segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Passou da hora de consultar os índios - Daniela Chiaretti

Passou da hora de consultar os índios

Por Daniela Chiaretti
Previsão fácil para 2014, sem consultar astrólogos ou jogar búzios: a pressão sobre as terras indígenas vai recrudescer. É ano de Copa e de eleições, mas os conflitos que ficaram mal parados em 2013 têm potencial para se espalhar pelo país sem nem esperar que se apaguem os fogos de artifício. Terras indígenas estão na pauta ruralista, na mira de mineradoras e na arquitetura das hidrelétricas amazônicas. São muitas frentes abertas no Congresso, no campo e no governo. É um mosaico de argumentos que têm em comum a complexidade e a briga pela terra.
Há o conflito histórico dos guaranis e kaiowás no Mato Grosso do Sul, o conflito recente dos Tenharim no sul do Amazonas e uma miríade de outros casos. No Congresso, a bancada ruralista fechou o ano ressuscitando a PEC 215 - a Proposta de Emenda à Constituição que transfere do Executivo para o Legislativo a prerrogativa de demarcação de terras indígenas. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, cansou de dizer que a iniciativa é inconstitucional, enquanto sua pasta prepara uma proposta sobre o assunto. Em meio a essa agenda explosiva há a necessidade de se definir algo contemporâneo - a consulta aos povos indígenas quando forem afetados por algum projeto. Isso agrada ao setor elétrico e porções progressistas do governo, animou indigenistas e colocou à mesa lideranças indígenas - até o governo mandar uma mensagem ambígua e o diálogo ser rompido.
Nos últimos anos foi assim: nove entre dez ações judiciais que pretendiam suspender a usina de Belo Monte, no Pará, tinham um mantra por base - os índios não foram adequadamente consultados. Os empreendedores diziam que sim, os índios diziam que não, o governo acionava seus advogados e a maior obra do PAC seguia seu rumo até a próxima ação do Ministério Público.
A pressão sobre as terras indígenas vai recrudescer em 2014
A reclamação chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que em 2011 solicitou ao governo brasileiro a suspensão imediata do processo de licenciamento de Belo Monte. Deu uma confusão danada, o Itamaraty ficou "perplexo", as remessas brasileiras de recursos à OEA foram suspensas, ouviram-se brados sobre a soberania nacional, blá-blá-blá, até que um dia a OEA voltou atrás.
É verdade que os empreendedores de Belo Monte se reuniram com índios da região, mas também é verdade que índios disseram que foram apenas informados que haveria uma obra. Informar não é consultar. O país está em um limbo até a hora em que definir que diabos é a tal consulta às comunidades, como deve ser feita, em qual momento, com quais procedimentos, para chegar onde e com quais limites.
Trata-se de pôr em prática o artigo 6 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O tratado versa sobre os direitos fundamentais dos povos indígenas e tribais, foi aprovado em 1989 e começou a vigorar em 1991. O Brasil foi um dos 20 países que ratificaram a convenção, com posterior aprovação no Congresso e promulgação pelo Executivo. Pelo direito brasileiro, quando isso acontece com uma convenção internacional, ela ganha status de lei.
A Convenção 169 é considerada progressista. Diz que a consulta aos povos afetados por algum projeto tem que ser feita de boa-fé. Alguns grupos resumem assim os artigos da convenção a esse respeito: tem que ser prévia, livre e consentida. A ideia do veto é debate superado: a meta é ter o consentimento dos afetados ou se chegar a um acordo. Mas se fala na necessidade da consulta, a convenção fica na generalidade. A partir daí é preciso criar um padrão, o que vários países fizeram, ou estão tentando fazer.
A Bolívia tem desde 2009 um decreto que regulamenta o procedimento, embora a norma tenha sido criticada pelos movimentos indígenas locais. O Peru fez suas regras em 2012, o Chile também avançou. No Brasil, um grupo de trabalho interministerial foi criado em 2012, co-presidido pela Secretaria-Geral da Presidência e pelo Itamaraty. A ideia era consultar as partes sobre como deve ser a consulta - o que pode parecer um pleonasmo público, mas é chave para dar legitimidade ao processo.
"A grande questão da regulamentação da consulta prévia é o 'como'", diz Paulo Maldos, secretário de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência. "A chave da Convenção 169 é a construção do consenso, não é um instrumento plebiscitário. Seria genial se os engenheiros conhecessem a convenção na faculdade."
A tarefa é montar uma arquitetura de regras que contemple a diversidade de centenas de culturas que lidam com o tempo e o espaço de forma diferente, que decidem de maneira particular, que possuem maneiras distintas de interlocução. Há povos indígenas espalhados por dezenas de aldeias - alguns têm uma liderança geral, outros não se sentem representados nem pela vizinha. São mais de 200 povos indígenas com 180 línguas diferentes, 2.300 comunidades quilombolas (segundo o governo) com territórios em diferentes fases de reconhecimento, comunidades de quebradeiras de cocos, seringueiros, castanheiros, caiçaras e muito mais.
Um grande seminário e uma série de reuniões foram feitas pra cá e pra lá. Textos da convenção produzidos pela OIT em língua ticuna e terena foram distribuídos. Tudo ia bem até julho de 2012, quando a Advocacia-Geral da União editou a Portaria 303, que permitiria ao governo que toque usinas, estradas e outras obras sem que as populações indígenas afetadas fossem previamente consultadas.
Fácil imaginar o que se seguiu. Cobrando coerência do governo, o movimento indígena abandonou o processo da consulta. Queriam que a portaria fosse revogada e não suspensa, como ocorreu. O diálogo foi quebrado e só continuou com os quilombolas. "É uma prioridade regulamentar a 169, fortalece as comunidades. É importante que os indígenas voltem", diz Maldos.
Embora reconhecendo a importância do processo, organizações como o Instituto Socioambiental, o ISA, entendem que o Brasil recuou na agenda indígena. "É supérfluo falar de consulta prévia quando a terra não está garantida", diz a advogada e cientista política Biviany Rojas Garzón, do ISA.
Daniela Chiaretti é repórter especial. Hoje, excepcionalmente, deixamos de publicar a coluna de Claudia Safatle
E-mail: daniela.chiaretti@valor.com.br


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O antropólogo contra o Estado

_vultos das humanidades > Dezembro de 2013
O ANTROPÓLOGO CONTRA O ESTADO
As ideias e as brigas de Eduardo Viveiros de Castro, o intelectual brasileiro que virou a filosofia ocidental pelo avesso
por RAFAEL CARIELLO

Marcio Ferreira da Silva, um sujeito grandalhão e bem-humorado, professor de antropologia na Universidade de São Paulo, tentava encontrar um volume nas estantes de seu apartamento. Depois de perscrutar as prateleiras da sala, sumiu por um instante no corredor que levava aos quartos. “Achei”, exclamou. Trouxe lá de dentro uma edição especial da revista L’Homme, publicada no ano 2000, em que o antropólogo Claude Lévi-Strauss, aos 91 anos, comentava os avanços recentes de sua disciplina.
“Olha o que o bruxo escreveu!”, disse o antropólogo da USP. Passou então a ler em voz alta os parágrafos finais de um artigo em que o etnólogo francês exalta o trabalho dos “colegas brasileiros”, atribuindo a eles a descoberta de uma metafísica própria aos índios sul-americanos. “A filosofia ocupa novamente o proscênio da antropologia”, escreveu Lévi-Strauss. “Não mais a nossa filosofia”, acrescentou, mas a filosofia dos “povos exóticos”. O texto que Marcio Silva tinha nas mãos indicava que algo havia mudado na relação da academia brasileira com a metrópole – uma relação que poderia ser descrita como uma via de mão única, ou quase isso, ao longo da maior parte do século XX.
Num artigo que causou certa discussão, escrito em 1968 para a aut aut, prestigiosa revista italiana de filosofia, o filósofo Bento Prado Jr. registrou que resenhar, naquela publicação, as obras de seus pares produzidas no Brasil “não implicaria nenhuma informação para o leitor europeu”. E argumentava: “Aqui também se faz marxismo, fenomenologia, existencialismo, positivismo.” Mas não havia novidade ou contribuição maior: “Quase sempre, o que se faz é divulgação.” Três décadas depois, Lévi-Strauss identificava um conjunto de ideias na fronteira da antropologia e da filosofia que, a seu ver, o leitor europeu precisava conhecer.
Marcio Silva havia retirado outro volume da estante. Leu o título:Transformations of Kinship [Transformações do Parentesco]. “É a última grande compilação de estudos da área. O último grande livro do século XX. Tem um artigo do Eduardo”, disse, referindo-se ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, seu orientador no doutorado, nos anos 80. Abriu o livro nas páginas finais e procurou referências bibliográficas. Encontrou os nomes de ex-alunos de Viveiros de Castro. “Olha aqui o Carlos Fausto. Citado em português! A Aparecida Vilaça também.” O próprio Silva também constava da lista. “Foi por causa do Eduardo que os ‘colegas brasileiros’ passaram a existir”, disse. “É muito fácil aferir isso. Basta folhear as principais revistas da disciplina. Isso mudou. E mudou por causa dele.”
 
Eduardo Viveiros de Castro mora com a mulher, Déborah Danowski, e a única filha deles, Irene, de 18 anos, num prédio antigo, estilo art déco, na praia de Botafogo, no Rio de Janeiro. No apartamento de pé-direito alto, estantes de livros cobrem as paredes já no pequeno corredor que serve como hall de entrada. Na prateleira de uma delas, na sala, vê-se uma foto antiga do antropólogo, na casa dos 20 anos, com o cabelo comprido. Ao lado, um retrato de Bob Dylan.
Numa noite de outubro do ano passado, Viveiros de Castro criticava o avanço do governo de Dilma Rousseff sobre a Amazônia, seus projetos de estradas e usinas hidrelétricas, benefícios ao agronegócio – e descaso com os direitos dos povos indígenas. Sentado no sofá, o antropólogo comparou as ambições desenvolvimentistas da atual presidente à megalomania da ditadura, com seu ideário de “Brasil Grande”.
“Hegel deve estar dando pulinhos de alegria no túmulo, vendo como a dialética funciona”, ele disse. “Foi preciso a esquerda, uma ex-guerrilheira, para realizar o projeto da direita. Na verdade, eles sempre quiseram a mesma coisa, que é mandar no povo. Direita e esquerda achavam que sabiam o que era melhor para o povo e, o que é pior, o que eles pensavam que fosse o melhor é muito parecido. Os militares talvez fossem mais violentos, mais fascistas, mas o fato é que é muito parecido.”
Apesar da contundência, falava com calma, o tom de voz baixo. “O PT, a esquerda em geral, tem uma incapacidade congênita para pensar todo tipo de gente que não seja o bom operário que vai se transformar em consumidor. Uma incapacidade enorme para entender as populações que se recusaram a entrar no jogo do capitalismo. Quem não entrou no jogo – o índio, o seringueiro, o camponês, o quilombola –, gente que quer viver em paz, que quer ficar na dela, eles não entendem. O Lula e o PT pensam o Brasil a partir de São Bernardo. Ou de Barretos. Eles têm essa concepção de produção, de que viver é produzir – ‘O trabalho é a essência do homem’. O trabalho é a essência do homem porra nenhuma. A atividade talvez seja, mas trabalhar, não.”
Viveiros de Castro não é um homem alto. “Oficialmente”, mede 1,68 metro, mas diz que a idade já deve lhe ter roubado 1 ou 2 centímetros. Tem 62 anos, o cabelo e a barba grisalhos. O que se destaca em sua fisionomia é o nariz grande, reto, quase um triângulo retângulo aplicado ao rosto. Seus gestos são contidos e ele fala numa versão mais atenuada, mais diluída, do sotaque carioca. Em contraste com o discurso combativo, faz lembrar, na prosódia e nos modos, um diplomata. Afável, o antropólogo recusa a imagem: a comparação com a elite burocrática do país – espécie de símbolo da vida burguesa bem-comportada – não lhe agrada.
Num texto memorialístico recente, Viveiros de Castro contabilizou dezesseis anos de estudo, do primário à faculdade, em duas tradicionais instituições cariocas: o Colégio Santo Inácio e a Pontifícia Universidade Católica do Rio. “Dois estabelecimentos privados de classe média e alta – ninguém é perfeito – de minha cidade natal, ambos dirigidos pelos padres jesuítas”, escreveu. Seu pai pertencia a uma família de “políticos e juristas”. Augusto Olympio Viveiros de Castro, bisavô de Eduardo, foi ministro do Supremo Tribunal Federal e hoje é nome de rua em Copacabana. Outro bisavô, Lauro Sodré, nome de avenida em Botafogo, foi militar, senador e governador do Pará. Participou da Revolta da Vacina, em 1904 – segundo o antropólogo, por ser positivista e acreditar que o Estado “só podia chegar até a pele” dos cidadãos. “Um argumento curioso”, comentou. “Equivocado, no caso da vacina. Mas tem seu interesse retórico. Tendo a simpatizar com ele. Acho que o Estado devia parar muito antes, bem longe da pele.”
 
Do ponto de vista intelectual, Viveiros de Castro é herdeiro de cientistas sociais que ajudaram a derrubar o senso comum de que os povos indígenas são marcados pelo atraso em relação ao mundo ocidental. Essas sociedades sempre foram descritas como “primitivas” por carecerem de instituições modernas – como o Estado e a ciência.
Foi Claude Lévi-Strauss quem aposentou definitivamente a ideia de que os povos sem escrita seriam menos racionais do que os europeus. Os índios ocupavam um lugar próximo, nessa visão de mundo que ele ajudou a desfazer, ao das crianças, ou dos loucos. O pesquisador francês argumentou que havia método e ordem nas aparentemente caóticas associações que esses povos faziam – entre tipos de animais, acidentes geográficos, corpos celestes e instituições sociais. Eram o resultado não da falta de razão, mas, em certo sentido, de seu excesso. O que nenhuma sociedade humana tolera, dizia Lévi-Strauss, é a falta de sentido. O “pensamento selvagem”, assim, é totalizante, e procura, por meio de analogias, uma compreensão completa de todo o universo, estabelecendo relações entre os diferentes tipos de fenômenos. Um determinado rio se distingue de outro de maneira análoga ao modo como uma espécie animal é diferente de outra, ou um grupo social, de seus vizinhos. Nada pode escapar à sua malha de significados.
Nos anos 70, o antropólogo francês Pierre Clastres argumentou que a falta de Estado nos povos das terras baixas sul-americanas – em contraste com a forte centralização política de seus vizinhos andinos – não seria uma carência, mas uma escolha deliberada, coletiva. Há entre eles, com frequência, alguma forma de chefia. Em troca de prestígio, o chefe ocupa um lugar privilegiado, e apartado, em relação aos demais integrantes da sociedade. Pode falar à vontade. Mas ninguém lhe dá ouvidos. “O chefe por vezes prega no deserto”, escreveu Clastres. Do chefe é exigida uma generosidade maior, que o obriga a distribuir bens para o restante da sociedade. Lévi-Strauss, ao falar dos Nambikwara, dizia que “a generosidade desempenha um papel fundamental para determinar o grau de popularidade de que gozará o novo chefe”.
Por mais populares que sejam, contudo, tais líderes não dispõem de nenhuma capacidade coercitiva. O chefe não manda. Tudo se passa como se essas sociedades criassem uma posição privilegiada, o lugar exato onde o Estado poderia nascer, para então esvaziá-la de poder, numa espécie de ação preventiva. Foi o que Clastres chamou de “sociedades contra o Estado”. Defendeu a ideia, em um de seus artigos, argumentando que “só os tolos podem acreditar que, para recusar a alienação, é preciso primeiro tê-la experimentado”.
Naquela mesma década de 70, o norte-americano Marshall Sahlins se ocupou da dimensão econômica dessas sociedades. Procurou analisar as mais “pobres” dentre elas, os grupos nômades de caçadores-coletores. Segundo a visão então consagrada, tais sociedades mal conseguiriam assegurar a própria subsistência. Com técnicas pouco desenvolvidas e baixa produtividade, por certo não havia nelas produção excedente, poupança, investimento. Viviam da mão para a boca.
Ocorre que o tempo dedicado ao trabalho também era pequeno. Esses estranhos “primitivos” pareciam ser ao mesmo tempo miseráveis e ociosos. Oque Sahlins argumentou é que não fazia sentido, para grupos nômades, acumular bens – quanto menos tivessem que carregar, tanto melhor. Tampouco era lógico produzir estoques, quando esses estão ao redor, “na própria natureza”. Do ponto de vista dos caçadores-coletores, não lhes faltava nada. Trabalhar pouco era uma escolha, e aqueles grupos constituiriam o que o antropólogo chamou de primeira “sociedade de afluência”.
Em alguns de seus textos, Viveiros de Castro cita Lévi-Strauss e Pierre Clastres como paixões intelectuais. Não chega a fazer o mesmo com Sahlins, mas o ex-aluno dos padres jesuítas retomou o autor norte-americano, num ensaio recente, para argumentar que, junto aos outros dois, ele contribuiu para colocar em questão “a santíssima trindade do homem moderno: o Estado, o Mercado e a Razão, que são como o Pai, o Filho e o Espírito Santo da teologia capitalista”. Em vez de símbolo de atraso, a “sociedade primitiva”, escreveu o antropólogo carioca, “é uma das muitas encarnações conceituais da perene tese da esquerda de que um outro mundo é possível: de que há vida fora do capitalismo, como há socialidade fora do Estado. Sempre houve, e – é para isso que lutamos – continuará havendo”.
 
O antropólogo e sua mulher mantêm uma casa simples num condomínio de classe média alta, em Petrópolis, na serra fluminense. Costumam passar os finais de semana lá. No centro do terreno se ergue uma espécie de pequeno Pão de Açúcar, uma pedra grande, com cerca de 5 metros de diâmetro, que se mostrou providencial para baratear o preço do lote. “O pessoal por aqui quer casa com cinco salas, cinco suítes”, disse Viveiros de Castro. “Esse pedregulho atrapalha.” Nos fundos, fica uma obra a que ele se dedica com afinco e que parece lhe dar grande orgulho: um jardim-pomar.
Num domingo de céu sem nuvens, ele caminhava por entre os arbustos distribuídos no terreno gramado. Levava um cajado de madeira quase do seu tamanho. Usava-o sobretudo para apontar as frutas de nomes estranhos, que eram sempre aparentadas de outras, mais conhecidas. “Essa é da família da pitanga”; aquela outra, “parente da lichia”; uma terceira, “deliciosa, com o gosto entre a goiaba e o abacaxi”. Déborah acompanhava o percurso. Ela é professora de filosofia na PUC do Rio. Os dois são casados há quase três décadas. Quando voltamos para a sala da casa, pedi que Viveiros de Castro falasse sobre a ideia que o projetou. A síntese da metafísica dos povos “exóticos”, a que se referia Lévi-Strauss, surgiu em 1996. Ganhou o nome de “perspectivismo ameríndio”.
Fazia já alguns anos, então, que o antropólogo se ocupava de um traço específico do pensamento indígena nas Américas. Em contraste com a ênfase dada pelas sociedades industriais à produção de objetos, vigora entre esses povos a lógica da predação. O pensamento ameríndio dá muita importância às relações entre caça e caçador – que têm, para eles, um valor comparável ao que conferimos ao trabalho e à fabricação de bens de consumo. Diferentes espécies animais são pensadas a partir da posição que ocupam nessa relação. Gente, por exemplo, é ao mesmo tempo presa de onça e predadora de porcos.
Duas alunas suas, Aparecida Vilaça e Tânia Stolze Lima, preparavam, naquela ocasião, teses de doutorado que chamavam a atenção para outra característica curiosa do pensamento de diferentes grupos indígenas. Tânia pesquisava os Juruna, do Xingu; Aparecida, os Wari, em Rondônia. Pois bem: de acordo com os interlocutores de ambas, os animais podiam assumir a perspectiva humana. Tânia e Viveiros de Castro fizeram um levantamento que indicava a existência de ideias semelhantes em outros grupos espalhados pelas Américas, do Alasca à Patagônia. Segundo diferentes etnias, os porcos, por exemplo, se viam uns aos outros como gente. E enxergavam os humanos, seus predadores, como onça. As onças, por sua vez, viam a si mesmas e às outras onças como gente. Para elas, contudo, os índios eram tapires ou pecaris – eram presa. Essa lógica não se restringia aos animais. Aplicava-se aos espíritos, que veem os homens como caça, e também aos deuses e aos mortos.
Ser gente parecia uma questão de ponto de vista. Gente é quem ocupa a posição de sujeito. No mundo amazônico, escreveu o antropólogo, “há mais pessoas no céu e na terra do que sonham nossas antropologias”.
Ao se verem como gente, os animais adotam também todas as características culturais humanas. Da perspectiva de um urubu, os vermes da carne podre que ele come são peixes grelhados, comida de gente. O sangue que a onça bebe é, para ela, cauim, porque é cauim o que se bebe com tanto gosto. Urubus entre urubus também têm relações sociais humanas, com ritos, festas e regras de casamento. O mesmo vale para peixes entre peixes, ou porcos-do-mato entre porcos-do-mato.
Tudo se passa, conforme Viveiros de Castro, como se os índios pensassem o mundo de maneira inversa à nossa, se consideradas as noções de “natureza” e de “cultura”. Para nós, o que é dado, o universal, é a natureza, igual para todos os povos do planeta. O que é construído é a cultura, que varia de uma sociedade para outra. Para os povos ameríndios, ao contrário, o dado universal é a cultura, uma única cultura, que é sempre a mesma para todo sujeito. Ser gente, para seres humanos, animais e espíritos, é viver segundo as regras de casamento do grupo, comer peixe, beber cauim, temer onça, caçar porco.
Mas se a cultura é igual para todos, algo precisa mudar. E o que muda, o que é construído, dependendo do observador, é a natureza. Para o urubu, os vermes no corpo em decomposição são peixe assado. Para nós, são vermes. Não há uma terceira posição, superior e fundadora das outras duas. Ao passarmos de um observador a outro, para que a cultura permaneça a mesma, toda a natureza em volta precisa mudar.
Já fazia alguns minutos que Déborah tinha se enfurnado dentro da casa, enquanto o antropólogo falava de peixes, antas e urubus. Viveiros de Castro disse se lembrar de que estava lendo um ensaio de Lévi-Strauss quando teve o “estalo” que deu origem ao perspectivismo. Fez uma pausa e, sem se levantar da poltrona, chamou pela mulher. “Débi!” Ela apareceu no mezanino, sobre nossas cabeças. O antropólogo voltou a contar a história. “Eu lembro que saí do escritório, onde estava lendo esse texto, e disse à Débi que tinha acabado de ter uma ideia; uma ideia que iria me ocupar por uns dez anos, se eu quisesse tirar todas as consequências dela.” Virou-se para cima e perguntou: “Lembra, Débi?” Do alto do mezanino, ela riu, simpática, e respondeu balançando a cabeça: “Não.”
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora da Universidade de Chicago, avalia que as ideias desenvolvidas por Viveiros de Castro a partir do perspectivismo ameríndio dialogam diretamente com boa parte da tradiçãofilosófica ocidental. Ao mesmo tempo, a síntese que ele propôs do pensamento indígena é uma crítica a essa tradição, ao colocar em questão as noções de “natureza” e “cultura” da “vulgata metafísica ocidental”.
Essa capacidade crítica foi logo notada. Durante um debate na Inglaterra, mal a ideia havia sido apresentada, um interlocutor do antropólogo carioca lhe disse que os índios de que ele falava “pareciam ter estudado em Paris”. Reagindo à provocação, Viveiros de Castro comentou que “na realidade havia ocorrido exatamente o contrário: que alguns parisienses”, e ele se referia certamente a Lévi-Strauss, que viveu no Brasil entre 1935 e 1939, “haviam estudado na Amazônia”. E argumentou que sua análise “devia tanto ao estruturalismo francês”, de Lévi-Strauss, quanto este estava em débito com o conhecimento que travara com povos indígenas do Brasil. “Não fora o Pará que estivera em Paris”, disse o antropólogo, “mas sim Paris no Pará”.
Viveiros de Castro promoveu, em relação à filosofia, algo análogo ao que Pierre Clastres e Marshall Sahlins haviam feito em relação ao Estado e à economia de mercado: mostrou que um outro mundo é possível. A ideia recebeu enorme atenção, dentro e fora do país, quase imediatamente após sua formulação. “Na França e na Inglaterra, o Eduardo é altamente respeitado”, declarou a professora da Universidade de Chicago; “basta dizer que na livraria Gibert, em Paris, há uma seção de prateleira com o nome dele.”
Nos Estados Unidos, a resistência ao perspectivismo foi maior, observou Manuela. No final de novembro passado, contudo, após uma conferência de Viveiros de Castro para a Associação Americana de Antropologia, ela me enviou uma mensagem informando que a recepção às ideias dele estava “melhorando bastante”. Mesmo antes disso, de toda forma, o professor brasileiro já contava com defensores importantes. Marshall Sahlins, colega de Manuela em Chicago, considera Viveiros de Castro “o antropólogo mais erudito e original do planeta” da atualidade, tendo inaugurado “uma nova era para a antropologia, com profundas implicações para o resto das ciências humanas e das humanidades”.
 
Eduardo Batalha Viveiros de Castro nasceu no dia 19 de abril de 1951, no Rio de Janeiro. Passou toda a adolescência na Gávea, Zona Sul da cidade. Nos anos 60, o bairro era uma larga ilha de classe média contida entre a Rocinha, no alto do morro, e o Parque Proletário, uma favela que não existe mais. Eduardo morava numa casa grande de dois andares, movimentada, aberta à vizinhança, com os pais e os cinco irmãos mais novos. A mãe “era dona de casa, formada em letras, como convinha a uma moça de boa família”. O pai, um advogado trabalhista, não dirigia. Nos finais de semana, contratava os serviços de um vizinho taxista para levar a família à praia em Ipanema.
Tampouco tinham tevê – levaram certo tempo até adquirir uma, “meio que obrigando a gente a estudar”. Por outro lado, a biblioteca era boa. “Os livros que não eram brasileiros eram franceses. Aprendi a ler em francês folheando os livros do meu pai. Minha mãe, também, tinha estudado numa escola de freiras francesas. Havia um ruído de fundo em francês na casa.”
Viveiros de Castro não deu muita atenção quando chegou ao bairro a notícia do golpe militar, em 64: “Eu tinha 13 anos, estava jogando bola.” Seu interesse, além do futebol, eram os livros de divulgação científica. Começou a gostar de música na época em que os discos dos Beatles e dos Rolling Stones desembarcaram no país, e decidiu aprender inglês quando conheceu as canções de Bob Dylan, que ele reputa, ainda hoje, personagem fundamental em sua formação intelectual. “Os discos dele em geral tinham as letras na contracapa. Era só abrir o dicionário.” Foi por meio do cantor norte-americano que o antropólogo descobriu a geraçãobeat, com seus valores libertários, e a contracultura.
Em contraposição à vida alegre da Gávea, o Colégio Santo Inácio, onde estudou até chegar à faculdade, foi um longo “serviço militar”, do qual disse não guardar boas lembranças – nem más. Uma escola exclusivamente masculina, em que a ênfase não estava no ensino religioso, mas na disciplina.
Os anos decisivos foram 1967 e 1968. Interessou-se pelas discussões intelectuais publicadas nos suplementos dominicais da imprensa, tomando o partido da poesia concreta, das revoluções formais e do tropicalismo, contra o que se refere como vertente nacional-populista, “tipo samba de raiz, Tinhorão, CPC – o marxismo cultural, chamemos assim”. Passou a ler obras de linguística, filosofia, poesia brasileira e literatura francesa. Ainda gostava de matemática, carreira que considerou seguir. Desistiu ao se confrontar com um colega que “nadava de costas” na disciplina. “Ele era muito melhor do que eu. Vi que não tinha condições de ser matemático.”
Foi nessa época, disse o antropólogo, que ele descobriu o mundo intelectual “pra valer”. “Comecei também a desenvolver sentimentos antiburgueses. Deixei o cabelo crescer, por assim dizer. Passei a experimentar as drogas, a frequentar ambientes pouco recomendáveis e a ter amigos fora do colégio. Sobretudo um, que foi muito importante para me situar nos debates da época, amigo meu até hoje, que é o Ivan Cardoso, cineasta.”
 
Quando se referem um ao outro, Viveiros de Castro e o amigo do tempo da adolescência, dois senhores de mais de 60 anos, parecem garotos. Assim que encontrei Ivan Cardoso pela primeira vez, em sua casa, em Copacabana, ele foi logo dizendo: “O Viveiros? Eu comia ele.”
Com uma calva pronunciada, o cineasta trazia o cabelo desarrumado nas têmporas e na nuca. Numa sala atulhada de móveis e objetos criados por ele, quadros com esmaecidas bandeirolas de Festa Junina se destacavam. “São Volpis?”, perguntei. “São Ivolpis”, ele respondeu, satisfeito, “Ivolpis!”
Mais conhecido por seu longa O Segredo da Múmia, de 1982, Cardoso foi um inovador formal, rodando filmes de vanguarda em super-8 a partir do final dos anos 60. Viveiros de Castro conta que a preocupação do amigo com a plasticidade das cenas, aliada à paródia das fitas de terror que fazia, levou o poeta e crítico Haroldo de Campos a sintetizar sua obra como “Mondrian no açougue”. “Tenho uma admiração imensa pelo Ivan”, me disse o antropólogo. “Ele, sim, é um artista. Nunca se afastou disso, e tem uma puta imaginação plástica. Eu sou um anão. O Ivan é um gigante.”
Os pais de Ivan Cardoso e de Viveiros de Castro eram amigos. Os dois garotos estudavam em escolas diferentes, mas próximas. O Colégio São Fernando, que Ivan frequentava, ficava em Botafogo, como o Santo Inácio. Cardoso editava um jornal estudantil e convidava artistas plásticos para dar palestras aos alunos. “O Ivan era muito cara de pau”, explicou o antropólogo. “Batia na porta das pessoas. Eu ia um pouco no vácuo dele.” Os dois ficaram amigos de Hélio Oiticica. “Ele gostou da gente”, contou o antropólogo. “Ensinava coisas. Foi um pouco nosso guia no mundo artístico.”
Esticado na cama de seu quarto, Ivan Cardoso lembrou a primeira vez em que encontrou Oiticica. Cardoso havia ligado para o artista, pedindo que falasse a seus colegas, na escola. Recebeu, como resposta, um convite para que fosse a sua casa, no Jardim Botânico – um lugar que mais tarde ele e Viveiros de Castro passariam a frequentar. “A casa do Hélio era estranhíssima. Misturavam-se críticos de arte e malandros do morro. Era um desfile. Na sala, tinha uma tenda. Ele morava com a mãe. Todo mundo queimando fumo, e a mãe dele descia a escada e reclamava: ‘Vocês vão ser todos presos! Eu já chamei a polícia, seus maconheiros!’ A velha sofreu.”
Viveiros de Castro e Hélio Oiticica gostavam de conversar sobre literatura e filosofia. “Os dois já tinham lido tudo. Cheguei à conclusão de que não adiantava mais eu ler. Qualquer coisa, perguntava para eles.” Segundo o cineasta, seu amigo tomava o café da manhã com um livro aberto na mesa. “Ele lia até trepando”, disse, rindo. “Mas não era apenas um intelectual. Ele andava com um canivete de mola. Era transviado também. Uma vez ele arrumou uma confusão desgraçada no baixo Leblon. Arranjou briga, tacou o carro em cima de um desgraçado lá, um elemento nocivo, tipo um ‘bad boyzinho’ desses. Ele sempre foi uma pessoa carismática, e fazia o marketing dele. Fumava Continental sem filtro, que é um destronca peito desgraçado, e era um bom pé de cana. Tomava traçado.”
No meio da conversa, o cineasta quis saber o que eu achava do amigo intelectual. Em silêncio, sério, prestou atenção à resposta. “Então é isso”, concluiu. “O Caetano está perdendo tempo com esse Mangabeira Unger. É um merda.”
 
Em 1969, Viveiros de Castro começou a estudar na PUC. Cursou jornalismo por um ano. No ciclo básico, se interessou por ciências sociais e pediu transferência. Parte considerável do que era lecionado no novo curso, no entanto, não o agradava. “O que o pessoal estava ensinando era teoria da dependência, Fernando Henrique Cardoso, burguesia nacional, teoria da revolução – quem seria o guia da mudança, se o operariado ou o campesinato”, contou.
“Eu, na verdade, tinha horror àquela coisa. Não tinha saco para a teoria da dependência e não gostava da teoria do Brasil. Achava de uma arrogância absurda enunciar a verdade sobre o que o povo deve ser, o que o povo deve fazer. Isso de teorizar o Brasil é uma coisa que a classe dominante sempre fez. Quem fala ‘Brasil’ é sempre alguém que está mandando. Seja para fazer revolução de esquerda, seja para soltar os gorilas da ditadura na rua. E aqueles caras... Eu ficava pensando: eles querem as mesmas coisas que os militares. Só que querem ser eles a mandar. Vai ser um quartel, isso aqui.”
O tema mobiliza Viveiros de Castro: esquerda tradicional, “careta”, de um lado; esquerda existencial, “libertária”, de outro. A divisão, ele observa, não era apenas intelectual. Definiu trajetórias pessoais, “como ir para a clandestinidade e para a luta armada; ou ir para a praia, fumar maconha, tocar violão”. Num texto de memórias, disse admirar seus “companheiros mais corajosos” que se arriscaram na clandestinidade. Viveiros resolveu ir à praia.
Em 1970, um píer foi construído em Ipanema, por ocasião das obras para lançar o esgoto longe da costa. Moveram a areia e surgiram morrotes altos, que mais tarde ganhariam o apelido de “dunas do barato”. Mudanças no fundo do mar melhoraram as ondas, atraindo os surfistas. Com eles vieram os hippies e o que havia de contracultura no Rio de Janeiro de então. O jovem estudante da PUC também fazia ponto por lá.
“Como diz o Ivan Cardoso, esse era o tempo em que a gente era feliz e sabia. Eu ia nos finais de semana. Tinha muita droga. Muita maconha, muito ácido. Foi um momento importante porque houve uma interpenetração cultural entre o morro e a baixada, por causa do pessoal que vendia pó, vendia fumo.” Ele próprio, segundo disse, não gostava particularmente das substâncias em voga naquele momento. “Eu sou uma pessoa medrosa. Experimentei uma ou duas vezes LSD. Não gostei, fiquei paranoico. Maconha eu usei muito, mas mais porque era coisa da época. O efeito em si... Me dava sono.”
Seu perfil de usuário era mais clássico: álcool, tabaco e cocaína. “Não era maconha, comida vegetariana, ácido. Eu era mais década de 50 do que década de 70. Fui quase viciado em cocaína. Parei porque achei que não ia aguentar fisicamente. É uma droga horrível. Ela te transforma num monstro narcísico. Dá uma sensação de onipotência, que na verdade é uma ‘oni-impotência’. Quando você está mais onipotente é na verdade quando você está completamente impotente: você fica só falando merda, fazendo besteira, e também não é um estimulante sexual. É uma droga idiota, fascista. Mas eu gostava. Eu usava.”
 
Entre o píer e a PUC, Viveiros de Castro conheceu a obra de Lévi-Strauss, que começava a ser lida no Brasil. O crítico literário Luiz Costa Lima, professor na mesma PUC, disse ter tomado contato com as ideias do antropólogo francês em meados dos anos 60, “quando começou a moda do estruturalismo”. Atraído pelo rigor formal das análises lévi-straussianas, passou a estudá-las a sério. O que aprendia, ensinava na faculdade. Viveiros de Castro seguiu seu curso. “O estruturalismo fazia parte daquilo que a esquerda tradicional considerava anátema”, disse o ex-aluno. “Falavam que era burguês, formalista, que negava a história. Tinha uma série de palavras de ordem que você ouvia.”
Costa Lima e o aluno se tornaram amigos. Formaram um grupo de estudos e se dedicaram por alguns anos, duas vezes por semana, à leitura sistemática das Mitológicas, a obra em que Lévi-Strauss analisa a lógica de mitos ameríndios, reunindo rigor formal e atenção aos detalhes concretos, significativos nas narrativas: cores, cheiros, comportamentos dos animais, detalhes escatológicos, sexo. “Fiquei fascinado com os mitos”, disse Viveiros de Castro. “Eram rabelaisianos, mas tinham uma lógica formal, por causa das combinações, das permutações. Eram ‘Mondrian no açougue’, como os filmes do Ivan. Aquilo tinha uma relação com as coisas que eu lia nos suplementos e de que gostava. Em particular a linguística. E os concretistas. Havia uma afinidade, não direta, mas havia, entre concretistas, tropicalismo e estruturalismo.”
Essa não foi a única influência que Costa Lima exerceria na vida do aluno. Terminada a faculdade, Viveiros de Castro não sabia que rumo tomar. Pensou em fazer pós-graduação em letras. O professor, crítico literário, o desestimulou. Fez isso, explicaria mais tarde, porque “o estudo de literatura sempre foi muito ruim no Brasil”. “Hoje é péssimo”, frisou. Recomendou ao aluno, entusiasmado pelas Mitológicas, que cursasse antropologia no Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Roberto DaMatta, à época professor do Museu, participou da banca de seleção para o mestrado. “Eu era besta pra cacete”, comentou Viveiros de Castro, ao falar sobre o exame. “O Matta me perguntou: ‘Estou vendo aqui no seu currículo que você leu Lévi-Strauss. O que você leu?’ E eu respondi: ‘Tudo!’”
 
Na sala de sua casa, em São Paulo, Marcio Silva acendeu um cigarro. O antropólogo pegou uma prancheta na qual havia anotado pontos importantes da trajetória intelectual de seu antigo orientador. Viveiros de Castro se tornou professor assistente do Museu em 1978, pouco depois de concluir o mestrado. Naquele mesmo ano, escreveu um artigo com seus professores Anthony
Seeger e Roberto DaMatta sobre a noção de pessoa entre os grupos indígenas da América do Sul, texto que se tornaria referência para o estudo desses povos.
Marcio ressaltou a audácia dos primeiros parágrafos do artigo. Ali os três autores afirmam que diferentes regiões do planeta haviam contribuído, no passado, com algum aspecto importante da teoria antropológica. A Melanésia, diziam, descobriu a reciprocidade – a obrigação social de dar, receber e retribuir “dádivas”, cuja circulação seria como a linha de costura da sociedade, mantendo-a coesa. O Sudeste Asiático, por sua vez, alargou a compreensão dos sistemas de parentesco e das alianças feitas por regras de casamento. Da África, lembravam, veio um entendimento melhor das linhagens, da bruxaria e da política.
Davam então o passo ousado. Os povos da América do Sul, menos pesquisados e conhecidos, deveriam também fazer sua contribuição, resultado de uma característica específica dessas sociedades: o privilégio que conferiam, em suas cosmologias, ao corpo. “Ele, o corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado, resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as sociedades indígenas têm da natureza do ser humano.”
Perguntei a Marcio Silva se seu ex-orientador, à época desse artigo um jovem de 27 anos, não lhe parecia “atrevido, pretensioso”. “Essa palavra, ‘atrevido’, é boa”, respondeu Silva. “Às vezes ele parece gostar de correr riscos.”
Deu um exemplo. Nos anos 80, Viveiros de Castro retomou um tema, antes central, que estava fora de moda na antropologia: o parentesco. A partir do final do século XIX, pesquisadores passaram a identificar os laços forjados pela consanguinidade – aqueles que criam grupos de descendência – e pela aliança por casamento – laços que “costuram” as relações sociais entre grupos diferentes – como a coluna vertebral das “sociedades primitivas”. Era assim que elas se mantinham coesas, e era por meio do estudo desses laços que os antropólogos poderiam conhecê-las melhor.
Viveiros de Castro fez uma pergunta distinta. Ele não queria saber apenas o que o parentesco dizia sobre os povos indígenas, mas também o que as culturas ameríndias teriam a dizer sobre o parentesco. Será que os índios explicavam o parentesco do mesmo modo que nós, ocidentais? A ideia que lhe ocorreu é em tudo semelhante à lógica do perspectivismo. Pode ser considerada um passo prévio, mais fácil de compreender quando já se conhece a metafísica dos povos indígenas das Américas.
No Ocidente, ele disse, o que é dado são as relações de filiação, de “consanguinidade”. A ligação entre pais, irmãos e filhos é “natural”, logicamente anterior às relações com esposa, sogros e cunhados – relações de “afinidade” que não são dadas, mas construídas pelas escolhas dos indivíduos.
Para os povos ameríndios, contudo, o valor fundamental não está nos laços biológicos, “de sangue”, mas nas relações de aliança, com sogros e cunhados. Aquilo que para nós faz parte da cultura, do que precisa ser construído, para eles já é dado, é a referência que dá sentido e organiza as relações sociais. A lógica da afinidade, das normas que proíbem ou prescrevem casamentos entre pessoas e grupos distintos, é usada mesmo nas relações sociais relativamente distantes, com outros povos, inimigos e espíritos; relações que não têm a ver, necessariamente, com a troca de cônjuges.
O que precisa ser construído por eles, por outro lado, é aquilo que para nós já é dado: o corpo. A “consanguinidade”, a relação de semelhança corporal entre parentes e, até, entre pais e filhos, precisa ser fabricada mesmo depois do nascimento – por meio da partilha dos mesmos alimentos, por exemplo. Daí a importância do corpo, notada no artigo de 1978.
O atrevimento de seu ex-orientador, segundo Marcio Silva, foi tirar todas as consequências desse fato. Os dois modos de compreensão do parentesco têm implicações políticas distintas. “Numa sociedade como a nossa, a consanguinidade, a relação entre irmãos, é pensada como um modelo da relação social”, disse Silva. “Por exemplo, como Viveiros de Castro lembrava, na Revolução Francesa você tem liberdade, igualdade e fraternidade. Fiquemos com a fraternidade. A relação social boa é como se fosse uma relação entre irmãos. Mesmo que eu não tenha parentesco com você, eu sou seu irmão: somos ambos filhos de Deus. Também nas constituições laicas operamos com base nessa metáfora fortíssima de irmãos. O que significa dizer que você é meu irmão? Significa que somos semelhantes e que somos conectados por um ente superior. Que pode ser o Estado, pode ser Deus, pode ser o nosso pai, se formos irmãos mesmo. Isso que nos unifica é um termo superior.”
Já na lógica social dos povos indígenas, não há termo superior que unifique. Os outros – que podem ser um povo indígena diferente, o inimigo, os animais – são para os ameríndios, antes de tudo, uma espécie de cunhado. “O que significa chamar de cunhado? Entre dois cunhados não tem ninguém que seja superior: tem uma mulher que é diferente para cada um. Para um é irmã, para o outro é esposa. Somos relacionados porque vemos uma mesma mulher de maneiras diferentes.” Não há, aí, necessidade de Deus, de pai ou de Estado para se pensar a boa relação social.
“Lembro-me dele dizendo em sala de aula, em tom de blague, que na Amazônia não valia o lema ‘liberdade, igualdade e fraternidade’. Liberdade, tudo bem. Mas no lugar de igualdade, diferença. No lugar de fraternidade, afinidade.”
Se a Melanésia havia contribuído com a noção de reciprocidade, e a África com os grupos de descendência, então os povos da América do Sul forneciam, no início dos anos 90, a ideia de “afinidade potencial”. Tanto nesse caso quanto no perspectivismo ameríndio, que surgiria poucos anos depois, Viveiros de Castro usou conceitos ocidentais – natureza, cultura, consanguinidade, afinidade – para tentar entender as culturas ameríndias. Mas descobriu que era preciso invertê-los para que funcionassem bem naquelas sociedades.
As consequências políticas dessa operação, tanto no caso do parentesco quanto no da metafísica indígena, em que a natureza muda dependendo do observador, eram as mesmas. “Esse é um mundo em que você não tem um ponto de vista dominante, soberano, monárquico”, explicou Viveiros de Castro. “Ao contrário, a condição de sujeito está espalhada, dispersa. Não tem uma transcendência, um ponto de vista do todo, privilegiado. O perspectivismo é o correlato cosmológico, metafísico, da ideia de sociedade contra o Estado, do Pierre Clastres.”
 
No seu apartamento, em outubro passado, Viveiros de Castro parecia irritado. Explicou que havia se contrariado no trabalho, o que não era incomum. Descreveu mais de três décadas de uma relação conflituosa com seus colegas de instituição. A origem dos aborrecimentos, ele disse, remontava a 1978, quando havia concluído o mestrado e concorreu a uma vaga de professor assistente no Museu Nacional. Dois candidatos se apresentaram: ele próprio e o antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho.
Oliveira Filho é, hoje, um dos principais representantes de uma linha de pesquisa importante na instituição carioca. Seus seguidores procuram entender os povos indígenas em suas relações com a sociedade e o Estado brasileiros. Essa corrente descende de Darcy Ribeiro, passando por Roberto Cardoso de Oliveira, um dos criadores da pós-graduação em antropologia no Museu Nacional, em 1968. Cardoso de Oliveira descreveu a “sociologia do contato”, que ele praticava, como uma tentativa de explicar a “sociedade tribal, vista não mais em si, mas em relação à sociedade envolvente”. Em um artigo recente, em que mencionava os Ticuna, do Amazonas, João Pacheco de Oliveira ressaltou que mesmo as “crenças, costumes e princípios organizativos” dos povos indígenas estão “interligados e articulados com determinaçõese projetos da sociedade nacional”.
Por telefone, o norte-americano Anthony Seeger, coautor do artigo de 1978 e orientador de Viveiros de Castro no doutorado, disse que ele e o aluno acreditavam que “as sociedades em si também mereciam atenção”. Ao se preocuparem com o parentesco e com as cosmologias dos grupos que estudavam, praticavam uma etnologia – a parte da antropologia que se ocupa dos povos indígenas – “clássica”, tida por representantes da outra corrente como excessivamente “filosófica”, apolítica e pouco comprometida com as circunstâncias sociais dos índios. De sua parte, Viveiros de Castro acredita que é a “sociologia do contato”, uma linha de pesquisa, ele diz, associada à “esquerda tradicional”, que é politicamente questionável. Seus rivais veriam os índios a partir da mesma perspectiva adotada pelo Estado, como parte do Brasil. Ele, ao contrário, inverteria o ponto de vista. Partiria das sociedades indígenas, tomando suas ideias e práticas como referências para criticar o Brasil, o Estado, o capitalismo.
Viveiros de Castro perdeu o concurso de 1978. Segundo ele porque os representantes da esquerda tradicional eram majoritários na banca. João Pacheco de Oliveira Filho foi o escolhido, mas uma segunda vaga foi criada. O etnólogo “clássico” se tornou, ele também, um jovem professor do Museu. Nos anos seguintes, o que começara como uma disputa teórica se transformaria em cizânia e ressentimento.
Tanto assim que as opiniões sobre o antropólogo carioca se dividem, de maneira marcada. Entre ex-alunos, ele é reconhecido por gestos de generosidade e de correção intelectual. Contudo, são também frequentes os relatos de arrogância na relação de Viveiros de Castro com os colegas, o que contribui para o clima de animosidade na instituição. Ele próprio disse representar, no Museu, “uma posição que é considerada trouble maker, anarquista, e que despreza os outros”. “Isso é quase verdade. Sou tido como alguém que não leva muito a sério o outro tipo de antropologia que é feita lá. De fato. Eu nunca manifestei isso, acho eu. Mas o pessoal percebe. Hoje eu diria que está quase todo mundo aliado ao João, e contra mim. Alguns ficam em cima do muro, que é a posição mais confortável.”
O antropólogo Paulo Maia, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-orientando de Viveiros de Castro, afirma que o antigo professor tende a assumir posições pouco diplomáticas. “Ele não quer encontrar um meio-termo: quer marcar posições”, disse Maia. “O Eduardo não busca o consenso e não gosta de pessoas que têm um caráter mais subalterno, boazinhas. Ele gosta de gente mais intempestiva mesmo. Na própria escrita dele, dá para ver isso. É um estilo que não é muito diferente do modo como ele fala. O que para muitos alunos é encantador. A escrita dele é cativante.”
 
Em 1997, a tensão entre colegas no Museu Nacional se tornou mais aguda. A instituição abriu concurso para professor titular, o posto mais alto da carreira universitária. Quase duas décadas depois da primeira disputa entre os dois, Viveiros de Castro e João Pacheco de Oliveira tinham novamente a intenção de se candidatar à mesma posição. Outros integrantes do departamento se mobilizaram para evitar o embate. “Houve uma pressão muito forte, dentro da instituição, para que só se apresentasse um candidato”, disse Viveiros de Castro. “Partindo daqueleéthos característico da academia, em que você prefere arranjar as coisas para evitar situações delicadas. Entenda-se: para que não entre a pessoa que você não quer.”
A solução encontrada, segundo professores do Museu, foi a realização de um sorteio prévio: quem ganhasse se apresentaria como candidato, e o derrotado desistiria da disputa. Viveiros de Castro perdeu.
Naquele mesmo ano, o antropólogo viajou para a Inglaterra, convidado para uma temporada de um ano na Universidade de Cambridge. Lá, conheceu Marilyn Strathern, professora titular de antropologia social na instituição, talvez o cargo de maior prestígio da disciplina. Ela ainda não conhecia o trabalho do colega brasileiro, que fez quatro conferências sobre o perspectivismo ameríndio. Strathern disse ter ficado impressionada com o argumento, exposto com “erudição e autoconfiança” – o mesmo atrevimento que lhe causava problemas em casa ajudava-o a conquistar audiências estrangeiras. A ideia exposta por Viveiros de Castro pareceu à professora “profundamente imaginativa e bastante precisa”.
O texto sobre o perspectivismo foi lançado em inglês em 1998. “Foram essas conferências de Cambridge e a publicação em inglês que alçaram o tema a uma posição de destaque no campo antropológico”, observou Viveiros de Castro. Segundo Strathern, as ideias do brasileiro fazem, hoje, parte do cânone apresentado aos estudantes de pós-graduação da disciplina no Reino Unido.
 
O caráter conflituoso de Viveiros de Castro se manifesta nas redes sociais. O antropólogo tem mantido, nos últimos anos, intensa atividade política no Twitter e no Facebook. Seus curtos enunciados são às vezes enigmáticos, com frequência irônicos, quase sempre militantes. Em outubro, quando manifestantes subiram no Monumento às Bandeiras, em São Paulo, e cobriram de tinta as estátuas de Brecheret que celebram a conquista do Oeste pelos paulistas, com consequências trágicas para os índios, ele ofereceu seu veredicto: “É preciso derrubar essa porcaria.”
Boa parte das frases e dos pequenos textos que publicou no Twitter e no Facebook, desde junho, manifestava entusiasmo pelas manifestações de rua, das quais ele evitou participar, por medo de aglomerações. Seus posts revelavam também o que ele chamou de “simpatia” em relação à ação dosblack blocs. “É espantoso como a esquerda tradicional está histérica com osblack blocs”, ele me disse. “Está histérica porque não controla, porque não é partido. Não é militante de partido. Os black blocs nem existem como movimento. É uma tática.”
“Devo dizer que fiquei muito feliz de ver os manifestantes subirem na parte de cima do Caveirão. Gostaria que eles tivessem virado o Caveirão de cabeça para baixo. Se tivessem feito isso, acharia legal! E será que destruir a porta de um banco é uma coisa assim tão abominável? Em que será que se está tocando quando se quebra a porta de um banco? Por que deixa todo mundo tão nervoso?”
Já havia manifestado ideia semelhante no Facebook. “Quebrou uma vitrine do Banco Itaú, é vândalo, apanha da polícia e vai pro presídio; desapareceu com bilhões do BNDES, é empresário em dificuldades, vai para recuperação judicial”, publicou, no início de novembro. Estendeu-se um pouco mais noutro comentário: “O que o Estado faz, e deixa fazer, com os índios é um resumo altamente concentrado e potencializado do que ele faz, e deixa que façam, com toda a população. Os que dizem que não se pode mesmo dar mole para esses selvagens, que é preciso logo civilizá-los etc., são como o servo que se acha senhor porque o servo do lado levou mais chicotadas no lombo do que ele.”
Em seu apartamento, ao lado da mulher, o antropólogo explicou sua conversão recente às redes sociais, resultado de uma briga com a imprensamainstream. Há pouco mais de três anos, a revista Veja publicou uma reportagem intitulada “A farra da antropologia oportunista”. Criticava a multiplicação de povos indígenas no país, interessados nas terras que sua nova condição lhes daria direito. “Em 2000, o Ceará contava com seis povos indígenas”, o texto registrava. “Hoje, tem doze. Na Bahia, catorze populações reivindicam reservas. Na Amazônia, quarenta grupos de ribeirinhos de repente se descobriram índios.”
Citavam então Viveiros de Castro, atribuindo a ele uma opinião crítica aos “índios ressurgidos”: “Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente de cultura indígena original.” A primeira frase havia sido retirada de um texto publicado pelo antropólogo, intitulado “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. A segunda, ele nunca disse ou escreveu. “Colocaram entre aspas uma frase que tiraram de um artigo meu, e acrescentaram a ela outra, que eles inventaram.” Ao inventarem, puseram em sua boca ideias opostas às que ele defende. Nas últimas décadas, argumentou o antropólogo, tem acontecido no Brasil algo inverso ao problema que ocupava os fundadores da sociologia do contato. Em vez de os índios se tornarem, aos poucos, brasileiros, são os brasileiros que estão virando índios. E não é necessário um “ambiente de cultura indígena original” para que um grupo advogue essa condição.
“Várias populações tradicionais estão se redescobrindo indígenas. Isso acontece porque eram índios. Foram obrigadas a esquecer que eram, forçadas a aprender português. Houve um processo de branqueamento que nunca se completou. E não se completar fazia parte do processo: o cara deixava de ser índio, mas você não o deixava virar branco. Parava no meio. Virava um brasileiro. O que é um brasileiro? É um índio pra quem você diz: ‘Você vai ser branco, você deixará de ser índio’, mas o cara para no meio. Você é quase branco. O cara perde a sua condição indígena, mas não ganha do outro lado.”
Foi para divulgar sua indignação com a revista, disse o antropólogo, que ele passou a usar as redes sociais. Primeiro o Twitter, no qual tem hoje cerca de 4 600 seguidores. Depois o Facebook, onde conta com mil amigos e quase 5 mil seguidores.
 
Um dos temas caros a Viveiros de Castro e a Déborah Danowski, tratado com frequência por ele em sua militância na internet, é o que chamam de “catástrofe” ambiental. Em outubro, no dia do primeiro leilão do pré-sal, o antropólogo escreveu: “Não faça parte das minorias com projetos ideológicos irreais: colabore para a destruição do planeta. Deus proverá. Viva Libra, viva a Shell, viva a Total, viva a China, viva o Brasil.” Em meados de novembro, um outro post conclamava: “Liberar a Terra das cadeias produtivas.”
Desde os anos 80, o antropólogo milita contra a construção de hidrelétricas na Amazônia. Foi um dos fundadores do ISA, o Instituto Socioambiental, uma das principais ONGs de defesa do meio ambiente e dos povos indígenas no país. Na sala de sua casa, no Rio, o casal citou estimativas de aquecimento global feitas pelo IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, da ONU. Um aumento de temperatura que não é improvável neste século, disseram, pode pôr em risco a maior floresta do planeta. “A parte oriental da Amazônia é mais seca do que a ocidental”, afirmou o antropólogo. “Essa parte mais seca, em alguns lugares, está começando a perder mais água do que recebe. Aquilo está secando. Um processo de ressecamento progressivo, discreto talvez, no sentido de que não é uma coisa catastrófica. Mas acontece que, se essa floresta passa de determinado ponto crítico de ressecamento, uma hora pega fogo e ninguém mais apaga.”
Os dois lembraram ainda a impossibilidade de o planeta comportar, para toda a sua população, o atual padrão de produção e consumo ocidental. “O que vai acontecer, provavelmente, é a falência degenerativa, muito mais do que apocalíptica, do atual sistema técnico-econômico mundial, que não vai se sustentar”, disse Viveiros de Castro. “Temos que nos preparar para um mundo radicalmente diferente deste em que vivemos. Temos que pensar num mundo fora do milênio, fora da ideia de que um dia vamos dar tudo para todos, seja no capitalismo ‘sustentável’, dois ponto zero, seja no socialismo.
A ideia de que vamos finalmente chegar a um estágio de plenitude, de abundância e de equilíbrio. Nós não vamos. Minha impressão é de que estamos numa curva descendente do ponto de vista da civilização, talvez da espécie, e que a gente tem que se preparar para o declínio.”
Argumentei que há quem conte com inovações tecnológicas, como já aconteceu no passado, para mover a fronteira dos limites planetários. “Eu acho que isso é religião”, respondeu o antropólogo. “Essa coisa de que vamos sair dessa é teologia. É achar que o homem sempre pode dar um jeito, pela sua capacidade, de transcender as condições naturais. Isso para mim é cristianismo laicizado.”
O que fazer? “Oposição ao governo, dono de um projeto ecocida”, respondeu. O antropólogo votou em Marina Silva, em 2010, mas disse ter dúvidas se repetirá o apoio em 2014, caso ela venha a concorrer. “Não morro de paixão pelas alianças que ela fez nem por sua base de consulta intelectual”, composta por economistas liberais. “Mas nada, nem o Serra, vai me fazer votar na Dilma. Não adianta virem com o Serra pra cima de mim. ‘Olha o Serra!’ Não há Cristo, nem Diabo, que me faça votar na Dilma.”
A política partidária, de toda forma, parece pouco relevante em seu discurso, fatalista. “Pode ser que nós, ocidentais de classe média, o francês, o brasileiro rico de São Paulo, o americano, pode ser que passemos pela mesma coisa por que passaram os índios em 1500. Eles continuam aí, mas o mundo deles acabou em 1500. Se formos falar do fim do mundo, pergunte aos índios como é, porque eles sabem. Eles viveram isso. A América acabou. Pode ser que venhamos todos a ser índios, nesse sentido. Todos venhamos a passar por essa experiência de ter um mundo desabando. No caso deles, eles foram invadidos por nós. Nós também vamos ser invadidos por nós. Já estamos sendo invadidos por nós mesmos. Vamos acabar com nós mesmos da mesma maneira como acabamos com os índios: com essa concepção de que é preciso crescer mais, produzir mais.”
No seu apartamento, já de noite, Viveiros de Castro se disse pessimista. “Mas esse pessimismo não é paralisante. Não é um quietismo. A sensação que eu tenho é de que a gente está lutando dentro de casa. Quarteirão a quarteirão. Como essas guerrilhas.” Deu um exemplo de resistência. “Dizem que os índios já foram incorporados ao capitalismo. Mas não foram dominados mentalmente. Já foram dominados economicamente, politicamente, mas não mentalmente. O problema com os índios é que eles são insubordinados. Você não consegue domesticar o índio. É por isso que o governo tem tanto horror deles.”
“É isso que significa o brasileiro virar índio”, disse, alargando o sentido da frase. “Numa versão ‘Twitter’, para encurtar a conversa, é isso. É virarblack bloc. Menos pelego, e mais black bloc.”
 
Em 2008, Marilyn Strathern se aposentou do cargo de professora titular de antropologia social, em Cambridge. Mais de um ano antes, tinha dado início ao processo de escolha de seu sucessor. Ela sugeriu ao etnólogo carioca que apresentasse sua candidatura ao posto.
Viveiros de Castro disse que foi só por causa da insistência da amiga que concordou em concorrer. “Relutei e tergiversei, pois não tinha a intenção de aceitar”, diria mais tarde. Além de razões práticas – como o trabalho de sua mulher no Rio –, afirmou que “sabia do tamanho do abacaxi que era ser o cabeça da antropologia social” na universidade inglesa. Disse não ter vontade de se dedicar à administração acadêmica, o que certamente seria exigido pela posição.
De toda forma, no final de 2007, estava entre os três finalistas. Viajou à Inglaterra para apresentar uma aula na universidade, parte do processo de seleção. Na sala em que falou, numa noite fria do outono inglês, alunos e professores se apertavam, muitos sentados no chão, outros espremidos nos cantos, junto às paredes.
Foi só quatro anos depois de concorrer à vaga na Inglaterra que Viveiros de Castro pôde afinal se candidatar, em 2011, ao posto de professor titular do Museu Nacional. O memorial que escreveu para o pleito foi redigido “num tom quase insolente” de propósito, ele disse. Ali ele afirma que sua produção intelectual “exerceu uma influência teórica muito significativa” na antropologia, “talvez a influência mais significativa exercida até o presente pelo trabalho de um antropólogo brasileiro”. No mesmo texto, voltou ao assunto do cargo em Cambridge, revelando seu desfecho. “Fizeram-me saber (ou deixaram-me saber, como se diz) que eu tinha todas as chances de ser o escolhido. Escrevi rapidamente ao departamento e a Marilyn recusando o posto, just in case. Eu realmente queria continuar sendo um jardineiro em Petrópolis.”
Considerava já ter alcançado, então, o objetivo de se fazer ouvir ao norte do Equador. No memorial, um balanço de mais de três décadas de atividade intelectual, Viveiros de Castro afirmou ter tido, desde o início de sua carreira, o propósito explícito de “rebater para a matriz nossas lucubrações periféricas” e de “meter a colher na sopa metropolitana”.
“Cuido que consegui”, ele conclui, sem modéstia. 

No banheiro - Tati Bernardi

folha de são paulo

Sugeri um ano novo reservado e romântico em Petrópolis: só livros, filmes e amor. Escolhemos o quarto com florzinhas vermelhas e amarelas na janela. Eu levei "A praia" do Ian McEwan e ele levou o filme "Agonia e Êxtase". Acabou que eu não consegui largar uma revista Vogue francesa antiga e ele um joguinho maldito no Ipad "em que se pode ser o técnico do time".
Onze e meia a gente fugiu do restaurante, com medo de ter que dar abraços frouxos e impessoais nos outros seis casais hospedados na pousada. Todos com mais de setenta anos e com os pigarros bem piorados pelas risadas forçadas (e eu idealizando a velhice como uma fase maravilhosa em que não nos obrigamos mais a ser feliz). Nos trancamos no quarto, apagamos as luzes, tiramos a blusa...dai acendemos de novo a luz pra matar uma barata.
Meia noite em ponto, parei abruptamente um beijo apaixonado para beber água. Virei uma garrafinha inteira que estava no criado-mudo e arrotei. Como é que uma lady faz isso justo numa noite tão especial com o mozão? Eu parecia estar possuída. Meia noite e dois meu intestino sentiu o primeiro golpe macabro. Um pano de chão sendo torcido pelas mãos de um lutador de vale tudo com sede de vingança. Talvez eu morresse. Acima do meu estômago, milhões de barquinhos eram devorados por um ciclone biliar. Enjôo era algo tão mirim perto do que eu sentia que cheguei mesmo a cogitar procurar um sinônimo mais robusto no Google do Iphone.
Delicada, feminina e misteriosa, pedi que ele esperasse uns segundinhos. Meia noite e quatro eu era a protagonista do Exorcista. Vomitei na velocidade da luz e nessa mesma intensidade continuei me expurgando também por outras vias. Me lancei dramaticamente ao chão, numa pré-síncope, na tentativa teatral de coibir um provável e súbito desmaio. Despertei com meu discreto e charmoso namorado socando a porta do banheiro "me deixa entraaar porraaa, eu não tô legal!".
Foi o peixe do almoço. Foi, foi ele. É intoxicação né? Só pode ser. Eu tô com medo. Eu também. Mas eu tô com muito medo, até tomei um Rivotril, mas vomitei ele. Vai ficar tudo bem, eu cuido de você. Cuida mesmo? Promete? Hein? Cê tá me ouvindo? Não, desculpa, eu desmaiei. Vamos ter que processar o restaurante. Mas você lembra o nome dele? Eu não lembro nem o meu nome nesse momento. Se eu morrer, você cuida da minha cachorra? Se você morrer, eu vou morrer cem vezes, porque comi meu prato todo e mais metade do seu prato. Não fala em comer. Eu não vou comer nunca mais. Não morre, eu preciso de alguém que me leve pra casa. Liga na recepção e pede água de coco. A mulher da recepção tava bêbada na festa e ela tem setenta e quatro anos. Quem vai levar a gente pro hospital se todo mundo tem noventa anos nesse lugar? E dai? Velho não dirige? Mas velho vai enxergar o caminho essa hora? Imagina estar morrendo e ainda sofrer um acidente? Eu não quero ir pro hospital. Eu não tô sentindo minha perna. Eu dei um Google em intoxicação. E aí? É essa parada aqui mesmo.
Meia noite e meia estávamos os dois seminus, suados, em transe, deitados no chão do banheiro. Nossa relação de mágicos e inabitáveis dois meses de namoro ofertava agora o silêncio confortável e triste de uma intimidade madura. Pobre da noiva que chama "falta de sorte" ver o vestido antes da festa. Tínhamos visto coisa muito pior. Nossas mãos geladas tinham parado de se acariciar através de um fiozinho desritmado de pulsação e dignidade. Talvez eu estivesse morta. Talvez o amor estivesse morto.
Eu tô aqui com você, tá? Eu também. De verdade. Tá. Feliz ano Novo. Pra você também. Foi tão bonito.
tati bernardi
Tati Bernardi é escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados.

Feliz ano novo - Marion Strecker

folha de são paulo
Tereza acaba de cometer suicídio no Facebook. Achou que estava perdendo tempo. Silvia nunca entrou. Lili tampouco. Elas simplesmente nunca tiveram interesse. Quando sabem de algo que se passa ali, é por terceiros, como seus maridos, usuários eventuais.
Paula entrou, mas não se encantou. Volta pouco. Maurício já criou quatro perfis diferentes, para dar conta de tantos amigos. Gerald é de fases: às vezes interage compulsivamente, outras vezes fica furioso, diz que nunca mais vai voltar, mas acaba voltando.
Já o Theo, coitado, foi trollado –teve computador e senha do Facebook roubados por um ladrãozinho de São Sebastião neste Natal.
Helena ainda usa o Facebook e o Twitter, mas cada vez menos. Antes usou o Orkut, mas largou em 2011 e nem se lembra da senha. Nenhum dos seus amigos está mais lá para ver aquelas imagens pisca-pisca que o Mark Zuckerberg jurou que jamais permitiria no Facebook.
Helena também teve a fase MSN Messenger e a fase Tumblr, mas os diálogos do Messenger ela não se lembrou de salvar, enquanto o Tumblr ela se lembrou de apagar. Agora ela usa o Snapchat, o Instagram e o WhatsApp, que Chris já largou mas Lili usa bastante.
Cartunista Alpino
Chris e Lili não desistiram do Skype, até o ponto que eu sei, mesmo tendo o FaceTime ali à mão, pré-instalado no iPhone.
O Snapchat é o melhor de todos da última semana. Dá para programar por quantos segundos a foto que estamos mandando permanecerá visível na tela do destinatário. Se o destinatário não for rápido no gatilho para salvar a foto, ela se evapora no ar. Aí não precisamos nos preocupar em apagar aquela tranqueira toda que vamos publicando e recebendo ao longo dos dias, meses e anos, até que o software ou o computador morra e leve com ele nossa história eletrônica.
Chat e ICQ vasculhei de cabo a rabo no passado, mais por razões profissionais do que por diversão. Por farra, usei Twitter e Instagram. O Twitter foi perdendo a graça com gente monotemática, perfis falsos e robôs. O Instagram ainda acho bacana, enquanto não entopem de propaganda. Aprendi que quanto menos conexões estabeleço, mais relevante fica a rede.
O LinkedIn parece muito engravatado. Ali as pessoas querem mostrar seu lado sério e não suas fotos de biquíni ou copo de cerveja na mão. O LinkedIn é o lugar do RH, que pesquisa currículos, aborda profissionais para suas vagas e analisa as conexões dos candidatos. A turma do RH, embora a gente não se preocupe com isso, também anda espiando o Facebook, para dar uma checadinha no "perfil" do candidato ou comportamento do funcionário. Candidatos a namorado também usam esse truque.
Investigar redes sociais é rotina para profissionais de segurança, eletrônica, policial ou o que for. Departamentos de imigração, como o dos Estados Unidos, são apontados como usuários do Facebook.
Afinal, não se esqueça, entrar em países como os Estados Unidos é um privilégio, não um direito.
O Facebook é usado para checar se a pessoa é quem ela diz que é.
E se o sujeito não tem Facebook? Aí, só pode ser um suspeito. Se não está no Facebook, o que ele tem a esconder, não é mesmo?
marion strecker
Marion Strecker é jornalista e cofundadora do UOL. Começou sua carreira como professora de música e coeditora da revista Arte em São Paulo. É formada em comunicação social pela PUC-SP. Trabalhou na Redação daFolha entre 1984 e 1996, onde foi redatora, crítica de arte, editora da 'Ilustrada', editora de suplementos, coordenadora de planejamento, coordenadora de reportagens especiais, repórter especial, diretora do Banco de Dados, diretora da Agência Folha e coautora do Manual da Redação. É colunista da Folha desde 2010. Pioneira na internet no Brasil, liderou a equipe que criou a FolhaWeb em julho de 1995 e foi diretora de conteúdo do UOL de 1996 a 2011. Viveu em San Francisco, Califórnia, de julho de 2011 a julho de 2012, atuando como correspondente do portal. Mudou-se para Nova York, onde começou a escrever um livro sobre internet, previsto para sair pela Editora Record. Atualmente vive em São Paulo.

Ronaldo Lemos

folha de são paulo

Em 2014, ficção científica vai tomar as telas do cinema



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Se você gosta de ficção científica, 2014 vai ser um bom ano. As telas de cinema vão ser tomadas por uma safra ambiciosa de produções de Hollywood especulando sobre desejos, expectativas e temores com relação à tecnologia. Para além da diversão, ajuda a entender as inquietações que estão na pauta do ocidente.
O tema da vez é a singularidade, definida como "o momento em que a inteligência artificial terá progredido a ponto de superar a humana, mudando para sempre a civilização". Existem apostas sérias sobre quando a singularidade vai chegar.
O futurólogo e diretor de engenharia do Google, Ray Kurzwell, fala em 2045. Já Vernor Vinge –inventor do termo– aposta em 2030.
Enquanto esperamos, Hollywood especula sobre o que pode acontecer. São vários os filmes sobre o tema, sob ângulos diferentes: visão apocalíptica em "Trascendence", com Johnny Depp; ou romântica, com "Her", de Spike Jonze. E, claro, vem aí o quinto "O Exterminador do Futuro", clássico do tema nas telas.
Outra tendência é a ficção científica apontando cada vez mais em direção a países em desenvolvimento.
Um bom exemplo disso é a refilmagem de "Robocop", dirigida por José Padilha de "Tropa de Elite". Ou "Elysium" em 2013, dirigido pelo sul-africano Neil Blomkamp, que aborda a relação entre favelas, sci-fi e tecnologia.
Faz sentido. Com o futuro do consumo da tecnologia rumando para os países pobres, é esperado que as novas histórias surjam daí também. Quem sabe alguém se anima a filmar "Ma-Hôre", o esquecido conto de ficção da imortal Rachel de Queiroz?
*
JÁ ERA
Achar normal a cidade ter o ar poluído
JÁ É
Preferir a bicicleta ao carro
JÁ VEM
Bike conceito que limpa o ar da cidade (bit.ly/bikepur)
ronaldo lemos
Ronaldo Lemos é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e do Creative Commons no Brasil. É professor de Propriedade Intelectual da Faculdade de Direito da UERJ e pesquisador do MIT Media Lab. Foi professor visitante da Universidade de Princeton. Mestre em direito por Harvard e doutor em direito pela USP, é autor de livros como "Tecnobrega: o Pará Reiventando o Negócio da Música" (Aeroplano) e "Futuros Possíveis" (Ed. Sulina). Escreve às segundas na versão impressa do "Tec".

Negativos centenários achados em cabana na Antártida detalham expedição ao Polo Sul

folha de são paulo

Negativos centenários achados em cabana na Antártida detalham expedição ao Polo Sul


RICARDO BONALUME NETO

DE SÃO PAULO

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A cabana de um explorador preservada na Antártida há mais de um século rendeu agora um tesouro inesperado: negativos de 22 fotografias da expedição fracassada de um colega no começo do século 20.
A cabana no Cabo Evans, Ilha Ross, foi estabelecida pelo britânico Robert Scott (1868-1912), o segundo homem a chegar ao polo Sul.
Seu colega e rival Ernest Shackleton (1874-1922) tentou uma ousada expedição entre 1914 e 1917 para cruzar o continente, e parte de sua tripulação usou a cabana.
O Antarctic Heritage Trust neozelandês mantém a cabana como um patrimônio cultural; mais de 10 mil objetos estão ali preservados. Em 2010, por exemplo, durante os trabalhos de conservação, foram achadas três caixas de uísque e duas de conhaque.
Os negativos de nitrato de celulose estavam grudados uns aos outros dentro de uma caixa de madeira.
Um dos fotógrafos da expedição de Shackleton, Herbert Ponting, criou um quarto escuro na cabana para revelar fotos, mas aparentemente não foi ele o autor das imagens agora encontradas e cuidadosamente restauradas na Nova Zelândia.
O outro fotógrafo da expedição, Frank Hurley, acompanhava Shackleton do outro lado do continente.
As fotos agora achadas foram tiradas pela equipe do explorador depois que um de seus navios, o Aurora, se perdeu temporariamente no mar. Os exploradores tiveram que se refugiar na cabana de Scott. Uma das melhores imagens mostra o cientista líder da expedição, Alexander Stevens, a bordo do navio.
Antarctic Heritage Trust/Efe
Alexander Stevens, cientista-chefe da missão, posa a bordo do navio Aurora
Alexander Stevens, cientista-chefe da missão, posa a bordo do navio Aurora
CONCORRÊNCIA
O drama de Scott é mais conhecido. Saindo desta mesma cabana em 1911, ele conseguiu chegar ao polo Sul em janeiro de 1912, apenas para descobrir que pouco mais de um mês antes o norueguês Roald Amundsen (1872-1928) tinha chegado ali antes.
Scott e mais quatro companheiros morreram na viagem de volta –de frio, fome e de exaustão.
Como o polo já havia sido alcançado, Shackleton decidiu embarcar no desafio que lhe restava –cruzar o continente gelado.
Ele tinha participado de uma expedição de Scott em 1901 e liderou duas expedições em 1907 e 1909. Nesta última, ele chegou a 180 km do polo, o mais perto até então.
Scott era um explorador dedicado, mas não preparava suas viagens com muita atenção ao detalhe. Amundsen venceu a corrida por fazer um planejamento perfeccionista das suas necessidades, incluindo bom número de cachorros para puxar seus trenós (e servirem de comida quando necessário).
Shackleton também planejou com cuidado o cruzamento do continente, que chamou de "Expedição Trans-Antártica Imperial", mas teve azar.
O FRACASSO
O explorador usou dois navios. O Endurance chegaria ao mar de Weddell e desembarcaria Shackleton e cinco colegas que cruzariam a Antártida na direção do mar de Ross, onde o outro navio, o Aurora, desembarcaria pessoal para criar bases de suprimentos que permitiram aos exploradores se reabastecerem e terminarem a travessia de quase 3.000 km.
O Endurance primeiro ficou preso no gelo; havia a esperança de que na primavera ele se soltasse, mas terminou afundando em novembro de 1915 devido à forte pressão do gelo sobre o casco. A equipe terminou encalhada na ilha Elefante, de onde alguns, incluindo Shackleton, partiram em um barco e chegaram ao arquipélago das Geórgias do Sul em maio de 1916. Os demais foram então resgatados da ilha.
O navio no mar de Ross também teve uma viagem atribulada. Não conseguiu se manter ancorado, e parte da tripulação acabou tendo que se refugir na cabana de Scott, onde deixaram os negativos agora encontrados.
Antarctic Heritage Trust/Efe
Fotografia tirada a partir de um convés do navio Aurora
Fotografia tirada a partir de um convés do navio Aurora
Foram resgatados meses depois, quando o clima permitiu a aproximação do navio, mas das dez pessoas que foram deixadas para trás, três morreram.
Ironicamente, eles tinham conseguido estabelecer os depósitos para Shackleton, achando que a expedição vinda do outro lado do continente precisaria deles, correndo o risco de eles próprios passarem fome.
Editoria de Arte/Folhapress
Os negativos precisaram de restauração cuidadosa. O especialista em conservação de fotos antigas, Mark Strange, teve de delicadamente separar cada uma das 22 imagens, além de limpá-las e preservar as camadas de nitrato de celulose com as imagens. Depois de escaneados, os negativos foram convertidos em imagens positivas.