quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Jairo Marques

folha de são paulo
Crônica do primeiro dia

Em vez de planejar ganhar mais dinheiro, há um punhado de gente sonhando com ações menos ousadas
METADE DA humanidade e mais uma penca de desumanos está hoje pensando em maneiras de agir diferente, de ser diferente, de procurar caminhos diferentes para suas trajetórias. Eu componho a outra metade, aquela que, neste primeiro dia, renova o desejo profundo de chegar a hora para que tudo seja mais igual.
Enquanto uns querem ficar bem quietinhos no canto, revendo atitudes tortas, calculando formas de vencer o peso apontado pela balança ou mesmo rasgando papéis com notícias ingratas para escrever novos parágrafos animados e coloridos, eu queria era poder me agitar logo cedo, fazer o que para muitos é o mais do mesmo.
Botar minha camiseta branca com as palavras "paz" ou "morzão, eu te amo muito", calçar minha sandália franciscana e correr sem rumo, liberto e feliz por não ter buracos nas calçadas empacando minha emoção de ser comum e de ser fofo. Queria um igual ir, vir e correr.
Ao passo que muitos anotam em bloquinhos novos lugares remotos para serem conquistados --inclusive a exclusivíssima praia de Aratu--, velhos livros a serem, finalmente, lidos; uma turma de iguais a mim gostaria de apenas tirar uma fotografia ao conseguir chegar bem pertinho de uma marolinha qualquer para banhar os cambitos.
Uma turma de iguais a mim gostaria, em 2014, de ter escola que inclui e aceita qualquer menino, de ter livros que pudessem ser ouvidos ou degustados com a ponta dos dedos, em qualquer lugar. Queria um igual direito de me esbaldar no Boqueirão e de desfrutar dos prazeres da Mário de Andrade.
Hoje, em vez de planejar uma maneira espetacular de ganhar mais dinheiro, de cativar multidões com exemplos de como fazer sucesso, como ter um corpão sarado, como ser "maraviwonderful", há um punhado de gente sonhando com ações bem menos ousadas, mais rotineiras e "simplinhas".
Querem tirar o barro da velha casinha de sempre, invadida pela irresponsabilidade das administrações públicas em forma de enxurrada de lama natalina. Almejam a gloriosa chance de poder falar mal de um chefe sem que suas características físicas, sensoriais e intelectuais impeçam o reles "fichar" no escritório da esquina.
Alguns só querem a oportunidade de reformar com dignidade a pata machucada (e tudo que por ventura altere o rótulo da dita "normalidade") para simplesmente labutar para um dia a dia melhor. Queria um igual olhar para o trabalho e para a reabilitação.
Certamente que o primeiro dia é porta escancarada que leva à esperança de deixar de fazer tudo sempre igual. É chave com poder de desencadear os vícios, as rabugices e os desvios de caráter que fazem a existência mais trágica e pouco cômica. É tempo para planejar progressos íntimos e dar fôlego para projetos guardados.
Mas o primeiro dia é também para imaginar que multidões querem apenas o básico, o frugal para se desejar em um despertar de ano. É momento de lembrar que há gente encarcerada em jaulas de exclusão.
É tempo de tentar agir para que o ano novo seja igual, absolutamente igual, para aqueles que ainda são vistos, tratados e respeitados como diferentes.

    Leia entrevista com professor que fez dicionário com definições de crianças

    folha de são paulo

    Leia entrevista com professor que fez dicionário com definições de crianças


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    ÚRSULA PASSOS
    DE SÃO PAULO
    Ciranda do LivroConfira abaixo entrevista com Javier Naranjo, que reuniu definições dadas por crianças para diferentes palavras.
    O resultado foi o livro "Casa das Estrelas", publicado no Brasil pela editora Foz.

    *
    Folha - Essas definições poderiam ser as mesmas se fossem dadas por crianças de outros países, como Índia, China, Noruega?
    Apenas começo a explorar palavras (razão e sentimentos) com crianças de outros países e sou tomado pela sensação, quase certeza, de que ser criança é igual em todas as línguas e em todos os países. Entendo que ser criança é uma forma de estar no mundo. E isto –neles– é o mais comum e o mais profundo. As crianças sonham, imaginam, ocupam a terra com seus jogos tão sérios, com sua crueldade sem reflexão e sua inocência. Com seu olhar fresco.
    E em todos os lugares (uns mais, outros menos) sua voz é menosprezada. Por essa condição de serem crianças, creio que as definições poderiam ser as mesmas em todos os lugares, porque seu olhar é o mesmo: agudo e sem complacências. Mudam, isso sim, situações particulares de cada país, e as crianças dão também sua voz para falarmos dessas situações.
    O que você achou das ilustrações que o livro ganhou?
    As ilustrações de Lara Sabatier acompanham muito bem o livro, porque dialogam o tempo todo com as vozes das crianças. Ela fez várias coisas de que gostei muito: não são propriamente ilustrações para crianças, às vezes, em outras publicações os traços são infantilizados para torná-los, digamos, compreensíveis, menosprezando a inteligência das crianças. Desta vez não.
    São ilustrações que chegam a todos e com outra aposta muito interessante: Lara em cada letra do dicionário faz uma história, é seu traço, é claro, mas nele há uma narrativa específica para cada uma das seções do livro. Linguagem simples e direta, estilo que se conta em pequenos relatos.
    Como as crianças que têm frases no livro reagiram ao saberem que suas definições viraram livro?
    Com alguns poucos me encontrei passados os anos, e estavam surpresos e reafirmaram com um brilho de verdade em seus olhos, o que disseram quando pequenos. Essas crianças agora são pessoas de mais de 30 anos com profissões diversas, famílias e vidas bem diferentes. Quando nos vimos, seus sorrisos e a memória feliz desses dias vividos dizem tudo o que há para ser dito.
    O livro foi pensado mais para adultos ou para crianças?
    As crianças reagem de forma parecida aos adultos, riem do que as outra crianças disseram, se comovem e ficam atentos com seus olhos bem abertos, em silêncio, quando há tristeza e dor que prevalecem. Mas o que em nós chora é o que eles estão vivendo agora: ser criança. A lembrança de criança em nós é o que chora e o que ri também. E o que agora somos e não podemos voltar atrás, o que fomos e o que já não seremos mais. Voltar a encontrar a maravilha, o assombro do mundo, a derrota sem atenuantes de nossas vaidades e a morte sempre como conselheira. De alguma forma as crianças sabem de tudo isso.

    Em livro, crianças imaginam significados para diferentes palavras


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    ÚRSULA PASSOS
    DE SÃO PAULO
    Ciranda do LivroCriança é "responsável pelo dever de casa", segundo Luisa, de oito anos. Já para Johanna, de dez, criança é o que ela está vivendo. Essa é apenas uma das muitas palavras definidas em "Casa das Estrelas", livro do professor colombiano Javier Naranjo, que acaba de sair pela editora Foz, com ilustrações da francesa Lara Sabatier.
    Javier teve a ideia de unir frases de seus alunos em 1988, durante uma festa de comemoração do Dia da Criança, quando pediu para que cada um da turma escrevesse em seu caderno uma resposta para a questão "O que é uma criança para você?".
    Desde então, o professor foi juntando definições de crianças para palavras como adulto ("Pessoa que, em toda coisa que fala, vem primeiro ela", segundo Andrés, 8), branco ("O branco é a cor que não pinta", Jonathan, 11), corpo ("É no que colocamos a roupa", Camila, 7) e tempo ("É hora, é demora", Ligeya, 9). Veja outras abaixo.

    Casa de Estrelas

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    Lara Sabatier/Divulgação
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    Família - É ter irmãos, ter um pai, ter um animal, uma vaca e um cavalo. (Jean David Tangarife, 4)
    A ideia é valorizar o que dizem as crianças, já que, segundo Javier, "em todos os lugares do mundo sua voz é menosprezada".
    Muitos dos alunos de Javier hoje são adultos, e ele se encontrou com alguns deles já crescidos. "Eles reafirmaram com um brilho de verdade nos olhos o que disseram quando pequenos", conta.
    Lara, ilustradora de Paris que mora na Bolívia, imaginou o livro como a vida -começou com a infância e foi até a velhice.
    Ao final, ela desenha uma equilibrista. Para Lara, essa figura representa a busca pela felicidade, que ela define como "um equilíbrio entre alegria, amor, ódio e raiva".
    A frase favorita de Lara é a definição de Weimar, 9, para quem a eternidade "é esperar uma pessoa".
    "CASA DAS ESTRELAS"
    AUTOR Javier Naranjo (tradução Carla Branco)
    EDITORA Foz
    PREÇO R$ 29,90
    INDICAÇÃO a partir de 7 anos

    Ruy Castro

    folha de são paulo

    Muitos Réveillons

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    RIO DE JANEIRO - Foram muitos Réveillons. Num deles, rapazes e moças moradores do Solar da Fossa, em Botafogo, marcharam em grupo pelo Túnel Novo, rumo à vizinha Copacabana. Como planejado, entraram no túnel, com seus risos e cantos, beijos e abraços, a poucos minutos da meia-noite. Quando esta chegou, os gritos e uivos reverberaram pelas paredes, confundindo-se com as buzinas, e, ao sair no outro lado, já era o Ano-Novo –1968. Como num túnel do tempo –como em Robert Heinlein ou Ray Bradbury.
    No Réveillon seguinte, o LP com a trilha sonora do filme "2001: Uma Odisseia no Espaço", lançado meses antes, foi levado de festa em festa pelos apartamentos do Solar –uma fogueira de luzes e gente–, para que os acordes iniciais de "Also Sprach Zarathustra", de Richard Strauss, saudassem o novo ano. Havia algo de triunfal e, nem desconfiávamos, de mau agouro naquela música –bem de acordo com a passagem de 1968 para 1969, do sonho para o pesadelo.
    Houve vários Réveillons a bordo, na baía de Angra, com o saveiro jogando em movimentos quase imorais; Réveillons no morro da Urca, que pareciam durar até o Carnaval e se confundir com ele; e um Réveillon em cidade incerta e na companhia de alguém que a memória tentou –e conseguiu– apagar. E houve um Réveillon em Nova York, em que a abstinência recém-conquistada esteve a um gole de ser quebrada, e só não foi porque a mão da namorada afastou a garrafa de champanha que ele levava à boca.
    Houve um Réveillon no sul da Bahia, em cujas areias se enterraram os ossos de uma história que começara bonita e ficara feia. Talvez por isso, o Réveillon seguinte tenha sido passado sozinho, em praia neutra, para que os fantasmas, deixados para trás, não encontrassem o caminho de volta.
    Deu certo porque, desde então, todos os Réveillons têm sido bonitos.

    Helio Schwartsman

    folha de são paulo

    Pessimismo de um otimista

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    SÃO PAULO - Analisando friamente, eu me classifico como um otimista incorrigível. Sou daqueles que acham que, do Pleistoceno para cá, a vida das pessoas melhorou quase infinitamente. Mesmo no horizonte mais curto dos milênios e séculos, penso que o progresso tem sido notável. Descobrimos uma série de coisas úteis, como agricultura, especialização do trabalho, dinheiro, uso de fontes de energia, antibióticos, vacinas, que nos fizeram viver mais e com maior opulência.
    Assim, não creio que seja por flertar de forma contumaz com o pessimismo que digo que o Brasil está perdendo mais um bonde da história. Essa minha constatação, infelizmente, tem amparo na realidade.
    Sob o governo de Dilma Rousseff, o PIB brasileiro vem crescendo por volta de 2% ao ano em média. É bem menos que os 4,05% de Lula e não supera os 2,31% de FHC (que o PT sempre pintou como medíocres). As cifras de Dilma, portanto, embora longe de brilhantes, não chegam a ser desesperadoras –ao menos não quando analisadas isoladamente.
    O problema é que o Brasil está desperdiçando seu bônus demográfico, o período em que o contingente de pessoas em idade de trabalhar é maior que as coortes de dependentes (jovens e idosos). É nessa fase que países reúnem as condições mais propícias ao crescimento.
    Nosso bônus demográfico teve início nos anos 70 e estamos chegando perto de seu apogeu. A situação deve permanecer favorável mais ou menos até 2030 e, a partir de 2043, a população começará a declinar.
    Se não aproveitarmos a janela auspiciosa dos próximos anos para tornar o Brasil um país relativamente rico, será bem mais difícil fazê-lo depois, quando a população de idosos estará crescendo rapidamente, o que implicará mais gastos com aposentadorias e o sistema de saúde. E os 2% anuais de crescimento entregues até aqui ficam muito aquém de colocar o Brasil numa posição confortável.
    hélio schwartsman
    Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na versão impressa da Página A2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos e às quintas no site.

    Monica Bergamo

    folha de são paulo

    Cerveja é bebida preferida do brasileiro para comemorar, segundo pesquisa

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    Cerveja é a bebida preferida do brasileiro para comemorar os bons momentos. Ela é considerada a opção ideal por 64% das pessoas, seguida por espumante (10%), vinho (5%) e destilados (3%), segundo pesquisa feita pelo Ibope em novembro com 2.000 entrevistados de todas as faixas sociais. Outros 16% gostam de bebidas sem álcool, como refrigerante.
    TIM-TIM
    Na classe A, a cerveja tem um percentual ainda maior de preferência: 67%. Os fluminenses são mais fãs do que os paulistas. Segundo o levantamento, feito por encomenda da CervBrasil (Associação Brasileira da Indústria da Cerveja), a preferência pela bebida alcança 77% no Rio, ante 63% em São Paulo.
    PASSADO A LIMPO
    Dois militares que a presidente Dilma Rousseff apontou como autores de torturas que sofreu na ditadura serão convocados para depor na CNV (Comissão Nacional da Verdade). O pedido para Maurício Lopes Lima e Homero Machado serem ouvidos foi feito por movimentos de defesa da memória e direitos humanos. Pelo menos três militantes que se dizem vítimas dos agentes já se ofereceram para contar sua história à CNV.
    NA FLÓRIDA
    Dono de um apartamento em Miami, Roberto Justus está na cidade e cercado de suas ex-mulheres. Três delas também elegeram a Flórida como destino de fim de ano. Adriane Galisteu alugou apartamento em Orlando. Desde o nascimento de Vittorio, é onde tem reunido a família nos últimos três anos. "Seremos 12 pessoas", diz ela.
    *
    Eliana também alugou casa e foi para Miami com o marido e o filho. Ticiane Pinheiro, que se separou de Justus no ano passado, viajou para a Flórida com a filha deles, Rafaella. Depois, vai tirar uns dias para esquiar nos EUA.
    SAUDANDO A BAHIA
    A pousada Estrela d'Água foi um dos pontos de encontro dos paulistanos em Trancoso no fim do ano. Festa do Glamurama reuniu os atores Fernanda Paes Leme, Patrícia Barros, Caroline Bittencourt, Bruna Lombardi, Carlos Alberto Riccelli e Alexia Dechamps. Também compareceram: Ana Paula Junqueira, o piloto Dudu Massa e os empresários Bruno Dias, Felipe Simão e Bazinho Ferraz.

    Famosos se encontram em Trancoso

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    Divulgação
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    A atriz Fernanda Paes Leme esteve na pousada Estrela d'Água, em Trancoso (BA), para festa promovida pelo site Glamurama
    BATE CORAÇÃO
    A médica Luana Mousallen, 38, que acompanhou Caetano Veloso a uma apresentação de "Elis, a Musical", no Rio, no último dia 27, postou um elogio ao cantor e compositor baiano em 22 de março do ano passado em sua página no Facebook: "Caetano Esplendoroso já fez o melhor show de 2013. Hoje eu mando um abraçaço!!"
    *
    Apontada como nova namorada do músico baiano, ela consta como integrante do corpo clínico do hospital Pró-Cardíaco e de uma das câmeras técnicas do Conselho Regional de Medicina do Rio, na área de nutrologia.
    BEM DE FAMÍLIA
    Bisneto de Oscar Niemeyer, Carlos Ricardo Niemeyer acompanha do Rio as investigações sobre o incêndio no Memorial da América Latina, em SP. "Vamos contribuir da maneira que pudermos para a recuperação do auditório", diz ele, que é superintendente da fundação com o nome do arquiteto. A entidade ofereceu ajuda à direção do memorial.
    AUTORIZADA
    A biografia de Grace Kelly será lançada ainda neste mês, às vésperas da estreia do filme que tem Nicole Kidman no papel principal. A atriz também assina o prefácio de "Grace - A Princesa de Mônaco" (ed. LeYa). Jeffrey Robinson, autor da obra, viveu no sul da França por muitos anos e conheceu a biografada e sua família de perto. O príncipe Rainier, marido da princesa, fez uma única exigência ao biógrafo: "Diga a verdade"
    COMEÇOU O VERÃO
    A abertura oficial da temporada do Café de La Musique, em Florianópolis, levou ao point do verão catarinense o deputado federal Romário (PSB-RJ) e o nadador Fernando Scherer, com a mulher, Sheila Mello, e a filha, Brenda. O clube de praia reuniu também o ator Lui Mendes e modelos como Monique Olsen e Fernanda Motta, grávida de oito meses de sua primeira filha, Chloe.

    Personalidades no verão em Florianópolis

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    Cassiano de Souza/Divulgação
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    O nadador Fernando Scherer, com a mulher, Sheila Mello, e a filha, Brenda, passaram pelo Café de La Musique em Florianópolis
    CURTO-CIRCUITO
    Cezar Roberto Leão Granieri, presidente do Sindi-Clube, foi empossado como integrante do Comitê São Paulo Rumo a 2016.
    Neste fim de semana, o MIS vai funcionar até as 2h, de sábado para domingo, por causa dos últimos dias da exposição sobre Stanley Kubrick. A visitação vai até 12 de janeiro.
    A peça "A Morte de Ivan Ilitch", com direção e atuação de Cássia Goulart, começa temporada no Sesc Ipiranga no dia 4, sábado. 14 anos.
    com ELIANE TRINDADE (interina), JOELMIR TAVARES, ANA KREPP e MARCELA PAES
    mônica bergamo
    Mônica Bergamo, jornalista, assina coluna diária publicada na página 2 da versão impressa de "Ilustrada". Traz informações sobre diversas áreas, entre elas, política, moda e coluna social. Está na Folha desde abril de 1999.

    Marcelo Coelho

    folha de são paulo
    Walter Mitty
    Filme protagonizado e dirigido por Ben Stiller combina bem com as sensações do final de ano
    Qualquer que seja o livro, e qualquer que seja o filme, em geral todo mundo concorda: o livro é muito melhor. Com "A Vida Secreta de Walter Mitty", acontece o contrário.
    O filme, dirigido e estrelado por Ben Stiller, tem uma riqueza de conotações e uma exuberância imaginativa que o simpático e curtíssimo conto de James Thurber (1894-1961) não consegue alcançar.
    O texto, publicado pelo cartunista e escritor americano em 1939, parte de uma excelente ideia --e praticamente se resume a essa ideia apenas. De profissão indefinida, com uma mulher exigente e banal, Walter Mitty visita o centro de sua cidadezinha dirigindo seu automóvel --que imediatamente, em sua imaginação, transforma-se numa embarcação de guerra.
    Ele tem de levar a mulher até o cabeleireiro e comprar ração de cachorro no armazém. Essas atividades comuns se transfiguram numa cirurgia de alto risco ou no sensacional julgamento de um assassino impiedoso.
    Os parágrafos do conto se alternam simetricamente entre a vida comum e as fantasias, alimentadas de literatura barata e reportagens sensacionalistas, em que o personagem submerge.
    Apesar de sua doçura humaníssima, o conto padece de um esquematismo formal, de um tique-taque entre as situações, que torna suas poucas páginas até excessivas para o ponto que se quer demonstrar.
    James Thurber traduz para a vida concreta americana algo que Baudelaire, num poema em prosa ainda mais seco e óbvio, já fizera em meados do século 19. O marido viaja nas nuvens, enquanto a mulher grita para que ele tome a sopa de uma vez.
    Para lembrar de outros personagens parecidos, Walter Mitty é também um ancestral de Snoopy, o cachorrinho das tiras de Charles Schulz, que por vezes brinca de ser um ás da aviação na Primeira Guerra Mundial ou o bacanão de um campus universitário.
    No filme atualmente em cartaz, Walter Mitty é solteiro, e sabemos tudo de sua profissão. Ele é encarregado de arquivar os negativos fotográficos da revista "Life", o que faz com que seu emprego esteja duplamente ameaçado.
    A revista toda será fechada, em tese porque o jornalismo impresso perde espaço para mídias digitais; pior ainda, nenhum fotógrafo usa o filme convencional, de modo que já não há negativos para guardar.
    Com esse contexto concreto e atualizado para o conto, o roteiro do filme (assinado por Steve Conrad) cria ao mesmo tempo uma metáfora que dá novos significados à situação.
    Walter tem de achar o negativo de uma imagem especialíssima, feita pelo aventuroso e genial fotógrafo Sean O'Connell (Sean Penn). Viajando pelos lugares mais perigosos e selvagens do planeta e enfrentando todo tipo de perigos (Afeganistão, Groenlândia, neves, terroristas, vulcões), o fotógrafo tem no medroso Walter Mitty seu exato "negativo".
    Enquanto isso, as fantasias do personagem se imiscuem no filme de um modo muito menos mecânico do que no conto. No universo de James Thurber, a ficção impressa ainda era o que fornecia o ópio imaginativo do personagem --isso, num tempo em que o cinema já reinava na cultura americana.
    No filme de Ben Stiller, a passagem para o ilusório se faz sem quebras, uma vez que tudo --seja verdadeiro ou fantasioso-- já se passa no ambiente onírico por excelência, o dos filmes de Hollywood.
    É assim que o espectador terá de atentar para ilusões em dupla direção. Sem aviso prévio, Walter Mitty sai da realidade para um mundo de aventuras hollywoodianas. Mas a própria realidade é hollywoodiana, e a história do filme pode conferir ao personagem saídas que o conto não se dispunha a oferecer.
    Como um negativo fotográfico, o verdadeiro Walter Mitty será "revelado" ao longo do enredo --mas o espectador pode se perguntar se esse novo personagem é de fato "verdadeiro" ou simplesmente uma nova, e mais elaborada, ilusão.
    Estou, em todo caso, sofisticando demais um filme talvez longo demais, e que aspira a ser, sobretudo, um entretenimento de ótimo nível. Como sempre, saímos do cinema para reencontrar, inalterada, a realidade de nossas próprias limitações e de um cotidiano tantas vezes desinteressante.
    Mas, quando o ano termina, e alguns projetos se fazem para o futuro, é também possível que ao olhar para trás a gente perceba que muita preocupação real agora já se transformou em ilusão.
    Cada pessoa, que mal se conhece a si mesma, pode ter sido vítima de aparências e de sombras sem substância. Quem sabe se descubra como realmente é, melhor e mais forte do que pensava. Talvez essa descoberta seja apenas outra invenção, não importa. Como dizem no Ano-Novo, importa mais que seus sonhos se realizem.