quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Ciência e bioética - Ruy M. Altenfelder

folha de são paulo
RUY MARTINS ALTENFELDER SILVA,
Ciência e bioética
É necessário reunir diferentes disciplinas para criar um balizamento ético sobre os problemas criados pelo avanço da ciência
Invasões a centros de pesquisas reacenderam a discussão sobre o uso de animais em experimentos voltados à área da saúde.
A ação dos protetores das cobaias chegou às faculdades de medicina. Na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, uma aula sobre traqueostomia (procedimento que livrou da morte por sufocação milhões de pessoas) foi interrompida por um protesto em defesa dos porcos usados pelo professor para a demonstração da técnica --aliás, permitida.
A questão não chegará tão cedo a consenso. Mas talvez a mais ampla disseminação de informações corretas por parte dos pesquisadores e uma melhor avaliação das consequências das invasões por parte dos manifestantes permitam estabelecer limites civilizados.
A conciliação evitaria a perda de anos de custosos estudos e o atraso na descoberta de esperados medicamentos que curem doenças letais ou aliviem o sofrimento dos pacientes, humanos e animais. Fundamental seria o conhecimento e o respeito à legislação brasileira, uma das melhores do mundo na área.
Boa parte da excelência desses parâmetros deve-se a uma das muitas contribuições do professor William Saad Hossne, coordenador do programa de bioética do Centro Universitário São Camilo. Mestre em bioética, Saad mergulhou num campo transdisciplinar que envolve a biologia, as ciências da saúde, a filosofia e o direito.
A bioética estuda a dimensão ética dos modos de tratar a vida humana e animal em pesquisas científicas. Em outras palavras, busca aliar uma perspectiva humanista aos avanços tecnológicos, entre os quais despontam temas delicados --e ainda não consensuais-- como clonagem, fertilização in vitro, transgênicos e células-tronco.
Ciclicamente, a questão volta ao debate, pois, como ensina Saad, cada salto da ciência cria problemas éticos que não podem ser resolvidos por apenas uma área. É necessário chamar outras disciplinas para criar um balizamento ético. Sem esse cuidado, a sociedade pode se autodestruir. Recorrendo à generosa partilha de ideias, que o professor promoveu ao longo dos seus bem vividos (e ainda muito ativos) 86 anos, o século 20 foi palco de cinco revoluções: a atômica, a molecular, a das comunicações, a do espaço sideral e a da nanotecnologia.
Agora, já estão aí os sinais de novo salto, resultante da integração dos cinco anteriores no que se pode chamar de tecnociência. A ética da sexta revolução herdará algumas características da bioética, cuja prática implica a livre escolha de valores. Coação, coerção, sedução, exploração ou qualquer mecanismo de inibição à liberdade são fraudes incompatíveis com o exercício ético.
A prática da bioética permite a resolução de conflitos inerentes aos avanços da ciência com o respeito a valores que pautam as grandes conquistas da humanidade: humildade, grandeza, prudência e solidariedade. Saad não prescinde da filosofia. Pergunta: o que faremos com tanto poder concedido pela ciência? A resposta, ele encontrou em Eric Hobsbawm, segundo quem o mundo não melhora sozinho, mas com posturas humanistas e inteligentes, como as adotadas por Saad Hossne ao longo de sua trajetória.

Ruy Castro

folha de são paulo

Péssimo para os negócios

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RIO DE JANEIRO - Os japoneses estão acumulando tecnologia para transmitir futebol por holografia. Não sobre uma tela comum, como a do cinema ou da TV, mas no gramado, mesmo. Você comprará o ingresso para um jogo xis, a ser disputado em Tóquio, Londres ou Madri, irá ao estádio da sua cidade e "assistirá" à partida com os jogadores correndo em campo em tamanho real, como se estivessem ali de verdade. O som, também, em volume real.
O que confirma a frase que me foi dita há anos por Hans Henningsen --o famoso "Marinheiro Sueco", como o chamava Nelson Rodrigues-- sobre o futuro do futebol: "Um dia, os jogos serão assistidos somente pela televisão". O então alto executivo da Puma conhecia as entranhas do futebol e suas tendências como business. Por "televisão", Hans queria dizer qualquer tecnologia que permitisse torcer remotamente.
O fuzuê armado ainda hoje pela Fifa envolvendo "arenas" e tudo que elas podem render tenta apenas aproveitar os estertores do futebol físico, com suas torcidas ao vivo. E mesmo estas já estão sendo reduzidas à elite que assiste aos jogos tomando champanha nos camarotes. A Fifa quer tudo, menos brigas nos estádios entre pés de chinelo. Não porque, às vezes, produzem um cadáver, mas porque são péssimas para os negócios. O futebol que ela prepara para o futuro será um megavideogame, gerando vendas idem de tudo que lhe diga respeito.
A julgar pela brutalidade nos estádios do Brasil, é de se pensar se a Fifa não estará certa. Em 2012, 22 pessoas morreram em brigas entre torcidas; em 2013, já são 30. Todos os clubes têm facínoras entre seus torcedores --capazes de arruinar um espetáculo, mesmo que virtual.
O que me leva a perguntar se, melhor do que jogadores em 3D, por que não os craques em carne e osso no campo, assistidos por uma torcida --esta, sim-- holográfica?

José Simão

folha de são paulo
África! O Aerobusão da Alegria!
E diz que o Lula foi cantando o hino do Corinthians e batendo na lataria do avião. Rarará!
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! África do Sul Urgente! E o voo da Dilma pro funeral do Mandela? Dilma, Sarney, Collor, FHC e Lula. Se eles tivessem peso na consciência, o avião não decolava. Não sei como esse avião não entrou num buraco negro. "Seria o primeiro milagre do Mandela", disse um amigo meu! Rarará!
E o problema não é eles terem ido, o problema é eles terem voltado!
E vocês viram a foto deles na frente do avião? Todos rindo! Tavam indo para um safári ou para um funeral? Rarará!
Imagina os comentários deles no avião. Sarney: "O funeral é meu? Fui eu que morri?". AINDA não! Rarará! E o FHC: "Eu vim só pelo vinho. Os da África do Sul são ótimos. Vamos logo pros vinhedos". E o Lula: "O Mandela morreu? Juro que eu não sabia!". E o Collor, com aquela respiração Darth Vader: "Sempre gostei do Mandela porque ele tinha aquilo roxo". Rarará!
E diz que o Lula foi cantando o hino do Corinthians e batendo na lataria do avião. E o FHC ficou irritado porque não tinha pantufas Ralph Lauren! Rarará! Isso não é um avião, é uma vuvuzela voadora! Rarará! E um cara postou no Twitter: "Por que eles não mandaram um telegrama e pronto?". Rarará!
E olha essa manchete: "SEM TUMULTOS, milhares vão ao ESTÁDIO para dar adeus a Mandela". Todos cantando e dançando!
Estádio no Brasil virou estádio de sítio, estádio de coma!
E a Dilma muito chique, e estava mesmo, muito digna, mas continua andando como caubói! Sabe caubói que tiraram o cavalo e ele continuou andando?! John Wayne em "Fort Apache"!
Aliás, ela entrando no estádio parecia o Felipão. Rarará!
E o mundo estarrecido porque Obama cumprimentou Raúl Castro! Ué, eles são civilizados. Não é Vasco e Atlético PR! Rarará!
É mole? É mole, mas sobe!
E o site Kibeloco lança o CD de nova dupla sertaneja: Vasco e Fluminense. Com os grandes hits: "Cai, Cai, Balão", "Sonho Meu", "Segura na Mão de Deus" e "All the Single Ladies"! E sabe qual a semelhança entre Tim, Net, Vasco e Fluminense? Vivem caindo!
E o Twitteiro diz que o novo patrocinador do Vasco é a cerveja Drahma! É beber e cair. Rarará.
Hoje, só amanhã! Nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

Elio Gaspari

folha de são paulo
Um banho de Brasil para a Fifa
Com caviar, batedores e descortesias, o doutor Joseph Blatter constrói uma encrenca para a Copa
Joseph Blatter, presidente da Fifa, pensa que é um chefe de Estado e leva uma vida de magnata. Viaja no avião da entidade, é recebido por presidentes de agenda porosa, atravessa algumas cidades precedido por batedores e durante os jogos de futebol fica em camarotes de VIPs onde garçons servem champanhe e caviar. (Na abertura da Copa da Confederações, felizmente, a doutora Dilma reclamou do mimo.)
A Fifa não é um Estado, e se fosse, com sua crônica de propinas, estaria entre as cleptocracias da segunda divisão. Para os brasileiros, há a lembrança do ocaso de João Havelange, que dirigiu a instituição de 1974 a 1998, quando tornou-se seu presidente honorário. Renunciou em abril, na esteira de um escândalo. A Fifa é uma organização de cartolas e a Copa do Mundo tornou-se um empreendimento que move bilhões de dólares. Durante as manifestações de junho a imprensa internacional lembrou o fato de que a competição será realizada num país onde multidões protestavam contra o preço das tarifas de transportes públicos enquanto a entidade anunciava que entre os patrocinadores do evento estará a champagne Taittinger (US$ 100 a garrafa).
A Fifa mudou o horário de sete jogos da Copa, atendendo a pedidos dos patrocinadores e das emissoras, interessadas em transmitir os jogos ao vivo. Jogo jogado, pois essa possibilidade estava prevista. As pessoas que compraram ingressos para os velhos horários e por algum motivo quiserem desistir perderão pelo menos 10% do valor pago. Ou seja, o sujeito marcou uma consulta no dentista, pagou adiantado, o doutor mudou o horário, e ele perderá 10% do preço da visita se quiser cancelá-la. Pouco custaria à Fifa livrar a clientela dessa tunga, até porque serão poucas as desistências.
Quando a burocracia dos cartolas baixa no Brasil com tamanha desconsideração, cria antipatias desnecessárias. Blatter vende ingressos para uma população que o vê passando na rua com batedores (no Rio já chegaram a fechar as transversais da avenida Atlântica para que ele tivesse pista livre). Os ingressos para os jogos terão preços salgados, as companhias aéreas e os hotéis estão de olho no bolso da galera. Além disso, o evento colocará nas ruas milhares de policiais com o treinamento e os modos que mostraram em junho.
Esses problemas são parte da vida nacional, não é preciso agravá-los. Blatter deveria vir ao Brasil por três dias, para viver como uma pessoa comum. Descobriria que o amigo que o hospeda no Rio ou em São Paulo paga mais IPTU do que ele na Suíça. Descobriria também que enquanto paga o equivalente a R$ 100 por ano para andar quantas vezes quiser em todas as autoestradas do seu país, aqui pagará R$ 40 por um só percurso do Rio a São Paulo, com direito a engarrafamento. Quando um brasileiro desce no aeroporto, rala na alfândega. Ele, não. Sendo suíço, verá que Pindorama é o único país do mundo onde a fila dos nativos para o exame de passaportes é maior que a dos estrangeiros.
Quando um pedaço do Itaquerão desabou, Blatter pediu a "Deus e Alá" que garantam a entrega das arenas a tempo. Se os brasileiros se aborrecerem durante a Copa, o doutor não deverá invocar seus nomes em vão.

Marcelo Coelho

folha de são paulo
Benjamin Britten
Cem anos depois do nascimento do compositor inglês, a ambiguidade de sua obra se aprofunda
Com dez anos de idade, ele já tinha composto uma carrada de quartetos de cordas. Aos 14 anos, a lista de suas obras já alcançava 534 títulos.
A produção desses primeiros anos pouco se conhece hoje em dia, claro, mas a "Sinfonia Simples" de Benjamin Britten (1913-1976), terminada em 1934, aproveita com muita graça e verve algo dos materiais infantis do compositor.
Uso uma expressão algo estranha, "materiais infantis", mas é de propósito. Quarto filho de um dentista, Britten nasceu numa cidadezinha pesqueira na costa leste da Inglaterra, e desde cedo foi objeto de um verdadeiro culto familiar.
O passado de menino prodígio iria sem dúvida ter reflexos difíceis na vida dele. Ofendia-se com facilidade; sem saber muito como, conhecidos de longa data de repente passavam a entrar na sua "lista negra", tornando-se vítimas daquilo que um crítico classificou como "Britten's characteristic froideur". A típica frieza de Britten.
Além disso, os biógrafos se dedicaram a investigar as suspeitas de pedofilia em torno do maior compositor inglês do século 20. Nada de concreto, que eu saiba, ficou comprovado.
Durante toda a vida, ele manteve um respeitável casamento com o tenor Peter Pears; a homossexualidade, que na época impunha discrição, não impediu Pears de virar "sir" e Britten de receber uma distinção ainda mais elevada, tornando-se "lord Britten de Aldeburgh".
Só não há dúvidas quanto à especial atenção que Britten dedicava a coros de meninos. Mais do que isso, a infância --e, especificamente, as ameaças sexuais a meninos bonitos-- está presente em muito de sua produção.
Os entusiastas da ópera tiveram, em 2013, uma efeméride dupla: tanto Richard Wagner (1813-1883) quanto Giuseppe Verdi (1813-1901) têm celebrados os 200 anos de nascimento.
O centenário de Britten também merece ser marcado pelos apreciadores do canto lírico; mais do que ninguém, foi ele quem manteve a ópera como um gênero vivo em meados do século 20.
Sem ser dodecafônica nem vanguardista, a música dele pode ser bem áspera, ou melhor, aflitiva.
Algumas pessoas têm arrepio com isopor, canetinhas hidrográficas ou giz arranhando na lousa. Excelente orquestrador, Britten pode fazer coisas parecidas com cordas agudíssimas, sopros gélidos e xilofones batendo os dentes.
O frio, o vento, os impulsos do mar intratável da costa inglesa faziam parte da memória infantil de Britten e soam em muitas de suas composições. É preciso acostumar-se a elas: depois da "Sinfonia Simples", um bom caminho é o "Guia dos Jovens para a Orquestra".
Mostrando de forma brilhante e acessível os diferentes timbres dos instrumentos, é uma das raras obras genuinamente alegres de Britten. Ele pode ser exultante, animado, eufórico --mas a felicidade não é exatamente o seu forte.
Na sua cantata "Saint Nicolas", a história fala de crianças ameaçadas de virar picadinho; elas vencem no final, mas a marcha comemorativa que termina a peça não deixa de parecer ambígua, ácida e crispada.
A ambiguidade está na raiz, entretanto, de suas obras mais significativas. Depois do "Guia", vale a pena aventurar-se nos gélidos e engenhosos interlúdios que Britten compôs para "Peter Grimes", ópera de 1948 que consagrou o compositor.
Música à parte, "Peter Grimes" vale como excelente espetáculo teatral também. Conta a história de um pescador, solitário e violento, que contrata aprendizes para ajudá-lo no barco.
O primeiro garoto morre; acidente, decidem as autoridades da aldeia. Outro menino o substitui. Volta do barco cheio de equimoses; numa tempestade, morrerá também.
Conforme a encenação, o pescador pode ser apresentado como um sádico ou apenas como vítima de circunstâncias especialmente infelizes. "Morte em Veneza", "A Volta do Parafuso" e "Billy Budd", outras óperas de Britten, mostram igualmente o jogo entre inocência e culpa, entre sedutor e seduzido, adolescente e homem adulto.
Alguns críticos, como Richard Taruskin, viram na situação de isolamento do homossexual a chave para "Peter Grimes", escrita numa época em que "sodomia" ainda era crime na Inglaterra. Com o passar do tempo, é a pedofilia que surge como o segredo inconfessável dessa ópera.
Melhor pensar, entretanto, que o verdadeiro drama de Britten não reside em particularidades sexuais desse tipo. O adulto impiedoso e a criança sedutora convivem na mesma pessoa.
Cada ser humano sabe, na verdade, de que modo tratou e trata a criança que tem dentro de si. As dissonâncias e suavidades da obra de Britten constituem um fundo musical possível, e inquietante, para a história que todos carregamos dentro de nós.