sábado, 1 de março de 2014

Deficit de atenção é resultado de falha em circuito cerebral

folha de são paulo
Deficit de atenção é resultado de falha em circuito cerebral
Sintomas do transtorno estão ligados a sistema de recompensa, segundo artigo
Para professor da UFRJ, autor do estudo, principais implicações se dão no tratamento psicoterápico
FERNANDO TADEU MORAESDE SÃO PAULOImpulsividade, inquietude e desatenção, sintomas associados ao TDAH (Transtorno do Deficit de Atenção e Hiperatividade), podem ser o resultado de um mau funcionamento do circuito de recompensa do cérebro, segundo um estudo publicado na revista "PLoS One".
Já foi demonstrado que, em indivíduos sem o transtorno, a liberação de dopamina, neurotransmissor ligado ao prazer e à satisfação, está relacionada não ao efetivo recebimento de uma recompensa, mas à sinalização de recompensa.
"Durante a vida, somos estimulados por recompensas, mas, principalmente, por pistas de que essa recompensa virá", diz Paulo Mattos, um dos autores do artigo, professor de psiquiatria da UFRJ e coordenador de neurociências do Idor (Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino).
Utilizando a técnica de neuroimagem funcional, que permite "ver" a ativação de áreas do cérebro durante a realização de uma tarefa, o estudo, feito em colaboração com colegas japoneses, comparou 14 adultos jovens com diagnóstico de TDAH que não recebiam medicação com um grupo controle de 15 pessoas.
Os participantes foram apresentados, no experimento, a uma série de estímulos visuais e lhes foi ensinado que determinado estímulo estaria associado a uma recompensa --pequenas quantidades de dinheiro, no caso.
Nas pessoas com TDAH, não houve ativação do núcleo estriado, região cerebral ligada ao circuito de recompensa e de grande concentração de dopamina, durante os estímulos. Ao final do experimento, no entanto, quando o portador do transtorno era informado de que havia recebido o dinheiro, a região era ativada. "O resultado foi uma surpresa. Esse padrão anômalo já havia sido verificado em camundongos, mas nunca demonstrado da forma como o fizemos", diz Mattos.
"A explicação é que o circuito de recompensa do cérebro, predominantemente dopaminérgico, funciona de modo deficitário em pessoas com TDAH."
O esquema todo pode ser resumido da seguinte forma: a falha na liberação da dopamina em resposta à sinalização da recompensa, presente em quem tem TDAH, resulta em um padrão de ativação anormal do núcleo estriado, parte da circuitaria de recompensa do cérebro, quando a recompensa não é contínua ou imediata. Em decorrência disso, esses indivíduos manifestam certos comportamentos, como a falta de atenção e a hiperatividade, os quais são interpretados, na clínica, como sintomas do TDAH.
Luis Rohde, professor do departamento de psiquiatria da UFRGS, diz que o mérito do estudo é mostrar um possível componente biológico na circuitaria cerebral que poderia explicar a aversão de pacientes com TDAH à demora ou à espera.
Segundo Mattos, o artigo tem suas maiores implicações no tratamento psicoterápico destinado aos portadores do TDAH. "Nosso trabalho mostra, por exemplo, que a terapia cognitivo-comportamental, a mais indicada nos casos de TDAH, precisa passar por um ajuste fino em alguns pontos, já que ela é baseada na ideia de recompensa",diz.
Rohde vai na mesma direção. "O estudo mostra por que é importante haver pequenos reforçadores constantes nesses pacientes, porque eles precisam ter um reforçador real. A simples antecipação da recompensa não ativa a maquinaria cerebral que é ativada naqueles que não possuem TDAH."

    Ligados em blocos - Roberto de Oliveira

    folha de são paulo
    CARNAVAL 2014
    Ligados em blocos
    Das clássicas marchinhas ao batidão eletrônico, a diversidade de sons, gêneros e cores se espalha pelas ruas de São Paulo
    ROBERTO DE OLIVEIRADE SÃO PAULO
    Quem não gosta de festa, melhor nem sair de casa, porque, até a Quarta-Feira de Cinzas, a cidade é deles: os foliões estarão em toda as regiões de São Paulo, animados por um leque de atrações capaz de satisfazer diferentes perfis, gostos e idades. Do profano Minhocão ao sagrado largo da Nossa Senhora do Ó, a ordem é cantar, dançar e se divertir! Como diria o colunista da Folha José Simão: "Quem fica parado é poste".
    -
    1 - SÁB
    11H
    Bloco Bebê Sesc Vila Mariana
    Rua Pelotas, 141
    Os músicos tocam instrumentos com timbres especialmente escolhidos para agradar aos ouvidos sensíveis dos bebê. Rola ainda amanhã, segunda e terça
    12H
    Bloco Carnavalesco Virgens do Minhocão
    Av. São João - Santa Cecília
    Esse aqui manda "um beijo para os travestidos": homens vão fantasiados de mulheres, e mulheres, de homens
    Unidos do IAB
    R. General Jardim com Rua Bento Freitas
    Formado por arquitetos e estudantes
    Bloco do Beco
    R. Salgueiro do Campo, entre as ruas Margarida de Fátima e Pinhal Velho
    Muitas marchinhas e crianças
    13H
    João Capota na Alves
    Viaduto do Metrô Sumaré
    Bailão com "samba batidão". Preste atenção no slogan: "Quem não for fantasiado vai ficar deslocado". Fica a dica
    Urubó
    Largo da Matriz de Nossa Senhora do Ó - Freguesia do Ó
    Autointitulados de "Os Carniceiros do Freguesia do Ó", coisa fina, a turma apresenta marchinhas tradicionais
    14H
    Cordão Cecília
    R. Vitorino Carmilo, 449 - Santa Cecília
    Tem cortejo de batuque e clássicas marchinhas, mas o luxo vem da música brega e do "axé fino''
    Psicoparque Memo
    R. Augusta com Caio Prado - Consolação
    Doidinhos pela abertura do parque Augusta. São "atraídos pela luz" e viventes de um "universo paralelo"
    Samba da Balança
    Praça do Fórum de Pinheiros - Pinheiros
    Pessoal ligado ao direito que promete ficar torto de alegria pelas ruas
    15H
    Cordão Carnavalesco Boca de Serebesqué
    Casa do Norte. R. Prof. Cosme Deodato Tadeu, 150, Guaianases
    Sambas carnavalescos, liberdade às fantasias, cachaça e casa do norte, tudo com muita família e criançada
    16H
    Bloco Jegue Elétrico
    R. Cardeal Arcoverde com João Moura - Pinheiros
    A estrutura de som é conduzida por uma bike. Letras autênticas e bem humoradas, realimentando, a tradição de troças e cordões
    2 - DOM
    12H
    Bloco Ornam um por Todos e Todos pelo Social
    R. Humaitá, 637 - Bela Vista
    Apesar do nome do grupo, nada de calça cumprida e camisa de manga, por favor
    14H
    Guerreiros de Jorge
    R. Amaral Gurgel - Vila Buarque
    Para devotos e simpatizantes do santo guerreiro. Salve Jorge!
    Bloco Batida Livre
    Praça Dom José Gaspar - Centro
    A ideia é abrir para outros ritmos menos tradicionai: samba rock, reggae, hip hop e maracatu. Moderninhos em ação
    Cordão do Triunfo
    R. do Triunfo - Luz
    Formado pela Cia. de Teatro Pessoal do Faroeste, tem como madrinha a atriz Mel Lisboa
    15H
    Bloco Bastardo
    R. Cardeal Arcoverde com Rua Lisboa - Pinheiros
    A banda tem um repertório centrado nas marchinhas, mas há espaço para o cancioneiro
    Espício Geral
    Praça Monteiro Lobato - Vila Buarque
    O grupo reúne amigos e ex-alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo e, é claro, gente do bairro
    Bloco 77 - Os Originais do Punk
    R. Simão Álvares com Cardeal Arcoverde
    É a música punk sob a influência do confete e da serpentina
    Cordão Carnavalesco Pratododia
    Rua Barra Funda, 33 - Barra Funda
    Obra dos donos e de frequentadores do boteco Pratododia, o grupo não tem banda musical, mas, sim, com carrinhos de som equipados.
    17H
    Bloco do Fuá
    Rua Conselheiro Ramalho - Consolação
    Formado por amigos, entre músicos, compositores, atores, artistas plásticos e professores, além de moradores da região. Papai, mamãe e filhinhos são bem-vindos
    3 - SEG
    10H
    Bloco Esfarrapado
    Rua Conselheiro Carrão, 466 - Bexiga
    Fundado em 1947, é o mais antigo bloco a desfilar pelas ruas da cidade. Num dos bairros mais tradicionais de São Paulo, paulistanos de todas as origens e idades entram na festa
    15H
    Vai Você em Dobro
    Rua Natingui, 530
    Composto de 25 instrumentistas, o bloco reúne amigos e entusiastas
    Bloco Zóio de Lula
    Praça da Toco - Vila Matilde
    O bloco é uma reunião entre moradores antigos da Vila Matilde. Espaço garantido para galera jovem, para os vovôs e vovós e também para molecada
    16H
    Bloco Chorões da Tia Gê
    R. Doutor Heládio
    Prometem fazer o que chamam de "batalha de confetes", o que já se trans-formou numa tradição na região
    Lambuza
    Teatro Municipal - Centro
    Vão sair fantasiados com trajes que remetem à Idade Média... O samba, porém, será mais moderninho
    18H
    Afoxé Oba Inã
    R. Padre Machado, 602 - Saúde
    Cortejo que exalta a cultura afro das religiões de matriz africana
    20H
    Samba do Gringo Doido
    R. Belmiro Braga, 216 - Vila Madalena
    Uma mistura de "hermanos", "muchachos", passinhos descoordenados e ziriguidum. Uma moçada jovem e bonita dão o ar da graça
    22H
    Antiacadêmicos do Baixo Pinheiros
    R. Belmiro Braga - Pinheiros
    A sacada aqui é dar nova roupagem ao Carnaval, transformando canções ícones do rock paulistano e da música brega em marchas carnavalescas.
    4 - TER
    12H
    Os Cabebinhas Tântricas do Tatuapé
    R. Torrinha - Tatuapé
    Por causa do horário, reúne gente de toda idade. Segue a tradição das clássicas marchinhas de Carnaval, mas também inova ao misturar outros sons e ritmos
    15H
    Acadêmicos da Cerca Frango
    R. Cotoxó - Perdizes
    Acadêmicos da Escola de Comunicações e Artes da USP soltando as penas juntamente com a turma do bairro, família e muita criança
    16H
    Baile de Rua do Ó
    R. Horácio Lane, 21 - Pinheiros
    No repertório, marchas e sambas clássicos do Carnaval
    Bloco Saci da Bexiga de Diversão e Contestação
    R. São Domingos - Bela Vista
    Difícil vai ser pular numa perna só. A criançada adora
    Agora Vai
    Largo Padre Péricles - Barra Funda
    Bloco faz uma intervenção urbana, desfilando no Minhocão, com marchinhas. A animação, no largo Padre Péricles, é concorridíssima
    20H
    Unidos do Jardim Penha
    R. Dervile Lacorte - Penha
    É para quem valoriza o samba

    Xico Sá - Se liga, messiê

    folha de são paulo
    XICO SÁ
    Se liga, messiê
    Quem avisa amigo é: sob chancela de vossa entidade suíça, o curral da fan fest pode motivar os protestos
    Amigo torcedor, amigo secador, sinto em incomodá-lo, em plena folia do sábado de Carnaval, com essa lenga-lenga tipo David Copperfield de ressaca. É que escrevi aquela singela cartinha endereçada ao messiê Jérôme, cutucando, essencialmente, a insistência com as fan fests, também conhecidas lá na minha terra como festa dos torcedores.
    O secretário-geral da Fifa respondeu. Esta Folha, por apreço e consideração ao direito de resposta, publicou a íntegra, na seção de artigos. Tudo em perfeito clima de embate democrático e cordialidade.
    Concordo plenamente com a frase emblemática do messiê: "Gostaria de lembrá-lo que ninguém forçou o Brasil a sediar a Copa do Mundo de 2014. O Brasil se candidatou e, ao se informar sobre os requisitos, as autoridades prontamente concordaram e assinaram compromissos".
    Falo disso, de outro jeito, não de outro jeitinho, e até de forma mais venenosa, nas minhas mal traçadas. O governo brasileiro, em um momento de deslumbramento e no papel de país da moda --assim se passaram sete anos-- assinou o contrato sem ler ou desconsiderando as letrinhas menores que os detalhes tão pequenos de nós dois da canção de Roberto Carlos --nosso cantor mais popular, caro Jérôme.
    Embora sob desconfiança do que poderia ocorrer, messiê, tirei o corvo Edgar da sala --minha agourenta ave de estimação-- e torci para que a sede fosse aqui. Como a maioria absoluta dos brasileiros, é óbvio.
    O que se passou de lá para cá, Jérôme, não está no gibi. Nem no gibi do tio Patinhas. Nem no gibi do Zé Carioca. Talvez no gibi dos irmãos Metralhas. É espantoso para um velho repórter, caso deste hoje cronista, que cobriu as tenebrosas transações das empreiteiras brasileiras com o poder público por muito décadas. É espantoso para o leigo, é espantoso para o mais devoto dos Pachecos que acreditou que nada seria tocado com dinheiro público.
    Como não questionar, messiê? Como adotar o padrão fofo, em vez do padrão Fifa, e agasalhar cordeiramente, incluindo o podre trocadilho. Não rola. E repare que não sou da turma do #nãovaitercopa. A bagaceira toda já foi feita. Agora sou do bloco "Vai ter Copa e Protesto". Mais do que legítimo, não acha?
    Daí que volto ao caso da fan fest. Mire-se no Carnaval, messiê Jérôme, aqui se faz uma festa do nada, a cada esquina. Não carece a Fifa na jogada. Quem avisa amigo é: sob chancela de vossa entidade, nada simpática no momento aos brasileiros, o curral da fan fest pode, em vez de unir os sem-ingresso, motivar aquela bafafá de protesto.
    Messiê, repito, até a ONU, diante das mudanças de cenários geopolíticos, renegocia contratos. De festa na rua, messiê, a gente entende mais do que vossa entidade suíça. Repare hoje na tevê "O Galo da Madrugada", lá do Recife. Se liga, messiê, como dizem aqui os manos.

    América, Uganda - Luis Francisco Carvalho Filho

    folha de são paulo
    LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO
    América, Uganda
    Ser gay não é ameaça a ninguém. A criminalização da homossexualidade não serve para nada
    A intolerância contra gays está viva. Em pleno século 21. Se hostilidades ainda fazem parte do panorama de muitos lugares --Brasil inclusive--, a geração de leis para emparedar a liberdade sexual, na contramão da história, é surpreendente.
    Boa parte do planeta (estima-se que mais de 80 países), com apoio das populações locais, ainda perde tempo com normas contrárias à homossexualidade. No Islã, há pena de morte.
    Apesar da ameaça de boicote internacional, Uganda acaba de estabelecer prisão perpétua para "homossexualidade agravada" e reincidência. Tensão que aumenta com a publicação pelo tabloide "The Red Pepper", na terça-feira, de uma lista contendo o nome dos 200 gays "mais influentes" do país.
    Em 2013, a Rússia decidiu proibir propaganda de relações afetivas "não tradicionais": risco de multa e deportação para beijos, mãos dadas e carícias.
    Repressão só se justifica pela utilidade que a medida pode proporcionar. Pune-se o roubo, a fraude ou o assassinato porque é importante para a paz punir ladrões, estelionatários e homicidas. Pune-se algo que oferece perigo individual ou coletivo. Pune-se algo que causa dano. Por isso, pune-se a segregação e o racismo.
    Ser gay não é ameaça a ninguém. A criminalização da homossexualidade não serve para nada, só para a satisfação moral ou doentia de gente carola, de fundamentalistas religiosos, de missionários do mal, de ditadores.
    Do ponto de vista jurídico, não há justificativa para negar sequer uma fração de direito ao homossexual. Restringir qualquer coisa é como fixar diferença de tratamento para brancos e negros, homens e mulheres.
    Redutos conservadores, Arizona, Kansas e Idaho, fazem lembrar que os Estados Unidos da América não são apenas Nova York e San Francisco. Tentam instituir leis que, sob o pretexto de assegurar o exercício de um direito, autorizaria discriminação concreta: médicos, restaurantes e hotéis, até funcionários públicos, baseados em mandamentos da própria crença religiosa, poderiam simplesmente negar atendimento a quem é ou a quem eles julgam ser homossexual. Com a devida vênia, que o diabo os carregue.
    Pressionada, a governadora republicana Jan Brewer vetou a lei aprovada no Arizona este mês. Mas sem deixar de ser ambígua: "That's America. That's freedom" ("Isto é América. Isto é liberdade"). Para ela, o dono de um estabelecimento teria o direito de escolher a quem servir. Cláusula de consciência que fomentou a Ku Klux Klan.
    Leis caricatas como a do Arizona seriam fulminadas pelo Judiciário dos EUA se entrassem em vigor. Questão de tempo. Mas o movimento homofóbico cria um caldo de cultura pouco edificante e que estimula confronto, humilhação, desconfiança.
    Assim se distingue política de terror da política de Estado.
    O inexorável triunfo da causa gay tem outra razão utilitária. É cada vez maior o número de homens e mulheres que se declaram homossexuais. Em todos os continentes. Perder este público? Seus votos? Desprezar mercados consumidores e força de trabalho? Conspirar contra a prosperidade? O que ganha o dono da pizzaria que recusa clientes? As religiões também, por instinto de sobrevivência, não precisam conquistar mais fieis?
    Discriminar não faz sentido.

    'Morte aos gays!' - Leto Magnoli

    folha de são paulo
    DEMÉTRIO MAGNOLI
    'Morte aos gays!'
    A noção de uma 'cultura africana' fornece às elites dirigentes o álibi de culpar o 'estrangeiro' pelos males
    "Homossexuais são, no fundo, mercenários. Eles são heterossexuais mas, porque lhes pagam, dizem que são homossexuais." As sentenças do presidente Yoweri Museveni acompanharam a assinatura de uma das mais drásticas leis homofóbicas do mundo, conhecida no país como "lei da Morte aos gays!". Uganda radicalizou, mas está com a maioria: 38 dos 54 países da África criminalizam a homossexualidade. Segundo a narrativa dos dirigentes homofóbicos africanos, a homossexualidade é uma perversão cultural inoculada de fora para dentro na África. Segundo a narrativa de uma corrente de intelectuais "anti-imperialistas", a homofobia é uma perversão política inoculada de fora para dentro na África. As duas narrativas estão erradas --e por um mesmo motivo.
    Museveni e seus colegas nos 38 países argumentam que os gays desembarcaram na África junto com os colonizadores europeus --isto é, que a homossexualidade é estranha à "cultura africana". Num paradoxo esclarecedor, agentes evangelizadores americanos que operam na África dizem o mesmo. Com a palavra, Stephen Phelan, da ONG católica Human Life International: "Achamos que é importante estarmos na África porque a investida contra os valores africanos naturais pró-vida e pró-família está vindo dos EUA. Então, nos sentimos na obrigação de ajudá-los a entender a ameaça e a reagir a ela com base em seus próprios valores e culturas."
    A postulação de uma "cultura africana" nasceu fora da África, no ventre do pan-africanismo, uma doutrina elaborada por intelectuais americanos e caribenhos no anoitecer do século 19. O pan-africanismo "africanizou-se" no pós-guerra, quando foi adotado por jovens intelectuais africanos que estudavam na Europa e nos EUA. Aqueles intelectuais viriam a liderar os movimentos de independência, convertendo-se em "pais fundadores" das atuais nações africanas. O sonho da unidade política da África esvaiu-se, mas a doutrina pan-africana sobreviveu como discurso legitimador dos novos regimes africanos. Sua pedra-de-toque é a noção de "cultura africana". Ela proporciona às elites dirigentes o álibi de culpar o "estrangeiro" (o colonizador, no passado; os EUA ou a Europa, no presente) pelos males que afligem seus países.
    "Cultura africana", assim no singular, é uma noção enraizada no pensamento racial. Os intelectuais "anti-imperialistas" também a adotam, eximindo os dirigentes africanos da responsabilidade pelas leis homofóbicas. Eles argumentam que o homossexualismo era tolerado em certos povos africanos antes da colonização. É uma verdade de escasso significado: os gays não sofreram discriminação em diversas sociedades tradicionais, nos mais diferentes lugares do mundo, ao longo da história. Eles registram, ainda, que as primeiras "leis anti-sodomia" foram introduzidas na África pelos impérios europeus. Contudo, não se atrevem a explicar por que tais leis são restauradas na África muito depois de sua anulação nas antigas metrópoles europeias.
    O homossexualismo não é, evidentemente, "anti-africano" --assim como não é "anti-Ocidental". A homofobia não é "anti-africana" --nem, tampouco, "africana". Como os EUA seriam governados se Stephen Phelan ocupasse o lugar de Barack Obama? O que faria nosso Marcos Feliciano se dispusesse de um poder absoluto? A difusão das leis anti-gays na África só pode ser entendida se nos desvencilhamos da tese da "cultura africana", uma ideia patrocinada no Brasil pelos arautos das políticas de raça.
    O grito de "Morte aos gays!" é um fruto do poder despótico de elites políticas não cerceadas pelas instituições da democracia, em sociedades traumatizadas por céleres processos de modernização. As campanhas homofóbicas na África são ferramentas de perseguição política e de cristalização de controle social. Essa abominação nada tem de especificamente "africano".

    Helio Schwartsman

    folha de são paulo
    HÉLIO SCHWARTSMAN
    Médicos no pelourinho?
    SÃO PAULO - Os cubanos que participam do Mais Médicos estão num regime de trabalho análogo à escravidão? Meu amigo Ives Gandra da Silva Martins escreveu um interessante artigo tentando mostrar que sim. Destrinchou o contrato que rege a atuação desses profissionais no Brasil e foi apontando as muitas ilegalidades em que incorre.
    Do ponto de vista jurídico, Ives tem razão. Se o Ministério Público do Trabalho quiser, não terá dificuldades para questionar o Mais Médicos. Penso, porém, que juízos valorativos acerca do programa devem ser feitos com base em considerações éticas e não jurídicas. Afinal, se há algo perto de um consenso acerca da legislação trabalhista brasileira é o de que ela é ruim, amarrando demais as relações entre patrões e empregados.
    E, no plano da ética, a discussão é mais complicada. Sei que o Ives é fã de matrizes deontológicas, nas quais o certo e o errado encontram definições naturais ou positivas, mas eu tendo a abraçar modelos mais consequencialistas, nos quais as ações são julgadas primordialmente pelos resultados que produzem.
    Sob essa perspectiva, mais importante do que perguntar se o cubano está sendo tratado com justiça (um conceito irredutivelmente metafísico) é determinar se aqui ele está melhor ou pior do que em Cuba. Se ganha mais aqui e veio de livre e espontânea vontade (tão livre quanto possível numa ditadura como a cubana), não caberiam objeções trabalhistas à empreitada. O fato de haver médicos de outras nacionalidades ganhando mais do que ele não anula o aprimoramento de sua situação. No mais, se nosso cubano estiver pensando em desertar, tem mais chances de fazê-lo estando no Brasil do que na ilha.
    É claro que o programa permanece vulnerável a outras críticas. Ele é caro, por exemplo. Acho que conseguiríamos efeito sanitário semelhante contratando enfermeiros. O problema é que o marketing político exige que tenham o título de médicos.

    Jogo de suspeitas - Editorial FolhaSP

    folha de são paulo
    Jogo de suspeitas
    Quando cada ministro do STF desconfia de intenções e motivos ocultos de seus colegas, é a instituição inteira que se desmoraliza
    Quem acompanhou o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal conhece a vocação de seu presidente, Joaquim Barbosa, para o destempero, a invectiva e o desrespeito. De novo inconformado com a opinião divergente --desta vez, na absolvição dos mensaleiros no caso da formação de quadrilha--, o ministro foi além.
    No discurso em que promulgou o resultado da sessão, considerou apropriado lançar um "alerta à nação brasileira". Prognosticou o início de uma temporada de absolvições, já que, em sua opinião, uma maioria circunstancial de membros da corte havia sido formatada expressamente para tal objetivo.
    A referência era inequívoca. Só faltou apontar o dedo para os novos ministros, Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso, cujos "argumentos pífios" livraram José Dirceu e associados do crime de quadrilha.
    Barbosa não contestou, assim, apenas os argumentos de ambos --que, de resto, concordavam nesse ponto com a ministra Cármen Lúcia, em geral firme na convicção condenatória. Deixou sob suspeita a própria composição do tribunal.
    Pode-se perguntar que condições terá, a partir de agora, para conduzir julgamentos que, no seu raciocínio, pouco diferem das cenas de um teatro de marionetes.
    Num ambiente tenso, também as considerações de Barroso adentraram o terreno da desconfiança e da sistemática suspeição. Vendo exagero dos colegas na atribuição das sanções, o ministro deslizou, ainda que com mais graciosidade, pela mesma encosta perigosa.
    Penas tão altas, raciocinou, teriam sido fixadas de caso pensado, a fim de evitar que os réus se beneficiassem da prescrição do crime.
    Os fatos, entretanto, parecem ser outros. A escolha das punições pelos julgadores correspondeu, dentro dos limites da lei, ao que cada um entendeu ser necessário para que fosse feita justiça.
    Classificar como arbitrária, forçada e artificial a pena mais alta pode ser tão perigoso quanto pensar que sua diminuição atendia a encomendas do governo petista.
    Se cada ministro do STF passa a comentar as intenções supostas e os motivos ocultos das decisões dos colegas, é a instituição inteira que se desmoraliza --e isso interessa apenas aos condenados e aos réus que aguardam sua sentença.
    Felizmente, o processo do mensalão fala por si. Personagens de peso no cenário nacional foram julgadas sob permanente escrutínio público. Assegurou-se o contraditório; apresentaram-se e discutiram-se as inúmeras provas; chegou-se, enfim, a um veredicto independente e equilibrado.
    Para uns, a punição terá sido pequena; para outros, exagerada. É do jogo que seja assim. Nem comentários desmedidos nem advogados exaltados, contudo, conseguirão retirar desse julgamento seu caráter histórico e insuspeito.

    Moral e política - André Singer

    Moral e política
    Em que pese manter inalterada a essência da ação penal 470, na última quinta-feira o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) produziu alterações relevantes no cenário. De um lado, a decisão tomada naquele dia possui particular valor para a integridade mental dos petistas detidos. De outro, o discurso do presidente do STF, em resposta à deliberação dos pares, aponta para possíveis irradiações na eleição presidencial que se aproxima.
    Ao votar a favor da absolvição no item formação de quadrilha, Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Teori Zavascki, Cármen Lúcia e Rosa Weber, declararam que, embora tenham cometido crimes, os condenados não possuíam a referida atividade como objetivo em si. Não faria sentido, portanto, imaginar a criação de uma estrutura permanente para delinquir.
    A maioria dos juízes referendou, assim, algo que está na base de certa defesa moral -- não jurídica-- dos dirigentes do PT presos no país. Em resumo, tal raciocínio admite que foram realizadas ações fora da lei --que, além do mais, seriam usuais no financiamento de campanhas no Brasil--, porém nunca houve propósito de benefício privado. Ou seja, se ilegalidade houve, seria para mudar os rumos nacionais.
    É tal convicção que deve sustentar a resistência demonstrada pelos apenados na hora certamente mais dura de suas vidas: esta, de enfrentar a prisão em plena democracia. A força que os anima está em inexistir acusação de enriquecimento pessoal. Por isso, para além dos benefícios práticos que a absolvição no item específico trará, o efeito imediato se dá no plano da vontade. Vai crescer a disposição de manter a cabeça erguida, o que não é pouco em situação tão adversa.
    Joaquim Barbosa acusou o golpe. Afirmou se sentir "autorizado a alertar a nação brasileira de que este é apenas o primeiro passo. Esta maioria tem todo o tempo a seu favor para continuar nessa sua sanha reformadora". Indiretamente, o relator convocou a população a se mobilizar contra os pares que deram alimento moral aos prisioneiros do Partido dos Trabalhadores. Difícil saber quanto há de impulso e de cálculo na reação daquele que liderou o processo.
    Impossível prever, também, quais serão os próximos passos do ator. Mas não espantaria que no domingo, 5 de outubro, o nome dele aparecesse na urna eletrônica, com o objetivo de impedir a vitória em primeiro turno de Dilma Rousseff. O discurso já está pronto. Ao criar a tal "maioria de circunstância" que absolveu os quadros do PT, Dilma teria jogado no lixo a possibilidade de regenerar os costumes brasileiros.
    O ministro tem até abril para se desincompatibilizar do cargo se quiser se candidatar. Serão semanas interessantes.

    Em pessoa - Ruy Castro

    folha de são paulo
    Em pessoa
    RIO DE JANEIRO - Em 1964 ou 65, o trombonista Raul de Souza --hoje, às vésperas dos 80 anos e ainda em grande forma-- era a estrela de uma geração que estava fazendo do samba-jazz brasileiro a melhor música instrumental do mundo. Entre seus colegas havia saxofonistas como Paulo Moura, Aurino e Meirelles, pianistas como Luiz Eça, Sergio Mendes e Tenório Jr., bateristas como Milton Banana, Edison Machado e Dom Um, todos trabalhando na mesma cidade, na mesma noite, quase nos mesmos lugares.
    Com esse cacife, Raul podia tirar o Carnaval para descansar. Não que não gostasse de Carnaval --sua formação era a da gafieira, onde os trombonistas também tinham de tocar a todo pano, no maior volume e sem parar, durante horas, ou enquanto o beiço aguentasse. E, certamente, não que não precisasse do dinheiro --no Carnaval, os bailes e festas eram diários e pagavam bem. Mas ele preferia parar por uns dias e relaxar a embocadura exigida por coisas difíceis como "Estamos Aí", "Você e Eu" e "Jor-Du", que tocava no resto do ano.
    Assim, quando um amigo o convidou a tocar com ele numa festa de grã-finos em Ipanema no sábado de Carnaval, Raul declinou: "Obrigado, Fulano, mas não estou a fim de Carnaval". O outro insistiu: "Mas que Carnaval, Raul? O cara é seu fã, gosta de jazz e bossa nova, só tem intelectual entre os convidados. E a grana é boa". Raul tentou ser firme: "Não dá. E se, de repente, alguém pede Mamãe Eu Quero'? Não vou, não".
    O amigo garantiu que não havia essa possibilidade. Só iam tocar de "Fly Me to the Moon" para cima. E a grana era mesmo boa. Apreensivo e relutante, Raul se deixou convencer. Na noite marcada, pegou seu trombone e foi trabalhar. Nas ruas, só se ouvia "Olha a Cabeleira do Zezé". Subiu ao 20º andar do prédio e tocou a campainha. E quem abriu a porta?
    O Rei Momo em pessoa.

    'A ideia de que arte é vida faz com que se deixe de olhar para a vida' - Rodrigo Naves

    folha de são paulo
    ENTREVISTA - RODRIGO NAVES
    'A ideia de que arte é vida faz com que se deixe de olhar para a vida'
    EM NOVO LIVRO DE ENSAIOS E CONTOS, CRÍTICO DE ARTE DISSECA COM DESENCANTO O MUNDO ARTÍSTICO E UM COTIDIANO TOMADO POR UMA 'CALMA ATERRORIZANTE'
    SILAS MARTÍDE SÃO PAULONão é a fúria que mete medo. No caso de Rodrigo Naves, 60, é a calma que assusta. Depois de sofrer um aneurisma durante uma cirurgia no coração há dois anos, o crítico de arte finalizou um livro que mistura ensaios, poemas e alguns contos de ficção.
    Em "A Calma dos Dias", seu segundo livro de prosa que chega agora às livrarias, Naves ataca em textos breves o que chama de "serenidade e algo de aterrorizante que existe nessa calmaria", como se depois de ver a morte de perto o mundo reaparecesse mais "cristalino", com "uma ausência de topografia".
    Naves disseca o cotidiano com um desencanto arguto, das meninas que vê passar nas ruas aos excessos e bobagens da arte contemporânea, que diz ter perdido sua relevância e virado vítima de "uma avalanche teórica".
    Tanto que ele afirma ver mais arte no modo de vestir das garotas do que em museus. E desvia o olhar para analisar sujeitos incomuns nos livros de arte --Michael Jackson e Gisele Bündchen.
    Na visão de Naves, Jackson foi um "mártir do culto à imagem", enquanto a modelo é uma espécie de Botticelli que saltou para fora dos quadros, "majestosa e inesgotável".
    Em entrevista à Folha, Naves comentou os assuntos de seu novo livro. Leia a seguir trechos da conversa.
    -
    Folha - Seus textos no livro parecem marcados por um pessimismo muito forte. Tem algo a ver com o medo da morte?
    Rodrigo Naves - Da morte eu não tenho medo. Na verdade, tenho medo de sofrer. Eu acho que é uma dimensão mais triste do que pessimista, que vem de uma mudança que eu percebo no cotidiano.
    Vejo que tudo ganhou uma planura, uma ausência de topografia, como se você pudesse antever tudo e qualquer coisa. Ou seja, nenhum movimento que pareça prometer mudanças ou transformações nessa ordem, ou ameaçar essa serenidade.
    Mas os protestos pelas ruas não são agito suficiente?
    É como se as pessoas estivessem reivindicando uma reivindicação. Acho que houve uma certa dissonância entre o barulho que se fez, a grandeza do movimento, e o que movia isso. Há um descontentamento amplo, que é uma coisa que eu sinto, mas que você não sabe dar nome.
    Num dos textos, você analisa o modo de vestir das mulheres. A moda é um novo interesse?
    Quem não tem certo interesse pelo mundo, pela realidade, não encontra uma forma de ser permeável aos toques, às pessoas, às coisas e tem uma uma relação mais empobrecida com o mundo.
    É uma tentativa de entender como essa moda se generalizou, de usar o top de um jeito, a cintura baixa. Quis fazer uma descrição disso tudo esperando ao mesmo tempo que um sentido surgisse dessa própria descrição. É uma relação semelhante à que eu tenho com obras de arte.
    Tanto que você diz ver mais arte nessa moda do que em galerias e museus. A arte perdeu seu encanto para você?
    Não sou pessimista em relação à arte contemporânea. Mas talvez por excesso de dinheiro e preços exponenciais, o sucesso comercial tenha virado um critério para determinar o que é boa arte. Isso chega a ser aflitivo.
    Esse ideia de que arte é vida, tão forte hoje, também faz com que muitas vezes você deixe de olhar a vida para ver obras que falam dela, quando há pessoas na rua fazendo coisas desconcertantes, reveladoras. Estar de olhos abertos é importante.
    Suspeito que as pessoas do meio têm uma relação muito teórica com a arte, e é muito difícil a teoria dar conta da obra. Essas avalanches teóricas estão em função de a arte ter perdido a relevância.
    Mas quando desvia o olhar e escreve sobre Michael Jackson e Gisele Bündchen, por exemplo, você usa os mesmos raciocínios da crítica de arte. Isso é uma provocação?
    É uma provocação e também uma tentativa de entender o que torna a Gisele algo deslumbrante. É criar um padrão para olhar as coisas.
    Quando falo que o Michael Jackson é a "Pietà" do pós-modernismo é porque ele levou a noção de imagem às últimas consequências, ele interveio no próprio rosto em mais de 20 cirurgias. Ele é um mártir desse culto à imagem.
    Mesmo assim, você vê uma audácia nele que passa ao largo dos artistas brasileiros. O que quer dizer quando afirma que eles "sofrem de Brasil"?
    Há certa dificuldade de nossos cidadãos mais virtuosos serem violentos, mais impositivos. O [Alberto da Veiga] Guignard, por exemplo, mais sofria o mundo do que se impunha a ele. Ele sofre de Brasil nessa ideia de que talvez não tenhamos construído uma sociedade estruturada o suficiente para que se possa fazer um movimento forte em direção a uma realização.
      O MUNDO SEGUNDO NAVES
      Leia trechos do livro 'A Calma dos Dias'
      ARTE E MODA
      Há mais arte na maneira de as meninas se arrumarem -ou seja, na rua, na vida- do que em dois terços da arte feita em nossos dias. Sobretudo para os leões velhos, já sem dentes para essa carne, e que apenas as observam enquanto jogo e encantamento
      GISELE BÜNDCHEN
      Tudo nela é um jogo de articulações instáveis, de compensações, em que nada adquire uma singularidade estridente, a reivindicar primazia e atenção descabida: seios fartos, pernas longas; cabelos ondulados, corpo longilíneo; olhar impenetrável, testa franca. O diabo!
      MICHAEL JACKSON
      Da bolha de oxigênio puro à aparência harmoniosa, da castidade à voz límpida, tudo nele parece aspirar a uma atemporalidade sem mácula. Ele fez do ideal pós-moderno -a transformação da realidade em imagem-algo a ser testado na própria carne. E de fato Michael Jackson é a 'Pietà' do pós-modernismo
      MIRA SCHENDEL
      Era a antivirtuose por excelência. Cada trabalho surgia como um trabalho a menos, em lugar de um acréscimo. E essa economia não tinha nada a ver com um abandono da possibilidade de fazer arte
      NUNO RAMOS
      De fato, os quadros de Nuno Ramos lembram paredes de caçadores -exibem seus troféus num misto de orgulho e nostalgia, pois não conseguem unir vida e domesticação. Ou seja: aqui, realismo significa uma atitude crítica em relação ao estatuto contemporâneo da realidade
      URUBUS
      Nos gramados que rodeiam os matadouros primitivos, os urubus disputam vorazmente as vísceras de bois e vacas. Essa situação poderia servir de metáfora a muitos acontecimentos humanos

        Alcir Pécora

        folha de são paulo
        CRÍTICA - ROMANCE
        'A Condessa de Picaçurova' é novela engraçada e perversa
        Livro se aproxima de delírio cômico-escatológico com base nos clássicos
        HÁ NELE TANTO HUMOR E EXUBERÂNCIA QUANTO SECURA E CRUEZA, EVIDENTE NO EMBATE ENTRE AS TRÊS FÊMEAS PRINCIPAIS
        ALCIR PÉCORAESPECIAL PARA A FOLHA
        Devo a João Silvério Trevisan a primeira indicação de "A Condessa de Picaçurova", vencedor na categoria melhor romance da 17ª edição do Prêmio Nascente da USP.
        Antônio Salvador, que consta como nome do autor da obra, é pseudônimo, mas a editora garante que se trata de escritor nascido em Natal, em 1980.
        Como apresentação do livro poderia dizer que se trata de uma variante de novela picaresca, na qual a protagonista, com ares de Macunaíma, é substituída por uma macaca de nome Benguela, a qual, de moradora de um orabutã (ou pau-brasil) bichado, num vilarejo perdido do Grão-Pará, torna-se a despótica condessa da nova capital da capitania.
        O breve enredo talvez dê a perceber que a história se passa supostamente no período colonial; que seu espaço está no âmbito de toda a vasta região que abrange do Nordeste à Amazônia, mas que os anacronismos com o mundo contemporâneo e globalizado são parte da graça da narração.
        Acrescente-se o gosto do narrador pelo léxico colorido e provérbios regionais, bem como pelos "causos", à maneira dos recolhidos por Câmara Cascudo, com destaque para os de João Monteiro, conterrâneo do autor e citado explicitamente por ele.
        Mas o livro também lança mão da matriz machadiana, evidente na intromissão de comentários metalinguísticos sobre os capítulos; no desmonte de hábitos de leitura que atinge ironicamente todos que o leem; na suspeita sobre a fidedignidade, a autoria e a autoridade do narrador, de modo que não se pode estar certo do que é dito, de quem o disse e ainda com que (má) intenção o diz.
        Um capítulo até transcreve certo "Ensaio sobre a Auto-Domesticação", espécie de resposta ao "Humanitismo", de Quincas Borba, propondo uma inversão simiesca da teoria evolucionista.
        E caberia mencionar a presença de Guimarães Rosa nesse cadinho, que fica clara quando a narração é entregue à murmuração popular, à licença do léxico onomatopaico, à enumeração caótica, à amplificação das cenas de combate.
        EMBATE ENTRE FÊMEAS
        Mas seria falso pensar que "A Condessa de Picaçurova" apenas se encosta nos grandes. É mais justo dizer que, com base neles, sabe fabricar as armas próprias com que debate questões como: que escrita pode dar forma à suspeita de que todas as versões são corruptas ou estúpidas desde o nascimento?
        O que se pode contar quando já nenhuma malandragem suaviza o anúncio apocalíptico que parece inscrito na precariedade da vida?
        Por isso mesmo, a novela se aproxima de um delírio cômico-escatológico.
        Há nele tanto humor e exuberância, linguisticamente manifesta, quanto secura e crueza, evidente no embate entre as três fêmeas principais: a condessa símia, a mendiga Erinéa (cujo nome já significa sua fúria de sobrevivente) e a Morte, com eficácia assassina de secretária-executiva.
        Por aí já se vê, o livro é engraçado, inteligente e anarquicamente perverso. A ideia é rir com todo o gosto da língua aplicada à política da terra arrasada.

        Painel das Letras - Raquel Cozer

        folha de são paulo
        PAINEL DAS LETRAS
        Atrasos nas bolsas
        Editores estrangeiros que publicaram em seus países obras de brasileiros com o apoio da Biblioteca Nacional vêm sendo surpreendidos com atrasos cada vez mais frequentes no pagamento das bolsas de apoio à tradução, cujos valores variam de R$ 4.700 a R$ 18,7 mil. O programa é uma das principais vitrines do governo federal no trabalho de exportação de literatura nacional e costuma atrair, em especial, casas independentes.
        Editoras como a francesa Anacaona e a inglesa And Other Stories esperam pagamentos há mais de meio ano, após publicarem obras como, respectivamente, "Menino de Engenho", de José Lins do Rego, e "Todos os Cachorros São Azuis", de Rodrigo de Souza Leão.
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        // ATRASOS NAS BOLSAS 2
        Em fevereiro, a biblioteca informou a editores, sem estipular prazos, que, "devido a razões administrativas, não será possível realizar os pagamentos neste momento".
        "No começo não tinha tanto atraso, mas é verdade que recentemente virou... costume. Espero a bolsa para vários livros", diz a editora Paula Anacaona, que, no entanto, agradece ao governo brasileiro pela ajuda "sem a qual seria difícil continuar publicando títulos brasileiros".
        A biblioteca confirma os atrasos, sem quantificá-los, e os credita à "passagem de ano, diferenças de câmbio, demora de entrega de documentos das editoras e problemas administrativos de liberação de restos a pagar".
        Em 2013, foram investidos R$ 2,3 milhões nas bolsas. Por ora, a previsão para este ano é de R$ 1,8 milhão.
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        AMIZADE Parte das mais de 500 cartas trocadas dos anos 60 aos 90 entre Hilda Hilst (1930-2004) e o poeta José Luis Mora Fuentes (1951-2009), várias ilustradas, será editada pela Biblioteca Azul neste ano

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        50 anos esta noite Ausência digna de nota entre os lançamentos e as reedições por ocasião dos 50 anos do golpe de 64: "Trinta Anos Esta Noite" (1994), de Paulo Francis (1930-1997), está esgotado nas livrarias virtuais. A obra foi reeditada em 2004 pelo selo Francis, da Verbena. Há cópias disponíveis, segundo a editora. Encontrá-las são outros quinhentos.
        50 anos esta noite 2 O editor diz estar negociando com os herdeiros de Francis, mas não há previsão de o livro --nem outros do jornalista, como "Cabeça de Papel" e "Cabeça de Negro"-- voltar ao mercado tão cedo.
        Desaparecido Sai pela Rocco, em julho, o primeiro romance de Guiomar de Grammont desde que deixou a coordenação da área de ficção nacional da Record. Resultado da pesquisa de dados pouco ou nada conhecidos sobre a guerrilha do Araguaia, "O Rio Não Fala" trata da busca de uma jornalista pelo irmão desaparecido.
        Velhos Para atrair "escritores renomados", a Novo Século tirou o "Novos" do início do nome de seu selo de nacionais, que agora se chama Talentos da Literatura Brasileira.
        Velhos 2 E a editora aposta em quiosques para promover seus autores, como Laura Conrado e Samanta Holtz. Os primeiros começam a operar neste mês em shoppings de São Paulo.
        Memória 1 Sai em maio pela Tordesilhas o primeiro romance de Eduardo Alves da Costa em 40 anos --a única incursão do poeta e artista nessa seara foi com "Chongas" (1974). Em "Tango, com Violino", o autor, mais conhecido pelo poema "No Caminho, com Maiakóvski", trata da velhice pelo olhar de um professor aposentado.
        Memória 2 Com livros pela Alfaguara e L&PM, o colombiano Juan Gabriel Vásquez publicará seu próximo romance pela Bertrand Brasil. Em "Las Reputaciones", que sai no próximo semestre, um temido caricaturista político se vê obrigado a reavaliar a vida ao completar 65 anos.
        Haicai escolar 362 mil alunos paulistas receberão neste semestre exemplares de "Boa Companhia Haicai", organizado por Rodolfo Witzig Guttilla. Adotado pelo programa estadual Apoio ao Saber, o livro de 2009 se tornou uma das maiores tiragens da Companhia das Letras em 2013.

        Alberto Pereira Junior

        folha de são paulo
        Carnaval de confusões
        Stephen Frears com Stephen Fry, Albert Hofmann com Abbie Hoffman; quem não se confunde às vezes?
        Espera, espera: esse é aquele que escreveu o livro tal, ou foi aquele outro autor? E esta aqui, é aquela que tinha cabelo curtinho na novela, ou a que ficou pelada naquele filme? E este filme não é daquele roteirista... não, não, é do outro. Como se chama mesmo esta banda? Qual, a do disco de capa vermelha? Nada disso, o de capa vermelha é daquele outro grupo...
        São muitas as razões que nos levam a confundir uma pessoa com outra: nomes parecidos, feições semelhantes, nacionalidade, mesma profissão. Estes são os motivos óbvios.
        Porque também pode não ser nada disso, nada mais que uma bizarra conexão entre neurônios que nos faz guardar, em um mesmo compartimento cerebral, as lembranças de duas coisas que não têm nada a ver uma com a outra.
        Já que a realidade vira de cabeça para baixo nesses dias de Carnaval, já que um caos iluminado reina em nossas ruas até a Quarta-Feira de Cinzas, esta coluna aproveita o clima e fala hoje de confusões.
        Sem ironias, críticas veladas, indiretas ou maldade. São nomes que, de verdade, sempre que aparecem em uma conversa, ou se leio sobre eles, pedem uma pausa (às vezes breve, às vezes aflitivamente longa): peraí, esse é quem mesmo?
        Aqui vai minha lista, carnavalescamente caótica. Eu confundo:
        Nora Ephron com Naomi Wolf;
        Isaurinha Garcia com Dircinha Batista;
        Simone Spoladore com Camila Morgado;
        Jessica Lange com Meryl Streep;
        Os grupos de música eletrônica The Orb e Orbital;
        Os filhos de John, Sean Lennon e Julian Lennon;
        Julian Lennon com Julien Temple;
        Julien Temple com Stephen Frears;
        Stephen Frears com Will Self;
        Stephen Frears com Stephen Fry;
        "Cotton Club" com "Vidas sem Rumo" (pelo menos os dois filmes são do mesmo diretor, Francis Ford Coppola);
        "Vidas sem Rumo" com "Repo Man" (aqui não tem desculpa: um longa não tem nada a ver com outro);
        Matt Dillon com Matt Damon;
        As atrizes Kate Winslet e Kate Hudson;
        Kate Hudson com Katie Holmes;
        Kate Winslet com Katie Holmes;
        (confesso que só entendi finalmente quem é quem das três acima ao pesquisar na internet para escrever este texto);
        James Cameron com Cameron Crowe (não queira matar o colunista, mas não faz muito tempo que descobri ter sido o segundo, e não o primeiro, que dirigiu "Quase Famosos'' --durante muitos anos achei que eram uma pessoa só);
        Todos os filmes de apocalipse e epidemias, uns com os outros: "Extermínio" com "Epidemia" com "Contágio" com "Os 12 Macacos" com "O Dia Seguinte" etc. etc.
        "A Noite dos Mortos-Vivos" com "O Massacre da Serra Elétrica";
        "Sexta-Feira 13" com "A Hora do Pesadelo";
        Freddy Krueger com Jason;
        Os cineastas coreanos Bong Joon-ho (de "Mother") e Park Chan-wook (de "Oldboy");
        Albert Hofmann, químico descobridor do LSD, com Abbie Hoffman, ativista social dos anos 1960;
        Os escritores americanos David Foster Wallace e Jonathan Safran Foer;
        Os roteiristas Dalton Trumbo e Paddy Chayefsky;
        O dramaturgo David Mamet com alguém que não estou lembrando agora;
        Gay Talese com Gore Vidal (às vezes Truman Capote também);
        Os autores Edward Said e Tariq Ali;
        Picassos Falsos com Nenhum de Nós;
        Os pintores Camille Pissarro e Francis Picabia (nem contemporâneos são, que vexame...);
        Francis Bacon com Lucian Freud;
        Joe Dante (de "Piranha") com Sam Raimi (de "Evil Dead");
        Os compositores de música contemporânea Luigi Nono e Luciano Berio;
        Jards Macalé com Luiz Carlos Paraná;
        Os guitarristas Steve Vai e Joe Satriani;
        Os produtores de rock Youth ("Urban Hymns", do Verve) e Flood ("Achtung Baby", do U2);
        Brian Eno e Daniel Lanois (mas só quando o assunto é qual deles produziu o quê com o U2);
        As bandas de rock Bikini Kill e Beat Happening (são da mesma época e começam com "B", peço esse desconto);
        Paracetamol com ibuprofeno.
        Lembrei dessas rapidamente, mas com certeza há mais. E você, quais são suas confusões?
        Se não tiver nada melhor para fazer no Carnaval, escreva contando tudo para o e-mail abaixo.

        Escolas de samba têm perdido o protagonismo? - Pedro Migão

        folha de são paulo
        PEDRO MIGÃO
        TENDÊNCIAS/DEBATES
        Escolas de samba têm perdido o protagonismo?
        NÃO
        Quando a festa acabar...
        Se você estiver no Rio de Janeiro e circular pelas ruas da cidade, perceberá que de cada dez pessoas usando camisetas de Carnaval, nove serão de escolas de samba e uma de algum bloco de rua.
        Aliás, se você estiver na cidade, já percebeu que ela está repleta de turistas que viajaram justamente para curtir a festa carioca, atraídos pelo espetáculo que fez a fama do Rio, o espetáculo no sambódromo da Marquês de Sapucaí.
        Já os blocos de rua são difusos, pouco articulados entre si --seriam incapazes de estruturar uma festa de tamanha dimensão.
        Neste 2014, o renascimento de três grandes agremiações atualiza particularmente o protagonismo das escolas de samba. Portela, Mangueira e Mocidade acabam de trocar suas diretorias. Chegaram dirigentes (na primeira) ou integrantes (nas demais) jovens que, se por um lado, se inspiram na experiência dos mais velhos, por outro, vêm com gás para arejar as escolas e arrastar uma nova massa de apaixonados.
        A Unidos da Tijuca é o melhor exemplo dessa renovação. As surpresas preparadas pelo carnavalesco Paulo Barros a cada ano são sempre aguardadas pelos foliões, torcedores e desfilantes. Que, ademais, se diversificaram: à população do morro somaram-se outros contingentes da classe média.
        O grupo de acesso carioca também ganhou importância nos últimos dois anos, com a ampliação dos desfiles para dois dias (sexta-feira e sábado) e transmissão da maior rede de televisão carioca para o Rio.
        Em São Paulo, a presença da Mancha Verde no grupo de acesso trouxe um atrativo especial. Aliás, o desfile no domingo de Carnaval no sambódromo do Anhembi é uma boa alternativa para se curtir a festa sem grandes gastos. As escolas têm bons sambas e o ingresso é mais barato.
        Em Salvador, até mesmo trios elétricos famosos como o da cantora Claudia Leitte tiveram dificuldades para vender seus abadás. Não seria possível, portanto, dizer que as escolas de samba têm perdido espaço para a festa que se faz por lá. O telejornal de maior audiência do país dedicou espaço nesta semana à preparação da Portela. Que bloco ou trio teve a mesma exposição?
        Obviamente, em termos de envolvimento direto de público, as escolas possuem uma limitação: são apenas 72 mil lugares por noite na Marquês de Sapucaí e cerca de 30 mil no Anhembi e aproximadamente 90 mil desfilantes nos principais palcos no Carnaval carioca e em torno de 60 mil em São Paulo. Um único bloco carioca, como o Bola Preta, pode reunir quatro vezes esse contingente somado.
        Ainda assim, aqueles que não podem participar dos quatro dias de desfiles nos palcos principais têm como opção os ensaios técnicos na Sapucaí ou apresentações das escolas de grupos menores, que chegam a reunir 40 mil pessoas por noite na avenida Intendente Magalhães, subúrbio carioca. O fato é que Carnaval não é quantidade, é qualidade.
        O protagonismo das escolas de samba é consolidado. Fora do dia de desfile, há toda uma estrutura e uma agenda orgânicas, que facilitam a formação de novos músicos, cantores e compositores. Nomes como Martinho da Vila, Paulinho da Viola e Monarco se projetaram a partir de escolas de samba.
        Na nova geração, Diogo Nogueira, filho de João Nogueira, um baluarte portelense, ganhou quatro sambas-enredo pela Portela. Arlindo Cruz despontou na Império Serrano. André Diniz na Vila Isabel.
        Pergunto ao leitor da Folha: quando o Carnaval acabar, você abrirá o jornal para se informar sobre o quê? Que bloco se apresentou para mais gente, que trio soteropolitano galvanizou a massa ou qual escola de samba foi a campeã?

        Escolas de samba têm perdido o protagonismo?

        folha de são paulo
        LUIZ ANTONIO SIMAS
        TENDÊNCIAS/DEBATES
        Escolas de samba têm perdido o protagonismo?
        SIM
        Os astros do Carnaval
        O crescimento do Carnaval de rua, facilmente verificado no Rio de Janeiro (em proporções impactantes) e em São Paulo, deixa no ar a impressão de que o protagonismo da festa está mudando de mãos. As centenas de blocos de rua, arrastando multidões impensáveis há pouco tempo, parecem dizer, entre fanfarras, que a bastilha das escolas de samba caiu e um novo regime se vislumbra na corte do rei Momo.
        O desfile das escolas de samba nunca primou pela espontaneidade ou pelo caráter de subversão da ordem, dois elementos normalmente associados ao Carnaval. O concurso entre as agremiações é, ao contrário, caracterizado pela ideia de disciplina, adequação aos regulamentos, mediação do poder público e outros fatores que o caracterizam como uma manifestação enquadrada em princípios relativamente previsíveis.
        A despeito disso, as escolas de samba se legitimaram brilhantemente como espaços de exercício da alegria, construção de identidades e renovação de laços comunitários das camadas populares urbanas.
        Acompanhando o furdunço há muitos anos, tenho a nítida percepção de que boa parte do perfil comunitário das escolas de samba foi para o beleléu. As agremiações patinam na encruzilhada entre o discurso do apego à tradição e os ditames de certa lógica empresarial. Esta última enxerga os desfiles mais como um evento rentável, de acordo com as expectativas do mercado, do que como manifestação cultural não mensurável pela circulação de capitais.
        Palco para a exibição de celebridades duvidosas e para egolatria de certos carnavalescos, engolida pela supremacia do aparato visual em detrimento do sambista, as escolas de samba têm hoje dificuldades de renovar as relações de pertencimento com o meio do qual saíram.
        Fantasias despropositadas, que mais parecem trambolhos difíceis de carregar, rigor marcial dos passos marcados e enquadramento em ensaios exaustivos geram desfiles repetitivos, que mais se assemelham a paradas militares, tão emocionantes quanto uma corrida de cágados sob efeito de Rivotril. As exceções honrosas confirmam a regra.
        O Carnaval de rua, enquanto isso, atraí o folião que, livre das amarras, quer apenas brincar sem o risco de encontrar pela frente um diretor de harmonia mal-humorado que o enquadre aos berros. Tal fenômeno, é claro, também tem lá as suas contradições e percalços. Há que se constatar, todavia, que a efusão carnavalesca anda muito mais próxima das esquinas do que dos sambódromos, com seus lugares mais nobres ocupados por turistas pouco afeitos ao meio do samba.
        O Carnaval é uma festa dinâmica, caracterizada pela constante invenção de novas formas de apropriação dos territórios e circulação de saberes. Corsos, grandes sociedades e ranchos já se sentiram soberanos e hoje são apenas pálidas lembranças das folias de outrora, sem qualquer expectativa de experimentar a vitalidade perdida. A roda da folia, afinal, gira e surpreende.
        As escolas de samba continuam com o protagonismo nas mídias tradicionais. São elas que rendem manchetes de jornais, vendem seus desfiles para o mundo inteiro e consagram celebridades de ocasião como musas da festa. Certamente aparecerão como representantes de um Brasil dos sonhos, nas cerimônias de abertura da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio.
        O protagonismo que as escolas estão começando a perder é outro, e muito mais grave. Com a diluição dos laços de pertencimento entre a agremiação e seus componentes, os grandes e anônimos astros da festa é que estão pulando fora dos sambódromos: nós, os foliões.