terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

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  1. Filha de Lula cai no samba em Maricá. (Foto: Marco Bechkert)
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  2. P/encarar aquilo tem q ter ódio da estrovenga

Marcos Augusto Gonçalves

folha de são paulo

Por uma nova polícia

O prefeito Bill DeBlasio propôs um acordo para encerrar uma longa disputa judicial em torno da política "stop and frisk", adotada pelo Departamento de Polícia de Nova York. Entidades ligadas a movimentos de defesa de direitos contestavam a constitucionalidade da prática de parar e revistar pessoas com base na "suspeita razoável", por parte do policial, de que elas cometem ou estão por cometer alguma ilicitude.
Por exemplo: aquele negão ou aquele chicano parados ali esquina –pode-se suspeitar razoavelmente – estão vendendo ou estão por vender ou drogas.
E foi justamente sobre essa população que o "stop and frisk" avançou. Mais de 80% das "gerais", segundo levantamento relativo a 2012, foram aplicadas em negros e latinos –que são pouco mais da metade da população da cidade.
Se as vítimas preferenciais fossem jovens brancos de classe média que frequentam a night ou executivos energéticos de Wall Street que viram a noite, o problema seria o mesmo. O "stop and frisk" foi considerado inconstitucional por uma juíza, quando já eram patentes os excessos contra os direitos de indivíduos, indevidamente discriminados por critérios étnicos.
Apesar de tudo, o prefeito Michael Bloomberg –que fez bem à cidade– não poderia recuar. Defendeu o DPNY na Justiça e foi mantendo sua política. Mas na democracia os ventos costumam mudar. O pessoal da segunda classe elegeu um prefeito com uma agenda de redução das desigualdades e a prática foi interrompida.
A polícia de Nova York é da cidade, não do Estado. Do ponto de vista técnico, a circunscrição local favorece o conhecimento e o domínio do território. Politicamente, aumenta a sensibilidade da área de segurança às demandas e pressões da população. Isso inclui enfrentar o crime com eficiência e respeitar as leis. Obviamente que abusos são cometidos –e o próprio "stop and frisk" se transformou em mais um deles.
Pode ser apenas um lema ou uma farsa marqueteira, mas em todas as "viaturas" do DPNY está escrito "cortesia, profissionalismo, respeito". Bem diferente do emblema –que não é apenas marketing – da caveira atravessada por espada e armas de fogo, com que a "tropa de elite" da polícia do Rio se apresenta à sociedade.
A crise da polícia brasileira é mais do que uma "suspeita razoável". É uma evidência que se renova cotidianamente. Com nuances para melhor ou pior, temos nas ruas tropas militares que empregam a violência como método, não sabem o que são direitos constitucionais, deixam-se com frequência associar ao crime e conseguem resultados insatisfatórios no cumprimento de sua missão. Ou então temos uma Polícia Civil bigoduda que, por outros caminhos, atua da mesma forma.
Reiteradamente casas são invadidas em "rolezinhos" policiais pelas favelas, sem nenhuma autorização judicial; jovens "suspeitos" são submetidos a torturas e humilhações; pessoas desarmadas são alvejadas e "marginais" são eliminados, com a aplicação sumária da pena de morte.
Causa-me espanto que os nossos ilustres paladinos da democracia liberal e dos direitos individuais não deem muita bola para isso. A ideia de quem é indivíduo e goza de direitos parece ainda muito curta no nosso liberalismo com punho de rendas. E já que criticar a violência policial passou a ser coisa de "marxista pé-rapado" então vamos apoiá-la.
Alguém certamente terá fórmulas para mudar a polícia. Fecha essa, muda aquela, cria aquela outra etc. Já li sobre o assunto. Não sei. Simpatizo com a ideia de retirar da Constituição as restrições atuais e abrir espaço para modelos diversificados – em alguns casos metropolitanos ou municipais.
De qualquer forma, parece claro que a polícia brasileira precisa passar por um processo de profundo reordenamento e de desmilitarização. A PM deveria progressivamente funcionar menos como batalhão de soldados e mais como polícia inteligente e técnica, que presta um serviço público e responde à comunidade –tanto nos resultados quanto no respeito aos direitos. Cuidados análogos merece a Polícia Civil –outra encrenca institucional.
Como diz um amigo, até as padocas já mudaram de padrão no Brasil, por que não as polícias?

Suzana Herculano-Houzel

folha de são paulo
Piscar descansa o cérebro
Quase 10% do que se passa enquanto estamos acordados some para o cérebro porque piscamos
Há quem ache um desperdício passar um terço da vida dormindo. Esses talvez achem um desperdício ainda maior descobrir que quase 10% do que se passa enquanto estamos acordados efetivamente some para o cérebro --simplesmente porque você... piscou.
É isso aí. Piscar tem potencialmente um custo cognitivo: uma fatia de pelo menos uns 200 milissegundos de informação é obliterada enquanto os olhos giram dentro das órbitas (pois é, eles giram quando você pisca e você nem nota). Piscamos naturalmente cerca de 15 a 20 vezes por minuto, ou seja, a cada 3 ou 4 segundos, em média.
Fazendo as contas, lá se vão ao menos 4 segundos de informação visual a cada minuto.
Para que piscar tanto? A suspeita inicial recaía sobre a lubrificação natural da córnea, mas isso requer bem poucas passagens das pálpebras sobre os olhos por minuto.
Uma equipe japonesa, após notar que tendemos a piscar naturalmente em momentos que permitem interrupções na atenção --como o fim de uma frase no jornal, a pausa de um palestrante e cortes de edição em vídeos-- suspeitou que piscar fosse uma maneira de "relaxar" o cérebro da demanda de atenção de se manter engajado em uma determinada tarefa.
Para testar essa possibilidade, a equipe convidou voluntários a assistir a clipes do seriado Mr. Bean de dentro de um aparelho de ressonância magnética funcional, prestando atenção aos clipes para responder a perguntas depois.
Enquanto isso, os pesquisadores mediam a ativação e desativação de dois conjuntos de regiões no córtex cerebral: umas relacionadas à atenção, e outras, ao contrário, cuja atividade é maior justamente quando não estamos engajados em tarefas que envolvem o mundo externo, permitem a introspecção. Esta última região é chamada de "rede padrão" do cérebro, por consistir na atividade de quando não interagimos com o mundo de fora.
Como esperado, voluntários diferentes tendiam a piscar nos mesmos momentos dos clipes: cortes naturais na história, quando o custo cognitivo de bloquear informação visual é menor. E, de fato, nos segundos após piscar, a ativação da rede atencional diminuía, enquanto a ativação da rede padrão aumentava --e depois voltava ao normal.
Piscar, portanto, abre uma janela de descanso da demanda atencional, uma interrupção que também facilita a mudança de foco de atenção. Faz sentido: você já notou que quase não pisca quando está muito concentrado?

Nizan Guanaes

folha de são paulo
Siga George Osborne
Um garoto de 13 anos que mudou seu próprio nome é um transformador, e o mundo precisa deles
Se você está sentado numa mesa de jantar ao lado de sir Richard Branson e na frente da extraordinariamente interessante e carismática ministra das Finanças da Nigéria, dra. Ngozi Okonjo-Iweala, fica difícil prestar atenção em qualquer outra pessoa.
Mas eis que meus ouvidos se dirigiram a um sujeito jovem, magro, de bochechas inglesamente rosadas e uma verve próprias de quem é craque em debater com opiniões fortes, mas não tão populares, como Churchill e Thatcher.
O nome do ilustre desconhecido para mim era o honorável George Osborne, "Chancellor of the Exchequer", ou o ministro das Finanças do Reino Unido.
Minha amiga Tina Brown me sentou à frente dele e assoprou: você vai conhecer uma pessoa muito interessante. E uma pessoa que se destaca numa mesa com sir Branson e dra. Okonjo-Iweala ("googlem" ela) tem que ser interessante.
George Osborne é interessante desde pequeno. Nascido no seio da aristocracia anglo-irlandesa, ele inicia a vida com o nome Gideon, mas, aos 13 anos, num pequeno ato de rebeldia, vai à mãe e diz: "Eu não gosto do nome Gideon e quero trocar". No que ela retrucou: "Eu também não gosto de Gideon".
Então Gideon trocou seu nome para George, em homenagem ao avô, herói de guerra. Assim, com essa primeira e pequena reforma, não parou mais de surpreender.
Ele é o ministro das Finanças, mas não estudou economia. Estudou história. E foi apontado comandante da economia britânica aos 38 anos. Suas primeiras medidas foram criar um departamento de responsabilidade fiscal e cortar custos para reduzir o tamanho do Estado. E foi fazendo coisas impopulares no curto prazo que ele colocou seu país no trilho em que está hoje.
A própria Tina Brown me disse que no início não imaginou que o que ele estava fazendo daria certo. E é aí que a história me interessa. O mundo precisa de líderes que saibam se comunicar para fazer o que é difícil e impopular, mas necessário.
Eu fui gordo minha vida inteira. Um gordo consumindo 3.000 calorias é um sujeito feliz indo pro beleléu. Um gordo com uma dieta de 1.000 calorias é o mais infeliz dos homens, de péssimo humor, quando na realidade todos os seus indicadores vitais estão melhorando.
O desafio que os líderes mundiais têm hoje é como se manter no poder e no rumo com medidas impopulares. Eu só compreendi muitas coisas que minha mãe me impôs, me ensinou e me enfiou goela abaixo muito tempo depois.
A vida de George Osborne foi facilitada pelo apoio fundamental do premiê David Cameron e também pela capacidade de comunicar e debater coisas árduas desse ministro-político. Ele foi eleito membro do Parlamento por Tatton em junho de 2001, tornando-se o mais novo conservador na Câmara dos Comuns, e depois comandou a campanha de Cameron à liderança do Partido Conservador.
Capacidade de comunicação, julgamento e seleção são os desafios de CEOs, presidentes e primeiros-ministros. Como tomar medidas certas que são incompreendidas no curto prazo pelo mercado financeiro, pelo Parlamento ou por um grupo de eleitores.
Os grandes lideres, por carisma ou sabe Deus o motivo, têm esse poder. Como as grandes mães que assumem a impopularidade no curto prazo, mas que serão compreendidas pelos benfeitos.
Esse é o desafio da democra- cia no mundo todo. As mães não precisavam lidar com democracia. São as tiranas mais maravilhosas do mundo.
Conseguir fazer mudanças duras com Parlamento aberto, imprensa livre e redes sociais ativas é o que transforma esse sujeito de bochechas rosadas e com o dom de debater e expor suas ideias mais interessante que sir Branson.
Por isso tudo, de todas as coisas que eu vi e ouvi em Davos, o ministro das Finanças britânico é aquele que eu mais recomendo aos meus leitores que acompanhem, concordando ou não com o dito aqui.
Um garoto de 13 anos que mudou seu próprio nome é certamente um transformador, e o mundo precisa desesperadamente deles.

Rosely Sayão

folha de são paulo
Memória e tecnologia
O garoto disse que não sabia de cabeça nenhum número nem mesmo o seu: 'está tudo no meu celular'
Eu estava em um aeroporto esperando meu voo quando tive a oportunidade de testemunhar uma cena que me fez pensar bastante.
Um garoto de mais ou menos 10 anos andava para lá e para cá muito aflito, sem saber para onde ir, e sua expressão facial mostrava que ele estava prestes a cair no choro. Assim que eu percebi o fato, caminhei em sua direção para tentar ajudar, mas um casal chegou antes e pude ouvir a conversa deles.
O garoto estava no aeroporto acompanhado de um amigo e dos pais dele porque eles iriam viajar para uma praia. Ele hav ia saído de onde estava acomodado para comprar um lanche e não conseguiu mais encontrar o grupo.
Você já reparou, caro leitor, que shoppings, aeroportos, lojas de departamentos etc. são locais quase todos iguais, sem características próprias? Por isso é tão difícil para uma criança voltar ao mesmo lugar de onde saiu: porque como tudo é muito parecido, ela não consegue identificar onde estava.
Mas agora é que chega a parte mais interessante para refletirmos. O casal aquietou o garoto e disse que bastava o menino informar o número do telefone do amigo que eles ligariam para ele. O garoto, que tinha um celular e o deixara com o amigo, não sabia de memória nenhum número, nem o seu. "Está tudo no meu celular", justificou.
Claro que, com a ajuda do casal, não foi difícil o garoto se reunir com o seu grupo. O fato, porém, me deu o que pensar. Imediatamente lembrei-me que, quando criança, meus pais me fizeram decorar a seguinte frase: "Meu nome é Rosely Sayão, eu moro na Rua Jaceguai, 462, São Paulo, Capital". Eles achavam São Paulo uma cidade em que uma criança se perderia com muita facilidade e, cuidadosos, tentaram garantir que eu tivesse informações para que, caso eu me perdesse deles quando fora de casa, tivesse condições mínimas para encontrá-los.
Hoje, com tantos recursos tecnológicos, delegamos a esses aparelhos maravilhosos muito do serviço que fazíamos antes da existência deles. Ao pensar nisso, tentei me lembrar do número dos telefones de amigos próximos e de parentes e tudo o que consegui foi me lembrar de quatro ou cinco números, que nunca mudaram. Os outros estão memorizados pelos meus aparelhos.
Pensei em quantas coisas deixamos de ensinar às crianças, porque a tecnologia resolve isso por nós. Não mais ensinamos a elas, por exemplo, que é muito perigoso abrir a porta do carro em movimento, porque elas estão protegidas pelas travas; não as alertamos para os riscos de uma queda de local alto, porque elas estão protegidas pelas grades, e assim por diante. Não ensinamos mais as crianças a memorizar números de telefones, porque os aparelhos têm cada vez mais memória, justamente para guardar o que antes era responsabilidade da memória humana.
Mas, quando deixamos a cargo do funcionamento dos aparelhos essas e outras tarefas, não consideramos que a vida é feita de falhas --humanas e mecânicas-- de inesperados, de acontecimentos inusitados. E, que nesses momentos, o que conta é o conhecimento que a pessoa guardou consigo.
Em educação, os detalhes são importantes. Por isso, pode ser necessário considerar ajudar os mais novos a perceber a importância da memorização de informações que a família considera importante e do auto cuidado, que inclui as noções de risco e de auto proteção. Afinal, aparelhos falham.

    Vladimir Safatle

    folha de são paulo
    Filmar o real
    Foi de maneira brutal que o Brasil perdeu um de seus melhores cineastas.
    Eduardo Coutinho, assassinado no domingo passado, aos 80 anos, foi responsável por elevar o documentário a um dos gêneros fundamentais do cinema nacional contemporâneo, funcionando como um dos motores de reflexão sobre a linguagem cinematográfica entre nós.
    Filmes como "Cabra Marcado para Morrer" (1985), "Edifício Master" (2002), "Peões" (2004) e "Jogo de Cena" (2007) são, certamente, algumas das melhores obras cinematográficas produzidas no Brasil.
    Emblemática é a dinâmica interna que gerou "Cabra Marcado para Morrer".
    Em 1964, Coutinho começa a filmar a história do assassinato de João Pedro Teixeira, um dos líderes das Ligas Camponesas. Semanas depois do início da filmagem, o golpe militar eclode, vários membros de sua equipe são presos e o filme desaparece. Em 1981, os negativos são reencontrados e Coutinho decide continuar o projeto, mas agora na forma de um documentário que retraça a trajetória da viúva de Teixeira e de seus filhos.
    Nessa mudança, da ficção para o documentário, cria-se um dos filmes mais fortes a respeito da experiência subjetiva de viver em uma ditadura militar. Seu tempo não é o tempo dos fatos a serem descobertos ou das ficções narradas. Ele é o tempo do filme que interfere no presente e desencadeia elaborações que, até então, não puderam ser feitas.
    Sua matéria-prima é o silêncio, o filme perdido, a vida cortada e a transformação do que se corta, do que se perde em um novo arranjo.
    De certa forma, essa é a tônica de outro documentário maior produzido por Coutinho, a saber, "Peões". Seu assunto são as grandes greves do ABC paulista, nos anos 70.
    Greves que, a princípio, fracassaram, já que as reivindicações centrais dos trabalhadores não foram contempladas. Mas, ao contar a história de vários personagens "menores" da época, cujos nomes não foram parar nos livros de história, Coutinho consegue mostrar a transformação pela qual sujeitos passam ao viver um acontecimento ou, se quisermos, como sujeitos são produzidos por sua fidelidade a acontecimentos. Mais do que fatos, seu documentário mostra aquilo que o filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) um dia nomeou de "o devir revolucionário das pessoas".
    Dessa maneira, os documentários de Eduardo Coutinho quebraram a dicotomia entre fato e ficção para instaurar uma categoria singular. Uma categoria performativa da produção, das imagens que produzem o que filmam.
    Talvez não tenha sido por outra razão que, graças a obras como as dele, algumas das mais belas páginas da história do cinema nacional foram escritas.

    Carlos Heitor Cony

    folha de são paulo
    DNA da espionagem
    RIO DE JANEIRO - Bem antes de 1964, os serviços de informação e de inteligência do Departamento de Estado norte-americano já dispunham de tecnologia suficiente para rastrear o encontro num quarto de hospital de dois personagens secundários (ou nem isso) no episódio da deposição de João Goulart. Em 1972, por ocasião do caso Watergate, já dispunham de recursos mais sofisticados para grampear conversas até mesmo no Salão Oval da Casa Branca. Podiam gravar, por interesse próprio ou para abastecer aliados de informações estratégicas.
    Enquanto durou a Guerra Fria, em nome da segurança do mundo livre e da sua própria segurança, os Estados Unidos possuíam recursos técnicos capazes de espionar qualquer cidadão em qualquer parte do mundo, criando assim condições para o seu desaparecimento.
    Até o final dos anos 70, início dos 80, o clima não apenas na América Latina, mas na Ásia e na África era condicionado prioritariamente pelo conceito de segurança do "mundo livre", cujo baluarte operacional político e militar era o próprio Departamento de Estado norte-americano.
    Foram espionadas crises abertas durante o período, como a de 1962, quando os mísseis soviéticos instalados em Cuba ameaçavam os Estados Unidos, ou crises prolongadas em outros episódios, como as diversas ofensivas no Sudeste Asiático, a caça e a morte de Che Guevara na Bolívia, as revoltas estudantis em diversas capitais do Ocidente, a invasão da Tchecoslováquia, com os tanques do Pacto de Varsóvia rolando suas esteiras nas ruas de Praga, em conflitos localizados como a Guerra do Yom Kippur de 1973, com a consequente crise no abastecimento de petróleo, a deposição e o assassinato de Salvador Allende no Chile e o início da ditadura de Pinochet.
    Dona Dilma Rousseff tem razões para reclamar da espionagem antes que seja tarde demais.

      Helio Schwartsman

      folha de são paulo
      O beijo gay
      SÃO PAULO - Saiu, enfim, o tal do beijo gay na novela da Globo. Não creio que haja muito motivo para comemorar. A TV, como a cavalaria, é sempre a última a chegar. Se a cena foi veiculada no horário nobre, é porque a maioria da sociedade já não considera tal ato obsceno ou escandaloso. Pelo menos não muito.
      Vejo com ceticismo, assim, os vaticínios dos que afirmam que o beijo televisado contribuirá para reduzir a homofobia no país. Tal efeito, se de fato passa de uma fantasia, apenas soma um grãozinho a um movimento mais amplo de aceitação que já está em curso há muito tempo e não tem data para acabar.
      Nesse quesito, aliás, nós brasileiros não nos saímos tão mal. Embora carreguemos a cruz de ter sido o último país ocidental a abolir a escravidão, estamos entre os primeiros a revogar as leis que puniam o homossexualismo. Por aqui, a sodomia deixou de ser um ilícito em 1830, quando o Código Criminal do Império substituiu as Ordenações Filipinas, que determinavam que os homossexuais fossem queimados vivos e "feitos per fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memoria, e todos os seus bens sejam confiscados para a Corôa de nossos Reinos".
      A título de comparação, nas avançadas Suécia e Inglaterra, a prática só deixou de ser crime em 1944 e em 1967, respectivamente. Nos EUA, as leis contra a sodomia só foram plenamente revogadas em 2003 --e por decisão da Suprema Corte, não dos corpos legislativos estaduais.
      Voltando ao beijo, houve, é claro, quem não gostasse. Como em qualquer distribuição normal, existe uma franja de gente mais conservadora que ainda chia diante desse tipo de imagem, mas esse é um grupo cuja importância política e demográfica é decrescente. De todo modo, eles têm à sua disposição o indefectível controle remoto. Se não gostam do que veem, são perfeitamente livres para mudar de canal ou até desligar a TV.
      helio@uol.com.br

        Eduardo Coutinho deixa filme sobre adolescentes

        folha de são paulo
        DEPOIMENTO
        Encantavam o mau humor persistente, a magreza de santo, o cigarro e a ironia fina
        Era sedutor, apesar de tímido, e por vezes cruel
        FERNANDA TORRESCOLUNISTA DA FOLHAConheci Eduardo Coutinho em 2003, no laboratório de roteiros que o Festival de Sundance promoveu no Brasil em parceria com o Sesc São Paulo. O "Redentor" (2004) não teve a sorte de contar com ele como analista, mas o sistema de imersão tratou de nos aproximar. Convivíamos nas horas vagas, nos longos jantares onde todos disputavam a sua atenção.
        Eduardo Coutinho já era o autor de "Cabra Marcado para Morrer" (1985) e "Edifício Master" (2002), mas o que encantava eram o mau humor persistente, a magreza de santo, o cigarro inseparável e a ironia fina.
        Uma noite, a conversa evoluiu para Tchékhov. Contei que havia feito uma adaptação de "A Gaivota" que jamais funcionou a contento, depois de levantada a cortina. Nossa melhor apresentação, confessei, foi um ensaio geral, antes de botarmos os pés no teatro. "Tchékhov não foi feito para estrear", disse ele cheio de razão.
        "Jogo de Cena" explorava a fronteira entre o falso e o verdadeiro, ficção e realidade. Nele, atrizes e mulheres reais se alternam narrando umas as histórias das outras.
        Duvidei da minha capacidade de chegar a um resultado aceitável desde o dia em que recebi o material. Era uma batalha perdida, chegar a uma interpretação convincente de um depoimento que se mostrava tão fresco na boca de quem o viveu.
        O fato de ser uma atriz conhecida depunha contra. Era falso porque partia de mim, que vivo de fingir.
        Mesmo descrente, me empenhei na tarefa. No dia marcado, me dirigi até o teatro onde Coutinho filmava.
        Esperei concentrada no camarim, ele disse que me chamaria com a câmera já valendo. Subi as escadas imbuída da personagem.
        Equilibrada no delicado fio, me sentei na cadeira em frente à câmera em estado de representação.
        Coutinho soltou uma exclamação em tom alto: "Nossa, você falou igual a ela". Eu tentei continuar, mas ele insistiu em me chamar pelo meu nome. Fui tomada por um pânico e tive vergonha de estar ali.
        Coutinho não percebeu e continuou a me perguntar onde ele deveria se posicionar, falou da sua falta de jeito, pediu que eu dissesse a hora de começar, mas a hora já havia passado. Esfriei por completo. Não teve volta.
        Tentei atacar a fala, mas um diabo insistente sussurrava ao meu ouvido: "Está escrito na sua cara que é mentira!". Parei. Foi melhor parar, admitir que eu não acreditava no que estava dizendo.
        Como velho comunista que era, acho que Coutinho, embora carinhoso, tinha muitas reservas com relação a pessoas como eu. Ele usava palavras como "estrela" e "celebridade" para me definir. Era muito sedutor, apesar de tímido, e muitas vezes cruel nos comentários.
        Ele me mostrou o material com muita ansiedade, tinha receio de que eu não liberasse, que ficasse ofendida, ou tivesse problemas de me mostrar frágil. Reagiu aliviado e surpreso quando viu que eu não criaria problemas.
        Fiel ao que ouvi dele no laboratório do Sundance, aceitei tornar pública a amarelada histórica. Coutinho eternizou o torturante ensaio. Na maior parte do tempo, é naquele estado em que vivem os atores, na infinita busca.
        Eu sempre achei que a trava dele com o mundo, a inadequação confessa, a dedicação ao fumo, o olhar severo, embora humorado, fosse herança da esquerda. Como também achei que o cigarro o mataria.
        Nem uma coisa nem outra. A delirante realidade, como nos seus melhores filmes, superou a ficção.
          Coutinho deixa filme sobre adolescentes
          Cineasta, assassinado anteontem, filmou estudantes da rede pública do Rio; documentário estava em pós-produção
          Mostra na Cinemateca homenageará o diretor; também sairá versão restaurada de 'Cabra Marcado para Morrer'
          GUILHERME GENESTRETIJULIANA GRAGNANIDE SÃO PAULOO cineasta Eduardo Coutinho, morto anteontem, aos 80, deixou um último trabalho inacabado: o documentário "Palavra", sobre o universo dos adolescentes, que estava em pós-produção. O diretor, assassinado pelo filho a facadas, segundo a polícia, seria enterrado ontem.
          No projeto filmado entre novembro e dezembro, Coutinho entrevistou cerca de 30 alunos do ensino médio da rede pública carioca.
          "Coutinho sentava para conversar com os garotos e dizia: Quero ser como um marciano que faz perguntas absurdas, como se não soubesse nada do mundo'", diz Jordana Berg, montadora de seus últimos longas e à frente da edição de "Palavra".
          A tática do cineasta, afirma Jordana, era fazer "perguntas que pareceriam infantis" como "para que serve o dinheiro?" e "por que você estuda?". Ele deixava, como era comum em seus trabalhos, que os personagens falassem à vontade.
          Para ser lançado, o filme ainda depende do aval do também documentarista e João Moreira Salles, sócio da VideoFilmes, produtora do documentário. Procurado pelaFolha, o produtor não quis comentar o assunto.
          Coutinho deixou com Jordana a listagem de tudo o que foi gravado, com algumas anotações sobre o que deveria ser descartado e o que gostaria que fosse aproveitado.
          Em uma das marcações na decupagem, o cineasta pedia para excluírem o trecho em que ele dizia a um dos entrevistados que o filme "provavelmente não daria certo".
          "Liguei para ele na sexta-feira e disse: Mas como jogar isso fora?' Propus que começássemos o filme com isso. Ele concordou", diz Jordana.
          HOMENAGEM
          Coutinho se preparava, ainda, para rodar um média-metragem para o projeto "Memória do Esporte Olímpico", em parceria com o canal ESPN. A obra trataria de Luisão, massagista que acompanhou a delegação brasileira nos últimos cinco Jogos Olímpicos.
          Agora, Coutinho ganhará uma mostra organizada pela Cinemateca, prevista para março, com debates e curadoria do crítico Ismail Xavier.
          A Cinemateca restaurou o documentário que deu fama a Coutinho: "Cabra Marcado para Morrer" (1985). O DVD deve ser lançado em março pelo Instituto Moreira Salles.
          Na última quinta, o diretor esteve com Moreira Salles, José Carlos Avellar, Carlos Alberto Mattos e Eduardo Escorel, em um estúdio no Rio. Juntos, assistiram a "Cabra". Coutinho fez comentários sobre as cenas do filme que devem entrar nos extras do DVD.
          Mattos conta que, no ano passado, Coutinho revisitou os personagens de "Cabra", para um especial que também deve entrar no lançamento. "Ele estava profundamente tocado por isso", diz.
            opinião
            Cineasta viveu como operário e morreu como deus grego
            O que parece 'só' humildade é uma postura essencialista
            CARLOS NADERESPECIAL PARA A FOLHAA mais longa conversa que eu tive com Eduardo Coutinho foi naquele gênero que ele cultuava e era cultuado, uma entrevista. Ali, os sinais estavam trocados. Eu fazia o papel de entrevistador, e ele, o de entrevistado.
            Foi uma metaconversa, uma metaentrevista, que falou justamente sobre aquilo que estava acontecendo: o próprio encontro verbal de duas pessoas, mediado por uma câmera, para virar filme.
            Num determinado momento do papo-cabeça, o desgrenhado destruidor de papos-cabeças, disse que mesmo acostumado a ser chamado de "mestre" por seus pares, sabia que à boca pequena era alvo de uma crítica pouco generosa de boa parte dos colegas: como é possível reverenciar alguém que faz filmes em que tudo o que acontece é uma pessoa falando, e "só"?
            O ovo de Colombo que Coutinho botou na história do cinema mundial foi justamente o de mostrar que o simples encontro de dois corpos que falam é uma das coisas mais complexas que podem acontecer sob a luz do sol, da lua ou dos refletores.
            E que a gema desses encontros pode resultar não "só" num filme, mas numa cinematografia inteira, numa potente mitologia contemporânea, numa reveladora teoria audiovisual sobre o próprio cinema.
            Nesta época em que as mídias sociais regulam os toques das relações humanas enxugando caracteres e inflamando egos solitários, fazer filmes "só" com pessoas contando pequenas histórias em longas durações é um ato revolucionário.
            A essencialização radical que Coutinho fez na sua arte, o cinema, é análoga à que João Gilberto fez no samba com a Bossa Nova ou ao que Malevich fez na pintura figurativa com o suprematismo. Não é pouco, este pouco.
            Mesmo assim, o mestre não gostava que seu "quase nada que é quase tudo" fosse chamado de "arte". E muito menos que ele próprio fosse chamado "artista". "Sou um operário do cinema", disse ele, "eu só entrevisto pessoas, é o meu trabalho".
            Aqui, o que parece "só" humildade é também uma postura essencialista, recuperadora de potências originais. Nela, o homem que viveu como operário e morreu como deus grego nos lembra que a palavra "trabalho" na Grécia antiga era "poeisis", a mesma que deu origem à palavra "poesia".