sábado, 8 de março de 2014

Os direitos avançam para todas as mulheres?

folha de são paulo
ALINE KÁTIA MELO E BIANCA PEDRINA*
TENDÊNCIAS/DEBATES
Os direitos avançam para todas as mulheres?
NÃO
Nós, moradoras da periferia
O direito à moradia adequada é essencial para a efetivação de todos os outros direitos destinados às mulheres. Para aquelas que moram na periferia, a distância faz o transporte virar um sufoco. Andar pela rua sem iluminação transforma o caminho em medo. Não ter a casa no próprio nome é sinônimo de redenção ao marido agressor ou, então, aos altos preços do aluguel.
A mulher pobre, que ganha comprovadamente menos do que o homem pobre, tem destino certo, a periferia. Para ela, o recorte de gênero vem acompanhado do recorte de classe, e o que sobra é a moradia mais afastada.
Muitas são chefes do lar: 20% das famílias brasileiras são sustentadas pelo sexo feminino. Ainda assim, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em média, as mulheres ganham 28% a menos do que os homens.
Resta-nos, então, a casa perto do córrego que transborda ou nas encostas dos morros que desmoronam com a chuva. O lar vira sinônimo de algo sempre em construção, o sonho de o barraco ser de tijolo e do bloco ganhar reboco.
Moramos na casa da sogra e limpamos a da patroa esperando, um dia, cuidar da nossa. Vivemos do trabalho como diaristas, costureiras ou operadoras de telemarketing. Dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) de 2011 mostram que 92,6% dos 6,6 milhões de trabalhadores nos serviços domésticos eram mulheres.
A pouca remuneração não nos permite conseguir um financiamento. Sem opção, esperamos por cada chamada do CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano). Perdemos a esperança quando não entoam o nosso nome durante os sorteios.
O aluguel remedia a falta do teto. Temos, porém, prioridade nos programas de habitação popular. Cerca de 47% dos contratos da primeira etapa do Minha Casa, Minha Vida foram assinados por mulheres. A facilitação do crédito, no entanto, veio com a especulação imobiliária, que aumenta os preços e nos empurra para ainda mais longe.
A periferia agora recebe megaeventos. Na zona leste, a valorização dos imóveis subiu mais de 40% desde o anúncio da abertura da Copa do Mundo no Itaquerão. Moradores da Favela da Paz, próxima ao estádio, terão que deixar o local onde moram há mais de 20 anos.
Quando finalmente alcançamos casa própria, é no improviso. Vamos administrando a goteira com o balde, o mofo com a pintura a cal, a enchente com o içar dos móveis. Esgoto a céu aberto e rua sem asfalto também esbarram no direito à moradia. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) apontam que quase 40% da população não tinha acesso a rede coletora de esgoto em 2012.
O direito à moradia inclui ainda outras vulnerabilidades, como a violência doméstica. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre 2009 e 2011, mostra que o Brasil registrou 16,9 mil mortes de mulheres por conflito de gênero.
Todas essas dificuldades não tiram nossa garra. É nos movimentos de moradia que botamos as mãos na massa --para garantir, assim, a efetivação de outros direitos das mulheres. Se o Estado não oferece, é na mobilização que fazemos valer o nosso direito.
E apesar de tudo o que é negado a nós, mulheres da periferia, não desistimos da batalha para termos um lar e fazemos da labuta diária a nossa morada.
ELEONORA MENICUCCI
TENDÊNCIAS/DEBATES
Os direitos avançam para todas as mulheres?
SIM
Cidadania para as mulheres
A conquista de direitos iguais para mulheres e homens é hoje uma urgência para a democracia e para o desenvolvimento do país. Se as brasileiras são pouco mais da metade da população e mães da outra metade, como pode o país emancipar-se por inteiro sem a igualdade e equidade de gênero?
Um exemplo revela quão injusta é a situação das mulheres ribeirinhas. Recentemente, a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR) fez extensa viagem piloto pelo arquipélago de Marajó, nas agências-barco da Caixa. O objetivo foi diagnosticar a situação das mulheres.
Ali, a violência contra elas chega ao ponto de parecer um direito masculino passado de pai para filho. Isso espelha valores patriarcais existentes na verdade em todo o país.
É por isso que as políticas públicas que vêm sendo implementadas pelo governo da presidenta Dilma Rousseff buscam romper com os preconceitos sexistas.
A criação da SPM em 2003 colocou claramente para a sociedade que as reivindicações delas, longe de serem questões privadas, são na verdade uma exigência de justiça, de democracia, de direitos humanos.
Dois anos depois, tivemos a criação do Ligue 180, para o atendimento telefônico 24 horas por dia de mulheres em situação de violência --e, em 2006, da lei considerada pela ONU como uma das três mais avançadas do mundo, a Maria da Penha.
O governo federal vem implementando políticas públicas que enfrentam a violência de gênero em todas as suas formas. Simultaneamente, fortalece políticas de autonomia econômica e de articulação responsáveis, estas últimas por levar o acesso aos direitos a todas as brasileiras. Há um ano, a presidenta Dilma Rousseff lançou um desafio para o governo e para toda a sociedade: tolerância zero com a violência contra as mulheres. Esse gesto traduziu-se no programa Mulher, Viver sem Violência.
Um dos seus eixos é a Casa da Mulher Brasileira. Cada um dos 26 Estados mais Distrito Federal está recebendo uma delas. E para romper com a via crúcis a que a mulher estourada pela violência é obrigada a percorrer na busca dos serviços, o programa institui uma logística de transporte. Além disso, integra num mesmo espaço todos os serviços de enfrentamento à violência e de rompimento com o ciclo desta.
Outro fator de capilaridade são as unidades móveis: ônibus especialmente adaptados (54 deles, dois por Estado e DF) para levar os serviços às mulheres rurais.
As políticas do governo estimulam ainda a igualdade de salário e oportunidades, por meio do Pró-Equidade de Gênero e Raça e do Pronatec, programa no qual dois terços dos participantes são do sexo feminino e que tem gerado crescente ocupação de postos tradicionalmente masculinas por mulheres.
Um outro programa estimula meninas e jovens a se direcionarem para as áreas de exatas, engenharia e computação. O Fazendo Ciência já teve centenas de inscrições desde o seu lançamento, em 2013.
Os desafios ainda são grandes. Mesmo com uma lei que exige eleições com a proporção de candidaturas entre sexos de pelo menos 70% e 30%, nossos índices de participação política das brasileiras ainda são baixos. Variam de 7,4% nos governos estaduais e distrital a 9,2% na Câmara dos Deputados e 8,6% no Senado Federal.
Com a inclusão no Estado de Direito de milhões de mulheres --na grande maioria, invisíveis--, o governo federal reafirma o seu compromisso de transformar o Brasil num país mais justo e igualitário, por meio do acesso universal aos serviços que garantem os direitos. Hoje, as brasileiras não estão mais sozinhas. O Estado está com elas.

André Singer

folha de são paulo
Fogo cruzado e confuso
Com Dilma Rousseff largando na dianteira da corrida presidencial, apoiada pela sólida base eleitoral lulista, ela será objeto de intensos ataques nos próximos meses. Por advirem de pontos muito diferentes do espectro ideológico, os disparos vão aumentar o sentimento de conturbação política que se insinua desde junho passado.
Na confusão, como também o lulismo produziu uma grande mistura de ideias, será fácil gato aparecer como lebre e confundir os eleitores. Para ajudar a esclarecer o panorama, vai aqui um miniguia.
Os que se opõem ao modelo lulista por pensarem que as mudanças, apesar de tênues, seguem a direção errada, estão objetivamente à direita, gostem ou não do rótulo. Para eles, o Brasil deveria seguir na trilha das reformas neoliberais que desvalorizam a mão de obra, alinhar-se automaticamente com os EUA na próxima configuração mundial que se aproxima e abandonar a tentativa de aumentar a igualdade à custa do gasto público. O PSDB os catalisa.
Em duas ocasiões, o lulismo derrotou tais teses nas urnas (2006 e 2010) e, apesar da diminuição do ritmo de crescimento econômico, teria condições tranquilas de vencê-las pela terceira vez em outubro não fosse o fato de que esta campanha será marcada por novas forças de oposição ao centro e à esquerda.
Ao centro, consolidou-se a cisão do PSB, tendo à frente Eduardo Campos, uma liderança regional sólida, jovem e hábil. Ao juntar-se com Marina Silva, o neto de Arraes formou uma coalizão que amplia, sobretudo entre a juventude, a circulação de propostas com ar moderno e pós-materialista. A noção de sustentabilidade os impulsiona.
À esquerda, novos e velhos movimentos sociais, como o Passe Livre, de um lado, e os Sem-Teto, de outro, decidiram que não adianta mais ficar esperando. Perceberam que o governo de centro-esquerda só vai se inclinar mais para o lado dos dominados se houver pressão. Animados pelos resultados de junho, vão pôr o bloco na rua, mesmo que isso coloque em risco a reeleição de Dilma.
A classe trabalhadora organizada também dá sinais de que considera esgotado o tempo de expectativa. A mobilização nacional marcada para o dia 9 de abril, em favor de reivindicações trabalhistas que estão objetivamente à esquerda, é um aviso de que a depender dos acordos que forem firmados por Dilma, sindicatos poderão afastar-se da órbita da atual presidente.
Um bom exemplo, contudo, do contexto confuso em que tais embates vão acontecer é a posição da Força Sindical. Principal artífice dos protestos sindicais de esquerda no próximo mês, a central tem a sua figura mais expressiva, Paulo Pereira da Silva, aliada a Aécio Neves, o candidato da direita.

Helio Schwartsman

folha de são paulo
Abaixo a escravidão
SÃO PAULO - Tráfico humano é o tema da Campanha da Fraternidade de 2014. Boa escolha. Essa é uma área sombria na qual crimes graves são cometidos. Para que possamos dar-lhes a devido peso, é necessário distinguir melhor condutas com diferentes implicações morais, mas que costumam ser apresentadas sempre num mesmo pacote.
É decerto errado, além de ilegal, arregimentar trabalhadores com falsas promessas, submetê-los a condições insalubres e vinculá-los ao empregador através daqueles sistemas de dívidas. Incomoda-me, porém, chamar isso de "escravidão" ou de "condições análogas à escravidão".
Sei que o cérebro humano não resiste a analogias, mas, neste caso, fazê-la significa a um só tempo banalizar a escravidão histórica e ignorar uma das mais importantes conquistas morais da humanidade. Por pior que possa ser a situação de alguns trabalhadores modernos, ela não se compara, por exemplo, à dos negros escravizados na Américas. Ali, o cativo era propriedade de seu senhor, que podia fazer com ele praticamente tudo o que quisesse, inclusive puni-lo com castigos físicos. E esse "direito" era exercido à larga. Se o escravo fugisse, a própria estrutura do Estado era mobilizada para recapturá-lo e devolvê-lo a seu "legítimo" dono.
As coisas mudaram, se nem tanto na prática, ao menos no direito. Mesmo que subsistam casos extremos, em que pessoas são encarceradas e submetidas a chibatadas, eles se tornaram universalmente ilegais. A Mauritânia foi o último país a abolir a escravidão, tendo-o feito em 1981.
Pode parecer um detalhe burocrático, já que trabalhadores continuam a ser maltratados por lá (e não só lá), mas seria um equívoco deixar de reconhecer o fato de que nossa espécie foi capaz de, através de reflexão moral, rechaçar um instituto como a escravidão, que acompanhava a civilização desde seus primórdios, e passar a combatê-lo, ainda que com diferentes graus de empenho.

Fernando Rodrigues

folha de são paulo
Valores difusos num país sujo
BRASÍLIA - Com o fim formal da ditadura (1985) e a estabilização da economia (1994), o Brasil passou a enxergar com mais clareza o seu atraso civilizatório. Ficou mais visível como são difusos os valores da nação. O vídeo do prefeito do Rio, Eduardo Paes, jogando sujeira no chão é apenas um microexemplo do caráter e dos costumes nacionais.
Há alguns anos, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu um bombom de cupuaçu. Comeu e também jogou o papel no chão sem nenhuma cerimônia.
A greve dos garis no Rio expôs ao país como sua população é composta por Eduardos e Lulas. O volume de lixo jogado nas ruas do balneário fluminense é incompatível com uma sociedade desenvolvida. O brasileiro em geral se comporta como se o espaço público não fosse seu. Todo tipo de porcaria é arremessado na calçada, sem o menor remorso.
Seria possível escrever um tratado a respeito. Ficarei apenas no capítulo sobre a responsabilidade dos políticos e governantes em geral. O Brasil gasta bilhões de reais com publicidade estatal. Quase nunca esses recursos são usados para algum tipo de campanha a favor, por exemplo, de hábitos mais civilizados das pessoas nas ruas. Pior: certas propagandas com apelo cívico erram o alvo, como aquele comercial paraestatal martelando que "o melhor do Brasil é o brasileiro", cujo objetivo era melhorar o astral geral do país.
Se há um povo com excesso de autoestima é o brasileiro. Em ano de Copa do Mundo, nota-se até uma certa arrogância no ar. A campanha de uma marca de guaraná estrelada pelo jogador Neymar eleva ao paroxismo o mau-caratismo nacional. Reedita a "Lei de Gérson". O camisa 10 brasileiro escreve frases em português para estrangeiros que não sabem o idioma se autoridicularizarem ao pedir a bebida (http://bit.ly/Neymar-trote-guarana). Ao final, fala o anunciante: "Todo mundo quer, mas só a gente tem". É verdade.

    Ruy Castro

    folha de são paulo
    Ginástica sintática
    RIO DE JANEIRO - Pesquisadores de neurociência da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, publicaram há pouco, na revista "Plos One", sua descoberta de que, quando os músicos de jazz improvisam sobre uma melodia --criando contramelodias sobre uma base harmônica comum--, estão ativando uma área do cérebro associada à sintaxe, não à semântica. Ou seja, não produzem conteúdos, mas estruturas. O estudo, que utilizou testes de ressonância magnética, visa a mapear o papel do cérebro na criatividade.
    A quase 100 anos da gravação do primeiro disco do gênero ("Livery Stable Blues", pela Original Dixieland Jazz Band, em 1917), o achado não me soa como grande novidade. De certa maneira, todos nós, fãs de jazz, já nascemos sabendo disso. O que seria o improviso coletivo de Nova Orleans senão uma deliciosa conversa de comadres significando nada? E o concerto no Massey Hall, de Toronto, em 1953? Charlie Parker e Dizzy Gillespie, rompidos havia anos, não tiveram de fazer as pazes para falar jazzês e se complementar magistralmente em "Perdido", "Hot House" e "A Night in Tunisia".
    O estudo diz avançar sobre uma pesquisa iniciada em 2008 e publicada na mesma revista, segundo a qual, quando os jazzistas improvisam, seus cérebros "desligam" os controles de censura e autoinibição, e "ligam" os que liberam a expressão --o que não aconteceria se tocassem um "conteúdo", uma melodia conhecida e sem variações.
    Com todo o respeito pelos rapazes da Johns Hopkins, a façanha da bateria da Mangueira neste Carnaval, reduzindo-se de repente aos surdos e tamborins, deve ter exigido uma ginástica cerebral equivalente. E o que dizer de certas rodas de samba, como as de Moacyr Luz às segundas-feiras no clube Renascença?
    Pensando bem, o que será também o sexo entre duas pessoas senão uma ginástica sintática, não semântica?

      7 anos de escravidão no Brasil [Luiz Gama] - Sylvia Colombo

      folha de são paulo
      7 anos de escravidão no Brasil
      Séries e filme vão contar a história do abolicionista baiano Luiz Gama, que nasceu livre mas foi vendido pelo próprio pai como escravo
      SYLVIA COLOMBODE SÃO PAULOEnquanto há filas para ver "12 Anos de Escravidão", vencedor do Oscar de melhor filme, figuras brasileiras de trajetória similar à de Solomon Northup estavam fadadas ao esquecimento ou à reverência apenas de estudiosos.
      É o caso do abolicionista Luiz Gama (1830-1882), advogado e ativo republicano que passou a infância como escravo, vendido pelo próprio pai.
      "Espero que o sucesso de 12 Anos' alavanque o interesse pela história de Gama e tantos ex-escravos brasileiros", diz a escritora Ana Maria Gonçalves, que trabalha no roteiro de uma série e um filme sobre o personagem.
      O livro de Gonçalves "Um Defeito de Cor", que romanceia a vida da provável mãe de Gama, Luiza Mahin, também deve ir à TV. Depois de chamar a atenção do cineasta Fernando Meirelles, o texto pode virar série global, com direção de Luiz Fernando Carvalho.
      Gama nasceu na Bahia, de mãe africana e pai baiano. Escravizado, foi enviado ao Sul, exposto em leilões, e acabou em São Paulo, onde serviu o comerciante Antonio Pereira Cardoso por sete anos.
      Aos 17, num lance que mistura acaso e persistência, aprendeu a ler e escrever com um pensionista de seu senhor, o estudante de direito Antônio Rodrigues do Prado Júnior. Obteve os documentos que provaram que nascera livre e deixou o cativeiro.
      Seu relato dos anos como escravo está em uma carta escrita em 1880 ao amigo Lúcio de Mendonça.
      "A carta de Gama é um documento único da história do Brasil. Nos EUA, as narrativas de escravos e ex-escravos estão no nascedouro da literatura negra. Aqui, só conhecemos esse documento de um ex-escravo que tenha se tornado figura pública proeminente", diz Lígia Fonseca Ferreira, professora da Unifesp e especialista na obra de Gama.
      Ferreira tem críticas a "12 Anos", mas o considera importante. "Quantos não se fizeram sobre o Holocausto? Muito mais que a escravidão africana, uma história de 400 anos que precisa ser melhor entendida, sobretudo no Brasil."
      Luiz Gama defendeu negros nos tribunais e libertou mais de 500
      Para estudiosos, parte de sua história pode ter sido inventada para denunciar ilegalidades
      Retrato do abolicionista reflete momento de transformação social vivida pelo país em meados do século 19
      DE SÃO PAULOOs estudiosos de Luiz Gama insistem que sua história pode revelar mais do que uma trajetória pessoal épica.
      Para os historiadores, seu retrato mostraria como o Brasil vivia um momento de intensa transformação social em meados do século 19.
      "Na Bahia, havia muita mobilidade, famílias compostas fora do padrão, como a de Luiz Gama, e abertura em termos culturais e morais por causa do porto de Salvador, um dos mais importantes do mundo então", diz a escritora Ana Maria Gonçalves.
      "Fã incondicional" de Gama, João José Reis ("A Morte É uma Festa"), o mais importante historiador da escravidão brasileira, diz que nem tudo o que o abolicionista contava sobre si pode ser confirmado com documentos --e que muito daquilo pode ser uma fábula construída.
      Por exemplo, Gama dizia ser filho de Luiza Mahin, uma figura símbolo do feminismo negro que teria lutado na Revolta dos Malês (1835).
      "Existe a possibilidade de que tenha escrito uma história exemplar e extrema para denunciar casos de escravização ilegal de pessoas livres por ele defendidas nos tribunais", afirma Reis à Folha. Gama foi responsável por libertar mais de 500 negros, a quem prestava serviços grátis como advogado.
      "Para pensar o Brasil de hoje, talvez Gama seja mais importante como símbolo do que Zumbi", diz Lígia Fonseca Ferreira. Hoje lembrado em São Paulo apenas pelo meio jurídico, pela maçonaria e por historiadores, o semblante altivo do busto que está no largo do Arouche foi um herói de seu tempo.
      Morto aos 52 anos, em São Paulo, a seu enterro, no cemitério da Consolação, compareceram mais de 3.000 pessoas. "Escravos e ex-escravos batiam-se com conhecidos escravocratas para carregar seu caixão", conta Ferreira.
      "Sua história é talvez mais inspiradora do que a de 12 Anos', porque ele se colocou na linha de frente do abolicionismo. É uma dramaticidade incrível. Eu quero muito ver esse filme", diz Reis.
      O historiador reforça que os arquivos brasileiros estão cheios de "relatos incríveis de pessoas ilegalmente escravizadas" que não teriam sido contados porque abolicionistas brasileiros "preferiram falar pelos escravos".
      Já Gonçalves conta, ainda, que era comum negros livres se fazerem passar por escravos, também, para não serem alvo de sequestros e maus-tratos.

      Coletâneas reúnem produção do abolicionista
      DE SÃO PAULO
      A mais completa coletânea de textos de Luiz Gama é o livro "Com a Palavra, Luiz Gama", da historiadora Lígia Fonseca Ferreira (ed. Imprensa Oficial; 304 págs., R$ 55).
      Reúne poemas, artigos e cartas. Entre os textos, estão o relato de seus anos como escravo e o comovente artigo de Raul Pompeia escrito quando o abolicionista morreu. Ferreira defendeu sua tese sobre Gama na Universidade Paris 3 - Sorbonne.
      A professora da Unifesp também organizou parte de sua obra poética, em "Primeiras Trovas Burlescas de Getulino" (ed. Martins Fontes; 326 págs., R$ 66,98).
      Entre as biografias, a principal publicada ainda é "Orfeu de Carapinha - A Trajetória de Luiz Gama na Imperial Cidade de São Paulo" (ed. Unicamp; 280 págs., R$ 29), de Elciene Azevedo.
      Há também "Luiz Gama", de Luiz Carlos Santos, para a coleção "Retratos do Brasil Negro" (Selo Negro; 120 págs., R$ 24). "Luiz Gama: O Advogado dos Escravos" (ed. Lettera.doc; esgotado), de Nelson Câmara, tem prefácio de Miguel Reale Júnior.
      No terreno da ficção, está "Um Defeito de Cor" (ed. Record; 952 págs., R$ 85), de Ana Maria Gonçalves, que ficcionaliza a vida de Luiza Mahin, que teria sido a mãe de Luiz Gama.
      Ainda não se fizeram coletâneas exclusivamente de sua obra jornalística.
      Em 1864, ao lado do caricaturista Ângelo Agostini (1843-1910), Gama fundou o semanário "Diabo Coxo", primeiro jornal ilustrado da cidade de São Paulo.

      TRECHO
      "Oh! Eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires. Nesta casa, em dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e contrabandista alferes Antonio Pereira Cardoso (...).
      Este alferes Antonio Pereira Cardoso comprou-me em um lote de cento e tantos escravos; e trouxe-nos a todos, pois este era o seu negócio, para vender nesta Província.
      Como já disse, tinha eu apenas 10 anos, e, à pé, fiz toda a viagem de Santos até Campinas. (...)
      Em 1847, contava eu 17 anos, quando para casa do sr. Cardoso veio morar (...) o menino Antônio Rodrigues do Prado Júnior (...). Fizemos amizade íntima, e ele começou a ensinar-me as primeiras letras."

      José Simão

      folha de são paulo
      Dia da Mulher! Pode bater o carro!
      O mundo é das mulheres. E não adianta discutir. Se discutir é pior. Se discutir, aumenta a pensão! Rarará!
      Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E a grande novidade do Carnaval: "Adriano larga o Carnaval e treina no Atlético-PR". Milagre! Tá curado! Curado, não! Nasceu de novo! Isso não é uma recuperação, é uma ressurreição! Rarará! Curitiba é uma rehab!
      E um amigo resumiu assim Rússia-Ucrânia-Crimeia: você briga com a tua mulher, ela tranca a porta e abre uma passagem pro vizinho! E hoje é o Dia Delas! Dia Internacional da Mulher! Podem bater o carro! Tão liberadas! Rarará!
      Uma amiga minha vai comemorar o Dia da Mulher provocando um engavetamento. Nas duas Marginais! Rarará!
      E essa faixa no interior de Pernambuco: "Dia da Mulher em Paudalho". Olha a esculhambação! Rarará. E essa faixa no Ibirapuera: "10º Passeio Ciclístico do Dia Internacional da Mulher. O que levar: uma bicicleta!". E uma amiga gritou: "Eu não sou burra! Mulher não é burra".
      E o homem sem a mulher não é nada. Nem corno! O mundo é das mulheres. E não adianta discutir. Se discutir é pior. Se discutir, aumenta a pensão! Rarará!
      E antigamente mulher só dizia três coisas: "Pra dentro, menino", "Xô, galinha" e "A janta tá na mesa". Agora tudo mudou. No governo Dilma, todo dia é Dia da Mulher! Homem é cota! No governo Dilma, homem é cota! Rarará!
      E uma amiga minha vai comemorar o Dia da Mulher tendo vários orgasmos múltiplos. COM ECO! Pro prédio inteiro ouvir!
      E no ano passado um amigo fez uma coisa horrível no Dia da Mulher: levou a mulher pra jantar fora, depois a levou a um motel, aí tirou a roupa dela e cochichou: "VOCÊ ENGORDOU!". Bem podre, bem masculinista!
      E um travesti no Twitter: "Bom dia, um quase obrigado de uma quase mulher". E umas amigas sapatas vão comemorar o Dia Internacional da Minha Mulher. E umas travecas vão comemorar o Dia da Mulheríssima!
      E uma amiga foi ao supermercado no Dia da Mulher, estacionou no meio de duas vagas, bem em cima daquela faixa branca, e quando voltou, tinha um recado no para-brisa: "Hoje você está perdoada". Rarará!
      E a predestinada pro Dia da Mulher: "Casal no Ceará teve 38 filhos". Como é o nome da mulher? Raimunda COELHO! Rarará!
      Nóis sofre, mas nóis goza! Hoje, só amanhã!
      Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

      Painel das Letras - Raquel Cozer

      folha de são paulo
      PAINEL DAS LETRAS
      Sade, 200 anos depois
      Os 200 anos da morte de Marquês de Sade, em dezembro, ajudarão a trazer às livrarias "Justine ou os Infortúnios da Virtude", texto de 1791 inédito por aqui.
      Trata-se da versão mais literária das três feitas pelo libertino francês para seu mais famoso romance. Será publicada nos próximos meses, com tradução de Marcela Vieira e Eduardo Jorge, pela Iluminuras --casa que publicou em 2009 a primeira versão, "Os Infortúnios da Virtude" (que já tinha sido editada no país), e planeja para o fim do ano o complementar "Juliette".
      Para dezembro, o departamento de filosofia da USP e o de letras da Unifesp programam colóquio em São Paulo a ser aberto por Eliane Robert Moraes, que falará sobre os rastros de Sade no país, e encerrado por Michel Delon, organizador da obra do autor na francesa Pléiade.
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      // 'SÓ O QUE VENDE'
      Um ano após deixarem a área comercial da Laselva, os executivos Renato Scolamieri e Adriano Santana estreiam a editora Figurati, focada em negócios e literatura pop.
      A dupla quer usar a experiência de mais de uma década na rede de livrarias para publicar "só o que vende", sempre com tiragens iniciais em torno de 10 mil cópias.
      "Sabemos o que sai, o que não sai, o que é passageiro. Não teremos tiragens pequenas, de 3.000 cópias. O know-how será a alma da editora", diz Scolamieri.
      Os primeiros títulos, como volumes da coleção "Aprenda Você Mesmo", com dicas para executivos, e "Breaking Bad e a Filosofia", baseado na série, saem até abril.
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      FANTASIA Gerald Brom, colaborador de filmes como 'A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça', de Tim Burton, estreia como autor no Brasil com 'O Ladrão de Crianças' (Benvirá), atualização sangrenta da saga de Peter Pan
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      Terror A atriz Cléo de Páris e o músico Thiago Pethit, além dos escritores Marcelino Freire, Lourenço Mutarelli e Andréa del Fuego, estarão no vídeo de divulgação do romance "Biofobia", de Santiago Nazarian, que a Record lança em abril. O vídeo, paródia de trailers de filmes de terror, terá direção de Nicolas Graves e deve ficar pronto no fim deste mês.
      Futuro Um dos maiores físicos da atualidade, o americano Michio Kaku estreia neste fim de semana no topo da lista do "New York Times" com "The Future of the Mind", no qual aborda temas como telepatia, controle da mente, telecinese e memória artificial. A obra chega ao país pela Rocco em 2015.
      Resgate Há anos fora de catálogo, "O Jardim do Éden", de Ernest Hemingway, foi enfim retraduzido.
      Resgate 2 Programado para sair após o relançamento da obra em catálogo do americano pela Bertrand, o romance inacabado ganhou tradução de Roberto Muggiati, que agora verte "Tempo de Viver" e "Tempo de Morrer".
      Guerra psicológica A historiadora francesa Annette Becker parte de arquivos pessoais e diários de testemunhas da Primeira Guerra para retratá-la em "As Cicatrizes Vermelhas". A Tinta Negra lança a obra em julho, nos cem anos do conflito.
      Efeito Oscar As duas casas que publicaram as memórias de Solomon Northup,"12 Anos de Escravidão", colhem frutos do Oscar ao filme homônimo. Em menos de um mês, Companhia das Letras e Seoman distribuíram suas tiragens iniciais, de 15 mil e 10 mil cópias, e mandaram imprimir mais 5.000 cada uma.

        Drauzio Varella

        folha de são paulo
        Pílulas mágicas
        Durante décadas, os comerciais de vitamina C para tratamento de gripes infestaram o horário nobre
        É incrível o poder que o povo atribui às vitaminas. Seus defensores juram que elas melhoram o apetite, evitam gripes e resfriados, reforçam a imunidade, conferem bem-estar e aumentam a longevidade.
        Essa crença vem ao encontro do sonho acalentado desde os primórdios pela humanidade: obter tais benefícios sem nenhum esforço, às custas de um elixir da juventude.
        Ninguém colaborou tanto para a popularização desses mitos quanto Linus Pauling, agraciado duas vezes com o prêmio Nobel (Química e Paz), que recomendava doses altas de vitamina C para neutralizar os radicais livres produzidos no interior das células, processo que teria o dom milagroso de prevenir câncer, enfermidades cardiovasculares, estimular a imunidade e retardar o envelhecimento celular.
        Atenta às oportunidades, a indústria farmacêutica investiu pesado na divulgação dessas ideias. Durante décadas, os comerciais de vitamina C para tratamento de gripes e resfriados infestaram o horário nobre das TVs. Campanhas milionárias acompanharam o lançamento de inúmeros complexos vitamínicos.
        Os anos 1990 assistiram ao florescimento de um mercado multibilionário nos Estados Unidos e na Europa, que se disseminou pelos países mais pobres. Hoje, americanos e europeus podem comprar o abecedário inteiro de vitaminas e sais minerais em lojas especializadas, do tamanho de supermercados.
        O mercado mundial movimenta 68 bilhões de dólares anuais. Cerca de 20 bilhões apenas nos Estados Unidos, país em que a metade da população faz uso de vitaminas. Os japoneses gastam 15 bilhões por ano.
        Esse mercado foi criado sem evidências científicas que lhe servissem de base. Os estudos conduzidos nos últimos 20 anos envolveram números pequenos de participantes, acompanhados durante períodos curtos e com tantos vieses estatísticos que os resultados só contribuíram para criar contradições.
        Com a finalidade de analisar as informações mais recentes, a comissão dos Serviços de Saúde dos Estados Unidos encarregada de recomendar medidas preventivas para a população (US Preventive Services Task Force - USPSTF) fez uma revisão cuidadosa das publicações sobre o papel das vitaminas na prevenção de doenças cardiovasculares e câncer, as duas principais causas de morte nos países do Ocidente.
        A conclusão não poderia ser mais objetiva: "Não há evidências de que o uso de vitaminas diminua a incidência de doenças cardiovasculares ou câncer".
        Muitos defensores da suplementação vitamínica apresentam a justificativa de que se não fizerem bem, mal elas não fazem.
        Não é verdade. Além dos efeitos colaterais associados às doses exageradas contidas em muitas apresentações, pelo menos dois estudos realizados para analisar o efeito protetor do betacaroteno em fumantes obtiveram resultados inquestionáveis: a administração de betacaroteno aumenta a incidência de câncer de pulmão nessa população de risco.
        Na clínica, canso de ver fumantes tomando complexos vitamínicos que contêm concentrações elevadas de betacaroteno. Alguns o fazem com prescrição médica.
        As interações associadas a doses suprafisiológicas de micronutrientes --como ele-- são complexas e imprevisíveis. O caso do selênio e da vitamina E na prevenção do câncer de próstata é outro exemplo.
        Em 2001 foi iniciado o estudo SELECT, que envolveu mais de 35 mil homens, divididos aleatoriamente em grupos que receberam vitamina E, selênio, uma combinação de selênio e vitamina E ou um comprimido inerte (placebo).
        Planejado para durar 12 anos, o estudo foi interrompido em 2008, quando ficou evidente que o selênio não exercia qualquer efeito protetor e que a vitamina E aumentava o risco de câncer de próstata em até 63%. O grupo com menos casos de câncer de próstata foi o que recebeu placebo.
        Vitaminas são úteis para tratar deficiências em crianças pequenas, em pessoas com limitações para se alimentar e em marinheiros com escorbuto nas caravelas lusitanas.
        Portanto, prezado leitor, se você não é bebê de colo, não está tão velho que não consiga mastigar e não tem a intenção de atravessar o Atlântico ao sabor dos ventos, coma frutas, legumes e verduras e ponha o corpo para andar. Não jogue dinheiro no vaso sanitário.

        São 126 anos de escravidão - Xico Sá

        folha de são paulo
        XICO SÁ
        São 126 anos de escravidão
        Caso Arouca mostra que está viva uma herança mental maldita à prova de abolição e de Lei Áurea
        Amigo torcedor, amigo secador, não podemos deixar barato ou por menos qualquer manifesto racista. Hoje esta crônica não tem firulas, aviso logo. É dever dos homens de boa vontade, de qualquer cor ou origem, um brado retumbante, um honestíssimo e urgente panfleto, como se estivéssemos no século XIX, pré-1888. Mentalmente muitos teimam em continuar por lá. Que se danem e paguem com as leis de hoje.
        Enquanto houver um único sujeito nessa condição e nesse tempo, no estádio ou na ópera, no San Siro ou no Romildão do Sapão de Mogi, no Santiago Bernabéu ou na Montanha dos Vinhedos --o estádio de Bento Gonçalves (RS), com batismo tão bonito--, estaremos aquém do sentido de humanidade.
        Nem falo aquém do humanismo a essa altura, esta ideia parece enterrada mesmo. O máximo que espero é que a vida nos dê a mínima chance de não apenas piorar as coisas. A vida como Campeonato Baiano das antigas: turno e returno, para a festa dos deuses que dançam, os únicos que contam, compreendendo a doideira de estar no jogo. E vivo. O terreiro como território, como aprendi com o Rizério.
        Outro dia falamos dos peruanos, no caso do Tinga (Cruzeiro), agora bate, de novo, à nossa porta esta herança maldita à prova de abolição e Lei Áurea. É mental, está nas camadas sombrias destes monstros, no fundo das ruindades encobertas.
        Ô gente carregada com o peso do nada. Grande Arouca, outra noite, aqui no boteco Chico & Alaíde (Rio), estava aprendendo sobre a existência com um cara que considero que vale a pena empregar o termo genial, hoje tão banal. Falo do negão-mor Paulo Cézar Lima, Caju, cara que prezo desde sempre e cujo amor ficou mais lindo após uma triangulação com o calcanhar do Sócrates --amigo é aquele que te deixa, além de uns "pinduras" nos bares da Vila Madalena (rs), outros amigos incríveis para comungar as mesmas belas loucuras futuras, está valendo a conta, Magrones. A gente falava da tua bravura e elegância, Arouca, nem sei direito, velho, como esse papo começou, mas sei que era o PC na sua filosofia máxima te dando o valor que nem se discute.
        Como o Muricy, esse porreta, que, assim como essa crônica, deixou o seu desagravo. Estamos juntos ou estaremos nas trevas. Chega.
        Caríssimo Márcio Chagas da Silva, árbitro punido pela cor lá na Montanha dos Vinhedos, só me resta chorar contigo essa desgraça.
        A essa altura da crônica, sei lá, o léxico, o lógico, o raciocínio foi para as cucuias, desculpa, amigo.
        Infelizmente nada disso se trata apenas de um bom épico vencedor do Oscar, como "12 anos de escravidão". Nesta triste semana, teríamos que acrescentar um vergonhoso seis. Donde concluímos: 126 anos de herança mental escravocrata. Será que errei na conta? Sou péssimo nisso: 1888 até hoje, dá quanto mesmo?