sábado, 18 de janeiro de 2014

Raul Juste Lores

folha de são paulo
Obama diz que EUA deixarão de espionar líderes de países 'amigos'
Ele, porém, não cita nações aliadas e abre exceção para 'forte razão de segurança nacional'
Presidente anuncia reforma na vigilância americana; NSA terá de sempre pedir à Justiça para coletar dados
RAUL JUSTE LORESDE WASHINGTON
O presidente americano Barack Obama anunciou ontem que não haverá mais espionagem de chefes de Estado e de governo "de nossos amigos próximos e aliados", a menos que haja "forte razão de segurança nacional".
"Se eu quero saber o que nossos amigos e aliados pensam, vou pegar o telefone e ligar para eles, em vez de recorrer à espionagem", disse, no discurso de 45 minutos sobre a prometida reforma da NSA (Agência de Segurança Nacional).
Obama disse que instruiu sua equipe de inteligência para aprofundar a cooperação com aliados para "reconstruir a confiança". Mas o presidente não citou que países são considerados amigos.
Ele afirmou que continuará a coletar inteligência ao redor do mundo, "do mesmo jeito que outros países fazem". "Não vamos pedir desculpas porque nossos serviços são mais eficientes." Reconheceu, porém, que erros são "inevitáveis" no trabalho de seus agentes.
A presidente Dilma Rousseff e a chanceler alemã, Angela Merkel, reclamaram da espionagem em sua comunicação pessoal, após os vazamentos feitos pelo ex-técnico da NSA Edward Snowden. Dilma adiou visita de Estado a Washington, mas só Merkel recebeu a promessa de não ser mais espionada.
Obama também determinou ao Departamento de Estado designar um coordenador para diplomacia internacional, que servirá como ouvidor e negociador das reclamações e questões de governos estrangeiros.
Diversos anúncios, entretanto, não foram acompanhados de detalhes.
Obama não falou se a NSA continuará a tentar quebrar códigos ou softwares, como revelado pelas denúncias.
Em 28 de março, Obama receberá projeto das agências de inteligência e do Departamento de Justiça com novas diretrizes para a coleta e o armazenamento de dados das ligações telefônicas. Mas algumas mudanças entram em vigor imediatamente.
A NSA deixa de poder investigar qualquer número de telefone relacionado a outro telefone sob investigação --e a qualquer outro número conectado a este segundo telefone. Agora, só poderá investigar duas conexões de um número. Exemplo: uma pessoa ligou para um suspeito monitorado, e outra pessoa telefonou para o interlocutor do suspeito. A NSA terá permissão para vigiar esta terceira pessoa, mas não uma quarta que vier a falar com ela.
A agência perde a autonomia no acesso a esse banco de dados. As pesquisas dependerão de ações judiciais. O cargo de defensor público de privacidade será criado no tribunal secreto que autoriza as investigações --segundo críticos, o órgão tem autorizado tudo sem supervisão.
Segundo Obama, o governo permitirá às empresas de tecnologia divulgar mais informações do que antes sobre as solicitações que recebem para fornecer dados aos serviços de inteligência. Esta era uma reivindicação de gigantes como Google, Facebook e Microsoft, depois de os vazamentos apontarem que essas companhias passavam informações ao governo sem controle rígido.
Em mensagem dirigida à comunidade internacional, ele falou que "não coletamos inteligência para dar uma vantagem competitiva a empresas ou setores comerciais americanos" e que queria dar "um passo inédito ao estender certas proteções a cidadãos estrangeiros no respeito à privacidade".
SNOWDEN
Obama disse não querer se estender sobre as "ações ou motivações" de Snowden. Mas criticou indiretamente o ex-técnico e os jornalistas que trabalham com ele --"a maneira sensacionalista que os vazamentos foram divulgados causaram dano ao país".
"A defesa da nação depende em parte da fidelidade daqueles a quem confiamos segredos. Se qualquer um que faz objeções ao governo pode vazar dados confidenciais, nunca conseguiremos manter o povo seguro", disse.

REPERCUSSÃO
Alemanha reage com cautela
Por meio de porta-voz, governo alemão diz que analisará detidamente o anúncio de Obama e que discutirá sobre a colaboração futura dos serviços de espionagem de ambos os países em conversações bilaterais confidenciais. O governo brasileiro não se pronunciou
    ANÁLISE
    Decisão sobre o que vigiar segue nas mãos da Casa Branca
    JOAQUIM FALCÃOESPECIAL PARA A FOLHAA Carta dos EUA proíbe que o governo faça "buscas e apreensões irrazoáveis" nas casas e haveres dos americanos. O dever de garantir a segurança nacional tem este limite. Coletar todos os telefonemas, de todos, todo o tempo é irrazoável? Este é o problema central. As medidas propostas serão suficientes para respeitar a Constituição?
    A questão toda é quem decide o que é razoável. Até ontem era o Poder Executivo, e continuará. Obama propôs mudar processos decisórios. O governo será mais razoável. Não há motivo para não crer que tentará ser. Mas as mudanças não atingem o núcleo do problema: a institucionalização do segredo.
    Por exemplo, há um Tribunal de Inteligência e Vigilância Externa. Quem acha que o governo foi irrazoável ou é processado pelo governo responde nesta corte. Mas é uma corte de julgamentos secretos. Ninguém sabe os critérios. Só o governo. Obama prometeu revelar de tempos em tempos as decisões, e criar um painel de advogados independentes para auxiliar a corte. Avanço e cortesia. Mas sem ampla transparência.
    O governo continuará a coletar, guardar dados e usá-los, às vezes pedindo permissão ao Judiciário, quando preciso. Continuará a espionar governos, com exceção de líderes dos países amigos. Pressão de Dilma e de Merkel com certeza. Mas quem decide quem é amigo é ele.
    Continuará a registrar, guardar dados dos próprios congressistas americanos, e provavelmente da Suprema Corte também. Pouco muda na estrutura decisória. Afinal, não é o Congresso ou o Judiciário o responsável real último pela segurança nacional americana. Prova disso é que as medidas propostas pela maior autoridade do mundo não foram exigidas por nenhum desses poderes, mas por Snowden e pela opinião pública americana e global.

      Xico Sá

      folha de são paulo
      Mulher odeia o 'chupa'
      O grito é recente, mas já lidera a tabela do ódio feminino de babaquices masculinas ao ver futiba
      Amigo torcedor, amigo secador, sabe o que as mulheres mais odeiam que um homem faça quando vê uma partida de futebol? Adivinha. Entrego: gritar um retumbante "chupa" na janela.
      O tal grito selvagem é coisa recente no comportamento do macho ludopédico, mas já ultrapassa, na tabela do ódio feminino, qualquer outra babaquice masculina, como o foguetório, o buzinaço nas ruas ou a obsessão por mesas redondas --estas cúpulas de homens enervados que parecem discutir o futuro da humanidade.
      Com 37%, o"chupa", camarada, é o gesto mais desprezível de um homem fanático, segundo a pesquisa "Como torce o brasileiro", publicada na última edição da revista "VIP". Soltar fogos para comemorar vem em segundo, com 32%; colocar o hino no clube para estourar os tímpanos fica em terceiro, na marca de 27%; na sequência, empatado com 24%, assoprar buzinas ou vuvuzelas e atormentar a cidade com o festim das buzinas.
      Por estas e por outras é que as mulheres são mesmo seres superiores. O "chupa" é odiado inclusive pelas que amam incondicionalmente o futiba. Já tive prova disso lá em casa. O famigerado grito não pega bem mesmo. Como sou, assumidamente, um populista do amor, evito a todo custo desagradá-las.
      O dado que mais me surpreendeu na pesquisa é que apenas 13% das meninas reclamam que o companheiro dá mais atenção ao futebol do que para elas. Sinto a grita mais elevada entre minhas colegas de trabalho. Defendo, desavergonhadamente, que homem que é homem deve dividir seu coração em três partes iguais: um terço é materno, um terço para a mulher amada e um terço para a ilusão futebolística.
      Agora, pasme, segundo o levantamento da "VIP", o Corinthians, com 31%, é o time mais odiado pelo conjunto geral das mulheres. Deve ser pelo barulho que provoca em São Paulo. Mal sabem que as moças corintianas, como a minha amiga Michelli Provensi, por exemplo, provocam mais estrondo do que uma legião de machos juntos.
      O Flamengo, muito abaixo, com 13%, é o vice-campeão em desprezo das fêmeas, com o São Paulo em quarto, 10%.
      É tão importante para o macho a coincidência de time que quase 50% dos homens estão com parceiras que vestem as mesmas cores. Sinceramente não ligo para isso. O parâmetro da minha geração era que ela não fosse "malufista" (rs). Caíram tantos muros morais de Berlin-1989 por diante e tantos homens sujaram as mãos depois, meu caro, que ficou difícil ajustar o critério. Fala sério.
      O importante é amar as mulheres e evitar o "chupa" pelo menos nos primeiros meses de relacionamento. Vale tudo para impressioná-la. Sempre.
      Ou você tem outro motivo para estar vagando no mundo perdido?

      "Rolezinhos" em shoppings devem ser coibidos?

      folha de são paulo
      TATIANA IVANOVICI
      TENDÊNCIAS/DEBATES
      "Rolezinhos" em shoppings devem ser coibidos?
      NÃO
      Um bom negócio
      No país da ascensão econômica, o "rolezinho" é uma oportunidade de negócios mal aproveitada.
      Enquanto se gasta dinheiro com mídia para atingir consumidores, o "rolezinho", se transformado em um evento cultural, economizaria esforços. Seus organizadores nada mais são que formadores de opinião. O público-alvo, os participantes, já estão reunidos e, não à toa, durante as férias escolares. O que nos impede de criar ações para ensinar esses jovens a produzir um evento, a montar um projeto e apresentar aos donos dos shoppings?
      Se as classes populares são formadas sobretudo por negros, como se pode reprimir a estética dessas pessoas? O nosso povo consome, e já faz tempo, a sua própria cultura, criada de dentro para fora das periferias --os saraus, o futebol de várzea, o samba, o rap, o funk, etc.
      Os jovens vão ao shopping porque aprenderam que lazer é consumo. Mas um país não sobrevive só de consumo. É preciso educação e preparo para lidar com o dinheiro. As quebradas já entenderam isso e estão buscando o estudo, os cursinhos. Mas a educação formal não acompanha essas mudanças, não dialoga com o universo dos jovens da periferia, não ensina como é gostoso o sentimento de vitória.
      No Brasil da economia emergente, falar de dinheiro é mais tabu do que falar de sexo.
      Uma marca associada ao "rolezinho" conquistaria milhares de pessoas simplesmente por visar o crescimento humano, o bem coletivo. Isso é o negócio social, é o progresso compartilhado. Todos ganham: povo, empresas, poder público.
      A massa prefere o que exalta a gente renegada. Gosta dos estilos musicais que possuem características negras. O funk, por exemplo, estourou no Brasil com o tamborzão: batida eletrônica criada com percussão de candomblé e capoeira.
      Mas, infelizmente, o Brasil é o país do racismo velado. Pergunte-se quantos negros trabalham na mesma empresa que você. Todos os movimentos culturais negros foram reprimidos. Até 70 anos atrás, um negro que andasse na rua com um pandeiro debaixo do braço era preso.
      Existem muitos eventos que podem ser potencializados nas periferias. Atualmente, muitos jovens das classes A e B querem ir para a quebrada curtir um samba. A periferia é "hype", lança tendências e gírias que chegam aos Jardins. O "rolê" não está ligado apenas à falta de lazer, mas também à falta de mobilidade entre a periferia e o centro expandido de São Paulo.
      Só quem vem do sofrimento sabe o que significa não ter opção. Vive-se num limbo. É um esforço quase sobre-humano se destacar: você começa a vida dez anos atrás de quem teve educação. Quem vem da quebrada não ganhou mesada, não foi treinado para se comportar no mundo. A invisibilidade é o motor propulsor do "rolezinho", que é um pedido de socorro: estamos aqui e queremos oportunidades.
      A proibição do "rolezinho" só marginaliza nossa juventude. Aliás, quais são os critérios para enquadrar seus participantes? A aparência e a cor da pele? E mais, quem será o responsável por definir quem deveria e quem não deveria ser barrado nas entradas dos shoppings? E se os encontros fossem marcados por jovens brancos das classes A e B? Quais seriam os critérios? A cor da pele?
      A minha atitude tem reflexo na sua vida, caro leitor, e vice-versa, pois nós compartilhamos a cidade, as ruas, os shoppings. Precisamos de autoanálise, urgentemente.
      Ser honesto é pressuposto, não é mérito. Precisamos encarar os problemas com tolerância para acharmos soluções em conjunto. Essa juventude é, no limite, uma imensa força de trabalho que, se direcionada, vai mudar o Brasil.
      ANDREA MATARAZZO
      TENDÊNCIAS/DEBATES
      "Rolezinhos" em shoppings devem ser coibidos?
      SIM
      O seu, o meu, o nosso "rolezinho"
      Os "rolezinhos" tornaram-se o assunto deste verão. Os encontros de um número expressivo de jovens em shoppings de São Paulo são considerados por muitos como uma espécie de continuação das manifestações de desencanto e indignação de junho passado.
      Há, de fato, aspectos em comum. Como as passeatas a céu aberto contra a péssima gestão do Estado brasileiro, os "rolezinhos" reúnem participantes que marcam o encontro previamente pelas redes sociais.
      Em ambos, grupos oportunistas de vários matizes ideológicos procuram pegar carona na notoriedade desses movimentos.
      No caso dos "rolezinhos", comerciantes e frequentadores dos shoppings e, depois, a sociedade foram pegos de surpresa. Pois, assim como as manifestações de inverno, a moda do verão surgiu inesperadamente e se tornou o tema predominante das últimas semanas.
      Mas há diferenças que não podem ser desprezadas. O rastilho de pólvora das manifestações foi o aumento do preço do transporte urbano e, depois, o movimento ganhou corpo com outras reclamações difusas. Não há, no caso atual, um discurso unificado de reivindicações. Não há sequer uma reivindicação expressamente declarada.
      Recentemente, jovens marcaram um "rolê" em Itaquera a pretexto de diversão. Houve reação dos proprietários de shoppings e das autoridades. Isso acendeu o debate com vezos políticos e ideológicos.
      Muitos a favor, muitos contra. A sensação que fica é que apoiar os "rolês" é de esquerda e condená-los é de direita. Isso é ridículo, pois interdita o debate, não traz solução.
      Aliás, é o que vem ocorrendo em diversas frentes: o debate morre, reduzido a ideologia de almanaque ou a meras disputas entre quem é o "bonzinho" e quem é o "mauzinho".
      Não faz sentido ideologizar ou politizar os "rolezinhos". Ser ou não ser politicamente correto não é nem deve ser a questão. O que temos de defender é a integridade física das pessoas que frequentam locais públicos ou privados de uso coletivo.
      Também não se pode deixar de lado evidências como o fato de que grupos de mil jovens ou mais (independentemente da classe social, credo ou bairro) em espaços inadequados podem provocar se não depredações e agressões, como já ocorreu, sustos, correrias e atropelos.
      A sociedade demanda códigos e padrões de comportamento para que os direitos de todos sejam assegurados. Da mesma forma que não se deve andar de skate em hospitais nem conversar durante um espetáculo, não é aceitável superlotar casas de eventos para não se repetirem tragédias como a da boate Kiss. Em recintos fechados, não é razoável dar margem a tumultos que ponham em risco a segurança das pessoas.
      A liberdade de marcar encontros pela internet é uma novidade que demanda cuidados. Uma chamada pode reunir 20 ou 20 mil pessoas. Como controlar uma multidão sem um mínimo de planejamento e organização? Em São Paulo, qualquer evento que reúna determinada quantidade de pessoas, por lei, exige ação da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), do Corpo de Bombeiros, do Samu (Serviço Atendimento Médico de Urgência) e da Polícia Militar.
      Eventos sem as medidas de cautela necessárias podem provocar desastres. Como esvaziar um shopping lotado em caso de incêndio? Em caso de tumulto, como evitar acidentes com pessoas mais velhas ou com alguma deficiência? Como proteger as crianças? Como prevenção, é preciso, com bom senso, coibir aglomerações e correrias em qualquer local sem a estrutura necessária.
      Ou seja: seu "rolezinho" termina onde começa o do outro, pois a liberdade de cada cidadão é delimitada pela dos demais.

      André Singer

      folha de são paulo
      A hora da política
      O prefeito Fernando Haddad indicou o caminho certo. Diante do crescimento do conflito causado pelos "rolezinhos", estimulou as partes a conversar. Como ficou claro em junho passado, atitudes extremadas só levarão ao desgaste da autoridade pública, com aumento da tensão social já visível nas grandes metrópoles.
      O problema é que não há solução fácil no horizonte. Não basta disposição para o diálogo quando interesses materiais e simbólicos começam a se opor de maneira radical. Os jovens que estão deixando os centros de compra em pânico podem não saber, mas explicitam um confronto crescente entre ricos e pobres no Brasil.
      Soa contraintuitivo que tal enfrentamento se intensifique justo quando os de baixo estão melhorando de vida e a desigualdade cai. Ocorre que, tendo saído da condição em que mal era possível enxergar a perspectiva do dia seguinte, as camadas pobres adquiriram uma energia extra.
      Movimentos de ascensão sempre impulsionam novas expectativas. Os metalúrgicos, que lideraram as grandes greves de 1978 a 1988, tinham sido beneficiados pelo forte crescimento dos anos do "milagre econômico". Acresce que, desta feita, a melhora nas condições de consumo deu aos jovens brasileiros acesso a aparelhos informatizados. Assim, passaram a fazer parte da variada onda mundial de manifestações facilitadas pela existência de redes instantâneas.
      Do outro lado, segmentos de classe média têm reagido com verdadeiro ódio às tímidas mudanças do último decênio. Uma atitude segregacionista, que estava encoberta pela relativa passividade dos dominados, veio à tona quando os estratos antes excluídos começaram a ocupar aeroportos, frequentar clínicas dentárias e a encher as ruas de carros.
      Visto em retrospecto, é óbvio que chegariam aos shoppings. Note-se que, por razões quase territoriais, o primeiro embate se dá entre zonas sociais contíguas. Não por acaso, os locais até aqui escolhidos para os "rolezinhos" estão longe do centro. Essa vizinhança produz reações às vezes violentas por parte dos frequentadores, uma vez que envolve também um desejo de diferenciação. Mas não se subestime a intensidade do contragolpe caso a confusão se espalhe para as chamadas áreas nobres.
      Dada a situação de disputa que está posta, a única solução positiva, isto é, em que todos ganhem, passa pelo aumento da riqueza geral, com maior distribuição de renda e forte investimento público onde é mais justo. Porém, como no plano da economia a pressão vai no sentido de diminuir o ritmo e apertar o gasto governamental, caberá à política resolver a quadratura do círculo.
      Se não o fizer, haverá uma longa e dolorosa guerra distributiva no país.

      Ruy Castro

      folha de são paulo
      Inventores de mundos
      RIO DE JANEIRO - Ao contrário de importantes centenários recentes que quase ninguém comemorou, o de Dorival Caymmi, em abril, fará justiça ao autor de "Dora" e "Marina". Vêm aí especiais de TV, livros, shows, mesas. Uma dessas poderia valorizar não apenas suas canções praieiras, mais famosas, mas também seus sambas-canções --urbanos, noturnos e de intensa beleza--, como "Não Tem Solução", "Sábado em Copacabana" e outros, dele sozinho ou com parceiros.
      Conviria explorar a revelação feita por sua neta, minha amiga Stella Caymmi, no excelente "Dorival Caymmi - O Mar e o Tempo" (Editora 34, 2001): a de que o poeta do mar nunca aprendeu a nadar. Mas como? --dirá você. Pois, para mim, este é um dos motivos pelos quais Caymmi era um grande criador. Não precisava jogar-se ao mar de verdade para cantá-lo.
      Há quem pense que Guimarães Rosa vivia a cavalo pelo sertão para aprender os segredos que descrevia em seus livros. Mas não era assim. Rosa fez uma única e longa viagem pelo sertão mineiro, em 1952, acompanhado por "O Cruzeiro". O resto, tirou da cabeça, em sua sala no Palácio Itamaraty, onde trabalhava, ou no apartamento em Copacabana, onde morava. Assim eram o sertão de Rosa e o mar de Caymmi: só deles, sem par na vida real.
      O inglês Edgar Rice Burroughs foi mais ousado: escreveu 23 romances sobre Tarzan sem nunca ter posto os pés na África. Assim como o alemão Karl May nunca foi ao Oeste americano para escrever as aventuras do índio Winnetou --nem aquele Oeste jamais existiu. A Nova York mítica de 1900, a "Bagdá no metrô", também era toda da imaginação de O. Henry. E a Dublin de "Ulisses" não era exatamente a que James Joyce deixara para trás. Enfim, para isso serve o artista --para inventar mundos.
      O praieiro Caymmi não sabia nadar. E o urbano Caymmi, coerentemente, não sabia dirigir.

        Reconstruindo Salinger - Raquel Cozer

        folha de são paulo
        Reconstruindo Salinger
        Sai no Brasil biografia que revela detalhes íntimos da vida do autor americano que, durante seis décadas, fugiu da exposição pública
        RAQUEL COZERCOLUNISTA DA FOLHA
        Nos 57 anos em que viveu num chalé em uma cidade de 1.800 habitantes no norte dos EUA, J.D. Salinger (1919-2010) conseguiu feitos dignos de um candidato a ermitão-mor da literatura contemporânea.
        O autor de "O Apanhador no Campo de Centeio" (1951) barrou na Justiça a primeira biografia a seu respeito, impediu a divulgação de cartas enviadas a amigos, bloqueou edições piratas de sua obra.
        Bastaram três anos de sua morte para que aparecessem duas biografias, um filme, três exposições de cartas e três contos que ele não queria ver publicados tão cedo.
        Se em vida Salinger enfrentou baques na luta contra o uso de sua imagem (inclusive pelas memórias da filha e de uma ex-namorada), um forte revés póstumo veio com a biografia "Salinger", de David Shields e Shane Salerno, que sai agora pela Intrínseca.
        Lançado em setembro nos EUA, junto com documentário homônimo dirigido por Salerno (no Brasil, estreia em fevereiro), o livro foi atacado por boa parte da crítica pela devassa na vida do autor.
        É um prato cheio para quem esperava notícias sobre os anos em que ele se isolou.
        Entre relevâncias e irrelevâncias da pesquisa de nove anos de Salerno (roteirista de "Armageddon"), estão dezenas de fotos e cartas inéditas.
        Há detalhes sobre a primeira união do autor, em 1945, com a alemã Sylvia --que Salinger, após traumas na Segunda Guerra, apresentou à família como francesa. A biografia levanta a suspeita de que a relação tenha acabado quando ele descobriu que ela era informante da Gestapo.
        Na área de irrelevâncias, há a informação de que o escritor tinha um testículo só. Para Salerno, isso explicaria tanto a atração de Salinger por garotas inexperientes quanto sua rejeição à mídia.
        Outra informação inédita é a descrição de cinco obras que, em tese, Salinger queria ver publicadas entre cinco e dez anos após sua morte --ou seja, a partir do ano que vem.
        Entre elas, uma história de amor na guerra, inspirada em Sylvia, e um manual da filosofia indiana vedanta, à qual o ficcionista se dedicava com afinco. Os três contos que caíram na rede em novembro não integravam esse pacote.
        Para Salerno, se a guerra criou o escritor Salinger, a religião o matou. "No início, a vedanta foi boa para sua obra, como se vê em Franny & Zooey' [1961], mas sobrepujou seu talento. O último conto que publicou, Hapworth 16, 1924' [1965], é intransponível", diz o biógrafo à Folha.
        Mas a doutrina que ajudou Salinger a rejeitar a superexposição acabou por alimentá-la após sua morte.
        Uma das três exposições de cartas feitas desde 2010 pela Morgan Library, em Nova York, trazia missivas dele ao líder Swami Nikhilananda, doadas pelo centro que o escritor frequentava. "A correspondência mostra a evolução de Salinger e sua rígida rotina de escrita", diz o curador da Morgan, Declan Kiely.
        É curioso que continue fora de circulação a biografia feita por Ian Hamilton nos anos 1980 e que Salinger conseguiu barrar por deter os direitos de trechos de correspondência ali reunidos.
        Meses atrás, um original dessa biografia foi arrematado na casa de leilões Swann por US$ 3.200 --menos que o valor mínimo esperado, US$ 4.000. Talvez porque já se saiba o bastante sobre Salinger.
        Escritor é o único nome da histórica Editora do Autor
        DA COLUNISTA DA FOLHA
        J.D. Salinger, notório ermitão, talvez gostasse de saber que há anos reina sozinho em sua editora brasileira.
        Publicados no país desde os anos 1960, 3 dos 4 livros do americano compõem hoje todo o catálogo da Editora do Autor, que resiste num escritório em Ipanema, no Rio.
        "Trabalhei com muitos livros, mas estou idoso e já não tenho tanta disposição. Às vezes me oferecem títulos, publiquei uma coisa ou outra, mas desde os anos 1990 me centrei em Salinger", diz o editor Walter Acosta, 96.
        Acosta fundou a Editora do Autor em 1960, com Rubem Braga e Fernando Sabino. Logo amigos célebres dos cronistas, como Clarice Lispector e Manuel Bandeira, passaram a publicar pela casa.
        Em 1965, os diplomatas Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster apresentaram à Editora do Autor sua tradução para "O Apanhador no Campo de Centeio", que saíra 14 anos antes nos EUA.
        A casa bancou a publicação e, em 1967, lançou ainda "Franny & Zooey" e "Nove Estórias", sempre seguindo as rígidas normas de Salinger --nada de fotos dele, nada de textos de apresentação etc.
        Nessa época, Sabino e Braga já tinham abandonado o barco para criar a Sabiá, levando junto os grandes autores nacionais. Salinger ficou.
        "O Apanhador..." está na 19ª edição, com 350 mil cópias vendidas. Os outros dois vendem bem menos. O quarto livro, "Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira & Seymour: Uma Introdução", é publicado pela L&PM --e saiu nos anos 1980 pela Brasiliense como "Pra Cima com a Viga, Moçada!".

        José Simão

        folha de são paulo
        Ueba! Rolezinho do Flamengo!
        'PMDB se rebela e exige mais ministérios'. Se rebela como? Batendo caneca na grade? Em Pedrinhas?
        Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E o site Humor Esportivo revela o rolezinho do Botafogo: "Rolezinho de botafoguenses fracassa com apenas quatro presentes". O sonho de todo dono de shopping: rolezinho de quatro! E o rolezinho do Flamengo: um flamenguista dentro do camburão, escrito embaixo: #PartiuRolezinho! Rarará!
        E olha o melhor diálogo do Facebook: "E que venha Elton JHON". "Voce tá grávida?". "Não, amiga, é um cantor que vem dar show em Fortaleza". Rarará!
        E aquele ex-BBB preenchendo ficha de inscrição: "Local de nascimento". "Hospital Sagrada Família". Rarará! O anta botou o nome da maternidade!
        E neste mês o Elvis Presley faria 79 anos, se estivesse morto! E diz que a média de vida no Maranhão é de 70 anos. Por isso que o Sarney foi pro Amapá! Rarará!
        E essa manchete desde 1500: "PMDB se rebela e exige mais ministérios". Se rebela como? Batendo caneca na grade? Se rebela onde? Em Pedrinhas? Rarará!
        E PMDB quer dizer Pegamos Ministérios De Baciada! Eles querem o Ministério da Saúde, da Doença, das Férias, da Entregação Nacional e o ponto do pipoqueiro da praça dos Três Poderes!
        Como disse um amigo: "O PMDB é o partido mais quenga desde os tempos de Salomé!".
        O PMDB nasceu com a carta de Pero Vaz de Caminha pedindo emprego pro Rei de Portugal! O fundador do PMDB foi o Pero Vaz de Caminha! Se eu fosse a Dilma Roucheffe, dava três pastas: Colgate, Close Up e Sensitive!
        E o primeiro eliminado do "BBB", vulgo Friboi 14: um cartomante. Que não previu que ia sair. Ou então usaram as cartas pra jogar baralho! Rarará!
        É mole? É mole, mas sobe!
        O Brasil é Lúdico! Cartaz de promoção numa loja de lingerie: "Abaixamos as calcinhas". E essa faixa na Bahia: "Semana da Família! Paróquia de Pintadas". E adoro esse outdoor: "Por melhor qualidade de vida! Ampliação do cemitério de Roseiras". Rarará!
        E hoje, sabadão: #partiu rolezinho! Já tô pronto pro shopping: polo com gola levantada. Antes na porta do shopping só tinha pipoqueiro, agora é um paredão de homem de terno preto! Parece vitrine da Colombo! Rarará!

        Painel das Letras - Raquel Cozer

        folha de são paulo
        PAINEL DAS LETRAS
        Tempos de fé
        Ao renunciar ao papado, quase um ano atrás, Bento 16 ajudou a causar uma reviravolta no mercado de livros católicos no Brasil. A renúncia, o conclave e a visita do novo papa, durante a Jornada da Juventude, colaboraram para que o segmento crescesse mais que o dobro de outros nas vendas da Distribuidora Loyola, que atende cerca de 2.000 das 3.000 livrarias do país. Na comparação com 2012, o crescimento dos livros católicos pela distribuidora foi de 22%, ante um aumento total de 9% nas vendas. É claro, além de livros sobre ou do papa Francisco, tiveram imenso impacto nesse cenário os títulos mais recentes dos padres Marcelo, Reginaldo Manzotti e Fábio de Melo.
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        // CRISE EDITORIAL AÉREA
        A vida está difícil para editores interessados em vender livros em aeroportos. Com a Laselva em crise, devendo a dezenas de fornecedores, um plano B era a Espaço Vip, com lojas em terminais como o de Guarulhos e Brasília.
        Mas o grupo --com 29 pontos de venda, sendo boa parte em aeroportos-- anda atrasando pagamentos também.
        Ao menos duas editoras, sem receber há meses, entraram com protestos judiciais contra a rede. Editores dizem que, por isso, a rede não consegue autorização para receber financiamento do governo para lojistas e prestadores de serviço durante a Copa.
        Sebastião Xavier, sócio da Espaço Vip, diz que 2013 "foi um ano difícil para todo mundo que trabalha em aeroportos" e que os problemas são pontuais. "Se somar tudo, não devemos mais de R$ 150 mil. Já estamos resolvendo."
        De ninguém As traduções que o poeta Fernando Py fez para os sete volumes de "Em Busca do Tempo Perdido" --mais de 2.000 páginas--, publicadas pela Ediouro em 1992 e relançadas dez anos depois, estão à venda na Amazon sem crédito ao tradutor nem à editora. As edições digitais piratas apenas eliminam os textos introdutórios de Py.
        De ninguém 2 A Amazon diz que toma medidas cabíveis quando é avisada sobre irregularidades pelos proprietários dos direitos. Não informa quem anda ganhando dinheiro com a venda do trabalho alheio, dado também omitido para o comprador. Nos comentários de usuários do site, há críticas à qualidade das edições.
        De ninguém 3 A Ediouro diz que suas edições da obra de Proust ainda estão em catálogo, embora não apareçam à venda nas maiores lojas virtuais. A tradução de Mario Sergio Conti para a Companhia das Letras deve ficar para 2015. Para os interessados, há a da Globo, vertida por Mário Quintana.
        Expansão Após começar a vender seus e-books pelas lojas Google, Amazon, Apple, Iba e Saraiva, o site de autopublicação Clube dos Autores passará a oferecê-los pelos varejistas nacionais Extra, Ponto Frio e Casas Bahia.
        O outro lado No ousado "Na Sombra do Meu Irmão", o romancista Uwe Timm conta a história da Segunda Guerra a partir dos diários do irmão mais velho, que morreu lutando pela SS nazista e foi considerado um herói pela família. O livro, nada condescendente, vendeu 250 mil exemplares na Alemanha e teve os direitos por aqui adquiridos pela Dublinense.
        Aquisição Carlos Henrique Schroeder, vencedor do prêmio da Fundação Biblioteca Nacional pelos contos de "As Certezas e as Palavras" (Editora da Casa), é a primeira aquisição do editor Carlos Andreazza em sua nova fase na Record, acumulando a ficção nacional ao trabalho que já fazia na não ficção. Estão previstos a novela "As Fantasias Eletivas", agora em agosto, e o romance "História da Chuva", em 2015.
        HQ "O Quinto Beatle", quadrinho de Vivek J. Tiwary sobre Brian Epstein, empresário que descobriu os Beatles, será a primeira novela gráfica da Aleph, casa especializada em ficção científica; sai no fim de abril

          Álvaro Pereira Júnior

          folha de são paulo
          Papel = internet
          'New York Times' muda o site e visual fica praticamente idêntico ao do jornal impresso
          Surpresa no meio de uma viagem por um lugar distante e praticamente sem internet: o site do "New York Times", um dos melhores jornais do mundo, estava diferente. Cheguei a pensar que fosse defeito da transmissão, e a página não tivesse "montado" direto. Mas, com uma lenta pesquisa (o normal seria dizer "rápida pesquisa", porém não com a conexão que eu tinha), deu para constatar: era mesmo um novo projeto gráfico.
          Saíram os títulos em azul, dando lugar a letras pretas, em itálico, iguais às do jornal de papel. As páginas de reportagens ficaram mais limpas, com o texto centralizado. Os comentários de leitores foram içados da parte de baixo da tela --agora correm paralelos, na mesma altura do texto principal.
          São muitas novidades, algumas delas imperceptíveis para o leitor comum. De todas, a que me parece mais importante é que, visualmente, o site do "New York Times" ficou praticamente idêntico ao jornal impresso.
          Essa é uma mudança crucial de conceito. Nos primórdios da web, o leitor deve se lembrar, muitos veículos tradicionais nem usavam seus próprios nomes nos sites. O "Washington Post", por exemplo, na internet se chamava "digitalink.com" ("tintadigital.com"). A revista "New Scientist" era "planetscience.com".
          O raciocínio por traz disso era óbvio: a nave-mãe é o impresso, não vamos queimar nossa marca nessa aventura; a gente adota outro nome na internet e depois vê no que dá. Papel era papel, internet era internet.
          Vinte anos depois, o "NYT", tão imitado e influente, dá um passo corajoso: em identidade visual, papel e on-line praticamente não têm mais distinção. A "homepage" do site e a capa do jornal físico são gêmeas quase idênticas.
          E isso, no caso do "New York Times", tem um valor simbólico muito forte. Segundo uma reportagem recente do jornal inglês "The Guardian", na grande maioria dos sites noticiosos líderes de audiência, a homepage, página de abertura, não é tão importante. Só 10% dos leitores começam por ela e depois vão clicando nas notícias. A grande maioria já entra direto nos textos, vindos de links em redes sociais e de pesquisas no Google.
          No caso do "NYT", essa estatística é muito diferente. A marca é tão forte que nada menos que metade dos leitores inicia a leitura do site pela homepage. Para esse público, digitar nyt.com, quando se está em busca de notícias, é uma ação automática.
          Outro ponto a destacar: assim como em vários outros sites importantes com origem em veículos impressos, inclusive no Brasil, os recursos audiovisuais da internet são bastante explorados no novo projeto gráfico americano.
          Até há alguns anos, uma revista ou jornal impresso que obtivesse um vídeo sensacional, um grande furo de reportagem, pouco teria o que fazer. Poderia, no máximo, montar uma sequência de imagens no papel inerte: o que se chama, no jargão jornalístico, de "cineminha". E depois torcer para que uma emissora de TV pedisse o vídeo, e pusesse no ar com o devido crédito.
          Isso mudou, o que eventos recentes no Brasil deixam claro. Os vídeos da barbárie no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, foram divulgados pela versão on-line da Folha, na origem um jornal impresso. Foi também esse o caso do vídeo em que Chico Buarque dava ao pesquisador Paulo César Araújo uma entrevista que ele, Chico, vinha negando ter concedido (furo do site do jornal "O Globo").
          A inovação apareceu até em um caso folclórico, o do notório Rei do Camarote. No fim do ano passado, o sujeito virou febre na internet graças a um vídeo editado com muita inteligência (e veneno) pelo site de uma revista de papel, a "Veja São Paulo".
          Enquanto escrevo esta coluna, ouço uma entrevista do roqueiro Stephen Malkmus, da banda Pavement, na rádio BBC 6. Ele agradece pela emissora estar tocando bastante uma canção sua. Só que não diz "emissora", nem "rádio". Diz "canal".
          Não dá para culpar o velho Stephen pela imprecisão. O mundo está mesmo assim: rádios transmitem imagens, jornais e revistas fazem vídeos, a TV se aproxima da internet, o próprio conceito de canal ficou muito mais amplo.
          Na segunda década do século 21, uma palavra antiga alcança finalmente seu significado pleno: multimídia. A gente já usava, mas não sabia que ela queria dizer tanta coisa.

          Marcelo Leite

          folha de são paulo

          Diagrama de sonhos ajuda no diagnóstico de psicose

          Poucos ramos da medicina dependem tanto da experiência e da sensibilidade do médico quanto a psiquiatria –até agora. Se der certo a invenção de um grupo de neurocientistas e físicos brasileiros, em alguns diagnósticos difíceis de psicoses ela poderá usar menos arte e mais ciência: análises quantitativas de relatos de sonhos.
          Pesquisadores das universidades federais do Rio Grande do Norte (UFRN) e de Pernambuco (UFPE), liderados pelo neurocientista Sidarta Ribeiro e pelo físico Mauro Copelli, estão propondo um método automatizado para definir se um paciente é esquizofrênico ou bipolar. A primeira autora é a psiquiatra Natália Mota, da UFRN.
          O trabalho foi publicado eletronicamente, quarta-feira, no periódico "Scientific Reports", do grupo Nature.
          A psiquiatria conta com vários questionários padronizados, porém dependentes da interpretação do médico. Eles resultam em pontuações úteis para fixar diagnósticos.
          Não existe, porém, um teste quantitativo para apoiar o diagnóstico de psicoses, ao estilo de um exame de sangue capaz de indicar se a pessoa é diabética ou não.
          Editoria de Arte/Folhapress
          Psicoses como a esquizofrenia e o transtorno bipolar se caracterizam, entre outros sintomas, por alterações no discurso (fala) dos pacientes. Um esquizofrênico pode se mostrar mais quieto, lacônico. Já um bipolar, na fase maníaca, costuma tornar-se verborrágico, falando sem parar.
          Em 2012, o grupo do Nordeste já havia publicado um primeiro artigo sobre a análise dos relatos de pacientes com o uso de grafos (diagramas em que palavras são representadas como nós, e a sucessão entre elas, por arcos).
          NA TRILHA DE FREUD
          Agora, os autores deram um passo adiante. Para isso, seguiram a pista dada por Sigmund Freud (1856-1939), no clássico psicanalítico "A Interpretação dos Sonhos" (1899), de que o universo onírico dá acesso privilegiado às profundezas da mente.
          Eles mostraram que os relatos de sonhos, quando submetidos ao método, são mais informativos para o diagnóstico diferencial do que os de eventos da vigília.
          Ao relatar fatos da vida consciente, a pessoa tende a seguir a ordem cronológica. Isso resulta em grafos mais simples. Já o paciente acordado, ao contar um sonho, tenta reproduzir sua estrutura, o que faz transparecer perturbações no discurso.
          "O relato do sonho é um produto totalmente pessoal, muito mais patognomônico [revelador da doença]", diz Sidarta Ribeiro.
          A análise dos padrões dos grafos, aplicada à fala de pacientes já diagnosticados como esquizofrênicos e como bipolares, revelou-se especialmente precisa para discriminar um grupo do outro.
          Essa capacidade de diferenciação não se perdeu quando os relatos foram recortados em pedaços de tamanhos diferentes. Ou seja, ela não era produto apenas da verborragia ou do laconismo do paciente.
          Tampouco desapareceu quando eles foram traduzidos para outras línguas (inglês, espanhol, francês e alemão). Dito de outro modo, o método parece ser válido independentemente da língua do médico ou do paciente.
          Na realidade, o método pode ser aplicado automaticamente, por um computador que seja capaz de transformar a fala do paciente em grafos e analisá-la. O grupo criou um software para isso, disponível na internet.
          "Vai ser tão útil para o psiquiatra quanto um raio-X para o ortopedista", afirma Ribeiro. "Não vai dizer se [o paciente] é esquizofrênico ou não, só fornecer a medida de um sintoma."
          É possível falar em medida porque dos grafos se obtêm expressões matemáticas do grau de complicação do percurso linguístico seguido pela narrativa. Os itinerários dos relatos de sonhos de bipolares tendem a ser muito mais "conectados", quer dizer, cheios de idas e vindas.
          O neurocientista acredita que o método será útil, também, para detectar a tendência de jovens para desenvolver psicoses e para avaliar a eficácia e a evolução de tratamentos para os distúrbios.
          POTENCIAL
          "[A linha de pesquisa da UFRN] É extremamente interessante", diz o psiquiatra Helio Elkis, coordenador do Programa de Esquizofrenia (Projesq) do Instituto de Psiquiatria da USP, que já a conhecia.
          Elkis ressalva tratar-se de uma prova de princípio, que precisa ser reproduzida por outros grupos, pois o número de pacientes (60) foi pequeno. "Mas dizer que vai substituir o diagnóstico? Acho que não."
          O artigo anterior sobre o tema, de 2012, já havia despertado o interesse do grupo de Lena Palaniyappan, neurocientista da Universidade de Nottingham (Reino Unido), que tem em vista uma colaboração com a UFRN.
          "[A abordagem] É muito atraente para neurocientistas e psiquiatras clínicos do mundo todo", afirmou Palaniyappan por e-mail. "Se [vier a ser] usada amplamente, tem potencial para permitir que testes clínicos avaliem tratamentos para problemas mentais e de linguagem nas psicoses."
          "Eles usaram métodos sofisticados de análise para tentar identificar características associadas a transtornos psiquiátricos, o que é uma estratégia engenhosa e com um bom potencial clínico", diz Marco Aurélio Romano-Silva, da UFMG.