terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Rosely Sayão

folha de são paulo
Ter e manter um filho
Há tipos de sacrifício que os pais faziam pelos filhos e que foram substituídos pelo sacrifício financeiro
Ter e manter um filho custa caro, segundo reportagens em revistas, jornais, etc. Nelas, há contas, inclusive, que apontam valores que a presença de um filho acrescenta ao orçamento da família. E isso se estende por uns 20 anos, mais ou menos. Ou mais, muitas vezes bem mais.
No mundo do consumo, o valor financeiro das coisas é que está em questão. Por isso, quando alguém planeja ter um filho, considera primeira e antecipadamente o custo financeiro dele para, então, se preparar, se planejar. Ou postergar ou até mesmo desistir.
Quem não conhece mulheres e homens que fazem ou já fizeram um tremendo sacrifício financeiro em nome do filho?
Festas de aniversário com direito a recreacionistas, bufês, lembrancinhas etc.; viagens ao exterior; calçados ou roupas caras porque da moda; brinquedos e traquitanas tecnológicas de última geração; e mais: carro, escola, cursos extracurriculares, altas mesadas, aprendizado de língua estrangeira no exterior etc.
Quase nada disso podemos considerar como absolutamente necessário, mas tudo é, certamente, altamente desejado pelo filho ou pelos anseios dos pais em relação ao filho.
A lista é enorme e não para por aí. Os filhos querem, querem, querem, querem sempre mais. Nunca estão satisfeitos.
E os pais trabalham, trabalham, trabalham cada vez mais para ganhar mais e, assim, tentar satisfazer as necessidades e os caprichos do filho, que quase sempre custam bem caro.
Conheço mães e pais que fizeram financiamentos, parcelaram uma grande quantia de dinheiro em inúmeras prestações, abdicaram de gastos pessoais, tudo para dar ao filho um "book" ou um belo "look".
Há também os que fazem esses gastos para garantir seu próprio sossego. Afinal, a criançada e a moçada aprenderam muito bem como lutar para conseguir o que querem, não é verdade?
Mas, há outros tipos de sacrifício que os pais faziam pelos filhos e eles foram, quase todos, substituídos pelo sacrifício financeiro. Uma cena do filme "Billy Elliot" mostra um desses tipos de sacrifício.
O filme se passa em uma pequena cidade da Inglaterra nos anos 80. O protagonista é um garoto de 11 anos que se apaixona pelo balé, mas seu pai, um trabalhador comprometido com o movimento grevista dos mineiros, não aceita a escolha do filho até o momento em que se dá conta da possibilidade de o garoto ter uma vida melhor que a sua, dedicando-se ao balé.
É nesse momento que ele sacrifica suas convicções --ideológicas e trabalhistas--, deixa de honrar a greve da qual participava ativamente para possibilitar ao filho a busca de seu sonho.
Sim, ter e manter um filho custa caro, mas não vamos considerar agora o custo financeiro da questão. Vamos considerar o custo pessoal.
Ter um filho custa horas de sono e muitas preocupações; custa mudanças de vida temporárias e renúncias; custa a necessidade de disponibilidade pessoal constante; custa abdicar de sonhos e projetos; custa paciência quando ela já se foi, custa perseverança mesmo quando cansados, e muito mais.
É: realmente, ter filho custa bem caro, mas para se ter uma ideia aproximada desse custo, precisamos deixar de priorizar o custo financeiro que o filho acarreta.
O verdadeiro custo, este não pode ser colocado em números porque é pessoal. Mas é certo que esse custo sempre é alto, mesmo quando não reconhecemos isso.

    Mirian Goldenberg

    folha de são paulo
    Uma vida com significado
    Enxergar os problemas com bom humor é um truque útil para a arte de viver e envelhecer com significado
    "Em busca de sentido" é o emocionante relato do psiquiatra judeu Viktor Frankl sobre como ele sobreviveu, de 1942 a 1945, em quatro campos de concentração, após a mãe, o pai, o irmão e a esposa terem sido assassinados pelos nazistas.
    Ele morreu em 1997, aos 92 anos, depois de publicar inúmeros livros com uma proposta de análise existencial elaborada a partir da trágica experiência.
    Para Frankl, as particularidades de cada indivíduo, principalmente de seus valores, definem o sentido de cada vida. O significado da vida pode se encontrado de diferentes maneiras: no trabalho, na criação, no amor, na família, na amizade e também na atitude que se tem em relação ao sofrimento inevitável. Ele chamava de "vazio existencial" a sensação de inutilidade e de falta de sentido da própria vida.
    Ele alertava: "Não procurem o sucesso. Quanto mais o procurarem e o transformarem em alvo, mais errarão. O sucesso vai persegui-los precisamente porque vocês se esqueceram de pensar nele".
    O mesmo pode ser dito sobre a felicidade. Ela só aconteceria como efeito colateral e natural da dedicação a uma causa maior do que a própria felicidade.
    Frankl dizia que o mundo estava em uma situação muito ruim, mas que poderia ficar ainda pior se cada um não fizesse o melhor que pudesse. Ele apostava na capacidade humana de transformar criativamente os aspectos negativos da vida em algo construtivo. Todos seriam capazes de mudar a si mesmos e o mundo para melhor.
    Na luta para sobreviver, Frankl propôs a um amigo do campo de concentração um compromisso mútuo de inventarem ao menos uma piada por dia. Ele acreditava que não havia arma tão poderosa para a autopreservação como o humor. O humor é fundamental para que as pessoas criem uma distância necessária para enfrentar as situações mais adversas e miseráveis.
    Viktor Frankl foi uma importante inspiração para encontrar o significado da minha própria vida e também para muitas reflexões que estão no meu livro "A bela velhice". Aprendi com ele que buscar enxergar os problemas com uma perspectiva bem-humorada é um truque bastante útil para a arte de viver (e de envelhecer) com significado.

    Janio de Freitas

    folha de são paulo
    Brasil embrutecido
    Não basta dizer que nada é feito contra tal processo. O que se passa, de fato, é que nem sequer o notamos
    Um homem espera, sozinho, o ônibus que o levará para casa. Dois carros param diante dele. Os homens que descem o massacram furiosamente com barras de ferro. Até reduzi-lo a um monturo de sangue e carne sem vida. Entram nos carros e vão embora.
    A fúria assassina desses agressores está abaixo da mais primitiva desumanidade. Mais uma briga de torcida, como disse a notícia? "Torcedores do São Paulo agrediram um torcedor do Santos, que morreu." Nem como hipótese.
    Estamos, no Brasil, em um agravamento da brutalidade que não cabe mais nos largos limites do classificável como violência urbana. E não basta dizer que nada é feito contra tal processo. O que se passa, de fato, é que nem sequer o notamos. Convive-se com o agravamento como uma contingência incômoda, em seus momentos mais gritantes, mas natural, meras desordens da desigualdade social.
    Nada a ver com a perversa desigualdade social. O homem massacrado por vestir a camisa do Santos era portador da desigualdade como o são os monstros que vestiam a camisa do São Paulo. Os bandos criminosos que voltaram a digladiar-se em algumas favelas do Rio formaram-se e vivem nas mesmas misérias da desigualdade social.
    O agravamento da brutalidade no Brasil é um processo em si mesmo. E não está só nos territórios da pobreza. A própria incapacidade de percebê-lo é um sintoma do embrutecimento sem distinções sociais, econômicas e culturais. Outros sintomas poderiam ser notados --na deseducação, no rebaixamento individual e coletivo dos costumes, em muito do que os meios de comunicação tomam como modernidade, na política. Até onde a elevação do trato entre suas excelências parecia inexaurível --no Supremo.
    Um homem espera um ônibus que o levará para casa. Onde nunca mais chegará. E onde o esperavam um filho de meses e a mulher. Mais uma banal tragédia para duas pessoas, às vezes são quatro, podem ser sete nas casas dos Amarildos? Sem interesse político para explorá-lo, será só isso mesmo, "mais uma briga de torcida que acaba em morte". É, no entanto, um gigantesco questionamento ao país e à sua perdição cega e surda, embalada pela degeneração de suas "elites", todas elas.
    Briga de torcida? Bandos de criminosos estão agora atacando a polícia, no que assim representa a segunda fase --a da reação-- do programa de UPPs, as Unidades de Polícia Pacificadora cuja instalação em cidadelas do crime restaurou muito do Rio. No país todo, qualquer incidente, inclusive se provocado por bandos criminosos em disputa, leva à interrupção de ruas e estradas, incêndios de ônibus e carros, já também de moradias destinadas à própria pobreza. A internet convoca sem cerimônia e sem restrição para violências, não lhe bastando os brasileiros, também contra os estrangeiros que venham à Copa e até contra times.
    À espera do ônibus ou dentro do carro, branco, negro, pobre, rico: o Brasil se embrutece. E o Brasil nem sequer se nota.

      Helio Schwartsman

      folha de são paulo
      A rua
      SÃO PAULO - Protestos em massa na Ucrânia e na Venezuela. Numa escala bem mais modesta, nós os encontramos também no Brasil. Ampliando a busca geograficamente, entram Tailândia, Bulgária e Turquia. Se a expansão for temporal, podemos incluir a quase finada Primavera Árabe e as manifestações europeias, motivadas principalmente pela crise econômica.
      Embora um grupo de tecnófilos goste de ressaltar a importância das mídias sociais na organização desse tipo de evento, a verdade é que protestos, confrontos e revoluções ocorrem desde que surgiram as primeiras cidades e reis, cerca de dez mil anos atrás. A internet por certo ajuda a mobilizar as massas, mas está longe de ser uma condição necessária. Basta lembrar que a inexistência da rede de computadores em 1789 não impediu a tomada da Bastilha.
      E é bom ou ruim que o povo saia às ruas? A resposta, é claro, depende de para quem você torce e se você está a uma distância segura do centro dos acontecimentos. Manifestações podem tanto derrubar ditaduras como desestabilizar governos legítimos, sem mencionar as várias ocasiões em que elas deflagraram verdadeiros banhos de sangue. Podem, também, expressar justos anseios da população e, colocando um pouco de pressão sobre os dirigentes, contribuir para o aprimoramento das instituições.
      Como não dá para eliminar os protestos (ainda que possam ser reprimidos) a pergunta relevante é sobre a melhor forma de lidar com eles. Penso que, neste quesito, regimes parlamentaristas tendem a sair-se melhor do que os presidencialistas.
      Nos primeiros, governantes que se tornam impopulares podem ser postos para fora sem gerar uma crise institucional, o que é quase impossível no segundo caso. Se é verdade que as redes sociais vão tornar a rua mais presente na vida política das nações, então o presidencialismo é um regime que envelhecerá mal.
      helio@uol.com.br

        Carlos Heitor Cony

        folha de são paulo
        Os cariocas foram à guerra
        RIO DE JANEIRO - Foi quando começaram a ser afundados os navios do Lóide Nacional. A crença pública admitiu que tais afundamentos só podiam ser atribuídos a navios nazistas. As carcaças foram promovidas a "vasos", os brios foram despertados e, na impossibilidade de despertar o gigante adormecido, despertaram o Presidente da República para a declaração de guerra.
        Nos primeiros momentos, a população queria partir. Matar um alemão era a ambição de todos, trazer na ponta da baioneta um gringo.
        Os jornais que incentivaram a declaração de guerra passaram a lembrar que o país era "essencialmente agrário". Impossibilitada de partir para a Europa, a população deu vazão ao amor pátrio, depredando a mercearia "Ao Belo Danúbio". Vi um grupo de patriotas desativados arrastando comprida fiada de chouriços vienenses.
        Mas nem todos podiam roubar chouriços. Encontraram forma prudente de saciar os brios desencadeados. As nações aliadas lutavam contra a falta de matéria-prima para as armas, tanques e navios. Era preciso ferro, muito ferro. Revolvidas as entranhas da terra, era pouco o ferro. Foi quando surgiu a ideia: dar ferro aos exércitos aliados. Qualquer coisa servia: ferramenta velha, fechadura quebrada, bicicleta irrecuperável. Até prego. E corrente de cachorro.
        Do nada foram erguidas montanhas de cangalha imprestável, lixo que um jornal chamou de "pirâmides"--cada bairro tinha uma.
        Poetas fizeram sonetos alexandrinos louvando as pirâmides. O próprio Cardeal contribuiu com castiçal de ferro que pertencera, segundo laudo do Instituto Histórico, à frota cabralina. E nova onda de sonetos, louvando o Cardeal e Pedro Álvares Cabral. A maior parte da população, não podendo contribuir com sonetos alexandrinos nem castiçais cabralinos, fez o que pôde. E foi um nunca acabar de penicos e escarradeiras.

        Vladimir Safatle

        folha de são paulo
        Superar divisões
        Há uma divisão que quebrou boa parte da dinâmica criativa da esquerda mundial. Ela se deu entre aqueles que, animados pelo ímpeto de Maio de 1968, levaram a política em direção às lutas ecológicas, libertárias e aqueles que permaneceram, durante décadas de assalto ideológico neoliberal no campo do pensamento de esquerda, pautando suas ações pela sensibilidade aos conflitos de classe e pela defesa de políticas de combate à desigualdade.
        Tal divisão conseguiu, por exemplo, enterrar a esquerda em países como a França e a Alemanha.
        No primeiro, enquanto a extrema direita racista cresce exponencialmente, a esquerda perde sua força de sinergia por se clivar entre uma frente que agrupa comunistas, sociais-democratas radicais e outros grupos (Front de Gauche, "frente de esquerda", em francês) e os ecologistas, estirados entre arroubos em direção ao centro e lembranças de seu velho passado de esquerda.
        Na Alemanha, a situação não é muito diferente, com atores bastante parecidos (Die Linke, "a esquerda", em alemão, e os verdes).
        Essa realidade poderia ser diferente no Brasil. As causas ecológicas têm um radical potencial de crítica do capitalismo, por expressarem a luta contra a versão monopolista mais brutal do nosso sistema econômico --o agronegócio--, por serem fruto da problematização de uma ideia de desenvolvimento e produção que não libera os sujeitos daquilo que mais os aliena, a saber, o sequestro de seu tempo pelo tempo do trabalho.
        Tais modificações, para poderem realmente ocorrer, exigem modelos de produção coletiva e de aumento da autonomia em relação ao tempo de trabalho que, se radicalizadas, podem nos ajudar a nos colocar fora da lógica do sistema econômico que conhecemos. No entanto, ao invés disto, vários ecologistas no Brasil se deixam pautar, muitas vezes, por economistas neoliberais com sua lógica ecológica Starbucks.
        Por outro lado, o Brasil, com suas idiossincrasias, é um país no qual os liberais são, no fundo, contra as liberdades individuais.
        Por aqui, ser liberal é, via de regra, ser contra o aborto, criticar o casamento homossexual, desconfiar das discussões sobre o Estado radicalmente laico, ridicularizar o embate contra a destruição da vida privada na esteira do "combate ao terrorismo" e ser contra a legalização das drogas. Por essas ironias do destino, quem defende liberdade individual no cenário político-partidário brasileiro é a esquerda.
        Tais elementos do cenário nacional demonstram como há um rearranjo possível do espectro político, à condição de superar velhas dicotomias.

        José Simão

        folha de são paulo
        Ueba! Não Vai Ter Papa!
        Dilma: 'Eu vim rezar para o Brasil vencer a Copa'. E o papa: 'Não seria melhor rezar para ter Copa?'
        Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Piada Pronta: "Muricy se irrita com a displicência do Ganso". A minha vizinha fez a mesma queixa do marido dela. Sofre de ganso displicente! Rarará.
        E essa do tuiteiro Acácio: "Pedro Bial será roteirista do filme sobre o Chacrinha. Ninguém vai entender nada!" Nem a parte do bacalhau! Mas como o Chacrinha veio para confundir e não para explicar, achei coerente! No lugar da buzina, vai ter paredão!
        E atenção! Repercussões da visita da Dilma ao papa! "Dilma convida o papa para a Copa". E o Papa: "Mas eu vou protestar contra o quê?". Ah, contra um monte de coisa: contra o vinho nacional, contra a seleção argentina que não ganha nada, contra o fiasco da Argentina!
        E adorei a charge do Genildo. Dilma: "Sumo Pontífice, eu vim rezar para o Brasil vencer a Copa". E o papa: "Não seria melhor rezar para ter Copa?". Seria! Rarará!
        E esse é o resultado do encontro da Dilma com o papa: Não Vai Ter Papa! Rarará!
        E do jeito que a comitiva da Dilma come, mudaram o nome pra COMEtiva! E desculpe a linguagem chula: a Dilma foi pedir arrego pro papa! Rarará!
        E a PM agora está reprimindo protestos desarmada, só no jiu-jítsu. O nome é "Tropa do Braço". Agora é no mano a mano! Como diz uma amiga minha de 70 anos: "No mano a mano ainda dá pra enfrentar". Rarará!
        E a gandaia? Faltam quatro dias pro Carnaval! E os blocos? Adoro os blocos de Carnaval. Direto do Rio: O Negócio Tá Feio e o Seu Nome Tá no Meio. Isso é um clássico: toda vez que o negócio tá feio, o seu nome tá no meio! Rarará!
        E direto de Salvador: Filhos do Pau Mole. Deve ser uma dissidência do Filhos de Gandhi! Rarará!
        E uma amiga carioca vai sair no bloco Pinto Sarado! Deve ser pinto de academia! Pinto de big brother! Rarará! E direto do Rio, o bloco dos corretores: Os Imóveis! Rarará!
        É mole? É mole, mas sobe!
        O Brasileiro é Cordial! Olha essa pixação num muro em Fortaleza: "Cuidado! Pitbull virado no cão". Rarará! Se fosse em Salvador, seria "Cuidado! Pitbull virado na porra". E se fosse em São Paulo, seria "Cuidado! Pitbull virado nos mano". Rarará!
        Nóis sofre, mas nóis goza!
        Hoje, só amanhã!
        Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

          João Pereira Coutinho

          folha de são paulo
          Os escravos
          Quem perde um minuto de tempo com os escravos da Índia, da Nigéria, da Etiópia ou do Congo?
          Não é preciso assistir a "12 Anos de Escravidão" para saber que a prática foi uma das maiores vergonhas da humanidade. Mas é preciso corrigir o tempo do verbo. Foi?
          Melhor escrever a frase no presente. A escravidão ainda é uma das maiores vergonhas da humanidade. E o fato de o Ocidente não ocupar mais o topo da lista como responsável pelo crime não deve ser motivo para esquecermos ou escondermos a ignomínia.
          Anos atrás, lembro-me de um livro aterrador de Benjamin Skinner que ficou gravado nos meus neurônios. Intitulava-se "A Crime So Monstrous" (um crime tão monstruoso) e Skinner ocupava-se da escravidão moderna para chegar a conclusão aterradora: existem hoje mais escravos do que em qualquer outra época da história humana.
          Skinner não falava apenas de novas formas de escravidão, como o tráfico de mulheres na Europa ou nos Estados Unidos. A escravidão que ele denunciava com dureza era a velha escravidão clássica --a exploração braçal e brutal de milhares ou milhões de seres humanos trabalhando em plantações ou pedreiras ao som do chicote.
          Na Índia, eram 10 milhões. Na África, eram outros tantos --prisioneiros de guerra, por exemplo, forçados a trabalho maquinal sob vigilância apertada do inimigo. Muitos eram crianças.
          O próprio Skinner, em "experiência de campo" (digamos assim), comprovava algumas das suas teses. Segundo ele, era possível viajar de Nova York a Port-au-Prince (Haiti) e, por apenas 50 dólares, comprar um escravo de 12 anos. Em cinco horas de viagem, eis a diferença entre a civilização e a barbárie. Cinquenta dólares.
          Pois bem: o livro de Skinner tem novos desenvolvimentos com o maior estudo jamais feito sobre a escravidão atual. Promovido pela Associação Walk Free, o Global Slavery Index, que pode ser consultado na internet (http://www.globalslaveryindex.org/), é um belo retrato da nossa miséria contemporânea.
          Em termos relativos, a Mauritânia continua no topo da lista: com uma população que não chega aos 4 milhões, o país terá entre 140 mil a 160 mil escravos. O Haiti vem a seguir, sobretudo com a escravidão infantil. Em 10 milhões de haitianos, 200 mil não conhecem a palavra "liberdade".
          O Paquistão sobe a parada e, sobretudo nas zonas fronteiriças com o Afeganistão, é provável encontrar qualquer coisa como 2 milhões de escravos.
          A Índia, tal como o livro de Benjamin Skinner já anunciava, continua a espantar o mundo em termos absolutos com um número que hoje oscila entre os 13 milhões e os 14 milhões de escravos. Falamos, na grande maioria, de gente que continua a trabalhar uma vida inteira para pagar as chamadas "dívidas transgeracionais" em condições semelhantes às dos escravos do Brasil nas roças.
          Conclusões principais do estudo? Pessoalmente, interessam-me duas.
          A primeira, segundo o Global Slavery Index, é que a escravidão é residual, para não dizer praticamente inexistente, no Ocidente branco e "imperialista".
          De fato, a grande originalidade da Europa não foi a escravidão; foi, pelo contrário, a existência de movimentos abolicionistas que terminaram com ela. A escravidão sempre existiu antes de portugueses ou espanhóis comprarem negros na África rumo ao Novo Mundo. Sempre existiu e, pelos vistos, continua a existir.
          Mas é possível retirar uma segunda conclusão: o ruidoso silêncio que a escravidão moderna merece da "intelligentsia" progressista. Quem fala, hoje, dos 30 milhões de escravos que continuam acorrentados na África, na Ásia e até na América Latina?
          Quem perde um minuto de tempo com os escravos da Índia, da Nigéria, da Etiópia ou do Congo?
          Ninguém. Onde não existe homem branco como capataz, também não existe homem negro como escravo.
          O filme de Steve McQueen, "12 Anos de Escravidão", pode relembrar ao mundo algumas vergonhas passadas. Mas confesso que espero pelo dia em que Hollywood também irá filmar as vergonhas presentes: as vidas anônimas dos infelizes da Mauritânia ou do Haiti que, ao contrário do escravo do filme, não têm final feliz.