quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Gatografia - Ana Martins Marques

Revista Piauí edição 88 _poesia_ANA MARTINS MARQUES > Dezembro de 2013
Gatografia
por ANA MARTINS MARQUES

Livro das semelhanças
O modo como o seu nome dito muito baixo pode ser confundido com a palavra xícara
e como ele se esquenta de dentro para fora
o modo como a palma das suas mãos se parece com porcelana trincada
o modo como ao levantar-se você lembra um grande felino
mas ao caminhar já não se parece com um animal mas com uma máquina rápida
e de costas sempre me lembra um navio partindo
embora de frente nunca pareça um navio chegando
o modo como dita por você a palavra “sim” parece uma palavra
que fizesse o mesmo sentido em todas as línguas
o modo como dita por você a palavra “não” parece uma palavra
que você acabou de inventar
o parentesco entre as fotografias rasgadas os brinquedos esquecidos na chuva cartas
que deixamos de enviar produtos em liquidação frases escritas entre parênteses
papel de presente as toalhas que acabamos de usar e massa de pão
e, mais importante, o parentesco de tudo isso
com o modo como você chama o táxi por telefone
a camisa branca que você acabou de despir sempre me lembra um livro aberto ao sol
seus sapatos deixados na sala sempre me parecem ensaiar os primeiros passos de dança
numa versão musical para o cinema do seu livro preferido
o modo como no seu apartamento as coisas sempre parecem estar em casa
e você sempre parece estar de visita
e como você pede licença à penteadeira para chorar
o modo como as nossas conversas me lembram bilhetes interceptados cardápios de
restaurantes exóticos rótulos de bebidas fortes documentos comidos nas bordas
por filhotes de cão
o modo como os seus cabelos parecem as linhas de um livro lido por uma criança
que ainda não sabe ler
ou apenas desenhos que alguém por equívoco tomasse por escrita
o modo como os seus sonhos parecem os pensamentos de pessoas que sobreviveram
a um desastre de avião
parecem as lembranças de um ex-boxeador apaixonado
parecem os contos de fadas preferidos de ditadores sanguinários
parecem os projetos de futuro de crianças muito pequenas
os parentescos entre as guerras íntimas os jogos de armar as primeiras viagens sem
os pais os países coloridos de vermelho no mapa-múndi pessoas que sempre esquecem
as chaves as primeiras palavras ditas pela manhã e a disposição para usar a violência
o modo como apesar de tudo isso você não se parece com ninguém
a não ser talvez com certas coisas
similares a nada

O BEIJO
Ao me beijar
esqueceu uma palavra em minha boca
Devo guardá-la
embaixo da língua?
engoli-la como um comprimido
a seco?
mordê-la até sentir
seu gosto de fruta
estrangeira, especiaria, álcool
duvidoso?
devolvê-la
num beijo
a ele?
a outro?
É pequena e dura
mais salgada que doce
e amarga um pouco
no fim


POEMA DE TRÁS PARA FRENTE
A memória lê o dia
de trás para frente
acendo um poema em outro poema
como quem acende um cigarro no outro
que vestígio deixamos
do que não fizemos?
como os buracos funcionam?
somos cada vez mais jovens
nas fotografias
de trás para frente
a memória lê o dia

NÃO SEI FAZER POEMAS SOBRE GATOS
Não sei gatografia.
Ana Cristina Cesar
Não sei fazer poemas sobre gatos
se tento logo fogem
furtivas
as palavras
soltam-se ou
saltam
não captam do gato
nem a cauda
sobre a mesa
quieta e quente
a folha recém-impressa
página branca com manchas negras:
eis o meu poema sobre gatos

Vidas Sugadas - Minha historia - Odele Souza

folha de são paulo
MINHA HISTÓRIA - ODELE SOUZA, 65
Vidas sugadas
Há 16 anos, mãe cuida da filha que entrou em coma irreversível depois de ficar presa no ralo da piscina; hoje, ela luta por mais segurança
RESUMO Há 16 anos, a secretária-executiva aposentada Odele Souza, 65, viu a filha Flavia, à época com dez anos, entrar em coma irreversível após ter os cabelos sugados pelo ralo da piscina do prédio onde moravam, em São Paulo. Conseguiu provar que o condomínio havia mudado inadvertidamente o sistema da piscina e, depois de 12 anos de batalha judicial, recebeu direito a indenização.
(...) Depoimento a
CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULOEra 6 de janeiro de 1998. Fazia calor e minha filha desceu para a piscina com outros três adolescentes. Ela sabia nadar desde pequena. De repente, ela mergulhou e a sucção do ralo a prendeu pelos cabelos no fundo da piscina.
Os colegas estavam de costas e não perceberam que ela se afogava. Não sabemos quanto tempo se passou até que um vizinho a viu pela janela e gritou.
Meu filho tentou puxá-la, mas ela não vinha porque estava presa pelo cabelo no ralo. Precisou arrancar uma mecha para soltá-la. Já estava inconsciente, com parada cardiorrespiratória, roxinha.
Chamamos o resgate, ela foi levada para o hospital e ficou 35 dias na UTI. Ao todo, foram oito meses de hospital até voltarmos para casa com home-care. Ela nunca saiu do que os neurologistas chamam de coma vigil [estado vegetativo permanente].
Respira sem ajuda de aparelhos, mas não fala, não se move, só se alimenta por sonda, todas as secreções precisam ser aspiradas.
Comecei a investigar o que tinha acontecido. Procurei nove advogados e nenhum quis abraçar a causa. Há 16 anos, ninguém tinha ouvido falar sobre isso. O décimo advogado, após pesquisar casos semelhantes no exterior, assumiu o caso.
Começamos uma batalha judicial, onde processei a seguradora do condomínio, o condomínio e o fabricante do equipamento de sucção.
Após uma perícia determinada pela Justiça, descobrimos que, por sua conta e risco, o zelador tinha trocado o motor da bomba de sucção da piscina por outro mais potente. Essa troca foi feita sem nenhuma orientação técnica.
Também processei o fabricante do ralo porque uma empresa que fabrica e comercializa produtos que podem colocar em risco à vida precisa colocar alertas.
Enfrentei uma batalha judicial de 12 anos, passei muitas dificuldades financeiras e nunca me conformei com o que tinha acontecido. Em 2012, o condomínio e a seguradora do condomínio foram condenados. É com o dinheiro da indenização [ela não revela o valor] que eu consigo manter a estrutura para cuidar dela, com técnicas de enfermagem e fisioterapeuta.
Minha rotina é bastante espartana. Acordo às 5h15 para dar a primeira refeição à Flavia, por sonda, às 5h30. Às 8h, chega a técnica em enfermagem. Após as 20h, sou eu que cuido dela sozinha.
Fico com um olho aberto e outro fechado. Desenvolvi uma audição muito aguçada. Se ela faz qualquer ruído, pulo da cama e corro até ela.
PROJETO
Depois de anos de um profundo luto, comecei a perceber que outras crianças estavam sendo vítimas do mesmo tipo de acidente. A maioria não é fatalidade, é por negligência. E não dos pais.
Em 2007, decidi criar um blog [www.flaviavivendoemcoma.blogspot.com.br] para alertar as pessoas para o perigo das piscinas e contar o dia a dia dos cuidados com a minha filha.
Comecei a pesquisar muito sobre legislação e, em 2010, vi que estava tramitando na Câmara dos Deputados um projeto de lei para tornar as piscinas mais seguras no país, mas que não tratava da questão dos ralos, das cercas de proteção e salva-vidas.
Eu me juntei a dois peritos em segurança de piscina para fazer um projeto técnico.
Em 2011, entregamos ao deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), mas nada aconteceu desde então [o parlamentar diz que está tentando apressar a tramitação da matéria e submetê-la à votação em plenário até março].
Acredito que, se esse projeto já tivesse sido votado e aprovado, todos esses acidentes poderiam ter sido evitados. A lei por si só não funciona, precisa ser seguida de fiscalização e punição.
É um absurdo que 16 anos depois do acidente as piscinas continuem verdadeiras armadilhas submersas.
Vou continuar lutando para ver essa lei aprovada e funcionando. É uma forma de resgatar a cidadania da minha filha que foi roubada. Lembro-me da vozinha alegre dela e começo a imaginar o que ela poderia estar fazendo hoje adulta.
Com o blog, é como se eu estivesse dando voz à minha filha. É como se, mesmo em coma, ela estivesse agindo, atuando. É a nossa janela para o mundo.
    Dispositivo contra sucção custa R$ 300
    DE SÃO PAULO
    Nos seis primeiros dias deste ano, três crianças morreram afogadas no país após terem o cabelo ou o braço sugado por ralos de piscinas.
    Em geral, esses acidentes acontecem por falhas de manutenção ou por falta de um dispositivo de segurança nos ralos que impedem a sucção.
    Segundo a Anapp (associação nacional dos fabricantes de piscinas) só cerca de 40 mil piscinas no país (2% de um total de 1,8 milhão) têm ralos com dispositivos de segurança, que, com instalação, custam em torno de R$ 300.
    Vários países, como EUA e Colômbia, já aprovaram leis que tornam esses itens obrigatórios, inclusive nas residências.
    Segundo a Sobrasa (Sociedade Brasileira de Salvamento Aquático), o afogamento é a segunda causa de morte entre crianças até nove anos.
    As piscinas respondem por metade desses afogamentos. Saiba como manter a sua piscina segura no site www.sobrasa.org/piscinamaissegura.

    O Maranhão - Pasquale Cipro Neto

    folha de são paulo
    PASQUALE CIPRO NETO
    O Maranhão
    Para quem aprendeu o tanto que aprendi com tanta gente brilhante do Maranhão, é uma lástima ver o que...
    Não se sabe ao certo a origem do topônimo (nome de lugar) Maranhão. O que se sabe é que na bela e maltratada capital, São Luís, e no sempre paupérrimo interior, nasceu e nasce muita gente boa, como Ferreira Gullar, Gonçalves Dias, Turíbio Santos ou Joaquim de Sousa Andrade.
    Ferreira Gullar é um dos grandes escritores brasileiros do século 20 e querido companheiro nesta Folha. Numa de suas célebres obras, o monumental "Poema Sujo", do livro homônimo, Gullar percorre um bom tanto do seu próprio in/consciente e, é claro, volta à sua marcante São Luís ("Mas sobretudo meu / corpo / nordestino / Mais que isso / maranhense / Mais que isso / sanluisense").
    A singular letra de "O Trenzinho do Caipira", que também está no "Poema Sujo", na verdade é parte do poema, que Ferreira sugere que seja lido com a melodia de Villa Lobos. No texto, Ferreira fala das viagens de trem com o pai, entre São Luís e Teresina.
    Outro dos maranhenses citados no primeiro parágrafo é o poeta romântico Gonçalves Dias, autor da antológica e conhecidíssima "Canção do Exílio" ("Minha terra tem palmeiras..."), da qual se fizeram inúmeras paródias.
    Virtuose do violão, o maranhense Turíbio Santos é ouvido em todos os cantos do mundo. Sua gravação de "Concerto de Aranjuez" (de Joaquín Rodrigo) é das mais respeitadas no planeta. É vasta a sua discografia, quase toda dedicada à música clássica.
    E o quarto maranhense citado? Quem será Joaquim de Sousa Andrade, mais conhecido como "Sousândrade"? Vou apresentá-lo a quem não o conhece com um trecho de "Trem dos Condenados" (de 1976), do pernambucano Marcus Vinicius: "Tomei o trem dos condenados / Que sempre partiu / Bastante adiantado / Quase uma vida inteira / Na frente do trem / Dos comportados / Tomei o trem dos esquecidos / Pela sorte grande nunca alcançada / Mas que nunca dançaram / Conforme a música dos aplausos (...) Enquanto canta o mestre do vagão / Joaquim de Sousa Andrade ali / Adiante da escuridão...".
    Sousândrade (1832-1902) estudou letras na Sorbonne e andou também por Nova York e outros recantos. Obviamente considerado "louco" por seus contemporâneos, deixou, entre outras, uma obra premonitória, "O Guesa", que foi reeditada em 2009. Quem assina o prefácio é ninguém menos do que Haroldo de Campos, um dos poetas concretistas, os "redescobridores" de Sousândrade.
    E por que a obra é premonitória? Bem, além de ser esteticamente inovadora, por adotar recursos até então inusitados, o livro encerra uma ácida crítica social, centrada na desventura do Guesa, personagem originariamente extraído da mitologia andina, o qual, na obra de Sousândrade, termina sacrificado pelos especuladores da Bolsa de Nova York.
    Conheci Sousândrade na adolescência. Fui apresentado a ele por Caetano Veloso, que, em seu genial disco "Araçá Azul", de 1973, incluiu a antológica canção "Gilberto Misterioso" (Caetano Veloso/Sousândrade).
    Um dia, em São Luís, fui à biblioteca central, à procura do que havia ali de e sobre Sousândrade. "Quem?", perguntou a funcionária. "Joaquim de Sousa Andrade, o Sousândrade", disse eu. "Não conheço", disse a moça, encerrando a conversa.
    Sousândrade nasceu e morreu no Maranhão, no mesmo Maranhão em que se morre como se morre no presídio de Pedrinhas ou em muitos hospitais públicos do Estado, em que não se aprende como não se aprende em suas escolas (o Estado tem baixíssimos índices educacionais), em que ainda se cultua uma espécie de teocracia, cujos deuses são os mesmos há meio século, em que, como também previu Sousândrade, o lado selvagem do capitalismo transforma em privado o que é público.
    Para quem aprendeu o tanto que aprendi com tanta gente brilhante do Maranhão, é uma lástima ver o que ainda ocorre por lá. Viva o Maranhão! Viva, Maranhão! É isso.

    O Trem das Onze em Israel

    folha de são paulo
    MARIA HELENA R.R. DE SOUSA
    TENDÊNCIAS/DEBATES
    O Trem das Onze em Israel
    São Paulo não ama Adoniran Barbosa tanto quanto Adoniran a amou. O museu em sua homenagem não fica no Bexiga, mas em um kibutz
    Tenho dupla naturalidade: sou paulistano-carioca. Nasci em São Paulo, em 1937, mas vivo no Rio desde 1940. Nem sempre nos damos conta das diferenças entre as duas cidades, na linguagem, na alimentação, no modo de ser e encarar as coisas. Mas elas existem.
    No Rio, desenrolou-se minha primeira infância, mas minha casa era toda paulistana: do modo de preparar a comida ao modo de falar, esta carioca foi uma paulistana até a vida escolar ocupar muito dos seus dias. Eu me trocava, não trocava de roupa; eu caía de ponta-cabeça, não de cabeça para baixo; eu comia mandioquinha e não sabia que aquilo era batata-baroa; eu tinha ordem para nunca descer a guia sem uma pessoa grande ao meu lado...
    Aos poucos, o Rio foi ocupando quase todo o espaço, mas nunca deixei de ter um cantinho paulistano em meu coração. As viagens a São Paulo eram frequentes. Tinha família aí: pai, avós, primos e tios. Custei a perceber que um deles era um ser especial. Hoje sei e tenho dois sentimentos conflitantes em meu coração: orgulho e mágoa.
    Mágoa pelo tempo perdido, logo o tempo, o que nunca mais se recupera. E orgulho, pois João Rubinato, o Adoniran Barbosa, meu pai, foi homem talentoso, brilhante, de espírito aberto, que nunca soube o que era preconceito nem mesquinhez. E foi homem grato: amava apaixonadamente a cidade de São Paulo, a quem era muito agradecido.
    No entanto, sinto dizer, São Paulo não retribui. São Paulo não ama Adoniran tanto quanto Adoniran a amou. São Paulo é uma amante ingrata. Veja se não tenho razão.
    Sabe onde existe uma Casa Adoniran Barbosa, museu muito bem organizado e sempre atento às novidades sobre seu homenageado? Não, não é no Bexiga, nem na Luz, nem na Paulista. Fica a mais de 10 mil quilômetros de São Paulo, em linha reta. Essa a distância até Jerusalém. Da cidade de David, mais 70 km até Shaar Hanegev, região onde fica o kibutz Bror Chail, o kibutz que abriga a Casa Adoniran Barbosa.
    Quem criou esse museu? Eu diria que foram figuras imaginárias, se não trocasse longos e-mails com pessoas há mais de cinco anos. E se não me admirasse com a delicadeza e a trabalheira que enfrentam para manter em pé um museu para um compositor brasileiro que, embora tenha todas as qualidades que imodestamente citei acima, não faz parte da legenda dourada da MPB que nossa imprensa e autoridades tanto paparicam. Seus nomes? Sheila Katzer Bovo, ex-secretária de Educação de Sorocaba (SP), cidade irmã de Shaar Hanegev, e o casal Edith e Tzvi Chazan, diretores do museu.
    Pois bem, atendendo ao pedido da diretoria, a Companhia Geral de Trens de Israel doou à Casa Adoniran Barbosa o primeiro vagão que chegou do Egito a Israel em 1910 --ainda na época do Império Otomano na Palestina. O vagão que faz parte da história agora está no terreno do museu e, por obra e graça de Edith e Tzvi, com as nossas cores.
    É o Trem das Onze em Bror Chail. A intenção da diretoria é transformá-lo numa galeria de exposições sobre a música popular brasileira.
    Você conhece país, cidade, pessoas mais generosas com uma de nossas maiores riquezas, a nossa música? Falta São Paulo resolver aderir a Bror Chail para o Trem das Onze poder dar a partida.

    Paulo Sérgio Pinheiro

    folha de são paulo
    TENDÊNCIAS/DEBATES
    A crônica das decapitações anunciadas
    Estamos horrorizados pela barbaridade da temporada de decapitações no Maranhão. Mas o horror durará só alguns dias, até a próxima decapitação
    Os Estados da federação brasileira, depois do fim das detenções arbitrárias na ditadura militar e do retorno à democracia, banalizaram a pena de reclusão.
    Com cerca de 500 mil presos, o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, atrás em número apenas dos Estados Unidos (2,2 milhões), da China (1,6 milhão) e da Rússia (740 mil).
    Hoje, no mundo, a maioria das vítimas de detenções arbitrárias é composta por presos comuns que passam muitos anos atrás das grades, muitas vezes pela simples razão que a administração da Justiça em seu país não funciona.
    Em novembro de 2009, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) anunciou que, do total de casos que havia revisado até então, um em cada cinco presos provisoriamente estava irregularmente encarcerado, o que sugere que o problema já fosse extremamente sério em todo o país.
    Há mais de 9 milhões de prisioneiros comuns no mundo. Grande parte é mantida em condições que correspondem a tratamento desumano ou degradante, o que constitui uma violação de vários direitos civis, políticos e econômicos, sociais e culturais, assegurados por tratados internacionais que o Brasil ratificou.
    Em muitos países, como no nosso, e não apenas no hemisfério Sul, as prisões estão superlotadas, sujas, infectadas por doenças contagiosas. Faltam as instalações mínimas necessárias para satisfazer uma existência digna, a qual o Estado democrático é obrigado a garantir.
    Todo esse diagnóstico corresponde em detalhes ao "Mutirão Carcerário, Raio-X do Sistema Penitenciário Brasileiro", realizado pelo CNJ, na gestão de Cezar Peluso.
    Certamente, o Estado do Maranhão não ganha o prêmio da originalidade, mas o que está sucedendo hoje já havia sido prenunciado. A penitenciária de São Luís foi palco da maior rebelião em 2010, que durou 30 horas e teve 18 mortes. "Com a concentração dos estabelecimentos penais em São Luís, a rixa entre presos da capital e do interior é característica do sistema prisional maranhense, resultando em um ambiente de horror regado a crimes bárbaros", diagnosticou o CNJ.
    Em fevereiro de 2011, a cena de barbárie se repetiu na delegacia regional de Pinheiro, a pouco mais de 300 quilômetros da capital, em que seis presos foram assassinados, sendo que quatro tiveram suas cabeças decepadas e penduradas nas grades. Um olho humano foi jogado para fora da cela como pressão para as autoridades "negociarem".
    Não há nenhuma dúvida de que o Executivo maranhense, por sua omissão, tem enorme responsabilidade por esses crimes cometidos por presos sob custódia do Estado.
    Mas é inegável, como aliás aponta Janio de Freitas na coluna "Sentença dupla" ("Poder", 7/1), haver uma responsabilidade primária, subsidiária, compartilhada das autoridades diretamente responsáveis pelo sistema de Justiça, como o juízes, os promotores de Justiça, desembargadores e procuradores do Ministério Público Federal no Estado.
    A situação denunciada em 2012 foi se agravando diante dos narizes de todas essas autoridades, que deveriam ser responsabilizadas pelas famílias dos presos assassinados, esfolados, decapitados.
    As condições do cumprimento de pena em termos de segurança são políticas suicidas pois, em vez de transformarem os condenados em cidadãos, alimentam a brutalidade.
    A maioria das prisões no Brasil é um atentado à dignidade humana. Meio século depois do golpe de Estado de 1964 e 25 anos depois do retorno à constitucionalidade democrática, não há mais como adiar o enfrentamento desse legado autoritário. Mas, como dizia meu colega hoje psicanalista Roberto Gambini, tudo no Brasil já era rápido de mais.
    Todos estamos horrorizados pelas barbaridades da temporada de decapitações no Maranhão, que aliás ocorrem e ocorreram, sob configurações diferentes, em todas as prisões do Brasil sob todos os governos. Mas o horror durará apenas alguns dias, até a próxima decapitação.

    José Simão

    folha de são paulo
    Socuerro! Chegou meu IPVÁgua!
    Por que tributo se chama tributo? Porque vem de três em três. Três de manhã, três à tarde e três à noite
    Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E essa: "Governo federal oferece vagas em presídio para presidiários do Maranhão". Exceto para os membros da família Sarney! Rarará!
    E a Roseana Sarney é uma fofa: comprou 80 kg de lagosta pra botar em quentinha de presídio!
    E o calor continua! A Frente Frita! Sensação térmica: quero ficar pelado, quero ir pra praia JÁ! Vou passar o verão dentro do tanque.
    Diz que a Dilma vai lançar o Bolsa Calor: todo brasileiro terá direito a uma piscininha de plástico! Eu quero! Rarará!
    Diálogo quente de um casal na cama, ela sussurra: "Amor, fala alguma coisa quente pra mim!". "Belo Horizonte!" Rarará!
    E atenção! Ontem eu ouvi um grito lancinante no prédio: AAAAAIIII! Crime, assalto, arrastão? Não, era meu vizinho recebendo o IPTU. Impossível Pagar TUdo isso!
    E com as chuvas do verão: Imposto Para Tetos Úmidos! E o IPVA, Imposto Para Veículos Anfíbios.
    E o chargista Jorge Braga mostra um homem numa canoa, deve ser em Minas ou Espírito Santo, gritando: "Esqueci de pagar o meu IPVÁGUA!". IPVA de barco!
    E lamento informar que depois do espetáculo pirotécnico, vem o espetáculo fiscotécnico: IPTU, IPVA, IR, IH...ME Ferrei!
    O Brasil devia ter um imposto único chamado IMF, IH Me Ferrei! E eu vou pagar o IPN. Imposto sobre Porra Nenhuma!
    E sabe por que tributo se chama tributo? Porque vem de três em três. Três de manhã, três à tarde e três à noite. De três em três horas! Rarará. De tanto tributo, já estou ficando triputo. Triputo da Vida!
    Por isso que a árvore símbolo do Brasil é o ipê; ipêVA, ipêTU, ipêrtensão. Tô com ipêrtensão de tanto ipê pra pagar. IPERTENSO! Rarará.
    É mole? É mole, mas sobe!
    Os Predestinados! Mais dois para a minha série Os Predestinados!
    Sabe como se chama um dos seguranças do Cristo Redentor? JESUS!
    E a mãe na maternidade: "Meu filho, você vai se chamar Jesus e vai tomar conta da estátua do teu irmão". Rarará.
    E a agente comercial do banco Itaú em São João de Meriti se chama: Bianca Limite dos Anjos! Eu quero! Eu quero um limite dos anjos! Rarará.
    Nóis sofre, mas nóis goza!
    Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

      Contardo Calligaris

      folha de são paulo
      Já foi mais fácil ser poeta
      Smartphone é mais saudável que heroína, mas heroína é mais poética que smartphone
      Alguns leitores me pediram para contar mais sobre a vigília de poesia (num sentido que inclui música, dança e performance) dos dias 1º e 2 de janeiro na igreja de Saint Mark, no East Village de Nova York.
      Na origem, há as leituras públicas nos cafés do bairro nos anos 1950 e no começo dos 1960. Em 1966, o Poetry Project (projeto poesia) se formalizou, e as leituras se mudaram para a igreja anglicana de Saint Mark, cujo reitor era um protetor das artes. Em 1974, foi a primeira maratona de poesia no Ano-Novo; leram seus poemas William S. Burroughs, John Cage, Gregory Corso, Allen Ginsberg, Peter Orlovsky e Patti Smith --isso, para lembrar os mais famosos.
      Na semana passada, era o quadragésimo aniversário da maratona. Cento e quarenta poetas leram seus poemas. Muitos homenagearam o amigo Lou Reed, que acabara de morrer. Fiquei seis horas; escutei, por exemplo, Philip Glass tocar piano e Patti Smith ler algo do novo livro que está escrevendo (duas páginas sobre o fim de "Blade Runner - O Caçador de Androides", de Ridley Scott).
      Anne Waldman é uma poeta ligada aos beats desde o começo. Sua performance me lembrou as leituras de Allen Ginsberg que presenciei nos anos 1960 em Nova York e em Milão --não tanto pelos temas quanto pela entonação profética. Pensei que não deve ser fácil fazer poesia na sombra de "Howl", o grande poema de Ginsberg ("Uivo", mas eu preferiria gemido ou berro).
      "Vi os melhores espíritos de minha geração destruídos pela loucura, famélicos histéricos nus, se arrastando na primeira luz do dia pelas ruas dos bairros negros à procura de uma seringa raivosa"¦". Aquele começo, ainda hoje, força qualquer leitor a contar, do seu jeito, o desperdício de sua geração. Mas o drama do sacrifício dos melhores, neste começo de milênio, parece fazer falta.
      Cadê a heroína injetável dos anos 1950 e 1960? Cadê a Guerra do Vietnã, que devorava as vidas nos anos 1970? As guerras de hoje são menos imediatamente absurdas; no mínimo, elas invocam uma necessidade de defesa. A geração dos anos 1980 esbarrou em outro desperdício: todos, naquela década, vimos os melhores morrendo invadidos pela Aids, como se um demônio invejoso se vingasse dos prazeres que eles tinham ousado se permitir.
      E agora, nos últimos 15 anos, o que sobrou para alimentar a ideia do destino trágico dos melhores (e, eventualmente, da gente)?
      Hoje, é mais fácil esquecer a tragédia e escolher o sarcasmo: os melhores espíritos de nossa geração, em vez de se arrastar pelas ruas dos bairros negros, passam a noite na fila para ser os primeiros a comprar um novo smartphone.
      Talvez seja melhor assim: smartphone é mais saudável que heroína (não é?). Mas, convenhamos, a heroína é muito mais poética do que o smartphone: ainda vale entre nós o modelo romântico do artista atormentado pelo trágico de sua condição.
      Justamente, no dia 4, fui assistir à nova versão do musical "Pippin", de Stephen Schwartz e Bob Fosse (que foi coreógrafo da montagem original, mas também contribuiu ao texto). "Pippin" foi montado no Brasil (de maneira memorável, segundo me dizem) por Flávio Rangel, em 1974, com Marco Nanini e Marília Pêra.
      O jovem Pippin quer ter uma vida justificada por empreendimentos extraordinários; ele tem a certeza atormentada de ser destinado a coisas maiores do que a simples repetição da vida dos pais.
      No fim, todos esperam que Pippin queime como um Ícaro que quis voar alto demais; com isso, ele será lembrado por sua bela morte. Na versão original, Pippin renuncia a seus sonhos e se deixa enredar na banalidade cotidiana. Na nova versão, ele também desiste, mas o enteado dele toma seu lugar e começa a sonhar com as mesmas glórias confusas.
      O musical é assim uma meditação (divertida e séria) sobre as inevitáveis aspirações abstratas da juventude, que nos afastam da vida --pois, diante delas, tudo perde relevância.
      Os furores da juventude e o ideal romântico do artista (que, de preferência, aliás, deve morrer jovem) nascem na mesma época, no fim do século 18, quando a liberdade e seus sonhos (de um futuro sempre extraordinário) tornam-se, de fato, possibilidades concretas e inquietantes.
      Pergunta aos pós-românticos: como se apaixonar pela vida esperando dela apenas o ordinário?
      Nota: para conhecer o Poetry Project, http://poetryproject.org/history/insane-podium.

      Delator de cartel diz que negociou com auxiliar de Alckmin em SP

      folha de são paulo
      Testemunha diz que tratou de propina com secretário
      Ex-diretor da Siemens afirma que discutiu 'comissões' com Rodrigo Garcia
      Em depoimento que levou caso ao Supremo, delator diz que também negociou com auxiliar do tucano José Aníbal
      FLÁVIO FERREIRADANIELA LIMADE SÃO PAULOA principal testemunha das investigações sobre o cartel dos trens disse à Polícia Federal que tratou pessoalmente de propina com o atual secretário de Desenvolvimento Econômico do governador Geraldo Alckmin (PSDB), Rodrigo Garcia (DEM), e um interlocutor do secretário de Energia, José Aníbal (PSDB).
      As afirmações constam de um depoimento prestado pelo ex-diretor da multinacional alemã Siemens Everton Rheinheimer em novembro. Ele assinou um acordo de delação premiada e colabora com as investigações sobre formação de cartel e suspeitas de pagamento de suborno a políticos do PSDB e funcionários do Metrô e da CPTM.
      O teor completo de suas declarações é mantido em sigilo pelas autoridades, mas parte do depoimento foi transcrita na decisão da Justiça Federal que encaminhou o caso para o Supremo Tribunal Federal, em dezembro.
      Garcia, Aníbal e outros políticos mencionados por Rheinheimer são deputados federais licenciados e, por isso, só podem ser investigados com autorização do Supremo.
      O ex-executivo da Siemens afirmou à polícia que Garcia era um "ponto de contato" político para as empresas do cartel e que conversou "algumas vezes" com ele sobre o pagamento de "comissões".
      Ele disse que recebeu indicação para negociar também com José Aníbal. Rheinheimer declarou que "nunca" foi recebido pessoalmente por Aníbal, mas tratava com uma pessoa que o "assessorava informalmente em relação ao pagamento de propinas".
      Garcia e Aníbal negam ter cometido ilegalidades. O advogado de Garcia, Alexandre de Moraes, negou as acusações e desqualificou o testemunho de Rheinheimer. "Nos 52 volumes do processo, o secretário Garcia é citado três vezes, duas em denúncias anônimas, em nenhuma delas com provas", afirmou.
      A assessoria de José Aníbal disse que ele "nunca viu ou havia ouvido falar de Rheinheimer" antes do início do escândalo. Afirmou ainda que ele jamais autorizou qualquer interlocutor a tratar com o ex-executivo da Siemens (veja o texto ao lado).
      À PF, o delator disse que tratou de propina com Garcia na época em que ele presidia a Comissão de Transportes da Assembleia Legislativa, quando ainda era deputado estadual. Posteriormente, enquanto Garcia esteve na presidência da Assembleia, entre 2005 e 2007, seu contato teria passado a ser Aníbal.
      Segundo Rheinheimer, um dirigente da CPTM lhe disse que o deputado federal Arnaldo Jardim (PPS), o deputado estadual Campos Machado (PTB) e o atual secretário da Casa Civil de Alckmin, Edson Aparecido (PSDB), também receberam propina. O executivo diz não ter provas disso. Os três negam a acusação.
      No texto da decisão em que determinou o envio dos autos para o Supremo, o juiz federal Marcelo Costenaro Cavali afirma que, na sua opinião, "os elementos obtidos pela autoridade policial até o momento são fragilíssimos em relação às autoridades" apontadas por Rheinheimer.
      Ele ressalva, no entanto, que cabe ao Supremo analisar e autorizar qualquer medida no inquérito que diga respeito a políticos detentores de mandato e que por isso decidiu enviar os autos.
      A medida, na prática, evita o risco de que, no futuro, provas contra autoridades sejam anuladas pelo fato de terem sido obtidas sem a supervisão do Supremo.