quarta-feira, 5 de março de 2014

Nova geração de feminismo surge na rede - Ronaldo lemos

folha de são paulo
INTERNETS
RONALDO LEMOS @lemos_ronaldo
Nova geração de feminismo surge na rede
Nos últimos anos, surgiu um novo de tipo feminismo na internet. Ele é protagonizado por uma geração de garotas, a maioria entre 18 anos e 25 anos, que usa a rede para demolir estereótipos. Elas invocam forças que costumavam ser mal vistas no território dos "gender studies" (estudos de gênero): mercado, mídias e sensualidade.
Um exemplo é a canadense Petra Collins, que escolheu a mais conservadora e conformista plataforma para seu trabalho: o Instagram. Sua conta foi deletada após ela fazer uma "selfie" de biquíni, com os pelos púbicos à mostra (a foto é ultradiscreta: huff.to/instacen).
Analisando o caso, escreveu o texto "Por que o Instagram censurou o meu corpo". Diz: "Diferentemente das outras 5 milhões de fotos de biquíni no Instagram, a minha mostrava um estado natural. Já tinha sentido a pressão para controlar meu corpo, mas nunca tão literalmente."
Há também o feminismo ultrassexualizado da loira platinada Karley Sciortino. Por meio do blog Slutever.com, ela põe em xeque a ideia de "jornalismo feminino". Deu certo. Sciortino passou a escrever na "Vogue" nos EUA.
A onda inclui também artistas visuais, como Emilie Gervais e a fotógrafa Sandy Kim. Todas enxergam a rede como um território "ciborgue". Não no sentido "Exterminador do Futuro" do termo, mas no de lugar ideal para as convenções de gênero serem superadas. E bom carnaval ciborgue para todo o mundo.
READER
JÁ ERA
Binge drinking
JÁ É
Binge watching, séries de TV lançadas de uma vez
JÁ VEM
Binge reading, séries de livros lançadas de uma vez

    O 'coitadismo' - Francisco Daudt

    folha de são paulo
    O 'coitadismo'
    A culpa social tornou-se a principal alavanca de poder dos que falam em nome de todos os 'desprivilegiados'
    "Pai, ferida na perna leva tanto tempo assim para curar?", disse. "Não, o mendigo precisa reabri-la todos os dias, senão ela fecha. Ele precisa da ferida, já que vive dela."
    Seu aspecto repugnante o transformava em alguém digno de pena, merecedor de esmola. Era um coitadinho dos anos 50.
    O aleijado, a criança com bebê de colo, os mulambos (lumpen proletariat, um termo famoso do marxismo, significa "farrapo humano que produz prole") e os cadeirantes formam uma população de sinal de trânsito parente do mendigo da ferida que descobriu intuitivamente poder viver do sentimento de pena dos "bem de vida" que passam.
    A pena é entendida em psicanálise como repressão da raiva ("Eu não tenho raiva dela, eu tenho é pena"), uma repressão derivada da culpa de ter raiva daquela gente que nos chantageia de maneira sutil. Ter compaixão é diferente, significa sofrer junto.
    O rapaz que discursa no ônibus, "eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas estou aqui pedindo a colaboração de vocês", já é mais explícito em sua chantagem, pois alude a uma ameaça que nos produz raiva, mas "que feio sentir isso, afinal...", donde temos pena e soltamos uns trocados como alívio da culpa social.
    "Culpa social". Aí mora uma crença do senso comum que afirma: os males dos pobres são causados por você, que teve dinheiro para comprar esse jornal, porque você é rico, e quem tem propriedades é necessariamente ladrão (Proudhon teorizou o lema tão caro às esquerdas: "A propriedade privada é um roubo").
    Sendo assim, a culpa social tornou-se o principal ativo, a principal alavanca de poder de grupos que se tornaram seus "sacerdotes", os que falam em nome, não mais dos pedintes do sinal, mas de todos os "desprivilegiados" (em contraste conosco, não importa o quanto ralemos para viver com dignidade, que somos "privilegiados", "elites", "capitalistas", "conservadores de direita", enfim, o demônio encarnado).
    Você fica intrigado com a leniência que livra os "black blocs" da cadeia? Agora já sabe: eles estão punindo os "ladrões do povo", por isso seus atos são abençoados pelo novo senso comum.
    Foi se instalando a cultura do "coitadismo": demonstre que você é vítima de algo e tudo lhe será permitido --e também lhe será fonte de renda e/ou poder.
    Quando Madame diz que "a Venezuela não é a Ucrânia", ela faz a síntese do "coitadismo": o povo da Venezuela não tem direito de se rebelar contra a ditadura de Nicolás Maduro porque ele é o defensor máximo do "coitadismo", e o "socialismo bolivariano" é a aspiração máxima de quem usa o sentimento de culpa "social" para manter o poder. Democracia? Imprensa livre? Esses são valores burgueses que só servem às "zelite".
    Isso provoca, em quem ainda não aderiu ao "coitadismo", um estresse de raiva contida e um sentimento de injustiça impotente que resultam numa depressão ampla, chamada APATIA.
    Um pequeno suspiro de revolta em junho? "Black blocs" neles, e fim.
    A péssima educação pública prova que não há interesse em acabar com a miséria. Claro, os "coitadistas" precisam dela. Como o mendigo de sua ferida.

    Fantasia de presidente - Vinicius Torres Freire

    folha de são paulo
    Fantasia de presidente
    A esta altura, quem quer ser presidente tem de responder a sério certas perguntas, sem mentir
    DAQUI A QUATRO meses, começa a campanha para a eleição de presidente e outras. Daqui a sete meses, a gente vota no primeiro turno. Ainda não sabemos praticamente nada do que pensam os candidatos a presidente, seja porque eles não falem a sério sobre o assunto, seja talvez porque eles não pensem mesmo.
    Pode ser que ainda estejam "elaborando o programa". Pode ser. Mas, a esta altura, se a cidadã ou o cidadão quer ser presidente deve ser porque tem ao menos algumas ideias diferentes do que fazer do governo.
    Não vale conversinha, generalidades entre burras, malandras e ignorantes, como dizer que "defende o tripé macroeconômico", que "o Brasil parou", que vai "acabar com a velha política de raposas", qualquer frase com expressões tais como "herança", maldita ou bendita, "pessimismo", "preservar as conquistas sociais e avançar" ou, vomitivo, "choque de gestão".
    Isto posto, o óbvio, note-se que há perguntas a berrar nos desertos do debate político-econômico, questões para as quais quaisquer "ministério paralelo" ou partido organizados deveriam ter respostas prontas ou quase isso. Trata-se de problemas específicos grandes, mas que podem também dar uma ideia geral do modo de pensar do candidato.
    Por exemplo.
    O candidato vai reajustar os combustíveis em 2015? O tabelamento informal da gasolina leva à breca a maior empresa do país, a Petrobras, e cria tsunamis de problemas na economia toda.
    Vai repassar a conta da eletricidade cara para os consumidores? Ou o governo vai fazer mais dívida cara para bancar o subsídio?
    Por falar em eletricidade, qual a primeira mudança importante a ser feita, e logo, dado que tais mudanças demoram a fazer efeito e, caso o Brasil cresça rápido, tal como o candidato promete, pode faltar energia?
    O candidato vai parar de passar dinheiro para o BNDES?
    O candidato vai continuar a reajustar os benefícios sociais e da Previdência acima da inflação? Se reajustar, de onde vai tirar dinheiro para investir mais, como promete, e abater a dívida pública? Dizer que vai fazer "choque de gestão" é mentira ou ignorância grossa do governo do Brasil.
    Os candidatos têm dito que vão "refundar a Federação" (basicamente, dar mais dinheiro federal para Estados e municípios). Como fazer tal coisa sem aumentar impostos, o que quebraria o governo federal, elevaria as taxas de juros e deixaria o país em desordem econômica?
    Educação básica é assunto regional, mas: como o presidente pode liderar Estados e cidades de modo a melhorar a qualidade da escola? Não vale vir com generalidades (mais dinheiro, "qualificação dos professores" etc.).
    O candidato pensa em reforma das polícias? Como transformá-las em polícias profissionais para um país democrático?
    O candidato privatizaria os portos (isto é, acabaria com as estatais da boquinha e da burocracia)?
    Como fazer, desde o primeiro dia de governo, para acabar com as burocracias tributárias, alfandegárias e outras que infernizam a vida das empresas?
    Pergunte ao candidato. A esta altura, ele deveria saber o que responder. Se não sabe, é despreparado; se não diz, quer nos enrolar. Mentir.
    vinit@uol.com.br

      Calor e frio a jato - Rafael Garcia

      folha de são paulo
      Calor e frio a jato
      Alterações nas correntes de jatos, trilhas de vento rápido que giram o mundo, explicam porque o Sul registra ondas de calor recorde enquanto cidades do Norte estão sob neve
      RAFAEL GARCIADE SÃO PAULO
      A onda de frio que os Estados Unidos sofreram em janeiro pode parecer estranha num cenário de aquecimento global, mas estudos mostram que a mudança climática está até favorecendo a ocorrência desse tipo de evento. O fenômeno tem ligação com a onda de calor que assolou São Paulo, e por trás dele estão alterações nas correntes de jato, ventos ultrarrápidos de grande altitude.
      As correntes de jato (ou simplesmente jatos) são velhas conhecidas de pilotos de avião que "pegam carona" nesses ventos para voar mais rápido. Mas elas são também um componente essencial para entender o clima da Terra.
      A circulação de ar na atmosfera se divide entre três grandes massas de ar circulante (veja acima), e as correntes de jato são uma espécie de marcação de fronteira.
      Isso significa que o contorno dos jatos estabelece uma espécie de limite até onde as frentes frias que saem dos polos em direção aos trópicos podem chegar. Os jatos também exercem influência sobre as ondas de calor, pois marcam o limite até onde o ar quente equatorial pode trafegar na direção dos polos.
      A trajetória que as correntes de jato percorrem ao redor do planeta, porém, tem se alterado de acordo com o previsto para ocorrer em função do aquecimento global.
      Um trabalho publicado em dezembro pela climatologista Jennifer Francis, da Universidade Rutgers, mostra que, nos EUA, as atuais ondas de calor em áreas onde alta temperatura não é muito comum podem ser explicadas por problemas nos jatos, que têm ficado mais fracos.
      DISPARIDADE POLAR
      Os jatos do hemisfério norte têm ficado mais ondulados (veja à esq.), e isso permite que algumas ondas de calor tropical se aproximem mais do Ártico. Ao mesmo tempo alguns braços da grande massa de ar frio do polo--o vórtex polar-- chegam mais perto de áreas tropicais.
      No hemisfério sul, o efeito observado, porém, é oposto. Como a diferença de temperatura entre polo e trópico cresce, em vez de enfraquecer, correntes de jato se fortalecem, ficam menos onduladas e migram para o sul.
      "Isso foi o que ocorreu entre janeiro e fevereiro agora na América do Sul", explica o climatologista Francisco Aquino, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Fez muito calor e não chovia porque a corrente de jato subtropical estava quase o tempo todo sobre o Uruguai." Frentes frias e umidade que vinham do sul, então, não avançaram muito ao norte.
      Segundo o cientista, a ligação entre a mudança climática e o aumento na frequência desse fenômemo no Sul ainda não é conclusiva, mas cada vez mais estudos sugerem que essa relação faz sentido.

      Elio Gaspari

      jornal o globo 
      Um guia para 1964: doutor Alceu
      As cartas do pensador católico são um roteiro para a volta à noite da ditadura que começou há 50 anos
      Começam nesta semana as reminiscências em torno da deposição do presidente João Goulart, quando o país entrou numa ditadura em nome da democracia. Ela começou no Dia da Mentira e só acabou 21 anos depois. Estranha efeméride, passaram-se 50 anos e ainda divide opiniões. Em 1949 ninguém discutia o golpe militar que destronou o imperador. Em 1980 ninguém discutia a deposição do presidente Washington Luís. Essa peculiaridade de 1964 fala mais do presente do que do passado.
      Há um tesouro à disposição de quem queira conhecer o Brasil daqueles dias. É o livro "Cartas do pai --De Alceu Amoroso Lima para sua filha madre Maria Teresa". Durante 18 anos o pensador católico escreveu milhares de cartas à filha, monja enclausurada num mosteiro beneditino. Em 2003, o Instituto Moreira Salles publicou um magnífico volume de 672 páginas com uma seleta das cartas de 1958 a 1968. É difícil de achar e clama aos céus por uma versão eletrônica.
      As cartas do "doutor Alceu" são um painel do amor e fé. Entre 1963 e abril de 1964 ele mandou 118 cartas à filha, expondo a alma de um liberal perplexo diante da radicalização política. Alguns exemplos:
      11 de julho de 1963: "Este, o ambiente sombrio em que estamos, com o [Carlos] Lacerda [governador do Estado da Guanabara] provocando agitação e insuflando o golpismo legal (deposição do Jango pelo Congresso) e com isso estimulando o golpismo extralegal (militares e esquerda negativa).
      18 de setembro: "Se tudo não acabar em ditadura militar, só mesmo porque Deus não quis."
      26 de setembro: "A amarga' máxima é que a tensão política chega hoje ao auge, no choque entre militares e líderes sindicais, entre os quais o Jango parece que optou (definiu-se, como vivem querendo que o faça, tanto os esquerdistas como os direitistas) e o resultado é que podemos, amanhã ou hoje mesmo, ter um golpe à vista e no duro: ou dos generais ou dos sargentos."
      27 de março: "De repente, bumba! Marinheiros (uns 3.000, dizem) reunidos em um sindicato de metalúrgicos, demissão do ministro da Marinha e do comandante dos Fuzileiros Navais (que dizem ser os homens do Brizola)."
      31 de março: Estou sentindo o cheiro de... pólvora e a semelhança com 1937, quando o Getúlio, mestre do Jango, deu o golpe do Estado Novo.(...) O mais grave é que, no momento, introduziu uma cunha entre oficialidade e tropa (soldados ou marinheiros) e isso pode realmente redundar numa revolução de tipo comunista. (...) O momento é de perfeita perplexidade e de vigília de golpe. Mas de onde virá o golpe é que são elas.
      1º de abril: "Desgraçadamente rompeu-se de novo a continuidade civil do nosso governo e a solução foi transferida para a área militar. (...) O San Tiago [San Tiago Dantas, ex-ministro das Relações Exteriores] que está muito bem informado, e esteve no Palácio das Laranjeiras com o Jango até de madrugada, me diz que as forças que estão com o governo legal parece que são fortes. (...) Mas o próprio San Tiago confessa que há muitas probabilidades de triunfo do golpe. E será então um triunfo direitista que atrasará por vinte anos o progresso do Brasil'."
      Alceu Amoroso Lima morreu em 1983, sem ter visto o fim de uma ditadura que combateu desde seus primeiros dias.

      Patricia Campos Mello

      folha de são paulo
      Um Hitler indiano?
      A Índia está prestes a "demitir" a dinastia dos Gandhi-Nehru, que domina o país há mais de 60 anos, e coroar o polêmico Narendra Modi como próximo primeiro-ministro, nas eleições que começam em abril.
      Segundo pesquisa do Pew Research Center da semana passada, 73% dos indianos querem que o partido de Modi, o Bharatiya Janata (BJP), legenda nacionalista hindu de centro-direita, lidere o próximo governo. Só 19% apoiam o atual governo de centro-esquerda, do partido do Congresso, que tem Rahul Gandhi --neto e filho de primeiros-ministros-- como relutante candidato.
      Para o empresariado indiano, Modi, 63, é o brilhante CEO que vai resgatar a Índia de sua pasmaceira econômica. No ano passado, o PIB indiano avançou só 4,4%. A Índia precisa crescer pelo menos 8% para absorver o 1 milhão de trabalhadores que entram no mercado de trabalho todo mês.
      Modi consolidou sua imagem de administrador eficiente como ministro-chefe (governador) de Gujarat, que cresce bem mais que o resto da Índia. Ele reduziu a burocracia e oferece mundos e fundos tributários para atrair investimentos.
      Nas palavras de Anil Ambani, dono do conglomerado Reliance Group, Modi é "um líder entre os líderes, um rei entre os reis". Mas boa parte da população reserva epítetos bem menos lisonjeiros para Modi: "Hitler indiano", "fascista" e "genocida".
      Modi era ministro-chefe de Gujarat durante o massacre de 2002, que levou à morte de mais de 1000 pessoas, na maioria muçulmanos. No dia 27 de fevereiro de 2002, um trem cheio de peregrinos hindus foi incendiado e 58 pessoas morreram. Muçulmanos foram responsabilizados. Selvageria inimaginável se seguiu. Cerca de 150 mil muçulmanos fugiram. Mulheres grávidas tinham fetos arrancados de suas barrigas e meninas sofriam estupro coletivo, para depois serem queimadas vivas.
      Modi, que veio do grupo extremista hindu Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), foi acusado de ter incitado hindus à violência, enquanto a polícia assistia impassível ao assassinato de muçulmanos. No ano passado, uma equipe de investigação inocentou Modi, mas muitos a questionaram.
      Recentemente, indagado se lamentava o massacre de 2002, Modi deu uma resposta que enfureceu os muçulmanos: "Se um cachorrinho for atropelado, é claro que vamos ficar tristes, mesmo se for outra pessoa que estiver dirigindo".
      Os indianos estão insatisfeitos. Não querem perpetuar no poder o partido do Congresso, sinônimo de corrupção e nepotismo. Mas a Índia tem 138 milhões de muçulmanos, segunda maior população muçulmana do mundo.
      Um governo de Modi poderia exacerbar as tensões sectárias no país e transformar a Índia em um barril de pólvora.

        Questão de isonomia - Helio Schwartsman

        HÉLIO SCHWARTSMAN
        Questão de isonomia
        SÃO PAULO - Minha última coluna sobre o [Mais Médicos] levou alguns leitores a perguntar-me o que acho da isonomia salarial. Como sempre, a resposta depende de como definimos os termos da pergunta.
        Se entendemos por isonomia apenas o tratamento jurídico dispensado ao trabalhador, sou totalmente a favor. Mas, se tentarmos, numa interpretação mais forte e mais ao gosto dos sindicatos, aplicar o conceito no nível dos resultados, isto é, ao salário final de cada empregado, sou contra.
        Colocando de outra forma, devemos nos opor a toda e qualquer discriminação salarial que não tenha por base o desempenho individual do trabalhador e defendê-la quando tem essa origem. É injusto pagar menos uma mulher ou um negro apenas pelo fato de serem mulher e negro, mas, se a diferença no vencimento se deve ao fato de um profissional ter produzido mais que o outro, ela bem-vinda, por mais difícil que seja, em muitas atividades, definir e mensurar o que é "produzir mais".
        Um bom exemplo é o dos jogadores de futebol. Em princípio, todos eles exercem a mesma função, que é jogar futebol e, pela regra da isonomia forte, deveriam receber o mesmo, mas, se você quiser acabar com os campeonatos e dificultar o surgimento de craques, é só baixar uma lei que iguale o salário dos Neymares aos de qualquer cabeça de bagre.
        No setor privado, a coisa até funciona, pois se permite ao empresário avaliar seus funcionários como quiser e fixar seus vencimentos dentro de parâmetros elásticos. A complicação surge no serviço público, onde a isonomia forte é levada a ferro e fogo. Reconheça-se que é muito difícil criar um sistema de avaliação impessoal, como se exige do poder público. Mas fazê-lo é imperativo. A razão principal do fracasso dos países socialistas é que, numa caricatura da isonomia, desenvolveram um regime em que valia mais a pena esconder-se na ineficiência do que buscar a inovação e a excelência.
        helio@uol.com.br

          Cinzas ucranianas - Renato Andrade

          folha de são paulo
          RENATO ANDRADE
          Cinzas ucranianas
          BRASÍLIA - A crise na Ucrânia pode gerar um efeito deletério para o processo lento e gradual de recuperação da economia global.
          Por mais remotas que sejam as chances de um conflito armado na ex-república soviética --neste momento--, os mercados financeiros tendem a agir de forma destemperada em situações onde a incerteza é a única coisa à vista.
          Ainda que o presidente russo Vladimir Putin tenha colocado o uso de força militar como último recurso, é difícil vislumbrar a dissipação da crise ucraniana no curto prazo.
          É exatamente esse tipo de (má) notícia que a economia do planeta não precisava receber agora.
          Sem saber se estamos diante da iminência de uma nova guerra ou do início de um conturbado e longo ciclo de ameaças de sanções e retaliações entre potências econômicas, os mercados acabam ligando o modo "montanha-russa" de operação.
          Na segunda, as bolsas de valores tombaram pelo mundo, moedas como o rublo russo se desvalorizaram e o petróleo ficou mais caro. Tudo por conta da troca de farpas entre Washington e Moscou. Ontem, depois da fala de Putin, parte do prejuízo da véspera foi revertido.
          E o que uma confusão na Ucrânia tem a ver com a economia brasileira? Infelizmente, muita coisa.
          Uma onda de enfraquecimento da economia europeia, por exemplo, gera efeitos sobre nossa balança comercial. A Europa absorveu 20% das exportações nacionais no ano passado.
          O prolongamento da crise também pode fazer com que investidores "nervosinhos" --como diz o ministro Guido Mantega-- troquem parte de suas aplicações em economias emergentes e mais arriscadas, por locais mais "seguros", como os EUA.
          Por conta do Carnaval, a bolsa brasileira, que acumula quatro meses de perdas, não participou do vaivém financeiro do início da semana.
          A Quarta-Feira de Cinzas pode ser bem animada por aqui.

          Ruy Castro

          folha de são paulo
          Sem pipoca em "Marienbad"
          RIO DE JANEIRO - Alain Resnais, que morreu sábado em Paris, aos 91 anos, dizia-se um "cineasta do imaginário". A definição é importante quando se considera o filme pelo qual, nos anos 60, ele se tornou o centro das discussões sobre cinema: "O Ano Passado em Marienbad" (1961). Nunca um filme dividira tanto as opiniões: ou se o achava uma radical reinvenção da linguagem, ou se ia embora aos 15 minutos de projeção, dando bananas para a tela.
          Àqueles para quem "Marienbad" não significava nada, Resnais aconselhava a que cada um o interpretasse a seu próprio modo, e este seria o correto. E acrescentava que, se dependesse dele, o filme seria exibido em sessões contínuas, sem créditos, com o espectador entrando e saindo da sala quando quisesse. E por que não, se nunca se sabe o que é presente ou passado, realidade ou imaginação? O imaginário está cheio de significados, mas não no sentido da lógica do relógio.
          No filme, ao som de um hipnótico órgão, a câmera circula pelos labirintos de um castelo barroco transformado em hotel, seguindo um homem (chamado "X") que tenta convencer uma mulher ("A") de que eles viveram um romance em Marienbad no ano anterior. Tudo isto diante de "M", o marido dela, que apenas observa. Nada "acontece". Os homens são quase imóveis, as vozes em off falam um texto em círculos, as árvores em torno deles não projetam sombras.
          Suponha agora que o romance tenha acontecido, mas, por causa dele, "M" tenha matado "A". Atormentado de culpa, "X" volta ao castelo um ano depois e conta incessantemente a história para si mesmo, tentando alterá-la. Ou imagina estar fazendo isto. Talvez não haja ninguém ali --nem ele. A realidade é o filme.
          Bem, esta é só uma das muitas interpretações. O fato é que ninguém se atrevia a comer pipoca ao assistir a "O Ano Passado em Marienbad".

          Putin diz que tem direito de usar a força na Ucrânia - Leandro Colon

          folha de são paulo
          Intervenção será 'último recurso', diz Putin
          Presidente russo nega ter enviado tropas para a região da Crimeia, na Ucrânia, mas diz que a 'possibilidade existe'
          Obama afirma que Putin 'não engana' ninguém e que os fatos indicam violação de leis internacionais
          LEANDRO COLONENVIADO ESPECIAL À CRIMEIA (UCRÂNIA)
          O presidente da Rússia, Vladimir Putin, afirmou ontem não ver razão para intervir militarmente na Ucrânia no momento, mas deixou essa possibilidade aberta ao dizer que usará "todos os meios à disposição" para garantir a "proteção" de cidadãos russos que vivem na península ucraniana da Crimeia.
          "No que se refere ao envio de tropas, isso não é necessário no momento, mas a possibilidade existe", afirmou Putin, ressaltando que isso seria um "último recurso" contra o novo governo ucraniano, a quem acusa de depor ilegalmente o ex-presidente Viktor Yanukovich, aliado próximo de Moscou.
          Putin ainda disse não ter a intenção de anexar a Crimeia e que, caso se decida por uma intervenção militar, seria uma "missão humanitária".
          Ele acrescentou que os soldados não identificados que circulam pela região desde a semana passada não são tropas russas, mas possíveis "forças de autodefesa" pró-Rússia. E acusou o Ocidente de apoiar um golpe de Estado.
          "Às vezes tenho a impressão de que, em algum lugar na América, uma equipe está conduzindo experimentos, como em ratos, sem entender as consequências de seus atos", afirmou.
          As declarações, as primeiras de Putin desde o início da escalada militar na região, tiveram reação rápida dos EUA.
          Em visita a Kiev, o secretário de Estado americano, John Kerry, disse que o russo está "trabalhando duro para criar pretextos para ampliar sua invasão na Ucrânia" -afinal, diz, a população da Crimeia, de origem majoritariamente russa, não corre risco sob o novo governo ucraniano.
          O presidente Barack Obama afirmou que "Putin pode falar o que quiser", mas que os fatos indicam violação de leis internacionais.
          O americano ainda disse que "Putin não está enganando ninguém" e que a conduta russa "não se baseia numa preocupação com cidadãos russos ou falantes de russos", mas se trata de uma tentativa de "exercer influência à força num país vizinho".
          Ontem, após a fala de Putin, a Folha encontrou soldados pró-Rússia nas ruas de Simferopol, na Crimeia.
          Dois caminhões, com ao menos seis homens encapuzados, controlavam uma rua movimentada. Apesar disso, a situação estava tranquila.
          Já em Belbek, perto de Sebastopol, o cenário era mais tenso. Soldados russos que haviam tomado o controle de uma base aérea afastaram com tiros para o alto cerca de 300 homens das forças ucranianas que marchavam até o local em protesto.
          Um canal de televisão exibiu as imagens, as primeiras de disparos desde o início da crise. Após os tiros, líderes dos dois lados conversaram, e o episódio terminou sem feridos. "Para satisfazer os políticos, estamos agora um povo contra o outro. Isso não é certo", disse o ucraniano.
          Em meio à tensão, a Rússia também fez um teste de míssil balístico de longo alcance. Os EUA, porém, disseram que o teste havia sido comunicado antes e não tinha relação com a tensão na região.
          Putin ainda ordenou que soldados que participavam de exercícios militares perto da fronteira com a Ucrânia retornassem para suas bases.
          Ele também ironizou as possíveis sanções contra a Rússia. Países do G7 ameaçam não participar dos preparativos da reunião do G8 em Sochi. "A Rússia está se preparando para receber seus colegas, mas, se não quiserem vir, que não venham", disse.

          Joan Baez volta 33 anos após show vetado

          folha de são paulo
          MÚSICA
          Joan Baez volta 33 anos após show vetado
          Proibida pela ditadura de tocar no país, cantora e compositora americana agora passa por Rio, SP e Porto Alegre
          Artista que ficou famosa pelas canções de protesto diz que gosta de ouvir Mumford & Sons e os Gipsy Kings
          FABIAN CHACURCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA
          Mais de 30 anos depois daquele que seria seu primeiro show no Brasil, a norte-americana Joan Baez, uma das mais influentes artistas da música folk, enfim faz apresentações completas no país, neste mês, passando por São Paulo, Porto Alegre e Rio.
          Em 1981, durante a ditadura, a cantora e compositora subiu ao palco em São Paulo para avisar que não poderia fazer o show, proibido minutos antes pela Polícia Federal. Acabou cantando duas músicas da janela do teatro, para o público na rua, à capela. O show no Rio também foi vetado.
          "No fim, foi feito um documentário ["There But for Fortune: Joan Baez in Latin America", exibido em 1982 na TV americana], que acabou ficando mais interessante do que teriam sido os shows", diz a cantora à Folha. Numa das cenas, ela aparece tomando cerveja em São Paulo com o então líder sindical Lula.
          Agora, a artista que se tornou a principal voz das canções de protesto americanas nos anos 1960 promete standards "não necessariamente" do seu repertório, músicas já conhecidas em sua interpretação e algumas de seus álbuns mais recentes. Será acompanhada por dois músicos, que se revezarão em violões, teclados e violinos.
          Sem interesse por redes sociais, Baez diz que é sobre o palco que procura estreitar os laços com os admiradores.
          "Nos shows, tento quebrar as barreiras entre público e eu, para que fiquemos mais próximos", diz a artista, conhecida por interpretar canções do ex-namorado Bob Dylan --foi ela quem o apresentou ao grande público, em 1962-- e outras próprias, como "Diamond and Rust".
          Aos 73, a cantora, sempre envolvida em questões de direitos humanos, continua ativa, com agenda cheia, participando de trabalhos alheios e gravando discos como os elogiados "Dark Chords On a Big Guitar" (2003) e "Day After Tomorrow" (2008).
          "Faço meditação, me alimento bem, não uso drogas, sou disciplinada e procuro me cuidar. As cordas vocais são um músculo, e procuro mantê-las sempre muito bem treinadas", diz, sobre a disposição para enfrentar os palcos por mais de meio século.
          INFLUÊNCIA
          Baez diz ter sentido profundamente a morte do cantor, compositor e ativista político Pete Seeger, em janeiro, aos 94 anos.
          "We Shall Overcome', que ele ajudou a popularizar, é uma música conhecida no mundo todo. Admiro muito sua obra, que me influenciou como artista", comenta.
          Das novas gerações, afirma ser fã do grupo britânico Mumford & Sons e diz ouvir música "conforme o meu estado de espírito".
          "Vario sempre. O único grupo que faço questão de ouvir todos os dias são os Gipsy Kings, que adoro".
          Quanto aos planos para o futuro, tem muitas apresentações em vista, mas, há cinco anos sem lançar nenhum disco, diz ainda não pensar em produzir um novo álbum.
          "Só gravo algo novo quando vejo que é a hora certa, e com os produtores e compositores certos. Tenho sorte, pois sempre soube escolher bem o meu repertório".

          Barbosa não tem mais o poder de se impor no grito - Marcelo Coelho

          folha de são paulo
          As tentações de Joaquim Barbosa
          Presidente do STF está na situação de quem tinha o doce nas mãos e vê que tudo não passara de um sonho
          COMEÇO COM uma banalidade. É natural que uma pessoa pobre sonhe em ficar rica. Mais forte, entretanto, é o sonho de enriquecer de novo quando se perde a fortuna possuída.
          É mais fácil se contentar com o pouco que sempre se teve do que com o muito que se tinha, e que já não se tem mais.
          Acredito que a regra funcione não só em matéria de dinheiro, mas em questões de poder também. Digo isso pensando no caso do ministro Joaquim Barbosa.
          O presidente do STF deixou claro, tempos atrás, que não tinha intenção de concorrer a nenhum cargo eletivo; pelo menos, a disputa pela sucessão de Dilma Rousseff não estava no seu horizonte.
          Uma coisa, entretanto, é não ter esse tipo de ambições quando tudo lhe parecia sorrir no caso do mensalão. A vitória sobre as teses da defesa estava garantida; a maioria dos réus, a começar de José Dirceu, tinha sido condenada.
          Outra coisa é sentir, como Joaquim Barbosa declarou na semana passada, que todo o seu trabalho estava sendo "posto por terra". Com a presença de Luís Roberto Barroso e Teori Zavascki, não foi apenas na questão da quadrilha que o jogo parece ter virado no STF.
          Corretamente ou não, Barbosa pode imaginar que, dada a nova composição dos membros do tribunal, dificilmente os responsáveis pelos próximos escândalos políticos serão punidos com a mesma severidade.
          Tendo a acreditar, como dizem alguns inconformados com as decisões da última semana, que no STF de hoje nem mesmo a denúncia do Ministério Público contra os mensaleiros seria aceita.
          Derrotado, Joaquim Barbosa está na situação de quem já teve o doce nas mãos e vê, de repente, que tudo não passara de um sonho. Não tem o poder de construir uma nova maioria no STF, e muito menos (embora pareça acreditar nisso) a capacidade de impor no grito suas próprias opiniões.
          Ponho-me no lugar de Joaquim Barbosa. Como não acalentar a ideia de, um belo dia, nomear sozinho os futuros membros do STF? Vingar-se de Barroso, Teori e Lewandowski a partir de um lugar com muito maior poder de fogo?
          A conjuntura eleitoral parece favorável a esse tipo de pretensão. Todo o clamor das manifestações de junho, contraditório como era, desapareceu sem ter sido atendido.
          Eduardo Campos e Aécio Neves podem ser tão oposicionistas quanto desejem, mas não expressam aquele tipo de impaciência, de revolta, presente nas ruas. Mesmo porque, qualquer o partido a que se pertença, sempre há mensalões parecidos no fundo de alguma gaveta.
          Isso é um movimento de direita ou de esquerda? Perguntava-se isso a propósito das manifestações. Havia as duas coisas. Também as duas coisas estão presentes, provavelmente, no ímpeto de Barbosa.
          Violento contra o PT, ele não é menos antipático com relação aos erros ou hábitos da "mídia burguesa". Quer figurões petistas na cadeia, não porque sejam ou tenham sido de esquerda, mas porque se recusa a aceitar que na cadeia só fiquem os pobres, os pardos, os negros.
          Está desvinculado dos partidos. Parece disposto a condenar tucanos e petistas com a mesma fúria dos muitos manifestantes que rejeitavam Feliciano, Dirceu, Alckmin e Haddad num único, amplo e vago movimento.
          Falta-lhe tempo na televisão (mas como ele teve tempo ao longo deste julgamento!); falta-lhe um partido de tamanho conveniente (mas é por ter achado um que Marina Silva esvaziou-se de seu potencial expressivo); falta-lhe capacidade de negociação política (mas é disso que tanta gente está cansada).
          André Singer apontou, em sua coluna de sábado passado, o potencial de Joaquim Barbosa como candidato capaz de levar a sucessão de Dilma Rousseff ao segundo turno. É fato que as pesquisas, mesmo quando incluem o nome do ministro, garantem boa vantagem para a atual presidente, especialmente nas menores faixas de renda.
          Mas é possível repetir-se aquele conhecido fenômeno que abala a política brasileira, a cada duas ou três décadas: primeiro Jânio Quadros, depois Collor de Mello, representaram a impaciência com os partidos e com a corrupção. O destino administrativo, político e pessoal desses personagens não foi, como se sabe, coerente com seu sucesso eleitoral.
          Inflexível, autoritário, popular, emocional, Barbosa não é um demagogo nem um charlatão; suas diferenças com os dois antecessores são inegáveis. Não é impossível, entretanto, que a função --ou o drama-- que ambos protagonizaram venha a repetir-se com seu nome.