quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O que a Folha pensa

folha de são paulo
O que a Folha pensa
Em época de manifestações e ano de eleição, verifique os principais pontos de vista defendidos pela Folha
DE SÃO PAULO
Desde que circulou sua primeira edição, em 19 de fevereiro de 1921, a Folha não só acompanhou as inúmeras transformações ocorridas no Brasil e no mundo, mas também se viu transformada por elas. As opiniões que hoje expressa em seus editoriais são fruto de uma experiência acumulada nesses 93 anos.
As últimas décadas, em especial, foram decisivas para assentar os princípios sobre os quais as posições do jornal são construídas.
A história mostrou que o melhor arranjo institucional conhecido é aquele capaz de preservar liberdades tanto na política quanto na economia. Não há, portanto, como relativizar a democracia nem o Estado de Direito.
Pelos mesmos motivos, é preciso estimular a livre-iniciativa e o desenvolvimento, no Brasil, de uma economia de mercado, sem deixar de reconhecer o papel do Estado na correção de desequilíbrios e redução das desigualdades.
O apoio à união civil entre pessoas do mesmo sexo ou à descriminalização do uso de drogas, por exemplo, decorre da percepção de que as liberdades individuais se ampliaram nas sociedades contemporâneas, nas quais a própria religião se tornou assunto da esfera privada.
No plano internacional, duas guerras mundiais e conflitos recentes no Oriente Médio evidenciam os riscos de políticas intervencionistas, bem como a importância da via diplomática e dos mecanismos multilaterais que ajudem a equilibrar o peso das nações.
JURISPRUDÊNCIA
Tais princípios gerais funcionam como pedra de toque para os editoriais que a Folhapublica diariamente. Cabe à editoria de Opinião, a cada novo assunto, elaborar argumentos coerentes com tais diretrizes, tentando traduzi-las para um público amplo.
Exceto quando há mudança expressa de posição, o próprio histórico dos editoriais também serve de baliza. Opiniões já publicadas funcionam como "jurisprudência" do jornal.
O fato de a Folha declarar sua opinião por meio dos editoriais não impede que os diversos colunistas (de colaboração periódica) e articulistas (esporádica) manifestem posição diferente.
O pluralismo é uma das marcas da Folha não só nos textos de opinião, mas também nas reportagens --que procuram enfocar a informação sob vários ângulos e que tampouco são dirigidas pelos editoriais.
COPA E OLIMPÍADA
O Brasil merece sediar esses grandes eventos esportivos, por sua projeção simbólica e pela oportunidade de expandir turismo e obras de infraestrutura. Mas a sociedade deve cobrar mais planejamento e maior transparência nos gastos. Na Copa do Mundo, o montante de recursos públicos investidos foi excessivo, e o legado deverá ficar aquém do desejável
MANIFESTAÇÕES
Os protestos de junho revelaram saudável inconformismo e sacudiram o sistema político do torpor em que se encontrava. Se o direito de manifestação deve ser protegido, nem por isso pode ser exercido sem nenhuma regra. Atos de violência contra pessoas ou contra o patrimônio público ou privado precisam ser coibidos pela polícia, que deve agir de modo a garantir a ordem pública e os direitos de todos com o mínimo de danos. Vândalos devem ser identificados e punidos, nos termos da lei; manifestantes não podem ser confundidos com bandidos
MOBILIDADE URBANA
O caos nos maiores centros urbanos não deixa dúvida: a prioridade deve ser dada ao transporte coletivo, em detrimento do individual. Medidas restritivas, como rodízio e pedágio urbano, são imprescindíveis, e ciclovias seguras precisam ser construídas. É fundamental, além disso, planejar o crescimento da cidade de forma mais compacta, demandando menos deslocamentos. A expansão do Metrô precisa ser mais célere, e os ônibus devem circular em corredores modernos, com faixa de ultrapassagem e pagamento de tarifa antes do embarque. Como tais iniciativas requerem investimentos de monta e como o sistema já é fortemente subsidiado, a demanda por uma tarifa zero, ao menos por ora, é irrealista
DROGAS
Desde a década de 1990, o jornal reconhece a ineficácia de políticas com foco na repressão e defende uma abordagem pela ótica da saúde pública. Preconiza, assim, a descriminalização do uso das drogas. A partir de 2011, considerando, por exemplo, que a produção e a venda dessas substâncias, se taxadas e controladas, poderiam gerar recursos para prevenção e tratamento, passou a ser favorável a uma legalização cautelosa e gradual. O ponto de partida seria a maconha, com limitações e campanhas educativas análogas às do álcool e do tabaco. Nada disso, no entanto, deveria ocorrer sem coordenação internacional. No plano doméstico, a iniciativa deve passar por mecanismos de consulta popular, como plebiscito e referendo
SAÚDE
O quadro é conhecido: carência de médicos em regiões afastadas, ausência de leitos nos hospitais e enormes filas para consultas e exames. Faltam recursos, mas o sistema não melhorará se não passar por uma reforma gerencial, o que inclui melhores condições de trabalho. A eficiência hospitalar, por exemplo, é muito baixa, e a má distribuição das verbas deixa o país com um número insuficiente de equipes de saúde da família. O modelo das organizações sociais, com a devida fiscalização, oferece ganhos em termos de agilidade de serviços e gestão de recursos humanos. É preciso, além disso, melhorar o ensino de medicina. Enquanto o país não forma o número de profissionais de que necessita, o recurso a médicos estrangeiros é aceitável, embora seja apenas paliativo
BOLSA FAMÍLIA
O Brasil ainda precisa de programas de transferência direta de renda, mas eles devem exigir contrapartida do beneficiário. O Bolsa Família, por exemplo, acerta ao cobrar que os filhos de 6 a 15 anos estejam matriculados em uma escola e que frequentem 85% das aulas; que gestantes façam exame pré-natal; e que as crianças menores de sete anos sejam levadas a postos de saúde para vacinação e acompanhamento nutricional. O programa, entretanto, peca pelas poucas portas de saída, ou seja, oportunidades criadas para que os beneficiários deixem de precisar da bolsa
CRACOLÂNDIA
Nenhuma ação terá sucesso se não integrar poder público nos três níveis, além de equilibrar repressão policial ao tráfico e medidas de cunho assistencial para o usuário. É necessário, além disso, haver um plano de médio prazo para restaurar ruas e edifícios degradados
ABORTO
Como regra geral, o jornal entende que o tema deve ser tratado à luz da saúde pública e dos direitos da gestante. Considera que o STF agiu bem ao admitir interrupção da gravidez de feto anencéfalo, mas entende que eventual ampliação dos casos em que o aborto não é considerado crime deveria ser objeto de plebiscito ou referendo. Independentemente disso, é preciso estimular políticas de planejamento familiar e ampliar a difusão das pílulas do dia seguinte, o que reduziria a incidência estatística do aborto
ECONOMIA
O país precisa crescer de forma equilibrada, tornando-se menos suscetível a turbulências internacionais e buscando assegurar a todos os brasileiros os benefícios do desenvolvimento. Ajustes necessários, ainda que pouco populares, devem ser feitos o quanto antes e de forma paulatina, a fim de que a população não seja submetida a choques. É crucial, além disso, que o ambiente de negócios funcione sob regras simples e previsíveis. Entre outras, as seguintes ações devem ser adotadas:
Reduzir o gasto público como proporção do PIB
Reduzir a dívida pública
Perseguir inflação baixa e reduzir meta oficial no médio prazo
Reduzir e reformar progressivamente a carga tributária, tornando o sistema mais simples, ágil e justo
Aumentar a parcela do gasto público com investimentos na infraestrutura
Direcionar a política industrial para inovação e tecnologia
Aumentar eficiência do serviço público
Reformar a Previdência, o que implica, entre outras medidas, aumentar a idade da aposentadoria conforme a população fique mais longeva
Conceder mais serviços públicos à iniciativa privada
Fortalecer as agências reguladoras
Acabar com a guerra fiscal entre os Estados
EDUCAÇÃO
Melhorar a qualidade do ensino é central para o futuro do país. A lista de deficiências é imensa e não passa apenas pela carência de recursos. A formação de muitos professores é ruim. Atrair mais talentos demanda incentivos, como valorização salarial, plano de carreira e bônus por desempenho. Exames de avaliação são ferramentas importantes para estabelecer metas e podem guiar os necessários programas de aprimoramento e reciclagem. É imperioso, além disso, formular um currículo nacional mínimo, que seja preciso e enxuto, sem experimentalismos. Iniciativas que fracassem na prática, como foi o caso da progressão continuada, devem ser modificadas o quanto antes
CULTURA
Por sua dimensão pública, mecanismos de incentivo à produção cultural são bem-vindos. Políticas específicas deveriam focalizar o circuito escolar e educacional, a preservação do patrimônio e o estímulo a setores que não encontrem sustentação no mercado. Defensor do respeito aos direitos autorais, o jornal é fortemente contrário ao dirigismo cultural, ao controle de conteúdo e à censura, estando de acordo com a classificação indicativa e a autorregulamentação. É a favor, portanto, da livre produção de biografias não autorizadas, com responsabilização posterior, como em qualquer caso envolvendo liberdade de expressão e de imprensa
INTERNET
As revelações de Edward Snowden a respeito das atividades de espionagem do governo norte-americano reforçaram os estímulos para que a comunidade internacional discuta a descentralização da gestão da internet. Ao lado dessa agenda, persiste a necessidade de garantir a concorrência no ambiente digital, cuja tendência ao monopólio tem-se tornado evidente. No plano nacional, é crucial assegurar a remuneração para os produtores de conteúdo e aprovar, o quanto antes, o Marco Civil da Internet -lei com a função de regular direitos e deveres no mundo virtual. Seus pontos mais importantes são a neutralidade de rede (princípio que impede a operadora de alterar a qualidade da conexão pra privilegiar ou prejudicar determinado site) e a regra sobre conteúdo postado por terceiros (os sites só devem ser responsabilizados se, após ordem judicial, não removerem material questionado)
POLÍTICA
O jornal defende mecanismos que aumentem a transparência e a fiscalização por parte da sociedade. Os exemplos recentes de maior impacto foram a Lei de Acesso à Informação e o fim do voto secreto no Congresso. No que respeita à necessidade de uma reforma, pressão contínua pela melhoria da cultura política tende a ser mais efetiva que propostas mágicas. No passado, o parlamentarismo foi apoiado, mas não está mais em pauta. Os pontos hoje endossados são, entre outros:
Adoção de voto distrital misto com lista aberta (sistema existente na Alemanha, no qual o eleitor faz duas escolhas: a de uma legenda e a de um candidato individual, em distritos específicos)
Cláusula de desempenho (mecanismo que outorga tempo de TV e fundo partidário apenas a siglas com representatividade significativa no Congresso)
Voto facultativo
Correção da distorção entre as bancadas na Câmara dos Deputados (atualmente, parlamentares de Estados menores representam menos eleitores que os de Estados maiores)
Prestação de contas de campanha em tempo real, na internet
Estabelecimento de teto em valores absolutos para doações de pessoas físicas e jurídicas, que devem ser admitidas
SEGURANÇA PÚBLICA
A polícia do Brasil precisa ser mais bem treinada e deveria contar com melhores condições de trabalho e melhores salários. No cumprimento de sua missão, a lógica do confronto sistemático deveria ser substituída pela da prevenção e da inteligência. Na outra face dessa moeda, o jornal entende que o endurecimento das penas não é a resposta mais adequada ao problema da criminalidade. É contra a adoção da pena de morte e da redução da maioridade penal, mas considera que deveria ser ampliado o prazo de internação possível do adolescente infrator e que, no caso dos adultos, a progressão de regime nas prisões deveria ser mais difícil em certos tipos de crime. Por outro lado, seria desejável uma ampliação do uso das penas alternativas. Em tese, com o amadurecimento legislativo, a pena de prisão deveria ser reservada apenas aos criminosos que empregassem violência ou grave ameaça na consecução de seus delitos
UNIÃO HOMOSSEXUAL
Casamento civil entre pessoas do mesmo sexo deve ser colocado em pé de igualdade com relações heterossexuais. Cidadãos não podem sofrer discriminação de nenhuma natureza em decorrência de suas escolhas privadas relativas à orientação sexual
MERCOSUL
O bloco permite maior integração regional e traz ganhos de escala para suas empresas, mas faz anos que tem sido um entrave ao comércio exterior brasileiro. Seu maior problema é funcionar como uma união aduaneira, em que todos os membros adotam uma tarifa comum nas transações com países de fora do grupo. Se isso em tese traria maior poder de barganha, na prática apenas paralisa negociações bilaterais que poderiam ser mais vantajosas. O ideal é que o bloco viesse a operar como zona de livre-comércio, com tarifa zero entre os países-membros
COTAS
Não deve haver reserva de vagas a partir de critérios raciais, seja na educação, seja no serviço público. São bem-vindas, porém, experiências baseadas em critérios sociais objetivos, como renda ou escola de origem
ISRAEL-PALESTINA
A fim de buscar a paz, é preciso abandonar políticas que acirrem o confronto, como os assentamentos de colonos judeus em território palestino ou os ataques dirigidos a Israel. De resto, embora difícil, a solução dos dois Estados com capital compartilhada deve ser perseguida. O Brasil deveria manter equidistância nesse conflito, até por contar com expressivas comunidades árabe e judaica
CUBA
O jornal considera injusto o embargo econômico imposto à ilha pelos EUA. Entende, ao mesmo tempo, que a diplomacia brasileira deveria criticar as violações aos direitos humanos cometidas pela ditadura dos irmãos Castro, assim como por qualquer ditadura

Francisco Daudt

folha de são paulo
O que nos leva a crer
Outro truque é a tal da 'sabedoria milenar'. Dizem: 'se esse saber atravessou os tempos, deve ser verdade'
O filósofo John Searle perguntou certa vez a Michel Foucault por que seus escritos eram tão obscuros, se ele era tão compreensível na conversa. Foucault respondeu que 25% de um texto precisavam ser de um nonsense incompreensível para que fossem levados a sério por filósofos franceses [extraído de artigo publicado na eSkeptic].
É claro que me lembrei da vergonha de não ter entendido algum texto ou palestra, e o medo de dar isto a perceber e, em consequência, ser considerado burro.
O mesmo se passava com as intervenções enigmáticas de meu psicanalista. Causavam-me perplexidade, e eu ficava dando tratos à bola para saber qual o significado oculto daquele oráculo.
O pior era que às vezes eu achava que tinha entendido. E ficava maravilhado com minha descoberta: havia-me sido tão custosa que só podia ser verdadeira. Meu esforço de interpretação me levava a crer em sua veracidade.
Lembrei-me depois de uma afirmação de Lacan que se encaixava perfeitamente na minha experiência como paciente: "Em nenhum caso uma intervenção psicanalítica deve ser teórica, sugestiva, quer dizer, imperativa; ela deve ser equívoca. A interpretação analítica não é feita para ser compreendida; ela é feita para produzir ondas."
Esse tempo de ter medo de que me achassem burro já passou há muito. Ele foi substituído por uma irritação com qualquer texto metido a besta, que contenha obscuridades em geral, e esoterismos (no sentido de "conhecimento para poucos") em particular.
Seja como psicanalista, como escritor, enfim, como eu (ego), a clareza e a transparência tornaram-se um farol guia para mim.
Se o que digo não for entendido, a culpa é minha, que não me fiz claro o bastante.
Fui vendo, com o tempo, que há artifícios, verdadeiros truques --como esse de ser incompreensível--, que não têm nada a ver com a lógica que nos convenceria da veracidade de alguma afirmação ou tema, mas que lhes dão uma aparência grandiosa, causando em nós uma impressão de tamanha importância que acabávamos por aceitar a coisa como verdadeira.
Outro truque é a tal da "sabedoria milenar". As pessoas dizem, "se esse saber atravessou os tempos, deve ser verdade".
Pois eu digo, se ele atravessou tanto tempo sem se alterar, sem ser modificado pelo questionamento, deve ser dogma ou tabu. É algo protegido pelo sagrado ou pela fé.
As Escrituras, a astrologia e a medicina chinesa são exemplos.
A história do que fazer com o lixo nuclear é fascinante. "Vamos enterrá-lo e deixar avisos para ninguém chegar perto". Mas, que linguagem duraria 10.000 anos (o tempo de perigo radioativo)? Só uma, concluíram: o tabu religioso.
Outro artifício é o argumento de autoridade: "Roma locuta, causa finita" (Roma falou, questão encerrada). Nicolás Maduro afirma se comunicar com Hugo Chávez por meio de um passarinho. Quem vai discutir com ele?
Não quero ser "levado a crer" por truques. Quero ser convencido pela lógica, e não vencido pela reverência.

    Elio Gaspari

    jornal o globo
    ELIO GASPARI
    O século 20 condena os EUA do 21
    O que eles fizeram para proteger a cultura europeia deixaram de fazer no saque do museu de Bagdá
    Está nos cinemas "Caçadores de Obras-Primas" ("Monuments Men", baseado no livro que tem o mesmo título). Conta uma magnífica história: a de professores e museólogos americanos e ingleses que desembarcaram na Europa em 1944 com a missão de salvar tesouros artísticos durante a maior guerra de todos os tempos. Permite duas horas de divertimento e emoção. (O velhote da cena final é o pai de George Clooney, cujo personagem, na vida real, foi um conservador de Harvard.) Noves fora a corrida à la Spielberg contra os russos que estavam às portas da mina onde estavam os tesouros, suas diferenças com a história real não têm maior importância.
    O filme joga o passado dos Estados Unidos contra seu presente. Há sessenta anos o secretário de Defesa Henry Stimson salvou a cidade japonesa de Kyoto de tomar uma bomba atômica porque lembrou-se de seu valor histórico. Os professores e museólogos protegeram algumas igrejas de cidades europeias. Nada puderam fazer para evitar a destruição da abadia medieval de Monte Cassino nem para tirar a cidade de Pisa da lista de alvos de bombardeios. Nisso foram-se afrescos, sarcófagos e esculturas do campo santo da cidade, cujo valor histórico excedia o da torre inclinada.
    Passado meio século, as tropas americanas invadiram o Iraque sem dar qualquer atenção aos professores e museólogos que pediam proteção para sítios arqueológicos e, sobretudo, para o museu de Bagdá. Suas coleções equiparavam-no aos melhores do mundo. Tratava-se apenas de replicar uma iniciativa que enobrecera as Forças Armadas americanas, mas a tropa entrou em Bagdá sem qualquer instrução para proteger o museu. Nela havia só dois oficiais capazes de distinguir uma tabuleta milenar de um pedaço de barro com marcas esquisitas. O comandante da invasão disse que não tinha tempo para cuidar de besteiras e, quando o saque começou, havia uma tropa próxima, mas tinha ordens apenas para orientar o trânsito. A rapina durou dois dias e teve a marca de profissionais que foram atrás do que havia de melhor. Sumiram milhares de peças, talvez 10 mil, muitas das quais do tamanho de um isqueiro que chegam a valer centenas de milhares de dólares. Foram recuperados 750 objetos, alguns deles nos mercados de antiguidades americano e europeu. Noutro lance, a tropa nada fez quando um incêndio destruiu a biblioteca nacional do Iraque. Estavam atrás de armas de destruição em massa que não existiam e não evitaram a destruição de uma parte existente da memória do amanhecer da civilização.
    Pesquisadores iraquianos protegeram perto de dez mil peças, mas ninguém contará sua história num filme com George Clooney e Cate Blanchett, a heroína francesa Rose Valland. Sua história já foi contada num grande filme, "O Trem", de John Frankenheimer.
    Numa hora em que se dá o devido valor aos "Monuments Men", vale lembrar o nome de Tony Clarke. Ele era um jovem capitão inglês e em 1944 estava artilhado nas montanhas que dominam a cidade de Sansepolcro, com ordens para canhoneá-la. Lembrou-se de um livro que contava as maravilhas do afresco "Ressurreição", de Piero della Francesca, conservado num prédio da cidade e decidiu suspender o fogo. Na mosca: os alemães já tinham ido embora. Hoje Clarke é nome de rua na cidade.

    Yvonne Bezerra de Mello

    folha de são paulo
    YVONNE BEZERRA DE MELLO
    Refletir é preciso
    O jovem acorrentado ao poste e o que atirou o rojão são parte de uma juventude ignorante empurrada para a sociedade de consumo
    Todos nós temos que começar a refletir sobre qual país criamos e qual país queremos. Já é hora. Infelizmente, isso não parece ser uma preocupação dos brasileiros.
    Os últimos acontecimentos no Rio de Janeiro e em outros grandes centros urbanos não foram suficientes, pelo menos não ainda, para que parássemos e pensássemos sobre as causas da crescente violência, especialmente entre jovens.
    Nunca se matou tanto, nunca se excluiu tanto, nunca foi tão grande a intolerância contra minorias, etnias e crenças religiosas. Hoje vivemos em cidades do medo, nas quais estar seguro é estar em casa.
    Aceitamos e aplaudimos jovens torturados em plena rua, aceitamos e aplaudimos execuções sumárias e demonizamos aqueles que tentam, de uma forma ou de outra, mudar esse quadro. Achamos que a barbárie é mais forte do que as leis, muito porque existe de fato uma desobediência e ignorância civil. O Brasil vive um vácuo institucional. Instalamos a estrutura do caos.
    A cidadania não é objeto da discussão e ainda não faz parte do processo educacional brasileiro. Posicionada no final dos rankings internacionais, a escola brasileira não educa nem instrui. E mais: a deterioração dos padrões de comportamento da política brasileira repercute em todas as classes sociais. Não temos uma orientação de conduta ética.
    Nesse estado de coisas, os grupos sociais ficam sem a resposta das instituições a seus anseios, deterioram-se, agrupam-se em verdadeiros guetos de justiceiros, paladinos da justiça para os quais a aplicação da lei se traduz na eliminação de pessoas. Assim, permitimos, em nome da nossa segurança, violações inaceitáveis de direitos para um país que se diz democrático.
    Existe diferença entre o jovem ensanguentado acorrentado ao poste que encontrei no bairro do Flamengo, no Rio, há cerca de duas semanas e o jovem que atirou um rojão durante uma manifestação e acabou matando o cinegrafista Santiago Andrade? Não existe.
    Ambos desconhecem o conjunto de regras, códigos e estruturas que devem permear uma sociedade organizada. O acorrentado, com só um ano de escolaridade, assaltava por tostões. O outro, com um pouco mais de estudo e um emprego, vendeu-se por R$ 150 (valor que seu advogado diz que ele recebeu para participar do protesto). E é somente isso que vale uma vida. Uma juventude ignorante empurrada para a sociedade de consumo que o governo procura estimular.
    A estrutura do caos inverteu valores, subtraiu a nossa cordialidade, tornou-nos vulneráveis e medrosos. Os dois jovens escancaram a falência das políticas sociais vigentes. Sentimos raiva da população da qual eles fazem parte, queremos aniquilá-la sem nos preocuparmos com as causas que nos fizeram chegar a esse ponto.
    Mas as causas são também a nossa negligência ao acharmos que o problema só passa a ser nosso quando somos assaltados ou temos parentes mortos. Só então pensamos em ações emergenciais que nos protejam, cansados que estamos da leniência das leis e da impunidade.
    A reflexão sobre a violência no Brasil deve passar pelos nossos problemas de governabilidade, de falta de gestão, de corrupção e de concentração demasiada de renda. Deve passar pelos bolsões de miséria, pela educação e instrução deficientes que persistem no país, a despeito da TV de 42 polegadas que as comunidades de baixa renda agora colocam em suas salas de estar.
    Esse é o quadro atual, que pode ser revertido por ações e pelo voto consciente. Educar nossas crianças e jovens e instruí-los com qualidade é o único caminho para o desenvolvimento. Eu faço isso todos os dias e garanto que é possível.
    O programa de salvação nacional do caos inclui todos nós. Se isso não for feito, teremos brevemente uma guerra civil. É isso o que queremos?

    Helio Schwartsman

    folha de são paulo
    Onde está o mérito?
    SÃO PAULO - No belo artigo que escreveu para a Folha na semana passada, meu amigo Eduardo Giannetti lembra que a desigualdade não é um mal em si. Ela coloca (ou não) um problema ético dependendo da forma como foi estabelecida.
    Reproduzo suas palavras: "A questão crucial é: a desigualdade observada reflete essencialmente os talentos, esforços e valores diferenciados dos indivíduos ou, ao contrário, ela resulta de um jogo viciado na origem --de uma profunda falta de equidade nas condições iniciais de vida, da privação de direitos elementares e/ou da discriminação racial, sexual ou religiosa?".
    Essa é, sem dúvida, uma distinção importante. É nela que fundamos a noção de mérito, que legitima instituições venerandas como concursos públicos, provas escolares e esportivas e até a mais arcana ideia de sucesso (ou fracasso) na vida.
    Não resisto, porém, a complicar as coisas invocando John Rawls. Para o filósofo norte-americano, a roleta genética das capacidades e aptidões naturais não é essencialmente "mais justa" do que os direitos de nascimento que a nobreza se autoatribuía ou as vantagens proporcionadas por crescer numa família rica.
    A tese é radical. Atributos como força, inteligência e beleza seriam um prêmio indevido, já que resultam de combinações aleatórias de genes e não de virtudes individuais. Se é injusto discriminar alguém devido à cor da pele, é injusto favorecer outrem porque teve a sorte de nascer com a qualidade certa na época certa.
    Aqui, a própria ideia de mérito parece derreter diante de nossos olhos. É possível salvá-la? Se temos como pressuposto uma noção mais absoluta de justiça como Rawls, creio que não. Pragmaticamente, porém, dá para defender que o Estado contrate o candidato que foi melhor na prova porque ele tende a ser mais eficiente. O problema é que assim fica mais difícil equiparar automaticamente a noção de meritocracia à de justiça.
    helio@uol.com.br

      Paradoxo - Delfim Netto

      folha de são paulo
      Paradoxo
      Diante do constrangedor resultado do IBC-Br, que procura antecipar as variações do PIB que serão anunciadas pelo IBGE, a grande maioria dos analistas financeiros está revendo para baixo as estimativas para o crescimento de 2013 e 2014. Alguns mais afoitos já sugerem que a economia brasileira teria entrado numa recessão "técnica" --dois trimestres consecutivos de crescimento negativo--, o que só se verificará quando aquele órgão divulgar os seus números.
      De qualquer forma, a situação é difícil. Apesar das recentes indicações amistosas do governo federal com relação à organização da economia por meio dos "mercados" e o seu respeito aos contratos, o comportamento de algumas agências aparelhadas com "companheiros de passeata" e a ação oportunista de governos estaduais e municipais têm prejudicado fortemente e retardado que o setor privado empresarial lhe dê um amplo voto de confiança. A visita da presidente Dilma ao Fórum de Davos em janeiro e a que deverá fazer à Comunidade Europeia, inserem-se nesse esforço.
      O restabelecimento da confiança entre o poder incumbente e a sociedade empresarial é condição necessária para que qualquer política fiscal, monetária e cambial produza os resultados esperados. Não devemos esquecer que a presidente tem a confiança da sociedade não empresarial, como revelam as pesquisas de opinião.
      É fato empírico que ajustes "expansionistas" só têm sucesso quando a constrição do Estado pela política fiscal tem tal credibilidade que desperta e liberta rapidamente o "espírito animal" do empresário privado, nacional e estrangeiro, pela mudança das "expectativas" que produz. À medida em que o investimento privado murcha por qualquer motivo, mas especialmente quando isso ocorre pelas incertezas introduzidas pelo próprio comportamento do governo revelado em sua ação, ele pode durante algum tempo ser substituído pelo investimento publico. O governo logo descobrirá que não pode fazê-lo impunemente por muito tempo, porque os desequilíbrios se manifestam na redução do crescimento, no aumento das tensões inflacionárias e do deficit em conta corrente.
      Sem a recuperação da confiança que libertará o "espírito animal" do empresário privado para substituir, com investimento mais produtivo, a demanda pública, o ajuste fiscal que vamos ter de fazer para construir um ambiente saudável será, certamente, "recessivo" e socialmente muito mais custoso. Esse é o paradoxo: sem a preliminar recuperação da confiança, a correção da situação de baixo crescimento que nos assombra exigirá um longo interregno de crescimento menor ainda! Sem essa correção, os desequilíbrios continuarão a crescer e o PIB, a patinar.

      Ruy Castro

      folha de são paulo
      Disse o "black bloc"
      RIO DE JANEIRO - Depois não digam que ele não avisou. Um "black bloc", o estudante paulista "Pedro" (nome fictício), ouvido no domingo pelo "Estado", anunciou algumas das ações planejadas por ele e por seus camaradas para a Copa do Mundo. "Nossa tática nunca foi ferir civis", balbuciou, "mas, se não formos ouvidos, a gente vai dar susto em gringo. Não queremos machucar, mas, se for preciso tacar' [coquetel] molotov em ônibus de delegação ou hotel em que as seleções vão ficar, a gente vai fazer".
      "Se uma seleção sentir que há risco de vida, eles vão querer continuar aqui?", pergunta. Diz mais: "Todo mundo [os black blocs'] deve se preparar, porque a PM vai vir em peso. A gente está se preparando com treinos de artes marciais como krav maga, jiu-jítsu e muay thai".
      Segundo "Pedro", os "black blocs" se organizam em células de 30 pessoas. Em São Paulo, seriam cerca de dez células, num total de 300 participantes "realmente ativos". Somando-se a esses os ativistas beneficiários da Bolsa-Protesto, os membros de grupúsculos com nomes românticos como "Frente Internacionalista dos Sem-Teto" e "Organização Anarquista Terra e Liberdade", e um punhado de impúberes para fazer espuma, não parece muita gente.
      Mas, se não forem "ouvidos", eles prometem descontar nos visitantes: "Não somos contra a Copa do Mundo nem contra o futebol. Nossa luta é por uma educação e uma saúde melhores".
      Os "black blocs" devem acreditar que, se sabotarem e interromperem a Copa, novos hospitais e escolas se materializarão instantaneamente. Perfeito. Os hospitais serão úteis para tratar dos PMs feridos nos protestos --não se sabe como, sempre em maior número que os vândalos. Quanto às escolas, os "black blocs" ficam na obrigação de se matricular --de preferência, no bê-á-bá-- assim que elas forem abertas.

        Bonde do Robocop

        Bonde do Robocop
        José Padilha deixa de lado a violência do filme de 1987 de Paul Verhoeven para analisar a ascensão dos drones e o poder ciborgue
        RODRIGO SALEMCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA de são paulo, DE LOS ANGELES"RoboCop", dirigido pelo brasileiro José Padilha, estreou na semana passada em terceiro lugar na bilheteria americana, com US$ 21 milhões, atrás de "Uma Aventura Lego" e "About Last Night". Na próxima sexta, entra em cartaz no Brasil, em aproximadamente 700 salas.
        O filme tem apenas 49% de aprovação dos especialistas reunidos pelo site Rottentomatoes. Por outro lado, já faturou US$ 70 milhões no mercado fora dos EUA, o que pode facilitar o sinal verde para uma sequência.
        "Não fiz o final [do filme] pensando em continuações", desconversa Padilha, que teve a ajuda dos companheiros de "Tropa de Elite" no longa: o diretor de fotografia Lula Carvalho, o montador Daniel Rezende e o compositor Pedro Bromfman.
        "Filmamos do nosso jeito", diz o diretor. "Pense bem: um projeto de US$ 140 milhões de Hollywood, mas com equipe de brasileiros. Este é o primeiro filme brasileiro de US$ 140 milhões."
        PRÉ-INTERNET
        Em 1987, quando o diretor holandês Paul Verhoeven fez o "RoboCop" original, o mundo ainda não conhecia a internet, telefones celulares eram trambolhos raros e robôs eram conceitos originários da ficção científica.
        O longa, extremamente violento e com orçamento de US$ 13 milhões, foi um sucesso nos EUA, rendendo US$ 53 milhões --a oitava maior bilheteria do ano. Ainda gerou duas sequências (esquecíveis) no cinema, uma série e uma minissérie de TV, desenho animados e dezenas de histórias em quadrinhos.
        Padilha assume a responsabilidade de refilmar "RoboCop", 27 anos depois, trocando a sátira fantasiosa e sanguinolenta pela análise mais séria da ascensão da tecnologia em serviço da indústria bélica norte-americana.
        "O clássico de Verhoeven, que adoro, está lá e ninguém vai mudar sua importância. Eu fiz outro filme, e você pode gostar dele ou não", desabafa o diretor, criticado pelos fãs por ter feito um longa menos chocante.
        "Se a lógica interna demanda violência, o longa será violento. Mas o meu fala sobre drones, o que nos torna humanos, política externa e mídia de ultradireita."
        SOLDADOS PROIBIDOS
        No novo "RoboCop", o ano é 2028. Os EUA usam robôs no Exército em guerras fora do país. Mas o Senado americano proíbe o uso dos soldados programáveis dentro das suas fronteiras.
        Para driblar a restrição, a empresa OmniCorp, comandada pelo executivo Raymond Sellars (Michael Keaton), encontra uma brecha no sistema: usar um homem dentro da máquina.
        É quando surge o policial Alex Murphy (Joel Kinnaman), que se envolve com traficantes de armas e colegas corruptos e termina perdendo boa parte do corpo numa explosão na porta da casa.
        Ele é ressuscitado pelo cientista vivido por Gary Oldman, numa armadura que funciona como suporte de vida e arma perfeita de policiamento urbano, o tal RoboCop.
        "Quando assisti ao original, ele parecia falar de um futuro distante e fantástico", diz Oldman em entrevista à Folha. "Agora temos engenheiros biônicos, telas touchscreen, simuladores, drones. O que era ficção científica, virou fato científico."
        Uma situação complexa como a do Oriente Médio poderia ser mediada por RoboCops? A refilmagem de Padilha imagina a situação em sua abertura: uma Teerã sitiada, onde o Exército robótico americano ocupas ruas e enfrenta rebeldes contra a ocupação.
        "Nunca escondi o meu corte. Não havia executivos me falando o que fazer. Eles sabiam o que eu queria desde o início, e entreguei o que prometi", afirma Padilha.
        "RoboCop' não é um simples filme-pipoca, ele levanta questões importantes", fala o ator Joel Kinnaman. "Será que vale a pena tanta segurança com o fascismo sempre em nossa esquina? E se um partido político utilizar essa tecnologia para propagar sua ideologia?"
          ENTREVISTA
          Diretor compara clima no Brasil a barril de pólvora
          COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE LOS ANGELESJosé Padilha fala de violência urbana no Brasil.
          Folha - Como RoboCop reagiria a um rolezinho?
          José Padilha - Sinto um espírito de barril de pólvora no Brasil, como nunca antes tinha sentido. Pense no rolezinho: eu não gosto de shopping center, então vou esculhambar o local? É um protesto questionável, porque existem lojistas e trabalhadores normais.
          Você enxerga conexões entre "Tropa" e "RoboCop"?
          Em "Tropa", você vê um monte de policiais sofrendo uma espécie de lavagem cerebral no treinamento, achando que tortura é algo normal. Eles se comportam como máquinas apoiadas pelo Estado.
            CRÍTICA FICÇÃO CIENTÍFICA
            Refilmagem retoma teor de sátira, mas perde humor
            ANDRÉ BARCINSKIESPECIAL PARA A FOLHA
            Vinte e sete anos separam o "RoboCop" original, dirigido pelo holandês Paul Verhoeven, deste "remake" de José Padilha.
            O filme de Verhoeven era uma sátira à era Reagan e ironizava o belicismo norte-americano, a ganância corporativa, a falta de liberdades individuais, o controle da mídia e a utopia de paz social pela força. Era uma comédia sangrenta em forma de filme B.
            O tempo passou, mas os temas continuam, basicamente, os mesmos. A ameaça não é mais a União Soviética, mas os terroristas islâmicos, e a paranoia americana continua forte (está aí Snowden que não nos deixa mentir).
            Esse filme de Padilha retoma o teor satírico do original, adaptando-o aos novos tempos. Infelizmente, sem o humor anárquico do primeiro.
            O longa começa bem, com uma sequência mostrando tropas de robôs norte-americanos, em 2028, garantindo a paz nas ruas ocupadas de Teerã. Um executivo bilionário (Michael Keaton), dono da Omnicorp, corporação que domina a tecnologia dos "soldados-robôs", tenta convencer o governo americano a abolir a polícia "humana" e botar os robôs nas ruas do próprio país.
            Mas a população resiste. Não quer um homem de lata e sem alma atirando pelas ruas. Entra Alex Murphy (Joel Kinnaman), um policial que é quase morto em uma emboscada de traficantes e ressuscita como RoboCop. Parece ser a salvação da Omnicorp "" e dos Estados Unidos.
            PERDAS
            O filme de Padilha perde do original em três quesitos importantes: as cenas de ação são genéricas, limitando-se a tiroteios e pancadarias hipervelozes em ritmo de videogame; os vilões não são marcantes como no filme de Verhoeven; e a sátira política e social logo perde a graça, de tão exagerada e caricata.
            Prova disso é o personagem de Samuel L. Jackson, um apresentador de TV ultranacionalista e histérico, claramente inspirado no personagem de André Mattos em "Tropa de Elite 2". Suas primeiras aparições são divertidas, mas a repetição e o tom caricato acabam por torná-lo um mala.
            O filme tem ótimas sequências --em especial, uma que mostra RoboCop sendo "desmontado"-- e é admirável a coragem de Padilha em expor as hipocrisias de Tio Sam. Mas este "RoboCop" não tem a graça e a diversão do primeiro.
            ROBOCOP
            DIREÇÃO José Padilha
            PRODUÇÃO EUA, 2014
            QUANDO estreia sexta-feira, 21
            CLASSIFICAÇÃO 14 anos
            AVALIAÇÃO regular

            José Simão

            folha de são paulo
            Copa! Argentina X Argentina!
            Essa será a grande final da Copa 2014 no Maracanã. E quem vai apitar é o Gardelón?! O Maradona!
            Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O Esculhambador Geral da República! Faltam dez dias inúteis pro Carnaval. A Grande Festa da Esculhambação Nacional.
            E eu fui convidado para ser padrinho do bloco Já Comi Pior, Pagando. Isso não é um bloco, é uma verdade insofismável! E adorei as musas do bloco: Beth Caolha e Joana Boca Podre!
            E como disse um amigo meu: "Estou no sufoco, quero sair no bloco mesmo pagando". Rarará!
            E o bloco JPP: Já Paguei Piores!
            E o chargista Rico disse que o Genoino e o Zé Dirceu vão juntar as vaquinhas e fazer uma Cow Parade! Cow Parade na Papuda! Rarará!
            A cow do Genoino de camisa rosa. E a cow do Zé Dirceu de óculos e falando poooorteira! Rarará!
            E a Argentina?! Sempre desaforada! Sempre provocando! Olha a declaração do técnico da Argentina: "O maior inimigo da Argentina na Copa....". É O BRASIL!
            Não, ele diz que o maior inimigo da Argentina na Copa é a própria Argentina. Isso que é ego! Final da Copa 2014: Argentina X Argentina! Essa será a grande final da Copa 2014 no Maracanã: Argentina X Argentina!
            E quem vai apitar é o Gardelón?! O Maradona! Rarará! Aliás, sabe como argentino se suicida? Sobe no ego e se atira! Rarará!
            E o Timão agora mudou de nome pra ULTIMÃO! E o personagem da semana é aquele juiz cegueta que não marcou o gol do Vasco contra o Flamengo. Stevie Wonder! Mr. Magoo! Ele se chama Castanheira. Muda o nome pra Cegueira. Próximo jogo do Flamengo. Quem vai apitar? Chama o Cegueira! Rarará! É mole? É mole mas sobe!
            O Brasil é Lúdico! Brasileiro fala tudo errado mas todo mundo se entende. Olha essa pichação numa escola em Caicó, RN: "Queremos o profeso de matematica e o de portuques". Eles não querem, eles precisam. Rarará.
            E olha essa aqui numa sorveteria em São Paulo : "Sabor Sonho de Falsa". E esse cartaz num restaurante do Rio, na rua da Alfândega: "Sugestão do dia! Frango Assado: coixa e sobrecoixa!". Adorei!
            Achei mais chic: coixa e sobrecoixa. Por exemplo, o Corinthians está levando nas coixas! Rarará!
            Nóis sofre mas nóis goza. Hoje só amanhã.
            Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

              Marcelo Coelho

              folha de são paulo
              Tiro, porrada e bomba
              As pessoas sensatas são as mais desinteressantes, e do bom senso não se pode esperar grandes novidades
              Vestida de rainha, em seu palácio de Cinderela, a funkeira Valesca Popozuda ameaça com "tiro, porrada e bomba" as inimigas que invejam sua emergência social.
              Foi o tema do artigo que escrevi na semana passada. Mas essa celebração de tudo que é "tiro, porrada e bomba" encontra, infelizmente, outros exemplos no Brasil de hoje.
              Desde que a esquerda abandonou a luta armada, há coisa de quarenta anos, ninguém mais pensava em promover grandes transformações sociais pela violência. Com nuances, um discurso mais simpático a essa atitude, inspirado sem dúvida pelas bizarrices do filósofo Slavoj Zizek, encontra alguns adeptos por aqui.
              Toda essa aproximação, ainda que vaga, com a tática dos "black blocs" não faz mais do que jogar lenha na vasta fogueira inquisitorial da direita.
              Será fácil, como nos anos 1970, associar todo pensamento democratizador, igualitário e timidamente socialista aos "baderneiros", aos "terroristas", aos "black blocs" e, por que não, aos "comunistas". Como se não vivêssemos, no panorama internacional, a verdadeira baderna criada por George Bush, pelos neocons e pelos irresponsáveis do mercado financeiro --sempre aplaudidos pela direita local.
              No horror aos desatinos persecutórios da direita, há quem se confunda. O moderado de esquerda muitas vezes toma as dores dos sectários, dos fanáticos, dos radicais, porque reconhece e abomina a caça às bruxas.
              Mas esses grupinhos violentos de esquerda não têm por que serem vistos como aliados de quem quer mais progresso social. Os "black blocs", ou seja lá quem for, atrapalham, combatem, inviabilizam esse caminho.
              O progressismo, ao ser moderado, não necessita ser menos firme por causa disso. Rejeita com firmeza a direita do "prende e arrebenta", assim como rejeita o suposto charme radical do "bota pra quebrar".
              Reconheço que é uma atitude meio sem graça, que de tanto olhar para os dois lados se imobiliza na inação. Infelizmente, as pessoas sensatas às vezes são as mais desinteressantes, e do bom senso não se pode esperar grandes novidades.
              O mais preocupante é que o vandalismo, de certa forma, interessa a muita gente ao mesmo tempo. Ajuda o campo truculento das forças policiais, que precisam legitimar os excessos em que incorrem, por vício de formação. Ajuda o campo conservador, que pode colocar no mesmo saco toda crítica ao capitalismo e ao autoritarismo de Estado.
              Ajuda, ao mesmo tempo, petistas e antipetistas. Os críticos do PT podem atacar as tentativas de "diálogo" com os "black blocs". O PT e aliados podem se livrar dos ataques que recebiam durante as manifestações.
              Não se sabe quem são, e em que medida existem, os financiadores do vandalismo. Mas, pela quantidade de forças a quem os vândalos terminaram ajudando, o caixa dessa turma já poderia estar maior do que o do tio Patinhas.
              Curiosamente, produziu-se uma espécie de "anticonsenso". Durante as manifestações de junho, sempre havia alguém defendendo alguma coisa com a qual milhares de outros podiam concordar. Havia caminho para um grande (não digo que fácil) acordo nacional.
              A situação se inverteu: o caminho está aberto para o desacordo acirrado e completo, em que cada Valesca mostra unhas e dentes para as rivais.
              Caso exemplar desse tom agressivo foi o da comentarista Rachel Sheherazade. Diante da foto do menor de rua amarrado nu a um poste, ela foi longe: é uma reação de "legítima defesa" da sociedade, e a quem se apieda do "marginalzinho", ela lançou a campanha "adote um bandido!".
              O seu raciocínio não poderia ser mais típico da mentalidade extremista. Ou você acha certo amarrar um marginalzinho a um poste, ou então você deve adotar o garoto, acolhendo-o em sua própria casa.
              Não há, nesse raciocínio, atitude intermediária. Todo caminho médio é "irrealista". Ou você mata ou beija. Quem não conhece a típica frase dos torturadores, segundo a qual você "não trata bandidos com luvas de pelica"? É nessa mentalidade, mas do lado oposto, que Joaquim Barbosa vira "torturador" e que José Dirceu vira "preso político".
              De onde vem tanto extremismo? Há uma "policialização" do ambiente, irrompendo através da nossa película mais civilizada.
              Afinal, no mundo da classe baixa, correm soltas as divisões: quem não está com o traficante está com a polícia, quem não é evangélico fundamentalista está entregue a Satanás. Suba um andar nesse barraco: quem é contra o PT é golpista, e quem é de esquerda apoia Pol Pot e Fidel.
              Quem não está comigo é meu inimigo, e, como diria Valesca Popozuda, merece "tiro, porrada e bomba". O castelo encantado dessa rainha é o favelão da nossa atual miséria ideológica.