domingo, 5 de janeiro de 2014

Ah, a inveja! - Dib Carneiro Neto

folha de são paulo
IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
Ah, a inveja!
Abertura da peça "Um Réquiem para Antonio"
DIB CARNEIRO NETO(Uma noite qualquer do ano de 1825, ano da morte do compositor italiano Antonio Salieri. Um quarto amplo. Quando a peça começa, Salieri está falando sozinho, divagando de forma meio débil e delirante. Wolfgang Amadeus Mozart está ao piano e sua presença ainda não é percebida por Salieri. Toda a peça se passa dentro da cabeça de Antonio Salieri.)
ANTONIO SALIERI (velho, abatido, dirigindo-se até a sua cama para deitar, faz um solilóquio inicial) "" Ah, a inveja... Brota de que órgão do nosso corpo esse sentimento viscoso e gosmento? Não creio que o mais abnegado dos praticantes da ciência e da medicina saiba nos responder ao certo. O coração já é por demais bombeado por todo tipo de artérias emaranhadas e amores difíceis... Prefiro acreditar que bastaria um mero jato de sangue bom para expulsar dali qualquer cancro modorrento como a inveja... O fígado? Também não. O fígado é fábrica de bile: vive ocupado em depurar a mais variada gama de líquidos diabólicos que nos inebriam desde a mais tenra idade. Que ilusão infeliz de que nos salvará de nossas ameaças mais etílicas... O estômago? Não: a inveja, ácida, não se dissolve nem com suco gástrico. É tão corrosiva como se fosse abrindo crateras estéreis na superfície da vida, uma estrada esburacada de insatisfação e de incompletude... Pulmões? Talvez, pois me falta ar toda vez que cobiço o que não tenho... Intestino? Pode ser também, já que a inveja, delgada, se enrosca e se enovela em mim, cada vez mais fétida... Ao menos se eu não tivesse nem olhos nem ouvidos, para ficar pouco exposto a esse sentimento torpe... Quem sabe se eu mesmo me arrancar as pupilas agora mesmo e sangrar meus tímpanos, como nos arroubos dos personagens míticos da velha Grécia, sempre guiados pelas forças da natureza... Mas cegos e surdos não invejam justamente os que têm olhos e ouvidos? Aaaaaaaai de mim! Ah, a inveja que me apodrece os ossos... Se fosse concreta, ela teria o gosto e a consistência daquelas poções fumegantes de bruxas encarquilhadas... Um caldeirão no fogo, unhas de felino, asas de morcego, ranho de hipopótamo, merda de elefante... Oh, deuses do além, preciso com urgência de três bruxas de rostos desfigurados e de malignas imprecações! Venham sem demora! Venham, moiras! Venham, górgonas! Triturem meu cérebro em vida, oh, vermes insensíveis, para que meus pensamentos fiquem ocos de todo conteúdo. Para que eu não perca mais um só minuto tentando compreender e compreender e compreender o que parece não comportar nenhuma explicação plausível... Querer ser o outro. Não há melhor exemplo do autoengano que assola a humanidade. Pois se Deus assim nos fez, Deus assim nos quer. Ou não? Somos o Seu' exército de soldadinhos de chumbo, cada qual diferente do outro: nunca dois serão iguais, para deleite de um Deus cruel que nos cria díspares justamente para que desejemos o que não temos... Pois é isso! É de Deus que brota a inveja! É desse Deus que implantam dentro de nós, desse carrasco que instalam em nossas entranhas, é Dele que nasce a inveja! E, por ironia do criador, é para Ele próprio que ela se volta, pois quem é que não inveja Deus?! Mozart é Deus, estás me ouvindo, Wolfgang? Antonio Salieri quer ser o Deus Mozart, estás me ouvindo ainda, Wolfgang Amadeus?

    Médicos erram ao deixar teoria da evolução de lado - Reinaldo José Lopes

    Doenças crônicas nasceram do descompasso entre vida moderna e nossa evolução


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    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    O bioantropólogo Dan Lieberman, da Universidade Harvard, resolve concluir a entrevista sobre seu novo livro, "The Story of the Human Body" ("A História do Corpo Humano"), com uma espécie de grito de guerra: "A medicina precisa da teoria da evolução!", brada ele.
    De fato, o slogan é um excelente resumo da obra, cujo subtítulo, não por acaso, é "Evolução, Saúde e Doença".
    Editoria de Arte/Folhapress
    Para o cientista, a principal razão pela qual os Homo sapiens de hoje, em especial os moradores de países ricos, sofrem cada vez mais de doenças relativamente fáceis de prevenir –obesidade, problemas cardiovasculares, diabetes e certos tipos de câncer, entre outras mazelas– é o fato de muitos médicos ignorarem a evolução humana.
    Um exemplo simples: muita gente sabe que nossos ancestrais pré-históricos, assim como nossos "primos" de hoje, os chimpanzés, tinham uma dieta obtida a partir da caça e da coleta, com grande quantidade de frutas.
    A questão, porém, é que a mais açucarada dessas frutas silvestres era tão doce quanto uma cenoura, o que mostra como é absurda a quantidade de açúcar disponível na mesa dos humanos de hoje.
    Sem essa perspectiva, argumenta Lieberman, a medicina preventiva vira algo impossível. "Como você pode tratar uma doença de fato sem entender suas causas? Afinal, tratar os sintomas de uma doença deveria ser apenas a segunda opção, caso você não consiga tratar as causas", diz ele.
    Detalhes como esse povoam as páginas do livro, que começa com cara de curso básico sobre a evolução da nossa espécie (dos pré-australopitecos, há 6 milhões de anos, à invenção da agricultura, meros dez milênios atrás), mas logo engrena para mostrar os elos entre as raízes da nossa anatomia e fisiologia e os problemas de saúde do mundo moderno.
    O bioantropólogo de Harvard mostra, por exemplo, que os níveis atuais de atividade física no mundo desenvolvido são uma completa aberração perto do padrão dos caçadores-coletores (que percorrem uma média de dez quilômetros por dia, quase sempre carregando comida, ferramentas e crianças).
    Não por acaso, uma de suas ideias mais ousadas é a de que a anatomia humana foi forjada para correr por longas distâncias em velocidade moderada.
    Uma das "armas secretas" dessa vocação humana para a vida de fundista seriam os músculos das nádegas, os mais volumosos do corpo, cuja especialidade é estabilizar a passada e impedir que o tronco penda para a frente durante a corrida. (Caso você esteja se perguntando, chimpanzés têm um bumbum que, perto do nosso, é diminuto.)
    Lieberman diz que há evidências de que muitos dos problemas ortopédicos crônicos do homem moderno têm a ver não só com o sedentarismo como também com o excesso de conforto –calçados confortáveis demais ou colchões macios agravariam o problema, já que a musculatura não se desenvolve como deveria para aguentar impactos de longo prazo.
    Uma das soluções propostas por ele: acostumar-se a correr descalço.
    SORRISO ESBURACADO
    Um fenômeno parecido – a abundância de comida molenga, excessivamente processada, pobre em fibras e rica em açúcar– estaria por trás da atual epidemia de aparelhos ortodônticos e cáries (caçadores-coletores, mesmo os mais idosos, raramente têm dentes cariados).
    Levando em conta a propensão humana quase universal para devorar o máximo de comida calórica possível, Lieberman diz que é preciso admitir que apenas campanhas educacionais não vão resolver a atual epidemia de obesidade e doenças relacionados –o desejo natural de se empanturrar é simplesmente forte demais, afirma o bioantropólogo.
    "O fato é que a maioria de nós precisa de ajuda para agir a favor de seus próprios interesses, e precisamos de ajuda para evitar que outros nos seduzam ou enganem", diz.
    "Então é claro que precisamos de regulamentação governamental nessa área. Acho que o tabaco é um bom modelo. Antes que o governo dos EUA agisse nessa área, 50% dos americanos fumavam. Com regulação, esse número caiu para 20%."
    The Story Of The Human Body
    AUTOR Daniel Lieberman
    EDITORA Penguin
    PREÇO R$ 23,85 (livro eletrônico), 432 páginas

    Marcelo Gleiser

    folha de são paulo
    Tamanho não é documento
    A chave do nosso sucesso não está no tamanho do cérebro, e sim na riqueza da interconectividade neuronal
    Talvez o universo seja a maior coisa que exista, mas sem nosso cérebro não teríamos a menor noção disso. Aliás, sem nosso cérebro não teríamos noção de qualquer coisa. É realmente espantoso que tudo o que somos, das nossas personalidades às nossas memórias, das nossas emoções à nossa coordenação motora, seja orquestrado por uma massa de neurônios e suas ligações de não mais do que 1,4 kg.
    Como comparação, o cérebro de um orangotango pesa 370 g, enquanto que o de um elefante pesa 4,8 kg. Se você acha que o segredo do nosso cérebro está no seu peso, veja que o de um camelo pesa 762 g e o de um golfinho, 1,6 kg. Mesmo que golfinhos sejam bem inteligentes, não escrevem poemas ou constroem radiotelescópios.
    Também não solucionamos o mistério comparando o peso do cérebro com o peso do corpo. Por exemplo, a razão do peso do cérebro para o do corpo nos humanos é de 1:40, a mesma que para ratos. Já para cachorros, a razão é de 1:125 e para formigas de 1:7. Formigas certamente são inteligentes, especialmente ao atuar em grupos (inteligência coletiva), mas não mais do que cachorros ou humanos.
    Ao acompanharmos a evolução do cérebro a partir de nossos antepassados primatas, vemos um enorme crescimento começando em torno de 3 milhões de anos atrás. Mesmo assim, tamanho não parece ser a resposta. De acordo com os neurocientistas Randy Buckner e Fenna Krienen, da Universidade de Harvard, nos EUA, a resposta está nas conexões entre os neurônios, que é unicamente rica nos humanos.
    Para chegar a essa conclusão, os cientistas mapearam o cérebro humano e o de outras espécies usando a ressonância magnética funcional, ou fMRI. Nas outras espécies, os neurônios são conectados localmente: a transmissão de sinais ocorre como numa linha de produção industrial, linearmente de um neurônio a outro. Regiões diferentes do cérebro, as córtices, também são interligadas dessa forma linear. Por exemplo, a ligação entre a córtex visual e a motora permite que os músculos dos animais reajam a algum estímulo visual, como o predador que vê uma presa. O processo é eficiente, mas limitado.
    Nos humanos, as córtices estão interligadas de forma diferente, parecendo-se mais com os nodos de conexão de uma cidade grande do que com uma estrada que liga um ponto a outro. Como numa cidade, existem centros mais densos (as córtices) que estão interconectados entre si por várias ruas e avenidas, passando por centros menores no caminho (as córtices associativas).
    Essa riqueza na interconectividade neuronal parece ser a chave do nosso sucesso. Nos animais, a linearidade das conexões limita sua capacidade de improvisação e de reflexão: o caminho é um só, como no exemplo do predador e da presa. No cérebro humano, regiões diferentes podem trocar informação sem qualquer estímulo externo, criando uma nova dimensão onde o cérebro funciona por si só, ou seja, reflete.
    Com isso, podemos pensar sobre diferentes possibilidades e ponderar situações individualmente. (A grosso modo, um leão age como todos os outros leões.) Como dizia o saudoso Chacrinha, quem não se comunica se trumbica. Nossos neurônios sabem disso muito bem.

      Elizabeth Bishop entre índios

      folha de são paulo

      Elizabeth Bishop entre índios


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      ELIZABETH BISHOP
      tradução PAULO HENRIQUES BRITTO
      ilustração DEBORAH PAIVA

      RESUMO Acompanhando em 1958 visita do escritor britânico Aldous Huxley (1894-1963), Elizabeth Bishop (1911-79) foi a Brasília, então em construção, e conheceu índios em MT. O relato "Uma Nova Capital, Aldous Huxley e Alguns Índios", do qual se extraiu este trecho, está no volume "Prosa", que a Companhia das Letras neste mês.
      *
      Às oito decolou nossa aeronave, um DC-3 da Aeronáutica brasileira. Era um avião agradável, se a palavra pode ser usada para qualificar um avião; novo, sem os estofamentos e cortinas habituais, porém com bancos de pelúcia azul e encostos reclináveis. Tinha capacidade para 24 passageiros e, embora alguns homens desconhecidos tivessem se juntado a nosso grupo, mesmo assim sobrava tanto espaço que podíamos baixar o encosto do banco à frente para nele apoiarmos os pés, como fazíamos nos trens quando crianças.
      Lá embaixo, o continente descortinava-se em direção ao oeste, um mapa pardacento, em baixo relevo e tamanho natural. Ao longo das rugas do terreno há árvores; os riachos menores são de um tom opaco de verde-oliva. De vez em quando sobrevoamos um trecho mais elevado, com rochas desmoronadas que lembram fortalezas; talvez tenham sido essas formações, observou Callado,1 que deram origem à lenda da cidade perdida que o coronel Fawcett buscava; aquilo era o território de Fawcett.
      Depois de algum tempo vimos um rio grande e azul, o Araguaia, correndo para o norte, como fazem todos os rios, para juntar-se ao Amazonas, a mais de 1.500 quilômetros dali. Callado, que estava com um traje de dril cáqui, caminhou pelo corredor dando a cada um de nós um comprimido antimalárico, tirado de um frasco enorme: "É mais para efeito psicológico", ele explicou, "se bem que pode ser que a gente encontre mosquitos transmissores de malária".
      Deborah Paiva
      Até ficar quente demais, os homens da Aeronáutica permaneceram com suas elegantes túnicas de lã azul-cinzenta, com bibicos da mesma cor. Eram simpáticos e hospitaleiros, e começaram a nos servir comida de imediato: sanduíches, depois jujubas e, por fim, café adoçado servido em copinhos de papel, ao menos três vezes, mas isso é "de rigueur" em qualquer avião brasileiro, e por vezes até mesmo nos ônibus. Depois o avião ficou cheirando a laranja, quando um aviador simpático descascou uma bandeja inteira de laranjas para nós.
      "LÁ-DI"
      Começamos a ler trechos dos vários livros que havíamos trazido, trocando de exemplares entre nós; mudávamos de lugar para conversar, como quem troca de parceiros numa dança. A jovem intérprete comeu uma barra de chocolate grande e dedicou-se à leitura de uma revista chamada Lady (que se pronuncia "Lá-di").
      Ela entregou a revista a Huxley. Havia uma fotografia dele de página inteira, numa entrevista coletiva recente no Rio; na foto, Huxley protegia os olhos e tinha uma expressão muito triste. A mulher dele ficou indignada com a expressão: "Ah, por que será que eles sempre o fotografam com essa cara! Ele não é assim, não, absolutamente!". O que mais me incomodou foi a legenda em letras garrafais: DIZ O VELHO HUXLEY e alguma coisa a respeito da paz mundial. Huxley não sabe português, mas sabe espanhol, e eu temia que ele reconhecesse a palavra "velho", que é parecida nos dois idiomas.
      Fiquei a debater comigo mesma se seria melhor explicar ou não dizer nada, e resolvi ficar calada. Afinal, naquele contexto a palavra parecia ter uma conotação afetuosa, ou então tinha apenas o sentido de que ele era famoso há muitos anos. (Nas últimas duas semanas, Huxley estava fazendo sucesso no Rio; nas livrarias havia muitos livros seus, em cinco idiomas, e a imprensa só o tratava com elogios rasgados e grande respeito.)
      Um dos homens que se juntaram a nosso grupo era um tipo exuberante; não conseguia ficar parado em seu lugar, porém andava de um lado para o outro pelo corredor, com um chapéu de gaúcho, de couro, amarrado embaixo do queixo. O outro era um velho miúdo, com orelhas grandes e olhar melancólico. Fiquei sabendo que ele era o homem que deveria ter me recebido noaeroporto dois dias antes; naquele exato momento, ele confessou, era para estar recebendo um grupo que chegava do Rio, mas em cima da hora resolvera vir conosco.
      Levava uma prancheta em que a primeira folha ostentava o nome "Aldous Huxley" em letras maiúsculas. Apresentou a prancheta a Huxley e lhe pediu que escrevesse uma mensagem -suas impressões de Brasília, ou qualquer outra coisa- para uma coleção de mensagens de celebridades que vinham conhecer Brasília, que ele estava organizando e que seria guardada num museu a ser construído na cidade. Huxley pegou a caneta e começou a trabalhar e, depois de rasgar duas ou três folhas de papel, produziu algumas frases sobre a experiência interessante de voar do passado (as cidades coloniais de Minas) para o futuro, a novíssima cidade de Brasília.
      Divulgação
      A poeta Elizabeth Bishop com índia durante visita à Amazônia
      A poeta Elizabeth Bishop com índia durante visita à Amazônia
      Dois dias depois, esse texto foi publicado nos jornais do Rio como sendo um telegrama que Huxley enviara ao presidente Kubitschek, dando uma impressão um tanto estranha do estilo telegráfico de Huxley.
      COUVE-FLOR
      Agora estávamos voando mais para o norte do que para o oeste, e a paisagem havia mudado gradualmente. Sobrevoamos o rio das Mortes, e depois o rio das Almas. A algumas áreas Callado dava o nome de "matas de couve-flor".
      De fato, vistas de cima, as árvores da floresta lembram couve-flor, e mais ainda brócolis, se bem que nessa região a mata não seja tão fechada nem tenha um tom de verde tão vivo quanto na Amazônia. Por fim, alguém exclamou: "Olha! Uma aldeia indígena!".
      E era mesmo: numa clareira junto a um riacho lamacento, lá estavam cinco telhados de folhas de palmeira trançadas e dois ou três botes pequeninos parados na margem. Logo adiante havia uma pista de pouso, uma fita de vermelho desbotado de três ou quatro centímetros largada sobre a selva.
      Era o posto de Xavantina, uma referência aos índios xavantes, outrora guerreiros ferozes, conhecidos pelas fotos em que aparecem posando numa perna só, com os cabelos em mechas compridas. Nosso destino, porém, era mais adiante: os iaualapitis do posto Capitão Vasconcelos, à margem de um pequeno afluente do rio Xingu.
      Callado, que era responsável por esse trecho da viagem de Huxley, começou a ficar um pouco nervoso. Explicou-nos que não deveríamos ter expectativas excessivas em relação aos índios que íamos conhecer; afinal, eles estão num posto, são misturados, por vezes cinco tribos diferentes estão lá ao mesmo tempo, e os que moram no posto em caráter permanente "não são interessantes", segundo ele, como o são os que vivem em suas aldeias, inteiramente isolados.
      Alguns deles por vezes usam uma camisa ou uma calça (mas para eles o único motivo compreensível para usar roupas é proteger-se dos mosquitos), e um dos homens fora levado ao Rio uma vez, para ver o Carnaval.
      Por fim apareceu outra pista de pouso, e outra clareira à margem de mais um riacho, desta vez de águas límpidas, e os telhados eram ovais. Voamos em círculos sobre uma área com buritis e um pé alto de ipê,2 totalmente florido, sem uma única folha -é uma das mais belas árvores florescentes do Brasil.
      Enquanto o avião descia, víamos os índios saindo das casas e correndo por uma estrada rústica em nossa direção, e quando desembarcamos já havia cinco ou seis homens a nossa espera, seguidos por mulheres com crianças de colo. Estavam muito satisfeitos por nos ver, sorrindo efusivamente, pegando com avidez nossas mãos, a esquerda ou a direita, para apertá-las; dois ou três dos homens disseram "bom dia, bom dia", em português. Mais índios chegavam o tempo todo e vinham apertar nossas mãos, com força ou de leve, sorrindo, com expressões deliciosamente francas e alegres, exibindo os dentes quadrados e espaçados.
      IAUALAPITIS
      Os iaualapitis são de baixa estatura, porém bem proporcionados, os homens quase gorduchos, com músculos lisos, ombros largos e peitos lisos e largos. Andam inteiramente nus, usando apenas colares de conchas e cinturões de contas e conchas; as mulheres usam um "cache-sexe" simbólico feito com uma folha de palmeira dobrada, formando um pequeno retângulo com cerca de quatro centímetros de comprimento, sustentado por um fio fino, feito com a mesma palmeira.
      Esta peça de vestuário quase invisível é importante; por vezes elas param e viram-se de costas para ajustar o fio. O cabelo é muito abundante e surpreendentemente fino e lustroso; as mulheres usam-no comprido, com uma franja; os homens adotam um corte em forma de cuia.
      Seus corpos quase não têm pelos; os fios ocasionais que nascem são arrancados. Em sua maioria, os homens tingem mechas de cabelo ou toda a cabeleira com uma tinta vermelha e grudenta feita com urucum, o único corante, e a única cor, que eles possuem; alguns polvilhavam com urucum as orelhas, o pescoço e o peito, de um vermelho bem vivo. A pele é fina e macia, um tom moreno escuro.
      Algumas das crianças, meninas, tinham duas linhas negras paralelas traçadas nas pernas, do lado de fora, e a testa de uma delas estava pintada de vermelho vivo, dando a impressão de que ela sofria de uma dor de cabeça terrível. Tanto os homens quanto as mulheres levam os bebês no colo, e, além de colares de conchas, muitos usam também contas de vidro azul e branco. Um dos bebês, uma menininha de cerca de dez meses, estava encantadora, vestida apenas com um colar de pérolas falsas de seis voltas.
      Os índios são limpos e cheiram bem (eles tomam banho de rio várias vezes por dia) -porém as crianças têm o rosto imundo, sujo de lama. Apesar disso, os homens da Aeronáutica pegaram as crianças (inclusive a menina do colar de pérolas) do colo dos pais e ficaram a carregá-las. Havia uma atmosfera simpática de reencontro de velhos conhecidos.3
      Callado e os pilotos conheciam a maioria dos homens; alguns deles falavam um pouco de português, e uma conversa simples e repetitiva se manteve incessantemente durante toda a nossa visita. Huxley foi apresentado como "um grande capitão", 4 e deixou que o apalpassem com admiração.
      Havia muita poeira, e o calor era forte; seguimos pela estrada e chegamos a uma área ampla, com chão de terra batida, onde havia quatro casas. Uma enorme porca preta, com seus filhotes, saiu correndo quando nos viu; havia também muitos cachorros magros. Mais índios vinham nos conhecer, olhar para nós e segurar nossas mãos com suas mãos duras e quentes, às vezes nos apalpando discretamente para saber se éramos homens ou mulheres, já que as mulheres do grupo estavam de calça comprida.
      Todos os índios estavam nus em pelo, com exceção de um velho com uma camisa do Exército e duas moças com vestidos de algodão estampados de florzinhas vermelhas e brancas. Uma delas, de catorze ou quinze anos, estava já no final da gravidez; a outra, mais velha, era anã ou corcunda, uma criaturinha estranha e melancólica que víamos a toda hora andando de um lado para o outro durante nossa visita, como se trabalhasse mais do que os outros, ou como se quisesse dar a impressão de que era tão ativa quanto qualquer um.
      ESPANTO
      De repente apareceu um homem branco, de meia-idade, magro, com uma barba de uma semana no rosto claro, trajando calça e camisa, porém descalço. Era o responsável pelo posto Capitão Vasconcelos, Cláudio Villas Bôas, um dos três irmãos que trabalham há muitos anos para o Serviço de Proteção ao Índio. Como o rádio estava quebrado, ele só ficou sabendo de nossa vinda quando ouviu o motor do avião, mas não manifestou o menor espanto até o momento em que viu Huxley.
      Foram-lhe apresentados Huxley e Laura. Em português, com uma voz fraca, Villas Bôas exclamou: "Mas é o Huxley? 'Contraponto'?".5 E por um momento pareceu prestes a desmaiar.
      Segurou a mão de Huxley e ficou a falar com ele em português, com os olhos cheios de lágrimas. Nesse momento outro homem branco, vestido e descalço, apareceu, saído do nada, um rapaz alto, bonito, com cara de bebê e uma espessa barba negra. Também ele exclamou, só que com um sotaque de inglês de classe alta: "Huxley! Por essa eu não esperava!".
      Era um aluno de pós-graduação de Cambridge, historiador, que havia chegado ao posto um mês antes. Estava preparando uma tese sobre os efeitos do contato entre duas culturas diferentes, e também escrevendo um livro. "Ou melhor", disse ele, "eu tenho mais é que escrever esse livro, porque ele já está vendido".
      Seguindo Villas Bôas, todos nós penetramos no interior escuro de uma das casas; ela estava ligada a outra menor, com paredes que não chegavam ao teto e uma mesa grande; e uma terceira cabana conectada a ela fazia as vezes de cozinha. Huxley subiu numa das redes e deitou-se (parecendo muito bem instalado); Villas Bôas ficou de cócoras a seu lado, à maneira dos índios, e, com duas ou três pessoas atuando como intérpretes, começou a falar com Huxley com uma voz enferrujada e nervosa, como se há anos aguardasse uma oportunidade de falar com ele.
      Nós nos reunimos em torno deles para escutar, e foi uma cena tensa e comovente: a grande cabana escura, o grupo heterogêneo de brancos vestidos cada um a seu modo, o círculo de índios nus e sorridentes, e Huxley, balançando-se de leve, as pernas compridas tocando o chão, passivo e atento.
      Villas Bôas disse-lhe que tinha lido todos os seus livros já traduzidos para o português, falou da importância que sua obra tivera para ele e passou a discorrer sobre os livros do avô de Huxley.6
      Então falou sobre os anos em que vinha trabalhando no Serviço de Proteção ao Índio, como é difícil ajudar os indígenas, uma batalha perdida contra a doença e a corrupção; mesmo com a ajuda dos médicos do Exército, ele vive com medo de infecções trazidas por forasteiros, pois basta uma pessoa com sarampo, por exemplo, para dizimar várias aldeias.
      Os índios não são proprietários de terra alguma; não há reservas onde eles possam se refugiar se as terras em que eles vivem forem vendidas. Embora isso provavelmente não vá acontecer tão cedo, o fato é que a terra está sujeita à especulação, e a criação de Brasília fez com que essa possibilidade ficasse mil quilômetros mais próxima. Em toda a região do Xingu, calcula Villas Bôas, só devem restar agora cerca de 3.500 índios.
      POLAROID
      Laura Huxley, que havia saído da casa, estava aproveitando sua Polaroid; aqueles índios sabiam muito bem o que era uma câmara fotográfica e gostavam de posar, enfileirados, um com o braço no pescoço do outro. Os que estavam do lado de dentro se reuniam em torno de nós, não exatamente pedindo, mas certamente desejando os presentes que sabiam que havíamos trazido, e um pouco constrangidos distribuímos nossos míseros cigarros, fósforos e dropes Salva-Vidas.
      Uma mulher a toda hora me beliscava de leve, pedindo: "Caramelo? Chocolate? Caramelo?",7 e lamentei não saber que esses doces eram os prediletos.
      As redes estavam se enchendo; o homem com o livro "Platão" estava reclinado numa delas, um dos pilotos brincava com um bebê em outra, e o homem do chapéu de gaúcho ocupava uma terceira rede com outro bebê, que agora estava usando o chapéu. Também eu me deitei numa rede e olhei para cima.
      Os telhados altos são muito bem-feitos, com folhas de palmeira dobradas sobre galhos horizontais, formando camadas superpostas, e a cúpula extensa se sustenta no alto com uma armação de galhos que não foram descascados. Ali havia pombos, que arrulhavam, e um casal de periquitos.
      Uma espetacular arara azul e amarela, empoleirada na parede da sala de jantar, encarava-nos e falava sem parar em nu-aruaque, imagino -o grupo linguístico a que pertencem os iaualapitis. Alguns mutuns -uma espécie de peru, negro e reluzente, com uma crista que parece um pente com bolas nas pontas e manchas verdes dos dois lados da cabecinha elegante- andavam por entre nossas pernas, a cacarejar.
      A sombra, as vozes contidas, as carícias e os sorrisos e as redes a balançar-se, tudo inspirava tranquilidade e devaneio, uma sensação terra a terra, até mesmo nostálgica, de estar de novo no chão depois de três horas de voo.
      Ouvi um índio fazendo perguntas ao aviador na rede ao lado da minha. Ele queria saber o nome de Huxley, qual das mulheres era dele e quantos filhos eles tinham.
      O aviador respondeu às perguntas; o índio ficou examinando Huxley, a sorrir, repetiu todas as perguntas e recebeu as mesmas respostas. (As conversas com os índios, explicaram-me, têm o andamento de uma geleira. Uma narrativa simples pode se prolongar por horas, até mesmo por dias.) Como sabe todo aquele que já viu fotos de Huxley na capa de seus livros, ele é um homem muito bonito, aristocrático, mas a opinião final do índio, expressa, com muito tato, em voz baixa, foi: "Feio feio". E naquelas circunstâncias Huxley não parecia feio, e sim muito alto, branco, refinado e deslocado.
      Depois de algum tempo saímos e fomos até o rio, onde alguns dos nossos foram nadar, e os índios, sociáveis, caíram n'água também. Normalmente as aldeias ficam a uma distância de mais de um quilômetro dos rios, para fugir dos mosquitos, e a população inteira atravessa a floresta, enfileirada, todas as manhãs, ou de manhã e à tarde, para tomar banho de rio.
      Um índio jovem era visitante da tribo dos caiapós, que está em contato com os brancos há apenas dois anos. (Ainda estão sendo contatadas tribos novas, enquanto outras já são conhecidas há dois séculos.) O visitante usava calça e camisa, cabelo longo escorrido nas costas e amarrado com uma fita branca, e no lábio inferior uma placa oval de madeira, com dez centímetros de comprimento, tingida de vermelho do lado de baixo.
      Era um rapaz alegre, conversador ("Simpático, mas meio bobo", Callado observou); quando lhe pediram que posasse para uma foto, teve a delicadeza de despir-se. Quando veio nadar conosco uma espécie de nado de peito, jogava água dentro da boca com a placa de madeira, bebendo como se fosse um pato. O rapaz inglês chamava-o de "Ronny", um nome relativamente parecido com seu nome indígena cheio de vogais.
      Como estávamos no final da estação da seca, a água do riacho batia apenas na cintura, mas o fundo estava limpo e arenoso, e havia ondulações verdejantes no terreno, trepadeiras e touças de palmeiras delicadas; lembrava as xilogravuras nos livros antigos sobre explorações. O barco de "Ronny" estava na margem, cheio de maços de folhas de palmeiras que ele levaria para sua aldeia.
      A construção do barco era simples: um tronco de árvore é cortado ao longo do comprimento e escavado com cunhas; a casca da árvore é então rasgada com gravetos, as pontas dobradas para cima, deixa-se a madeira secando e pronto, sem muito trabalho tem-se uma ótima canoa leve.
      Depois fomos para a margem, tirando mais fotos. Os índios adoraram as fotos da Polaroid (quem vai à floresta deve sempre levar uma câmara Polaroid e bastante filme) e por um triz não as rasgavam para ver logo como tinham saído; alguém surrupiou com muito jeito do bolso de Huxley algumas fotos que não ficaram boas, guardadas ali por Laura.
      Uma nuvem de borboletas pierídeas de um amarelo claro pousou, trêmula, na lama úmida à beira-rio, como se fosse o início de uma regata; entre elas havia alguns exemplares magníficos de uma espécie que eu não conhecia, que quando fechava as asas ficava idêntica a uma folha prateada seca e, quando as abria, eram duas faixas de veludo de um tom vivo de vermelho rosado.
      Huxley ficou entusiasmado com essas borboletas, abaixando-se lá do alto para examiná-las de perto com sua lupa.
      Então fomos chamados para o almoço: as salsichas que havíamos trazido, uma panela de feijão-mulatinho e duas travessas de arroz mal cozido. (A comida habitual é mandioca; o arroz fora um presente recebido pouco antes.) "Ronny" vestiu as calças e ajudou a nos servir, enchendo de água os canecos de metal, manejando a concha cheia de feijão aguado, enquanto o disco de madeira no lábio subia e descia de modo simpático.
      Os índios impediram que a arara azul e amarela pulasse sobre a mesa e ficaram bem perto de nós, observando cada bocado e sorrindo enfaticamente cada vez que alguém olhava para eles. Eu estava usando brincos de ouro pequenos, e de vez em quando alguém beliscava de leve o lóbulo de minha orelha. Depois do arroz com feijão serviram mais cafezinhos; acendemos cigarros para os índios, que cuidadosamente acenderam cigarros para nós, e uma moleza tomou conta de todos.
      Notas:
      1. O jornalista e escritor Antonio Callado (1917-97), autor de "Quarup" (1967), membro da comitiva que acompanhava Aldous Huxley (Nota da Redação).
      2. Bishop escreve "îpé". (N.T.)
      3. No original, "Old-Home-Week atmosphere", referência a uma tradição da Nova Inglaterra, em que antigos moradores de uma cidadezinha retornam a ela por uma semana para reencontrar amigos de infância. (N.T.)
      4. Em português no original. (N.T.)
      5. O título do livro está em português no original. (N.T.)
      6. Thomas Henry Huxley (1825-95), biólogo, grande defensor da teoria da evolução de Charles Darwin. (N.T.)
      7. Em português no original. (N.T.)
      ELIZABETH BISHOP, (1911-79), poeta americana, reconhecida com prêmios como o Pulitzer e o National Book Award, viveu no Brasil entre as décadas de 1950 e 1970.
      PAULO HENRIQUES BRITTO, 62, poeta, ensaísta e professor de tradução, criação literária e literatura brasileira na PUC-Rio, é um dos principais tradutores da língua inglesa no país.
      DEBORAH PAIVA, é artista plástica.

      Antonio Prata

      folha de são paulo
      A fuga do cativeiro egípcio
      Fui empurrando o carrinho e pensando que seria tão mais simples se nos ignorássemos mutuamente
      "Pequeno pânico" talvez soe incongruente, algo como "gigantinho" ou "leve furacão", mas foi exatamente o que senti ao vê-lo próximo à esteira de bagagens, acenando. Não, não somos inimigos, longe disso. Namoramos duas primas, lá por 96, dividimos a mesa em Pessachs, Rosh Hashanahs e Yom Kippurs, na casa da avó delas. Os dois góis --ele cristão e estudante de engenharia, eu ateu e aspirante a escritor--, procurávamos terrenos comuns para escorar nosso deslocamento: eu lhe narrava a ideia de um conto, ele dissertava sobre as maravilhas do concreto armado e, assim, ficava mais fácil equilibrar as adolescências sob aqueles quipás. Dezoito anos e 11 horas de viagem depois, contudo, às seis da manhã...
      Fui empurrando o carrinho e arrastando meu pequeno pânico, pensando que seria tão mais simples se, num acordo de cavalheiros, nos ignorássemos mutuamente. Bastava monitorar o posicionamento do outro com a visão periférica e ficar de lado ou de costas, conforme a situação. Já não namorávamos as primas, não nos sentíamos perdidos entre contraparentes e rituais milenares, éramos apenas dois homens cansados, querendo ir logo pra casa. Agora, porém, era tarde: ele havia feito contato visual e estávamos irremediavelmente atados até que chegassem as malas, condenados a uma escavação arqueológica em busca de gefilte fishes, vergalhões enferrujados e contos nunca terminados.
      Eu dei oi, apertamos as mãos. A conversa começou protocolar, "Poxa, quanto tempo", "Quinze anos? Mais?!?", "Tá vindo de onde?". Aos poucos, contudo, o papo engrenou: mesmo cansado, às seis da manhã, ele investia alguma energia pra que a coisa fluísse --energia que, momentos antes, eu preferia gastar metendo o nariz no iPhone. Das viagens fomos pras primas (uma se casou com um austríaco, a outra faz massagem Ayurvédica), das primas pros jantares, dos jantares pras profissões. Eu falei do meu último livro, perguntei o que ele fazia, me contou que "desentortava prédios". Eu ri, curioso, ele disse que era sério, esses prédios que afundam, como os de Santos, são mais comuns do que se imagina. Então, enquanto à nossa volta olhos sonados amaldiçoavam as malas alheias, deslizando como leões-marinhos pela esteira, eu ouvi atento o relato sobre tal milagre da engenharia: cavam um buraco embaixo do prédio, constroem uma espécie de piscina, enchem de água e congelam com nitrogênio. "A água, como você sabe, se expande ao congelar" --eu não sabia-- "o gelo empurra o prédio pra cima, aí é só escorar com uns pilares."
      Quando nos despedimos, o pequeno pânico havia dado lugar a uma pequena culpa e a uma sincera admiração. Ali estava um sujeito generoso, não um sujeito que via o mundo sob a ótica do cálculo e do interesse. Ora, se na década de 90 havíamos concluído a fuga do Egito, mais de uma vez, tranquilos, o mínimo que deveríamos fazer ao nos encontrarmos no aeroporto, no mercado ou no Azerbaijão era apertar as mãos e investir algum esforço para sermos agradáveis. Me senti uma besta. Paciência: uns nascem para desentortar edifícios, outros para embrulhar o remorso numa folha de jornal.

        Garotinho cadastra eleitores evangélicos e distribui kits - Bernardo Mello Franco

        folha de são paulo
        Garotinho cadastra eleitores evangélicos e distribui kits
        Deputado usa programas de rádio para atacar futuros adversários na eleição
        Pré-candidato do PR nega antecipação da campanha e diz que não pode controlar declarações de ouvintes
        BERNARDO MELLO FRANCODO RIO
        "Ficamos combinados assim: eu oro por você e você ora por mim." Este é o lema da rede montada pelo deputado Anthony Garotinho (PR-RJ) para se fortalecer no eleitorado evangélico no Rio.
        Líder nas pesquisas para a disputa do governo do Estado, ele começou a organizar um cadastro para distribuir brindes aos fiéis que ouvem seus programas de rádio.
        Cada inscrito ganha um kit com livro, camiseta e carteirinha personalizada com a foto do ex-governador. O pacote, enviado de graça pelo correio, inclui uma carta de boas-vindas assinada pelo "Irmão Garotinho".
        "A oração é a chave que move o coração de Deus. Creia nisso!", pede o deputado na mensagem aos fiéis.
        O formulário deixa claro que só pode se inscrever quem tem domicílio no Rio, onde Garotinho disputará eleição daqui a nove meses.
        Estado com o menor percentual de católicos do país (45,8%), o Rio vive uma batalha pela preferência dos evangélicos, que somam cerca de um terço do eleitorado.
        Eles são a principal aposta do deputado para voltar ao poder. Há oito anos ele apoiou a eleição do governador Sérgio Cabral (PMDB), mas os dois romperam pouco depois da posse.
        Folha fez um cadastro no site de Garotinho e recebeu o kit "Palavra de Paz", na última quinta-feira, dia 2. A carteirinha identifica o fiel com nome, cidade, bairro e igreja que frequenta.
        Seu portador é nomeado "intercessor" das orações do pré-candidato ao governo.
        Garotinho também investe no rádio para reforçar o laço com o eleitor e atacar seus adversários. Passa duas horas por dia no ar em emissoras AM. Seu programa de maior audiência mistura orações e sorteio de presentes como geladeira e máquina de lavar.
        A programação é temperada com ataques a Cabral e seus aliados. Anteontem o principal alvo foi o vice-governador Luiz Fernando Pezão, pré-candidato do PMDB ao Palácio Guanabara.
        "O nome do homem é Pezão, mas estão dizendo que é Mãozão, porque o dinheiro sumiu", disse Garotinho.
        Ele também chamou de "171" (artigo do Código Penal para estelionato) o ex-secretário estadual Sérgio Côrtes (Saúde), que deixou o governo Cabral nesta semana.
        Mas a tarefa de lembrar que o âncora será candidato é deixada aos ouvintes. "Só tenho muito a agradecer ao senhor. Que Deus o ilumine, e que seja o nosso governador em breve", disse anteontem uma mulher identificada como Sandra de Carvalho. "Isso é se Deus quiser", respondeu o deputado.
        No ano passado, o Ministério Público ofereceu cinco denúncias contra Garotinho por propaganda antecipada. Nenhuma delas tratou do kit ou dos programas de rádio.
        Ele lidera a corrida ao governo com 21% das intenções de voto no Datafolha.
        OUTRO LADO
        Procurado, Garotinho negou que o cadastro de fiéis tenha finalidade eleitoral. Ele disse que a rede foi montada há um mês e conta até agora com 3.000 integrantes.
        "Isso não tem nada a ver com campanha, e o livro que eu envio não tem nenhuma conotação política."
        O deputado se disse surpreso com o fato de o cadastro só aceitar evangélicos com domicílio no Rio: "Não é minha orientação. Deve ter havido um problema quando fizeram o formulário". Ele também negou que faça campanha antecipada no rádio: "Não posso controlar os ouvintes".
        "A lei diz que eu não posso pedir voto. Se a ouvinte diz que espera que eu seja governador, o que eu vou responder? Que eu não quero?"

        Elio Gaspari

        Jornal O Globo
        O exemplo de Michael Bloomberg
        Prefeito de Nova York gastou US$ 650 milhões do próprio bolso e a mulher de Volcker alugava quarto em casa
        Depois de governar a cidade de Nova York por 12 anos, o bilionário Michael Bloomberg pegou o metrô e foi para casa. Além de uma grande administração, deixou um exemplo. Durante o tempo em que ocupou a prefeitura gastou US$ 650 milhões
        do próprio bolso. Sabia-se que voava em jatinhos e helicópteros de sua propriedade (alô, Sérgio Cabral). Sabe-se agora que seu gosto por aquários no gabinete custou-lhe US$ 62,4 mil. O café da manhã e almoços frugais para a equipe saíram por US$ 890 mil. Uma viagem ao exterior custou US$ 500 mil (alô, Cid Gomes). Seu salário na prefeitura era de um dólar por ano.
        Com uma fortuna avaliada em US$ 31 bilhões, Bloomberg gasta como quer. Já deu um bilhão à universidade onde estudou. (No ano seguinte à sua formatura, quando era um duro, deu cinco dólares.) Começou a vida no papelório, deixou a Salomon Brothers com US$ 10 milhões e fundou o império de meios de comunicação que leva seu nome.
        Para quem gosta de depreciar o Brasil, ele seria um exemplo de políticos que faltam por aqui. É verdade, mas o casal Clinton está milionário e suas origens são semelhantes às de Bloomberg, sem que tenham produzido um só parafuso. Lyndon Johnson endinheirou-se na política e seus mensalões fariam corar o comissariado petista.
        A diferença entre o serviço público americano e o brasileiro está no exemplo. Indo-se para o século 19, Dolley Madison, mulher do presidente James Madison, a primeira locomotiva social de Washington, morreu em absoluta pobreza, eventualmente ajudada por um escravo liberto que trabalhara para ela na Casa Branca. Em 1979, quando Paul Volcker foi nomeado presidente do Federal Reserve Bank, perdeu 50% de sua receita e foi morar numa quitinete de estudante em Washington. Sua mulher ficou em Nova York e equilibrou as contas alugando um quarto de seu apartamento.
        No Brasil foram muitos os milionários que passaram por governos. Nenhum soltou a bolsa da Viúva. Em muitos casos as fortunas foram acumuladas por inexplicáveis multiplicações ocorridas durante o exercício dos cargos. Exemplo como o de Bloomberg, nem pensar.
        CASA CIVIL
        Está dura a competição dentro do comissariado pela substituição de Gleisi Hoffmann na chefia da Casa Civil.
        A doutora Dilma tem dois nomes sobre a mesa: Carlos Gabas, ministro interino da Previdência Social, e Aloizio Mercadante, titular da Educação.
        Um ascendeu dentro da máquina do serviço público para a qual entrou em 1985, por concurso. O outro emergiu do aparelho partidário, tendo sido fundador do PT, elegendo-se deputado e senador.
        Se um dos dois for escolhido, a decisão terá dado o tom de um eventual segundo mandato da doutora Dilma.
        O PENTE DE RENAN
        O senador Renan Calheiros pagou R$ 27,4 mil à FAB pelo uso indevido do jatinho que o levou de Brasília ao Recife para um implante de 10.118 fios de cabelo. Isso dá R$ 2,70 por fio, deixando-se de lado os serviços médicos do procedimento.
        Toda vez que o doutor ajeitar a cabeleira, deverá contar os tufos que saírem no pente. A cada 268 fios que caírem, terá perdido o equivalente a um salário mínimo.
        INFRAERO INVICTA
        A Infraero é invencível. Em dezembro de 2012, quando os aeroportos do Rio viraram umas saunas, ela dizia que o sistema de ar-refrigerado seria consertado no dia seguinte.
        Agora que o Galeão passou pelo mesmo problema, ela informou que o ar-refrigerado funcionava normalmente, salvo nas áreas onde há obras, pois lá ele está desligado.
        Tem solução. Basta desligar a refrigeração do presidente da Infraero quando há passageiros que pagam suas taxas no calor.
        NO MURO
        A entrada do PSDB no governo de Eduardo Campos é um fato maior do que parece. O tucanato pernambucano é liderado por Sérgio Guerra, ex-presidente do partido, e há algum desconforto no PSDB nordestino com a disposição mostrada por Aécio Neves em relação à sua candidatura.
        TARSO XIAOPING
        O comissário Tarso Genro produziu um interessante artigo intitulado "Uma Perspectiva de Esquerda para o Quinto Lugar". É uma reflexão em torno da sua visão para o futuro do Brasil, com ambiciosas referências ao modelo político e econômico da China. Espremendo, resulta no seguinte: "O 'levantar âncoras' poderá ser uma nova Assembleia Nacional Constituinte, no bojo de um amplo movimento político -por dentro e por fora do Parlamento- inspirado pelas jornadas de junho: com partidos à frente sem aceitar a manipulação dos cronistas do neoliberalismo, abrigados na grande mídia".
        O doutor diz que "se quiséssemos enquadrar nas categorias do marxismo tradicional o que ocorreu na China após os anos sessenta, poder-se-ia dizer que a Revolução Cultural como forma específica de revolução política 'permanente' foi sucedida por uma 'Nova Política Econômica' (a NEP leninista), de longo prazo, que tende a se tornar economia 'permanente'." Comparar a revolução do companheiro Deng Xiaoping com a NEP de Lênin é uma licença poética. Uma, houve. A outra, teria havido. Lênin lançou-a em 1921, sofreu o primeiro derrame em maio de 1922, saiu do ar sete meses depois e morreu em 1924. Em 1928 a NEP foi abandonada, e o Estado leninista marchou para a "revolução cultural" de Stálin.
        MORENGUEIRA NO PLANALTO
        Em ano de campanha acontecem coisas estranhas. No lusco-fusco das festas de fim de ano acontecem coisas ainda mais estranhas. O repórter André Borges revelou que o Ministério dos Transportes alterou o edital do leilão de 2.100 linhas de ônibus interestaduais. Na sua versão inicial, cada consórcio deveria ser liderado por empresas experimentadas no setor, podendo agregar fundos de investimento ou mesmo empresas estrangeiros. A mudança, permitida pelo Planalto, mudou a canção. Nela entrou "Piston de Gafieira", imortalizada pelo velho Moreira da Silva:
        "Quem está fora não entra
        Quem está dentro não sai"
        Engessaram o leilão, cristalizando o oligopólio do sistema de transportes interestaduais. Bloquearam a entrada de estrangeiros e impediram que o setor seja oxigenado por capitalizações do mercado financeiro (com suas auditorias). Os transportecas justificam a mudança dizendo que ela privilegia as empresas com experiência. Nada mais verdadeiro. Em matéria de experiência, a crônica desse setor confunde-se com as trevas das concessões de serviços públicos. Em 1994, o deputado Camilo Cola, dono da Itapemirim, tinha patrimônio de US$ 154 milhões e declarava R$ 10 mil de renda mensal.
        Desde 1993 o governo promete leiloar as concessões de linhas de transportes interestaduais. Passaram-se 21 anos e nada. As empresas, felizes, rodam com autorizações especiais do governo. Vale lembrar que os concessionários de transportes públicos lidam com grandes pacotes de dinheiro vivo.

          Janio de Freitas

          folha de são paulo
          A campanha da moda
          Todo o falatório em torno de PIB de 1% ou de 2% nada significa diante da queda do desemprego a apenas 4,6%
          Quem não discute gosto anda na moda, que é um modo de não ter gosto (próprio, ao menos). Até por solidariedade aos raros que não se entregam à moda eleitoreira de dizer que 2013 foi um horror brasileiro e 2014 será ainda pior, proponho uns poucos dados para variar.
          Com franqueza, mais do que a solidariedade, que tem motivo recente, é uma velha convicção o que vê importância em tais dados. Um exemplo ligeiro: todo o falatório em torno de PIB de 1% ou de 2% nada significa diante da queda do desemprego a apenas 4,6%. Menor que o da admirada Alemanha. Em referência ao mesmo novembro (últimos dados disponíveis a respeito), vimos as manchetes consagradoras "EUA têm o menor desemprego em 5 anos: cai de 7,3% para 7%". O índice brasileiro, o menor já registrado aqui, excelência no mundo, não mereceu manchetes, ficou só em uns títulos e textos mixurucas.
          Mas o índice não pode ser positivo: "O índice caiu porque mais pessoas deixaram de procurar emprego". Se mais desempregados conseguiam emprego, como provava o índice antes rondando entre 5,6% e 5,2%, restariam, forçosamente, menos ou mais desempregados procurando emprego? PIB horrível, falta de ajuste fiscal, baixa taxa de investimentos, poucas privatizações, coitado do país. E, no entanto, além do emprego, aumento da média salarial, a ponto de criar este retrato do empresariado de São Paulo: a média salarial no Rio ultrapassou a dos paulistas.
          A propósito: com as alterações do Bolsa Família pelo Brasil sem Miséria, retiraram-se 22 milhões de pessoas da faixa dita de pobreza extrema. Com o Minha Casa, Minha Vida, já passam de 1 milhão as moradias entregues, e mais umas 400 mil avançam para a conclusão neste ano. A cinco pessoas por família, são 7 milhões de beneficiados com um teto decente, água e saneamento.
          Sobre dados assim e 2014, escreve o economista-chefe da consultoria MB Associados, Sérgio Vale: "Infelizmente, veremos mais promessas de ampliação do Bolsa Família e do salário mínimo, que, no frigir dos ovos, é o que tende a reeleger a presidente". Da qual, aliás, acha que em 2014 "deverá se apequenar ainda mais". Da mesma linhagem de economistas --a que domina nos meios de comunicação--, Alexandre Schwartsman dá à política que produziu aqueles resultados o qualificativo de "aposta fracassada", porque só deu em "piora fiscal, descaso com a inflação e intervenção indiscriminada, predominando a ideologia onde deveria governar o pragmatismo".
          "Infelizmente" e "aposta fracassada" para quem? Para os 22 milhões que saíram da pobreza extrema, os 7 milhões que receberam ou receberão um teto em futuro próximo, os milhões que obtiveram emprego, os milhões ainda mais numerosos que tiveram melhoria salarial?
          E, claro, ideologia existe só no que se volta para os problemas e possíveis soluções sociais. Quem se põe de costas para o que não interesse à elite financeira e ao poder econômico, não o faz por ideologia, não. Por esporte, talvez.
          Foi a esse esporte, quando praticado orquestradamente nos meios de comunicação, que Dilma Rousseff se referiu como uma "guerra psicológica", e gerou equívocos críticos. Não se trata de "expressão antidemocrática", nem própria dos tempos da ditadura. É a denominação, técnica ou científica, como queiram, de métodos de hostilidade não militares, diferentes das campanhas por não serem declarados em sua motivação e seus fins, e buscando enfraquecer o adversário por variados tipos de desgaste.
          Não é o caso da pregação tão óbvia no seu propósito de prejudicar eleitoralmente Dilma Rousseff. E prática tão evidente que, já no início de artigo na Folha, o empresário Pedro Luiz Passos definiu-a como "o negativismo que permeia as análises sobre a economia brasileira, em contraste com a percepção de bem-estar especialmente da base da pirâmide de renda". Ou seja, há um negativismo, intenção de concentrar-se no negativo, real ou manipulado, e a desconsideração do que deu à "base da pirâmide" social alguma percepção de bem-estar.
          O elemento essencial na existência de uma nação é o povo. Não é o território, não é o Estado, ambos inexistentes em várias formas de nação ao longo da história e ainda no presente (os curdos, diversos povos nômades, povos indígenas). O PIB e os ajustes feitos ou reivindicados nunca fizeram nada pelos brasileiros que são chamados de povo. A cliente do PIB, dos gastos governamentais baixos e dos juros bem altos são os que compõem a mínima minoria dos que só precisam, para manter o país, do povo.

            Áreas indígenas dependerão de consulta a nove ministros

            folha de são paulo
            Áreas indígenas dependerão de consulta a nove ministros

            Projeto do Ministério da Justiça muda processo para demarcação de terras
            Funai mantém controle, mas terá que garantir participação de outros órgãos, como queriam os aliados dos ruralistas
            MARINA DIASDE SÃO PAULOAs mudanças que o governo quer fazer nas regras para demarcação de terras indígenas no país submetem a criação de novas áreas à avaliação de nove ministérios, reduzindo o controle que a Funai (Fundação Nacional do Índio) tem sobre o processo.
            O assunto está em debate no governo desde o ano passado e agora parece estar perto de uma definição. Uma portaria com alterações no decreto que regulamenta a questão desde 1996 foi submetida pelo Ministério da Justiça a consultas e pode ser publicada nos próximos meses.
            Se for mantida como está, a portaria obrigará a Funai a ouvir outros órgãos sempre que quiser demarcar ou ampliar terras para uso exclusivo de comunidades indígenas. Se não houver acordo entre eles, caberá ao Ministério da Justiça o papel de mediador.
            No início de dezembro, o documento foi enviado para consulta de entidades indigenistas, órgãos do governo e associações de produtores rurais. O Ministério da Justiça promete oficinas para discutir as mudanças com índios, parlamentares e fazendeiros.
            "O resultado da portaria veio do debate com vários órgãos que serão novamente ouvidos", disse à Folha o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. "Poderemos incorporar sugestões e, em seguida, publicaremos a portaria."
            Existe mais de uma centena de áreas indígenas em estudo na Funai atualmente. Elas se transformaram no ano passado num foco de atrito político entre o governo, os defensores dos índios e o agronegócio, que vê na expansão das terras indígenas uma ameaça aos seus interesses.
            O ministro afirma que os objetivos das mudanças são "reduzir a judicialização e agilizar a demarcação de terras indígenas", mas a portaria foi recebida com críticas em dois campos do debate.
            PARALISIA
            Para o ex-presidente da Funai Márcio Santilli, coordenador do ISA (Instituto Socioambiental) em Brasília, o texto "burocratiza e politiza" a formação dos grupos de trabalho encarregados de examinar as propostas de criação de áreas indígenas, o que deve "paralisar a identificação e delimitação das terras".
            De acordo com a portaria, os integrantes desses grupos serão nomeados pela Funai e serão coordenados por antropólogos. Mas a presença de representantes de outros ministérios introduzirá no processo pessoas "que não têm como foco central identificar terras indígenas", diz Santilli.
            A portaria determina que sejam chamados os ministérios da Agricultura, das Cidades, do Desenvolvimento Agrário, do Meio Ambiente, de Minas e Energia, do Planejamento e dos Transportes, além da Secretaria-Geral da Presidência da República e da Secretaria de Direitos Humanos, que têm status de ministério, e de um procurador federal nomeado pela AGU (Advocacia Geral da União).
            Integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária, que defende os interesses do agronegócio no Congresso Nacional, também têm ressalvas às mudanças propostas.
            Para eles, a participação de outros ministérios no processo de demarcação de terras indígenas --uma demanda antiga dos ruralistas-- seria muito limitada, por se restringir apenas ao fornecimento de dados e ao acompanhamento de trabalhos de campo, mantendo a responsabilidade das decisões com a Funai.
            Além disso, a portaria autoriza a Funai a vetar representantes indicados pelos ministérios e permite que ela convoque um novo grupo de estudos nos casos em que nem a mediação do Ministério da Justiça for suficiente para alcançar o consenso.

              Índios não trazem votos, como bancada ruralista e PMDB - Marcelo Leite

              folha de são paulo
              ANÁLISE
              Índios não trazem votos, como bancada ruralista e PMDB
              MARCELO LEITEDE SÃO PAULOFoi preciso que índios mantivessem por sete anos a cobrança ilegal de pedágio nos confins da Transamazônica e que habitantes de Humaitá e Apuí (AM) pusessem fogo na Funai para que o país se desse conta da existência de um povo e de uma terra indígena chamados Tenharim.
              Até então, essa ignorância específica se confundia com o desconhecimento geral sobre a realidade de 241 povos indígenas do Brasil. Considerá-los sempre em sua generalidade --a "questão indígena"--, como preferem a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) e o aliado Palácio do Planalto, é o caminho certo para não resolvê-la.
              Desse ponto de vista abstrato, sempre parecerá desmesurado que as 690 áreas reconhecidas aos índios ocupem 13% do território nacional. Um olhar mais detido, contudo, revelará que 98,5% desse 1,1 milhão de quilômetros quadrados se encontram na Amazônia.
              A floresta é aquela parte do país na qual sobreviveu ou se refugiou a população sobrevivente de indígenas. Só nas últimas décadas foi alcançada pela frente de expansão agropecuária, que já esbarra em limites para a incorporação contínua de terras baratas ou griláveis.
              O mero 1,5% de terras indígenas fora da Amazônia é um bom indicador da dificuldade de reconhecê-las no Brasil perto da costa, onde os índios foram primeiramente exterminados ou assimilados. E é aí que se concentra boa parte da centena de terras ainda por homologar.
              Essa também é a fonte primária das dificuldades judiciais e eleitorais que o Ministério da Justiça busca reenquadrar com a portaria que deve dificultar o reconhecimento. A situação é particularmente conflituosa em Mato Grosso do Sul, mas também há litígios no Sul e no Nordeste do país.
              Esses processos remanescentes estão com 20 anos de atraso. Pela Constituição Federal, deveriam ter sido encerrados em 1993.
              Nessas duas décadas, o agronegócio cresceu. De 1997 a 2013, o saldo de sua balança comercial saltou de US$ 15 bilhões a quase US$ 80 bilhões. Sem ele, o comércio exterior do país seria deficitário.
              A iniciativa política está nas mãos dos ruralistas, favorecidos ainda pela representação distorcida de Estados produtores de bens primários na Câmara dos Deputados e pelo peso adquirido, no governo do PT, pelo maior partido dos rincões, o PMDB.
              Nessa configuração, não será surpresa se as promessas rondonianas da Constituição de 1988 forem abandonadas de vez e se novas manifestações de ódio aos índios pipocarem pelo país.

                Filho de cacique vê 'precipitação' da Funai

                folha de são paulo
                Filho de cacique vê 'precipitação' da Funai

                Avener Prado/Folhapress
                Hipótese de assassinato de líder indígena foi levantada por servidor do órgão e alimentou conflito étnico na região
                Família de tenharim morto diz, contudo, que não acredita em homicídio porque viu que 'ele caiu da moto'
                FABIANO MAISONNAVEENVIADO ESPECIAL À TERRA INDÍGENA TENHARIM (SUL DO AMAZONAS)Acostumada ao ritmo lento da vida amazônica, a índia Telma Tenharim, 45, no intervalo de um mês, perdeu o marido, foi obrigada a se refugiar no quartel de Humaitá por seis dias para não ser linchada, teve a aldeia atacada por vândalos e agora vê parentes e amigos serem tratados como suspeitos de assassinato.
                "Só queríamos viver o luto familiar em paz", disse, com lágrimas nos olhos, Gilvan, 24, filho de Telma e do cacique Ivan, 55, encontrado desacordado ao lado da sua moto no dia 2 de junho, na rodovia Transamazônica, a 20 km de sua aldeia, Kampinhu'hu, com 65 moradores.
                A região, a 130 km de Humaitá (AM), está no centro das buscas da Polícia Federal por três homens desaparecidos desde 16 de dezembro. A PF anunciou ontem ter encontrado peças queimadas de um veículo Volkswagen. O material será avaliado por peritos para verificar se pertence ao Gol no qual viajavam os três homens desaparecidos.
                Levado a Porto Velho (RO), distante cerca de 330 km, o cacique não resistiu e morreu no dia seguinte. No atestado de óbito, consta que a causa foi traumatismo craniano provocado por acidente.
                "Em nenhum momento a gente falou que o meu pai foi assassinado. A gente não protestou nem chegou a acusar ninguém", disse Gilvan. Ele explicou que, por questões culturais, a família não autorizou a autópsia completa.
                Mas a reação do coordenador regional da Funai (Fundação Nacional do Índio), Ivã Bocchini, foi diferente. Em texto publicado no blog oficial do órgão dias após a morte, ele levantou a hipótese de assassinato.
                Para o filho do cacique, houve uma "precipitação" da Funai. "A gente viu que ele caiu da moto."
                Contatado, Bocchini desligou o telefone após a reportagem se identificar. O texto foi apagado do blog da Funai.
                A afirmação de Bocchini teria passado despercebida, mas o sumiço de três homens da região que viajavam juntos nesse trecho da Transamazônica, no último dia 16, fez os moradores de Humaitá relacionarem os dois casos.
                Logo surgiu a versão de que o funcionário da Eletrobras Aldeney Salvador, o representante comercial Luciano Ferreira e o professor Stef de Souza foram mortos pelos índios por retaliação.
                Ecoando boatos, um jornal local, "A Crítica de Humaitá", afirmou que os três morreram porque um pajé tenharim teria sonhado que um carro preto --a mesma cor do veículo no qual viajavam os três homens também desaparecidos-- atropelou o cacique, provocando sua morte.
                Os cerca de 900 tenharim, no entanto, não têm pajés. A maioria é evangélica --e torcedora do Corinthians e do Flamengo. Moram em casas de madeira com eletricidade. Quase todas as famílias são bilíngues, têm TV e moto, e duas aldeias estão conectadas à internet.
                ATAQUES
                Na véspera do Natal, a falta de notícias sobre os desaparecidos levou parentes e amigos a bloquearem a balsa sobre o rio Madeira que liga Humaitá à Transamazônica, impedindo o regresso de indígenas que estudam na cidade ou que vão até lá para fazer compras. Orientados pela Funai, 115 se refugiaram no quartel do Exército. Telma Tenharim era um deles.
                "Eu só soube [do desaparecimento] quando começaram a se manifestar na cidade", afirmou Telma, uma mulher miúda com poucos traços indígenas --seu pai era o filho do primeiro branco que teria entrado em contato com os tenharim, nos anos 1940.
                No dia seguinte, em pleno Natal, centenas de moradores atacaram as instalações da Funai e da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena).
                A fúria continuou no dia seguinte. Acompanhada pela PM, uma caravana de moradores do vilarejo Santo Antônio do Matupi, a 180 km de Humaitá, saiu pela Transamazônica destruindo cerca de 10 pedágios indígenas que funcionavam de forma rotativa.
                A cobrança, que varia de R$ 15 a R$ 120, gera atrito com os moradores desde a sua implantação, em 2006. Nos tribunais, as decisões têm sido favoráveis aos índios.
                Na aldeia Vilanova, o cacique Domingo Tenharim, 54, disse que os PMs roubaram R$ 540 arrecadados no pedágio e levaram duas espingardas de caça calibre 28. A PM diz que agiu apenas para evitar confrontos.
                Na quinta-feira, quando a Folha esteve na aldeia, os caciques se reuniram com um advogado. Decidiram não dar mais depoimentos aos policiais por causa do tratamento ríspido e retomar a cobrança do pedágio a partir de fevereiro. Eles negam participação no sumiço de Aldeney Salvador, Luciano Ferreira e Stef de Souza.
                Nas cinco aldeias visitadas pela Folha, as lideranças afirmam que comida e medicamentos estão acabando porque não podem ir à cidade, por falta de segurança. A Funai, que teve todos os 11 veículos de Humaitá incendiados por manifestantes, não vem dando nenhum tipo de assistência.
                Anteontem, o Ministério Público Federal recomendou o envio de mantimentos aos índios da região, onde vivem outras três etnias, não envolvidas diretamente no conflito, mas igualmente afetadas.
                "Estamos sendo tratados como bandidos, mas somos seres humanos, temos raciocínio", afirma o cacique Domiceno Tenharim, da aldeia Taboca, principal foco da investigação da polícia.

                  Sem poder ir à cidade por medo de agressões, índios tenharim sofrem com a falta de comida

                  folha de são paulo

                  Filho de cacique vê 'precipitação' da Funai
                  Hipótese de assassinato de líder indígena foi levantada por servidor do órgão e alimentou conflito étnico na região
                  Família de tenharim morto diz, contudo, que não acredita em homicídio porque viu que 'ele caiu da moto'


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                  FABIANO MAISONNAVE
                  ENVIADO ESPECIAL À TERRA INDÍGENA TENHARIM (SUL DO AMAZONAS)

                  Acostumada ao ritmo lento da vida amazônica, a índia Telma Tenharim, 45, no intervalo de um mês, perdeu o marido, foi obrigada a se refugiar no quartel de Humaitá por seis dias para não ser linchada, teve a aldeia atacada por vândalos e agora vê parentes e amigos serem tratados como suspeitos de assassinato.
                  "Só queríamos viver o luto familiar em paz", disse, com lágrimas nos olhos, Gilvan, 24, filho de Telma e do cacique Ivan, 55, encontrado desacordado ao lado da sua moto no dia 2 de junho, na rodovia Transamazônica, a 20 km de sua aldeia, Kampinhu'hu, com 65 moradores.
                  A região, a 130 km de Humaitá (AM), está no centro das buscas da Polícia Federal por três homens desaparecidos desde 16 de dezembro. A PF anunciou ontem ter encontrado peças queimadas de um veículo Volkswagen. O material será avaliado por peritos para verificar se pertence ao Gol no qual viajavam os três homens desaparecidos.
                  Levado a Porto Velho (RO), distante cerca de 330 km, o cacique não resistiu e morreu no dia seguinte. No atestado de óbito, consta que a causa foi traumatismo craniano provocado por acidente.
                  "Em nenhum momento a gente falou que o meu pai foi assassinado. A gente não protestou nem chegou a acusar ninguém", disse Gilvan. Ele explicou que, por questões culturais, a família não autorizou a autópsia completa.

                  Conflitos em Humaitá

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                  Avener Prado/Folhapress
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                  Mas a reação do coordenador regional da Funai (Fundação Nacional do Índio), Ivã Bocchini, foi diferente. Em texto publicado no blog oficial do órgão dias após a morte, ele levantou a hipótese de assassinato.
                  Para o filho do cacique, houve uma "precipitação" da Funai. "A gente viu que ele caiu da moto."
                  Contatado, Bocchini desligou o telefone após a reportagem se identificar. O texto foi apagado do blog da Funai.
                  A afirmação de Bocchini teria passado despercebida, mas o sumiço de três homens da região que viajavam juntos nesse trecho da Transamazônica, no último dia 16, fez os moradores de Humaitá relacionarem os dois casos.
                  Logo surgiu a versão de que o funcionário da Eletrobras Aldeney Salvador, o representante comercial Luciano Ferreira e o professor Stef de Souza foram mortos pelos índios por retaliação.
                  Ecoando boatos, um jornal local, "A Crítica de Humaitá", afirmou que os três morreram porque um pajé tenharim teria sonhado que um carro preto atropelou o cacique, provocando sua morte –a mesma cor do veículo no qual viajavam os três homens também desaparecidos.
                  Os cerca de 900 tenharim, no entanto, não têm pajés. A maioria é evangélica –e torcedora do Corinthians e do Flamengo. Moram em casas de madeira com eletricidade. Quase todas as famílias são bilíngues, têm TV e moto, e duas aldeias estão conectadas à internet.
                  ATAQUES
                  Na véspera do Natal, a falta de notícias sobre os desaparecidos levou parentes e amigos a bloquearem a balsa sobre o rio Madeira que liga Humaitá à Transamazônica, impedindo o regresso de indígenas que estudam na cidade ou que vão até lá para fazer compras. Orientados pela Funai, 115 se refugiaram no quartel do Exército. Telma Tenharim era um deles.
                  "Eu só soube [do desaparecimento] quando começaram a se manifestar na cidade", afirmou Telma, uma mulher miúda com poucos traços indígenas –seu pai era o filho do primeiro branco que teria entrado em contato com os tenharim, nos anos 1940.
                  No dia seguinte, em pleno Natal, centenas de moradores atacaram as instalações da Funai e da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena).
                  A fúria continuou no dia seguinte. Acompanhada pela PM, uma caravana de moradores do vilarejo Santo Antônio do Matupi, a 180 km de Humaitá, saiu pela Transamazônica destruindo cerca de 10 pedágios indígenas que funcionavam de forma rotativa.
                  A cobrança, que varia de R$ 15 a R$ 120, gera atrito com os moradores desde a sua implantação, em 2006. Nos tribunais, as decisões têm sido favoráveis aos índios.
                  Na aldeia Vilanova, o cacique Domingo Tenharim, 54, disse que os PMs roubaram R$ 540 arrecadados no pedágio e levaram duas espingardas de caça calibre 28. A PM diz que agiu apenas para evitar confrontos.
                  Na quinta-feira, quando a Folha esteve na aldeia, os caciques se reuniram com um advogado. Decidiram não dar mais depoimentos aos policiais por causa do tratamento ríspido e retomar a cobrança do pedágio a partir de fevereiro. Eles negam participação no sumiço de Aldeney Salvador, Luciano Ferreira e Stef de Souza.
                  Nas cinco aldeias visitadas pela Folha, as lideranças afirmam que comida e medicamentos estão acabando porque não podem ir à cidade, por falta de segurança. A Funai, que teve todos os 11 veículos de Humaitá queimados, não vem dando nenhum tipo de assistência.
                  Anteontem, o Ministério Público Federal recomendou o envio de mantimentos aos índios da região, onde vivem outras três etnias, não envolvidas diretamente no conflito, mas igualmente afetadas.
                  "Estamos sendo tratados como bandidos, mas somos seres humanos, temos raciocínio", afirma o cacique Domiceno Tenharim, da aldeia Taboca, principal foco da investigação da polícia.