregularmente contra o Grêmio.
    Um argumento repisado pela Portuguesa para caracterizar que não fez por mal foi o de que não tirou partido da presença de Héverton no jogo. Come e dorme crônico, ele só entrou aos 32 minutos do segundo tempo. Atuou por 13 minutos e, segundo a própria Lusa, mal pegou na bola. Não driblou, não passou, não chutou a gol nem fez cócegas no adversário. Talvez por isso, seus torcedores nem se lembrem dele no gramado. É como se, tendo entrado ou não, isso não fizesse diferença. "Ele não é nenhum Pelé", decretou o advogado da Portuguesa.
    Que Héverton não é Pelé, sabe-se. Mas qual jogador é Pelé? E houve momentos, na sua vida profissional, em que nem Pelé foi Pelé. Donde ninguém pode ser apedrejado por não ser Pelé. Mas o que se fez com Héverton nos últimos dias foi pior. Não lhe deram nem o direito de ser Héverton.
    Para salvar sua face de ingênuos e amadores, os dirigentes da Lusa preferiram diminuir o profissional, taxando-o de cabeça de bagre aos olhos e ouvidos de milhões.
    Afinal, Héverton é bom jogador ou não? Não sei. Nunca o vi em ação e, se vi, não me lembro. Mas garanto que, para si mesmo, Héverton é um craque. Enxerga o jogo como ninguém, faz lançamentos de 40 metros, dribla no espaço de um lenço e surge como elemento surpresa para fulminar o goleiro. Talvez só faça isto em sonho. Mas o massacre a que o submeteram já não lhe dá nem o direito de sonhar.

      José Simão

      folha de são paulo
      Ueba! Fluminense vira Tapetense!
      E se o Fluminense fizer três gols, já pode pedir música no Medalhão Persa! Aquele programa que leiloa tapete!
      Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Hoje! Atlético Mineiro x Raja de Casablanca! No estádio Ben Ali! Estádio de mineiro: ben ali! Onde fica o estádio? Bem ali! Umas 24 horas de viagem! Rarará!
      E o babado do século: "STJD rebaixa a Portuguesa e mantém o Fluminense na série A". Lusa rebaixada! Sacanagem! Padarias em pé de guerra! Pão, agora, só pão Pullman e no supermercado! E STJD quer dizer Sou Fluminense, Já Decidi!
      E essa do Twiteiro: "Guido Mantega veste camiseta do Fluminense e PIB sobe quatro pontos na tabela". Ueba! Agora vai! Rarará!
      E o Fluminense é que nem ácaro, vive no tapetão. Ácaro Futebol Clube! O Fluminense vai mudar de nome pra Tapetense! Fluminense vira Tapetense! Rarará!
      E se o Fluminense fizer três gols, já pode pedir música no Medalhão Persa! Aquele programa que leiloa tapete! Rarará!
      E diz que já tem muita gostosa, muita maria chuteira, tatuando o escudo do Fluminense no peito! Pra não cair. Não cair nunca!
      E como anuncia o chargista Duke: "Você está mal, pra baixo, caído, mas quer virar a mesa? Tome FLU-VIRAL!". "Fluviral/Fluviral/ Vira a mesa/ E não faz mal!". Rarará!
      E agora em todos os estádios o Fluminense terá tratamento VIP: estende o tapete! No lugar da grama, um tapetão!
      "Olha o Fluminense chegando, estende o tapete". Rarará!
      Vão trocar o gramado por um tapetão persa! Fluminense, patrocínio Phenicia Tapetes!
      E o grito duma torcedora da Portuguesa: "Portuguesa, não entregue os pontos. O STJD entrega por você". Olha, o Fluminense ganhou, mas perdeu. Foi a pior vitória da história do futebol! Como disse um amigo no Twitter: "O Fluminense hoje tem o nome mais sujo que eu. A diferença é que eu posso pagar as minhas dívidas". Rarará!
      É mole? É mole, mas sobe!
      E um outro veio com essa: "Se um torcedor do Flu deixar cair um pão no chão, ele cai com a manteiga virada pra cima ou pra baixo? Resposta: NÃO CAI!". Rarará!
      E repito o cartaz na padaria: "Se alguém vier aqui zoar com o rebaixamento da Portuguesa, lembre-se, posso passar a piroca no pão que você vai comprar. Assinado: dono da padaria". Rarará!
      Nóis sofre, mas nóis goza!
      Hoje, só amanhã!
      Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno

      Marcelo Coelho

      folha de são paulo
      Flávio de Carvalho
      Exposição na Faap e documentário mostram o talento disperso do mestre vanguardista
      Às vezes o excesso de talentos atrapalha. Melhor ser bom numa coisa só do que em várias. Jean Cocteau (1889-1963) foi poeta, cineasta, desenhista, cenógrafo, teatrólogo e teórico do modernismo. Seus diários trazem amargas reflexões sobre o preço que isso lhe custou.
      "Cada livro meu seria capaz de assegurar a reputação inteira de uma pessoa", queixa-se ele, sabendo que sua celebridade dependia "de uns filmes e desenhos à margem de minha obra principal, e de uma lenda a meu respeito, feita de inexatidão e de ouvir dizer".
      O brasileiro Flávio de Carvalho (1899-1973) sem dúvida sofreu de uma maldição parecida com a de Cocteau. Pintor, desenhista, arquiteto e "performático" antes que o termo se tornasse moda, Flávio de Carvalho conhece uma fama intermitente, sem nunca alcançar o reconhecimento, digamos, de um Oswald de Andrade ou de uma Tarsila do Amaral.
      Em parte, isso é uma questão de cronologia: ele entrou na história um pouquinho tarde, a tempo apenas de aderir ao movimento antropofágico, mas sem participar da Semana de 1922.
      O arquiteto e agitador cultural iria empreender sozinho, em 1931 e em 1956, suas famosas "experiências". A primeira, que quase lhe valeu ser linchado, consistia em andar no sentido inverso ao de uma procissão de Corpus Christi.
      A outra foi desfilar, de saia e meia arrastão, no centro de São Paulo. Flávio de Carvalho pretendia lançar um novo estilo de moda masculina, mais adequado ao clima tropical.
      Na exposição dedicada a Flávio de Carvalho, em cartaz na Faap até dia 19 de janeiro, pode-se ver a blusa idealizada pelo artista. Em duas camadas, uma das quais feita com tela de plástico --daquelas que antigamente se punham nas janelas da cozinha para não entrar mosca--, aquela roupa devia ser desconfortável ao extremo.
      Detalhe insignificante, por certo, quando o objetivo é ser moderno a todo custo. A exposição também mostra sua obra arquitetônica. São casas de uma estética limpa, sintética, comparáveis aos trabalhos de Warchavchik e Lúcio Costa.
      Nada dessa arquitetura faz pressupor o traço bizarro, as deformações dos lábios e o colorido quase caótico das telas do mesmo autor. São retratos de personalidades conhecidas, como a pianista Yara Bernette, o maestro Eleazar de Carvalho e o compositor Camargo Guarnieri.
      Há ali a intenção clara de confundir figura e fundo, rosto do retratado e mosaico de cores atrás dele, produzindo uma sensação de exagero quase diletante. Alguns passos adiante na exposição, e surgem desenhos a nanquim que poderiam perfeitamente ser de algum outro artista, mas nunca do mesmo que pintou os quadros ali do lado.
      Com toda a paciência que parece ausente dos quadros a óleo, os desenhos vão compondo, contra um fundo neutro, figuras femininas que ganham volume através de infinitas ramificações de tinta preta, como se Flávio de Carvalho, em vez de mãos, tivesse patas de aranha.
      Com tantas personalidades, quase "heterônimos", Flávio de Carvalho não facilitou as tarefas da posteridade. Sua fama é centrífuga, resistente e frágil como uma teia de aranha também.
      Tentou, além disso, o cinema. Organizou uma equipe e se meteu no Xingu, com o projeto delirante de filmar "A Deusa Branca", história de uma beldade loura a ser cultuada pelos indígenas. A história dessa empreitada virou tema de um documentário dirigido por Alfeu França, que também descobriu nos arquivos de Flávio de Carvalho os rolos do que foi filmado na expedição.
      O documentário teve pré-estreia no Itaú e deve voltar a ser exibido no ano que vem. Além de todo o seu interesse histórico e biográfico, é engraçadíssimo. Alfeu França decidiu manter a mesma impassibilidade que Flávio de Carvalho demonstrava em suas performances, e a narração não move um músculo enquanto mostra, passo a passo, a completa loucura de todo o projeto.
      Interessado tanto nas louras (que recrutou com um anúncio de jornal em Porto Alegre) quanto no cinema, o artista entrou numa rivalidade com o indigenista que comandava a expedição. Depois de tentar liquidar o assunto a tiros, Flávio de Carvalho foi abandonado num igarapé e salvo por missionários.
      Em meio à inviabilidade e ao improviso totais, o filme mantém a narrativa como numa espécie de exaltação protocolar, ao estilo dos documentários oficiais de 1950, da intrepidez do gênio.
      Essa loucura a frio, essa provocação arquitetada a ponta seca, e realizada com ares de rabisco, talvez esteja na raiz da personalidade de Flávio de Carvalho. Haverá mais exposições sobre ele no ano que vem; falta muito, ainda, para se ter um retrato completo de seu talento disperso, feito de coragem e inconstância.