sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Droga antidiabetes trata Alzheimer em roedores

folha de são paulo

Droga antidiabetes trata Alzheimer em roedores


Ouvir o texto
REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Pesquisadores brasileiros deram um passo importante para mostrar que o mal de Alzheimer é uma espécie de "diabetes do cérebro" e poderia, inclusive, ser tratado com remédios para diabéticos.
A conclusão está na pesquisa que é a capa da revista científica "Cell Metabolism", cujo primeiro autor é Mychael Lourenço, do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
A equipe da universidade, liderada por Fernanda De Felice e Sérgio Teixeira Ferreira, já tem uma série de trabalhos mostrando as conexões entre alzheimer e diabetes.
Uma das pistas a esse respeito é o fato de que o hormônio insulina, mais conhecido por seu papel no controle dos níveis de açúcar no sangue, também atua no cérebro, ajudando a promover as conexões entre os neurônios e a própria sobrevivência deles.
A hipótese dos pesquisadores da UFRJ é que alterações na atuação da insulina no cérebro poderiam abrir caminho para as maçarocas de proteína beta-amiloide que destroem os neurônios no mal de Alzheimer.
No novo estudo, a equipe mostrou que essas maçarocas de beta-amiloide ativam algumas das mesmas moléculas que levam o organismo dos diabéticos a não responder mais à insulina. São moléculas ligadas a processos inflamatórios, as quais parecem estar por trás da perda de conexões entre neurônios.
A seguir, em camundongos, os cientistas viram o que acontecia se drogas usadas para diabetes, como a liraglutida, fossem dadas aos bichos. Aparentemente, o remédio protegeu as conexões cerebrais dos roedores e até as restaurou.
"Também conseguimos demonstrar esse efeito protetor em macacos", diz De Felice.
O próximo passo é testar a ideia em humanos, de preferência com drogas que atuem apenas no cérebro, para evitar efeitos colaterais.
"Dois grupos de colaboradores nossos nos EUA e no Reino Unido já estão fazendo esse teste, nos EUA com insulina inalada e no Reino Unido com liraglutida, mas vamos precisar de alguns anos para resultados mais claros."
De Felice ressalta que pessoas com Alzheimer e sem diabetes não devem usar esse tratamento por enquanto.

Premiado em Cannes, 'Azul É a Cor Mais Quente' estreia com romance entre garotas

folha de são paulo

Premiado em Cannes, 'Azul É a Cor Mais Quente' estreia com romance entre garotas


Ouvir o texto
FERNANDO MASINI
DE SÃO PAULO

Adèle beija Emma. A câmera quase encosta nas duas, que aparecem nuas em seguida. Elas trocam carícias e soltam gritos abafados, misturados aos estalos das bocas.
Emma faz sexo oral em Adèle, que agarra os cabelos azuis de Emma. A câmera passeia entre as duas, próxima, buscando expressões.

O ritmo fica mais acelerado, os movimentos, mais bruscos, e os gemidos, mais altos. Não há música, o que intensifica o realismo.
Divulgação
As atrizes Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux em cena do filme 'Azul É a Cor Mais Quente', de Abdellatif Kechiche
As atrizes Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux em cena do filme 'Azul É a Cor Mais Quente', de Abdellatif Kechiche
Os quase sete minutos da cena de sexo do longa francês "Azul É a Cor Mais Quente", que estreia hoje, viraram alvo de críticas de feministas e lésbicas.
Segundo esses grupos, houve exploração do corpo das atrizes como objetos sexuais e apelo pornográfico, além de a cena não traduzir a realidade de uma relação entre mulheres.
A crítica do "New York Times" Manohla Dargis se disse desapontada porque o diretor Abdellatif Kechiche "ignorou questões que envolvem a representação do corpo feminino no cinema".
Em entrevista à Folha, Kechiche rebateu as críticas: "Quem me julgou não aceita o fato de um diretor retratar o amor entre duas mulheres".
Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, o filme exala sensualidade até em cenas casuais, como quando Adèle se lambuza de macarrão e o diretor gruda a câmera nos lábios dela.
A atriz de origem grega Adèle Exarchopoulos, 20, empresta o nome à protagonista, inspirada nos quadrinhos de Julie Maroh. Ela interpreta uma estudante de literatura em crise, que recusa o interesse de um colega do colégio ao cruzar olhares com Emma (Léa Seydoux), a garota de cabelos azuis.
A aproximação entre as duas se dá num bar frequentado por lésbicas. Depois, um encontro no parque e o primeiro beijo. O interesse curioso de Adèle se torna uma paixão avassaladora.
O mundo mais prosaico dela, no entanto, destoa do ambiente intelectual de Emma.
Na tela, a pele das atrizes, que não usaram maquiagem nas filmagens, parece vibrar.
"Percebi que o diretor queria que eu mexesse no cabelo, brincasse com a boca", diz Adèle, esclarecendo que havia uma orientação nesse sentido, mas que ela também ajudou a modelar o jeito sensual da personagem.
Kechiche afirma que se trata de um ritmo natural baseado na sua percepção. "Busquei os melhores ângulos a fim de retratar as expressões que não podem ser transmitidas pelas palavras", diz.
Após a premiação em Cannes, a atriz Léa Seydoux acusou o diretor de truculência e assédio moral.
2- Crítica: Com imagens que encantam, 'Azul é a Cor Mais Quente' é maior destaque do ano 
3- Diretor de 'Azul é a Cor Mais Quente' atribui crítica a questões de classe 
4- Obra adaptada por filme 'Azul é a Cor Mais Quente' discute mortalidade e perda 
CRÍTICA DRAMA
Com imagens que encantam, filme é maior destaque do ano
INÁCIO ARAUJOCRÍTICO DA FOLHAO que é um homem? Um ser que procura a si mesmo. Essa é a ideia mais evidente contida nas imagens e nas várias referências literárias de "Azul É a Cor Mais Quente", de Marivaux a Sófocles, de Rimbaud a Alain Bousquet.
Comecemos pela literatura, com um fragmento do poema de Bousquet que Adèle a horas tantas ensina a seus alunos de pré-primário: "Para o que serve o pescoço da girafa? Para alcançar as estrelas". Ou, podemos pensar: para o que serve a sexualidade de Adèle? Para o prazer.
Mas o que é o prazer? Como alcançá-lo? Eis um drama pelo qual todo adolescente passa: o momento da descoberta do sexo, quando não há mais amigos, pais ou guias que nos amparem. Estamos sozinhos.
De certa forma é o momento de saber quem somos. É o que diz a professora que analisa a "Antígona" de Sófocles: neste momento, o de abandonar a infância, Antígona descobre-se diante da tragédia. Pois o trágico nada mais é do que isso: o inelutável.
Eis o trágico da bela adolescente: Adèle descobre-se mais atraída por garotas do que por rapazes. Quando transa com um é como se algo lhe faltasse --ela diz. Quando cruza na rua com Emma (Léa Seydoux), a menina dos cabelos azuis, a atração é imediata.
Eis o que Abdellatif Kechiche nos traz neste filme: a condição trágica. A impossibilidade, para Adèle (Adèle Exarchopoulos), de escapar à sua sexualidade. Ou seja, à sua homossexualidade.
Tudo isso, no entanto, poderia resultar num filme gay desinteressante como existem às pencas. Kechiche não é um doutrinador, um defensor de causas. É um cineasta, alguém que mostra. O que há de especial em Adèle, por um lado, é a força, a clareza com que caminha em busca de si mesma. E por outro lado, seu sorriso.
Pois este é um filme, sobretudo, de primeiros planos, de rostos. Do sorriso tão especial, tão aberto de Adèle. E que pode ser comparado, talvez, ao sorriso conquistador de Emma. Como descrevê-los? Não há muito a fazer: eis a riqueza do filme, de sua opção por uma relação estrita com a imagem, com o real.
Ele pode nos levar a uma bela cena de amor entre as duas moças, é verdade (talvez seja o principal ponto de venda do filme). Mas é ao retomar a ideia proclamada por Eric Rohmer de que o cinema foi a arte clássica do século 20, que o filme assume plenamente sua originalidade.
A relação do cinema com a realidade, desde os anos 80 do século passado, tornou-se progressivamente mais tênue. Parece que cada vez menos os cineastas conseguem captar o óbvio: o corpo humano, seus sorrisos, sua batalha para descobrir sua própria medida, sua estatura.
O que há de fascinante neste Azul-Kechiche é a veemência com que o autor, mais uma vez, afirma sua modéstia diante de suas personagens, como lhes permite, e ao mundo que habitam, se manifestarem na tela e irradiarem no espírito dos espectadores.
"Azul..." é o filme que mais se destaca neste ano tão fraco, de 2013. Mesmo que fosse um ano forte, seria, ainda assim, um filme especial: desses cujas imagens, aparentemente tão simples, chegam a nossos olhos, encantam, não se deixam esquecer.
(P.S.: Pessoalmente, penso na morena da escola de Adèle, com quem ela troca um beijo. A menina explicará que aquilo foi um momento a ser esquecido. Depois, quando outras colegas cercam Adèle e a chamam de lésbica nojenta, a garota aparece à distância, só seu rosto, em silêncio: em que estará pensando? --são esses momentos laterais que, muitas vezes, fazem os grandes filmes).
AZUL É A COR MAIS QUENTE
DIREÇÃO Abdellatif Kechiche
PRODUÇÃO França, 2013
ONDE Reserva Cultural e circuito
CLASSIFICAÇÃO 18 anos
AVALIAÇÃO ótimo
    Diretor atribui crítica a questões de classe
    Léa Seydoux, que diz ter se sentido uma 'prostituta' nas filmagens, faz polêmica para se promover, diz Kechiche
    A atriz que reclamou da cena de sexo e da truculência do cineasta deixa de divulgar 'Azul É a Cor Mais Quente'
    FERNANDO MASINIDE SÃO PAULODiretor de outros quatro longas, entre eles "O Segredo do Grão" (2007) e "Vênus Negra" (2010), Abdellatif Kechiche é meticuloso com sua estética e exigente com atores.
    Fala do cinema como a arte das limitações, que deve respeitar uma duração determinada, ao contrário de uma pintura ou de um livro.
    Para explicar o seu trabalho de cineasta, ele recorre a uma metáfora: "A imagem que me vem à mente é a de um capitão de navio que vai embarcar com a tripulação".
    Ele é o encarregado de levar as pessoas ao seu destino, "mas no meio do caminho há o mar, com tempestades e ventos".
    Na visita que fez a São Paulo para o lançamento de "Azul é a Cor Mais Quente", na qual deu entrevista à Folha, Kechiche falou com grandes pausas entre uma frase e outra, pensando muito no que ia dizer, mas sempre firme nas suas posições.
    Demonstrou agitação apenas quando foi questionado sobre os desentendimentos com a atriz Léa Seydoux, 28. Ela reclamara, por exemplo, da alongada cena de sexo, que demorou dez dias para ser filmada, com repetição exaustiva doe movimentos.
    "Ela chegou ao topo compartilhando a conquista de uma Palma de Ouro e agora vai demolir o diretor que a alçou a essa posição?", pergunta retoricamente Kechiche.
    As desavenças começaram em setembro, quando Léa disse que não voltaria a trabalhar com o diretor por seus "métodos truculentos".
    Ao jornal inglês "The Independent", a atriz afirmou que as cenas de sexo foram humilhantes e que tanto ela quanto Adèle Exarchopoulos se sentiram como "prostitutas".
    Kechiche nega as acusações, mas chegou a pensar em desistir do lançamento do filme. Em outubro, escreveu uma carta aberta no site francês Rue89, na qual chama Léa de "arrogante e oportunista".
    Adèle, por sua vez, que havia se juntado na artilharia contra o diretor, agora tem adotado outro tom. Em São Paulo para o lançamento do longa, disse que "as cenas de sexo foram descontraídas".
    Segundo Kechiche, o problema não será resolvido. "A polêmica foi criada para ela [Léa Seydoux] se promover. Nesse período, ela foi capa de revistas na França. Talvez os motivos tenham mais a ver com classes sociais."
    O diretor é de origem africana e a atriz vem de família tradicional, segundo ele. O avô da atriz, Jérôme Seydoux, é um dos donos da companhia cinematográfica Pathé. Antes de estrelar "Azul...", Léa trabalhou com Woody Allen em "Meia-Noite em Paris" (2011) e Ridley Scott em "Robin Hood" (2010).
    A atriz decidiu se afastar da campanha de promoção do filme.
      Obra adaptada por filme discute mortalidade e perda
      CESAR SOTODE SÃO PAULOA HQ que inspirou a primeira adaptação de quadrinhos a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes foi criada por uma jovem quadrinista que, na época em que a escreveu, tinha 19 anos.
      A autora, Julie Maroh, agora com 28, diz que hoje vê todos os defeitos da obra, realizada quando era tão jovem. "Ganhei um concurso de quadrinhos cujo tema era 15 anos de idade', e ganhei confiança para escrever a história", diz. "A essência de Azul...' veio nesse momento."
      Lançada em 2010 na França, "Azul É a Cor Mais Quente" (Martins Fontes) aproveita o sucesso do filme para chegar ao Brasil --e se envolve nas polêmicas do longa.
      Maroh se nega a responder perguntas sobre a produção, mas publicou uma declaração em seu site sobre o processo de adaptação --"apenas uma outra visão para a mesma história"-- e sobre o tratamento que recebeu do diretor Abdellatif Kechiche --que não responde suas mensagens desde 2011.
      No texto, ela descreve as cenas de sexo entre as protagonistas como "uma demonstração brutal e cirúrgica do suposto sexo lésbico que se tornou pornô", o que a deixou desconfortável.
      Para ela, a maneira como Kechiche as gravou se relaciona a outro momento do filme, no qual personagens falam sobre o mito do orgasmo feminino como algo místico e muito superior ao masculino. "Acho isso perigoso", escreve.
      "Como uma espectadora feminista e lésbica, não posso aprovar a direção que ele tomou nessas questões."
      MENSAGEM
      Quadrinhos e longa têm inícios similares --com a diferença de que a protagonista da HQ, Clémentine, recebe o nome de Adèle no filme--, mas apresentam desfechos bem distintos. Mesmo assim, para Maroh, tanto ela quanto o diretor tinham os mesmos interesses na história e ninguém desejava militar sobre a causa homossexual.
      "Este livro apresenta uma reflexão sobre a mortalidade e o que resta do amor perdido", diz ela à Folha. "A vida não é um desenho animado."
      Assim, não se trata de algo apenas para lésbicas, mas de uma forma de contar uma história de amor. "Não quero passar uma mensagem fechada. Gosto da ideia de que o leitor tome posse dela."
      AZUL É A COR MAIS QUENTE
      AUTORA Julie Maroh
      TRADUÇÃO Marcelo Mori
      EDITORA Martins Fontes
      QUANTO R$ 39 (160 págs.)

        Michel Laub

        folha de são paulo
        Querido Papai Noel
        Faça com que escritores parem de explicar a própria obra com conceitos que não são seus
        Em mais este Natal cristão, dê um presente ao meio cultural brasileiro fazendo com que:
        -- A disciplina de interpretação de texto se torne diária em todas as escolas, de preferência em aulas longas e sem direito a ir ao banheiro.
        -- Não se atribua valor automático ao que não necessariamente tem valor: o novo em relação ao velho, o denso em relação ao simples, o pessimista em relação ao otimista.
        -- Deixem Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Caio Fernando Abreu em paz.
        -- Não haja mais chamadas jornalísticas do tipo "O evangelho segundo Clarice", "Em busca do Rosa perdido" ou "Caio F de A a Z".
        -- Cronistas parem de escrever sobre pesquisas sexuais feitas com ratos.
        -- Cineastas parem de botar a culpa de seus insucessos no público.
        -- (Parem, também, de identificar sucessos de bilheteria com qualidade estética.)
        -- Trailers se abstenham de contar dois terços do filme e botar uma piadinha ao final.
        -- Resenhas se abstenham de contar três terços dos livros.
        -- Um único funcionário das livrarias de aeroporto, e também o dono que os contrata e orienta, e também o público que frequenta o ambiente e endossa com suas compras tristes a seleção de títulos das gôndolas e prateleiras, tenham algum resquício de gosto literário.
        -- Comediantes ruins não atribuam mais sua ruindade à ditadura do politicamente correto.
        -- (E ninguém mais use termos e construções como "politicamente correto", "chorume", "eu sou polêmico mesmo" e "ao menos ele teve o mérito de abrir o debate".)
        -- Artistas, ensaístas e palpiteiros em geral evitem dizer que não fazem lobby, não participam de conchavos, não integram panelas e dão suas opiniões doa a quem doer (na maioria das vezes, dói só no fígado de quem ouve).
        -- Escritores parem de explicar a própria obra com conceitos que não são seus, e sim de alguma patrulha política, de gênero ou de departamento acadêmico.
        -- Críticos resistam à tentação de comentar livros de desafetos pessoais ou desafetos da namorada.
        -- Autores consigam se controlar e não respondam aos críticos. Entendo o impulso de provar superioridade intelectual, moral e --em casos raros-- física, mas a melhor forma de fazer isso é com silêncio público e amargura que estraga a vida familiar.
        -- Volte a ser possível esquecer da existência de alguém, em vez de ser lembrado dela em links, retuítes e até posts na página de quem morreu.
        -- Volte a ser possível fazer ironia sem precisar explicá-la com reticências, pontos de exclamação ou emoticons.
        -- Volte a ser possível ser contestado sem acusar o contestador de baixar o nível da discussão.
        -- Acabe o culto intelectual às estatísticas e ao que dizem "pesquisas recentes".
        -- Acabe o culto intelectual à pornochanchada (ok quanto ao outro culto a esse nobre gênero cinematográfico).
        -- O Congresso Nacional proíba os hologramas de músicos.
        -- Bandas de rock escolham --não dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo-- entre discurso de contestação aos poderes estabelecidos e cachês de publicidade.
        -- E letristas contratem revisores (dá só uns R$ 9 a lauda).
        -- Alguém explique por que tanta gente, deixando claro que paira acima da vulgaridade, passa o dia no Twitter comentando Faustão, "The Voice Brasil" e a passagem de Francisco Cuoco e sua namorada pelo Castelo de Caras.
        -- Alguém explique por que condenamos com tanta fúria a ostentação do Rei do Camarote nas mesmas timelines que ostentam, o tempo todo, os trabalhos que fazemos, os pratos que comemos e os lugares para onde vamos nas férias.
        -- E também por que alguém vai a um show apenas para registrar a performance do artista no celular, revendo-a mais tarde --se é que vai rever-- numa tela pequena e com qualidade medonha de som e imagem.
        -- Anciões que ainda frequentam esses shows (oi) parem de gritar contra a nuvem porque o mundo era tão melhor antes, não é mesmo?
        -- Haja só um pouco menos de sarcasmo contra alvos fáceis, como catálogos de arte contemporânea.
        -- Não exijam de artistas que tenham opinião sobre tudo. Artistas têm o direito de ser omissos, alienados, incoerentes e burros.

          Após prisão, Mandela se tornou um monumento à tolerância - Clovis Rossi

          folha de são paulo
          Transição à democracia multirracial foi pacífica, mas violência comum cresceu
          Para sorte da África do Sul, Mandela não era uma pessoa normal, mas 'um tesouro perdido', para usar a expressão da ex-secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton
          CLÓVIS ROSSICOLUNISTA DA FOLHAO que esperaria a sabedoria convencional de uma pessoa normal que passasse 27 anos na prisão, apenas por defender seus ideais, aliás nobres? Que ele saísse da prisão vomitando ódio e ressentimento e que buscasse a vingança contra os opressores, dele próprio e de seu povo, os negros sul-africanos.
          Para sorte da África do Sul, Nelson Rolihlahla Mandela não era uma pessoa normal, mas "um tesouro perdido", para usar a expressão com que a então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, definiu o ex-presidente ao encontrá-lo em 2009, já aposentado --e como estadista, talvez o último do século 20.
          Mandela saiu da prisão para apertar a mão de Frederik Willem de Klerk, então presidente do regime de apartheid, que segregava os negros de uma maneira tão brutal que, quando começou a acabar, em 1994, havia no país 750 mil piscinas, uma para cada duas famílias brancas, ao passo que, na outra ponta, 10 milhões de famílias negras não dispunham de água potável em suas habitações.
          O simples gesto já era uma demonstração de tolerância e de espírito de conciliação. Tanto que ele e De Klerk acabaram ganhando juntos o Nobel da Paz (1993).
          Na sua primeira entrevista após ser eleito presidente, em 1994, deu uma verdadeira aula magna de paciência, certamente aprendida em seu longo cativeiro.
          Perguntei como ele pretendia fazer para evitar que a óbvia impossibilidade de atender rapidamente à demanda dos negros por uma vida mais digna, reprimida por séculos, não provocasse uma explosão de frustrações capaz de dinamitar a transição.
          Sereno, com o jeito de avô sábio e bondoso que todo neto gostaria de ter (já estava com 76 anos), respondeu:
          "Quando dermos a primeira casa para quem não a tem, todos os seus vizinhos ficarão com a certeza de que também terão a sua, mais cedo ou mais tarde, e esperarão".
          Esperaram, de fato, tanto que, na Presidência Mandela (1994/99), a África do Sul praticamente sumiu da mídia internacional, o que contrariou o padrão africano dos anos recentes ou mesmo o de países que saíram de longos períodos autoritários.
          A África do Sul de Mandela não viveu uma das duas seguintes situações, talvez ambas, que usualmente ocupam a mídia:
          1. Uma guerra tribal sangrenta e interminável.
          2. A fragmentação em diferentes países etnicamente homogêneos, com a consequente "limpeza" das etnias minoritárias.
          Esse espírito conciliador obviamente nasceu na prisão de Robben Island, em que ficou confinado na maior parte do período que passou preso (1963 a 1990).
          Afinal, Mandela foi um dos criadores do Umkhonto we Sizwe ("A Lança da Nação"), o braço armado do CNA (Congresso Nacional Africano), o partido com o qual ele liderou a luta dos sul-africanos negros (e alguns poucos brancos) contra o apartheid.
          No julgamento que o condenou, quando já estava preso, definiu a sua luta assim:
          "Eu celebrei a ideia de uma sociedade livre e democrática, na qual todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal pelo qual espero viver e o qual espero alcançar. Mas, se for necessário, é um ideal pelo qual estou pronto para morrer".
          LONGO PERCURSO
          Mandela viveu e alcançou. Foi, de todo modo, um longo e penoso percurso desde o nascimento (18 de julho de 1918), na vilazinha de Mvezo (hoje parte da província de Cabo Oriental).
          Conforme escreveu em sua autobiografia, era "um lugar distante, pequeno distrito afastado do mundo dos grandes eventos, onde a vida corria da mesma forma havia centenas de anos".
          Nascido Rolihlahla Mandela, coube a ele iniciar uma pequena mudança na rotina de sua vila ao se tornar o primeiro membro da família a frequentar uma escola, na qual ganhou o nome inglês "Nelson".
          Estudou cultura ocidental e iniciou o curso de direito na Universidade de Fort Hare, na qual sua vida ganharia a inflexão que o lançaria na luta contra o apartheid --o que, por sua vez, o levaria à clandestinidade (1961) até se tornar o prisioneiro 46.664 de Robben Island.
          Saiu da cadeia (1990) quase diretamente para a Presidência (1994).
          Seu período de governo parece um caso clássico de copo meio cheio, meio vazio. Se a transição do apartheid para uma democracia multirracial foi pacífica, a violência comum só fez se agravar, a ponto de ter sido o centro da campanha eleitoral para a sucessão de Mandela.
          Havia, então, 50 mortes violentas por dia, a taxa mais elevada do mundo, de acordo com dados do Instituto de Estudos para a Segurança, de Johannesburgo.
          Um dado, mais que todos, chocava: a cada 11 minutos uma mulher era violentada.
          Outros problemas foram atenuados, mas permanecem graves: na educação, por exemplo, nos cinco anos Mandela, foram construídas 100 mil novas salas de aula e 1,5 milhão de crianças, antes à margem do sistema, passaram a frequentar a escola.
          A qualidade do ensino, no entanto, continuava precária, e parte do gasto se perdia pelos ralos da ineficiência e da corrupção. Comparações similares poderiam ser feitas para praticamente todos os setores.
          Mandela, contrariando padrão muito comum na África, não concorreu à reeleição. Entregou tanto o Congresso Nacional Africano como o poder a seu discípulo Thabo Mbeki e se retirou como uma espécie de monumento vivo.
          Tanto que as atrações relacionadas a Mandela figuram entre as dez buscas mais populares na página do Departamento Nacional de Turismo da África do Sul (www.southafrica.net). Sete delas foram declaradas patrimônio nacional.
          Ele se casou três vezes. A primeira mulher de Mandela foi Evelyn Ntoko Mase, da qual se divorciou em 1957, após 13 anos. Depois se casou com Winnie Madikizela --o casamento duraria 38 anos. O divórcio ocorreu em 1996, com as divergências políticas entre o casal vindo a público.
          No seu 80º aniversário, Mandela casou-se com Graça Machel, viúva de Samora Machel, outro ícone africano, como líder guerrilheiro primeiro e, depois, presidente de Moçambique.
          Teve seis filhos, 17 netos e 14 bisnetos --e parecia mais à vontade no papel de avô do que no de estadista mundialmente celebrado.