sexta-feira, 16 de maio de 2014

Sem poesia,com afeto - Daniel Galera

Revista Piauí
Edição 92 > _vultos do futebol > Maio de 2014
Sem poesia, com afeto
Indiferente ao futebol-arte, Luiz Felipe Scolari encarna a figura do líder paternal que cobra e protege seus jogadores em nome da vitória a qualquer preço
 DANIEL GALERA

 
Minutos antes do início do amistoso entre Brasil e África do Sul, ocorrido no dia 5 de março deste ano, em Joanesburgo, o técnico Luiz Felipe Scolari concedeu uma entrevista ao vivo na beira do campo a um repórter da Rede Globo. Foram apenas duas perguntas. A equipe tentaria reproduzir o bom desempenho da última Copa das Confederações, da qual saiu campeã após um convincente 3 a 0 contra a Espanha na final? Felipão pretendia observar em campo os recém-convocados Rafinha e Fernandinho para decidir se teriam vaga na convocação para a Copa do Mundo de 2014?
Com o semblante coberto do mais profundo tédio, o técnico respondeu às perguntas com muxoxos que eram versões afirmativas e simplificadas das próprias perguntas. De repente, o ruído já elevado da torcida dentro do estádio atingiu níveis ensurdecedores, um pandemônio de gritos e vuvuzelas. Felipão franziu o cenho, encolheu-se, acenou com a cabeça em menção ao barulho e, para perplexidade do repórter global, se retirou dizendo algo como: “Deixa pra depois.”
O episódio simboliza algumas coisas importantes a respeito de Scolari. A mais óbvia é a natureza antiespetáculo que é sua característica. O desdém e a fadiga estampados em sua postura, as confirmações protocolares do que era perguntado e a retirada marota exerciam um contraste insólito com a expectativa ufanista que cercava a transmissão e com as cores vibrantes e a resolução hiper-real da imagem em HD. A máscara ritual da cobertura esportiva caiu por um instante. Essa natureza antiespetáculo se estende para a concepção futebolística de Scolari, de resultado e vitória a todo custo, mesmo que o custo seja com frequência a beleza plástica do jogo, o chamado futebol-arte (“Vai escrever, fazer poesia”, Felipão recomenda aos defensores do futebol bonito, de acordo com o jornalista Juca Kfouri). Ao conceder a entrevista naquela ocasião, ele demonstrava inteligência. O gaúcho é muito refratário à imprensa, mas não cairia no mesmo erro de Dunga, que elegeu a Rede Globo como inimiga e pagou um preço caro.
Há, por fim, sua marcante presença física de brutamontes bonzinho, os olhos aguados, o bigode branco bem aparado, a testa expandida até a cabeça calva e quase sempre enrugada pelo sobrolho erguido. Pelo menos em público, a expressão de Scolari transmite certa carência, como se um dedo invisível esticasse para cima o espaço entre suas sobrancelhas. Seus típicos meneios de cabeça, os ombros em declive e o corpanzil um pouco desengonçado lhe dão uma aura desarmada e algo infantil. Quando jogou como zagueiro no csa de Maceió, ganhou dos companheiros o apelido de Cabeça de Nenê, pelo modo como balançava a cabeça quando cometia um erro em campo ou era contrariado.
Jornalistas, torcedores e opinião pública tendem a ver Felipão como um sujeito truculento, tosco ou mesmo agressivo. Essa versão é contestada com veemência por qualquer pessoa que lhe seja mais próxima e bastante relativizada quando descemos ao sul do país, onde figuras muito parecidas com Felipão são parte da paisagem nas regiões de colonização italiana. Muitas famílias como os Scolari vieram de pequenas propriedades rurais para a cidade. Nessas bandas, esbarramos com tipos como ele em postos de gasolina e restaurantes familiares, atendendo clientes com seus antebraços e dedos grossos de agricultor, e uma atitude desconfiada que não chama a atenção de ninguém.
Independentemente de ser bronco ou simpático, general maquiavélico ou simplório feliz, carrasco do futebol moleque ou arauto do futebol aguerrido, Felipão poderá assegurar nos próximos dois meses a posição de técnico mais vitorioso da história do país, caso leve a Seleção Brasileira ao hexacampeonato. Se jogar uma Copa do Mundo em casa já não é pressão suficiente, há também as pressões políticas e sociais de um ano eleitoral, além da mobilização popular que, desde junho do ano passado, tem entre seus alvos a corrupção e os abusos ligados à realização do evento no Brasil. Há diversos desenlaces possíveis, alguns deles um tanto melancólicos para Felipão. Mas até mesmo alguns de seus detratores tradicionais parecem acreditar que ele vai se dar bem.

Luiz Felipe Scolari nasceu no dia 9 de novembro de 1948 em Passo Fundo, a maior cidade do norte do estado do Rio Grande do Sul, distante quase 300 quilômetros de Porto Alegre. Seu mais completo painel biográfico se encontra no livro Felipão: A Alma do Penta, publicado pelo jornalista Ruy Carlos Ostermann em 2002. O tom é de panegírico, mas há uma quantidade preciosa de informações sobre a vida do técnico, as origens de sua família e os bastidores da Copa do Mundo do Japão. Em 1891, sua bisavó Luigia Bellini Scolari, então viúva, partiu com os seis filhos da província de Verona, na região italiana do Vêneto, e desembarcou no porto de Rio Grande. O caçula Luigi, avô de Felipão, trocou o nome para Luiz e casou-se com Genoveva Giavarina, nascida em Nova Palma, na região central do estado. Na Granja Scolari, área de 70 hectares situada a 4 quilômetros do Centro de Passo Fundo, o casal viveu com os filhos Damor, Benjamim, Alberto e Alcides, aos quais se juntaram as noras e os netos.
Os Scolari eram um típico clã gaúcho de colonos italianos, em que a família inteira se dedicava a cuidar das plantações e do rebanho. Filho de Benjamim e Leda Scolari, Luiz Felipe viveu apenas um breve período na granja da família, antes de os pais se mudarem para o Centro de Passo Fundo, onde Benjamim abriu o Bar Bolão Snooker Scolari e alojou a família nos fundos do prédio. O pequeno Luiz Felipe batia bola com os meninos de rua e desafiava a lei jogando sinuca.
Aluno mediano, que penava para não ser reprovado, Luiz Felipe passou a frequentar os campinhos de futebol dos vários colégios em que estudou. Sua primeira inspiração decerto foi o pai, que jogava bola em times amadores. Embora os dois tivessem o mesmo porte avantajado, Benjamim era um homem sereno e tinha jeito com a bola. O zagueiro Luiz Felipe tinha mais vontade que talento, mas a paixão, a dedicação e a força física compensavam as limitações técnicas. Em A Alma do Penta, um de seus ex-colegas de ginásio comenta: “Era uma nulidade como jogador, mas se superava pela determinação, tinha garra. Não se acovardava, assumia papel de liderança ao levar o time para a frente. Nunca gostou de perder.”
Em 2005, quando ainda treinava a seleção portuguesa, Felipão foi a Porto Alegre, na condição de ex-jogador, para uma solenidade de homenagem aos quinze melhores zagueiros do futebol brasileiro. É difícil dizer qual o grau de seriedade da cerimônia, levando em conta o bairrismo lendário dos gaúchos e o tom de zombaria saudável que ronda o passado de Felipão como atleta. Mas a combinação de pouca habilidade, chutão para a frente e alguma truculência pode dar resultado. Não deixa de ser uma espécie de talento. Em 1981, ele foi eleito o melhor zagueiro do campeonato alagoano, após ajudar o csa a conquistar o título (o único da carreira de Felipão como jogador).

experiência como atleta, dos campinhos de Passo Fundo até o título em Alagoas, contém elementos que podem nos ajudar a compreender o técnico que ele veio a se tornar. Em 1964, sua família se mudou para Canoas, na zona metropolitana de Porto Alegre, seguindo os passos de dois tios de Luiz Felipe, que poucos anos antes tinham construído um posto de gasolina à margem da BR-116. Dos 17 aos 19 anos, jogou pelo Grêmio São Cristóvão, um time de várzea local. Em 1966, chegou a fazer um teste para o time juvenil do Internacional, mas o salário oferecido era menor do que ele ganhava trabalhando no posto de gasolina dos Scolari.
Foi nessa época que ele conheceu Olga Pasinato, que morava no hotel em frente ao posto. Ambos tinham 16 anos. Igualmente devotos, começaram a namorar pouco tempo depois e se casaram em Caxias do Sul, em 1973. Tiveram dois filhos, Leonardo e Fabrício. Olga foi professora de biologia até meados dos anos 80, quando ficou difícil conciliar o magistério com a carreira do marido. O casal é diferente em vários aspectos. Para início de conversa, Olga é colorada. De acordo com a biografia de Ostermann, ela gosta de viajar, pinta quadros e preferiria morar na Europa, enquanto Felipão não sairia do Rio Grande do Sul se não fosse necessário e pensa apenas em futebol e trabalho.
A carreira de jogador profissional teve início em 1968 no Aimoré de São Leopoldo, no qual o jovem Felipão foi avaliado por Oswaldo Rolla, também conhecido como Foguinho, jogador e técnico que marcou época no Grêmio e teve papel importante na construção da identidade do clube. Foguinho ajudou a sedimentar o chamado estilo gaúcho de jogar, que coloca o grupo, a rigidez tática e o empenho (em suas acepções literais e eufemísticas) acima do drible, do jogo bonito e do talento individual. Em programa veiculado pela rbs em 1993, ele diz: “O meu primeiro critério como técnico era observar o caráter do homem, a dignidade do homem, porque se não for um homem digno, com caráter, não se pode formar um time de futebol.” Essa visão do campo de jogo como um campo de batalha em que o caráter do homem se revela na força e na disciplina, na busca do resultado com base no “custe o que custar”, é o ethos diante do qual se posicionam tanto os críticos quanto os adoradores de Luiz Felipe Scolari.
Luiz Felipe jogou pelo Aimoré até 1973. Pressionado pela família, que considerava o futebol uma ocupação sem futuro, iniciou os cursos de direito e economia na Unisinos, uma das principais universidades privadas do estado, situada em São Leopoldo, mas nenhum dos dois era a sua praia, e logo os abandonou para estudar educação física no Instituto Porto Alegre. No mesmo período, também deu aulas de educação física na rede estadual de Montenegro, a 55 quilômetros da capital. Vivia para cima e para baixo num velho Fusca vermelho, parte de uma linhagem de carros velhos e econômicos que reforçavam sua fama de pão-duro (teve vários Fuscas, um Fiat 147, um Monza). Foi aprovado em testes de times de maior projeção, como Joinville e Coritiba, mas o apego à família o manteve por alguns anos em Canoas.
Em agosto de 1973, ele visitou o clube Caxias do Sul como procurador de um amigo que pretendia jogar lá. Sua postura firme impressionou tanto os dirigentes durante a negociação que ele próprio acabou sendo contratado. O treinador do Caxias à época, Sérgio Moacir Torres Nunes, que tinha fama de retranqueiro, se tornaria um amigo e ídolo. De acordo com o jornalista João Garcia, amigo próximo de Felipão, Sérgio Moacir é uma de suas três maiores influências como técnico. Felipão teria herdado dele, entre outras características, a desconfiança com a imprensa. A segunda é o técnico Ênio Andrade, estrategista que era capaz de modificar a equipe em momentos cruciais e reverter placares.
A terceira e maior influência é Carlos Benevenuto Froner, o “capitão Froner”, um ex-militar que treinou a dupla Gre-Nal e passou pelo Caxias em 1978, quando Luiz Felipe ainda jogava no time. Garcia diz que Froner “era tudo para Felipão”. Exigia marcação implacável, obediência tática e dedicação total. Era especialista em exaltar os ânimos no vestiário, com profusão de palavrões, e tratava a imprensa a golpes de relho, recorrendo ao bordão “Vamos ver” para escantear perguntas. Froner morreu no dia 21 de agosto de 2002, menos de dois meses depois de Felipão levar a Seleção Brasileira ao penta. O discípulo chorou no velório do mestre.
Sob o comando de Froner no Caxias, o jogador Scolari deve ter ouvido o mesmo tipo de vocabulário e experimentado a cobrança dura que hoje lhe dão a fama de bronco e sargentão. Uma sessão motivacional dentro de um vestiário nem sempre é coisa bonita de se presenciar. Após a derrota por 4 a 3 na primeira partida contra o Corinthians pela Copa Libertadores da América de 2000, a imprensa gravou sub-repticiamente um esporro que Felipão deu nos jogadores do Palmeiras (episódio que causou fúria no treinador e complicou ainda mais sua relação com a imprensa paulista). No áudio, chama Edílson, do Corinthians, de “covarde, cuzão, cafajeste”, censura seus comandados por não saberem dar cascudos e pontapés, e os conclama a “sentir raiva” e “comer a orelha dele” no jogo seguinte. Escândalo, Jornal Nacional. Mas a linguagem do vestiário, como a do campo, não foi feita para ajudar a família a digerir o jantar antes da novela. Os impropérios e incentivos à malandragem e ao combate físico também fazem parte do que Luiz Carlos Silveira Martins, o Cacalo, ex-dirigente do Grêmio que trabalhou próximo de Felipão durante anos, define como seu “poder extraordinário de comunicação com o atleta”. Na segunda partida, o Palmeiras marcou 3 a 2 e venceu nos pênaltis, garantindo vaga na final que seria perdida, também nos pênaltis, para o Boca Juniors.
Apesar da fama de “chegar junto”, Felipão foi expulso de campo uma única vez em todo o período que jogou pelo Caxias. Saiu do clube em 1979 e teve rápidas passagens pelo Novo Hamburgo e Juventude, bem como uma curta temporada como professor de futebol nos Estados Unidos, antes de ser contratado como zagueiro, em 1981, pelo CSA de Alagoas. No final daquela temporada, aos 33 anos, substituiu o também gaúcho Valmir Louruz e inaugurou sua carreira de técnico profissional, aposentando para sempre as chuteiras. Não durou nem dois meses como treinador do CSA, com um início de campanha fracassado na Taça de Ouro, nome do Campeonato Brasileiro entre 1981 e 83. Em carta que enviou na época à irmã Cleuza, Felipão se perguntava: “Será que um dia darei certo como treinador?”

Para um gremista, era impossível não torcer por Felipão durante a Copa do Mundo de 2002. Você podia até não torcer pelo Brasil. Mas ver Felipão triunfar seria um pouco como ver o Grêmio triunfar, tamanha a identificação entre clube e treinador legada pelo período glorioso entre 1993 e 1996, a virada que o levou ao patamar dos grandes técnicos de futebol. Nesses quase quatro anos, ele ganhou uma Copa do Brasil, um Campeonato Brasileiro, uma Libertadores da América, uma Recopa Sul-Americana e dois estaduais. Na final do Mundial de Clubes de 1995, o Grêmio segurou um empate em 0 a 0 contra o fortíssimo Ajax – com um jogador a menos durante a maior parte do segundo tempo –, perdeu nos pênaltis e ficou com a posição de vice. É um dos maiores traumas de Felipão, e também da torcida, mas ainda assim que época para ser tricolor. Naquele dia, eu estava acampando com amigos numa praia de Santa Catarina. Caminhamos 8 quilômetros por uma estrada de terra até encontrar uma casa com televisão. A família nos serviu café e bolo, uma lembrança que compensa a frustração da derrota.
Mas Felipão não chegou ao Grêmio com as graças da torcida. Mesmo tendo conquistado um Campeonato Gaúcho em sua primeira passagem pelo clube, em 1987, naquele tempo ele ainda era visto como um técnico retranqueiro de times do interior, com passagens obscuras pelo mundo árabe, e que tinha como grande feito ter levado o Criciúma à conquista da Copa do Brasil em 1991. Depois da estreia no CSA, assumira o comando do Juventude, que fez uma excursão à Ásia e ao Oriente Médio. O time de Felipão venceu todas as seis partidas que disputou, inclusive uma contra o Al Ahli treinado por Telê Santana.

Em março de 1983, havia comandado o Brasil de Pelotas e levado o time à primeira divisão. O preparador físico era Flávio Teixeira, o Murtosa, que Felipão chama de “Baixinho” ou “Mortosa”. O apelido vem do vilarejo português de onde seu avô imigrou para o Brasil. Os dois acabaram virando unha e carne. O bigodudo atarracado foi escudeiro de Felipão no Palmeiras, no Cruzeiro, na Seleção Brasileira e em várias empreitadas internacionais. Em 2005, em entrevista ao programa Roda Viva, Scolari tentou explicar qual é o papel de Murtosa. “Eu sempre digo que o Murtosa é mais primeiro do que segundo, mas o segundo é muito importante na vida do primeiro”, disse, de maneira um tanto críptica. “Às vezes eu tenho uma carranca que os jogadores não querem ver... e o Murtosa é tudo aquilo que, às vezes, eu não aparento.” A figura simpática e quase cartunesca de Flávio Teixeira fica longe dos holofotes e acaba sendo a expressão prática do trabalho técnico de Felipão junto aos jogadores.
Além de Murtosa, há outra figura que o acompanha desde 1991, quando se conheceram em Criciúma: o padre Pedro Bauer da Cunha. Catarinense de Sombrio, o sacerdote é um palmeirense apaixonado e um orador exemplar. Tornou-se uma espécie de talismã de Scolari, que também se confessa com ele. Benzeu o apartamento do técnico antes do embarque para a Copa de 2002, animou os jogadores nas preliminares de diversas partidas decisivas e participava de muitas concentrações na época em que Felipão treinou o Palmeiras.
Através do empresário Elias Zaccour, que havia conhecido na excursão do Juventude, Felipão teve acesso ao futebol árabe e ganhou independência financeira em passagens por times como o Al Shabab, na Arábia Saudita (de 1984 a 1985), e o Qadsia SC no Kuwait (de 1988 a 1990), bem como pela seleção kuwaitiana em 1990. A esposa Olga e os filhos pequenos sempre o acompanhavam. A família escapou por pouco da Guerra do Kuwait: o técnico estava preparando o time na França para os Jogos Asiáticos, e a mulher e os filhos tinham vindo ao Brasil.
Scolari acabara de retornar de uma temporada no mundo árabe quando foi novamente chamado pelo Grêmio. Havia conquistado patrimônio financeiro e alguma experiência, mas quase nenhuma projeção nacional. No final de 1993, os gremistas chegaram a pressionar por sua queda. Aos poucos, porém, sua ênfase no futebol de garra foi se traduzindo em títulos e ele se tornou o ídolo maior do torcedor. No primeiro semestre de 1994, ganhou a Copa do Brasil em uma final periclitante, com direito a pênalti não marcado a favor do Ceará. O Grêmio vinha de um período de trevas, após um ano na segunda divisão. À medida que as taças eram erguidas, fortalecia-se cada vez mais a mitomania do “nós contra todos”, do Grêmio que ganhava da Parmalat, peitava a Confederação Brasileira de Futebol e encarnava a resistência gaúcha – e do jeito gaúcho de jogar futebol – contra os lá de cima.
Uma das chaves para seu sucesso no Grêmio dos anos 90 foi sua relação simbiótica com o então presidente Fábio Koff e o vice-presidente de futebol Cacalo, com quem formava uma dupla dinâmica capaz de mexer com o brio dos jogadores. Cacalo ressalta o que chama de “alto nível de sensibilidade” de Scolari. “O Felipão é irritantemente inteligente e sensível para futebol”, enfatiza. Como exemplo, cita o caso em que Felipão colocou no banco um titular absoluto, em véspera de jogo decisivo, alegando apenas que “ele não treinou como eu pedi”. Cacalo, o preparador físico Paulo Paixão e o capitão Adílson Batista apelaram até que, no último momento, Felipão cedeu. O jogador suou a camisa depois da ameaça de ficar fora do time, e então Cacalo enxergou a artimanha psicológica. O jornalista David Coimbra menciona caso semelhante. O jogador Paulo Nunes teria aparecido embriagado numa manhã de treino. Felipão o mandou dormir no vestiário e fez chegar à imprensa que era problema de lesão. No jogo seguinte, Nunes jogou com gana, para retribuir a delicadeza.
Essa mistura de cobrança severa e atitude compreensiva e protetora com os jogadores está na base da amplificação publicitária da figura do “paizão”, que Scolari sabe explorar muito bem junto à imprensa e à opinião pública. “Não tem nada de paizão, isso é marketing que ele vende”, diz Cacalo. “É apenas união do grupo dentro do vestiário, através de liderança e cobrança. O tom dele é de profissionalismo, mas entendendo o ser humano.”
Existe, sim, um lado concreto por trás do mito paternal. Felipão tem um histórico de proteção aos jogadores que treina. Assim que chegou ao Grêmio em 1993, o clube estava em penúria financeira e ele quis emprestar o dinheiro para pagar aos jogadores o “bichinho”, ou prêmio por partidas vitoriosas, que na época, segundo Cacalo, era coisa de “100 ou 200 reais”. “Ele entende de jogador de futebol”, diz João Garcia. “Olha no olho, sabe quem tem problema e ajuda a resolver o problema com mulher, com os filhos.” Procura transmitir aos jogadores sua própria devoção à família e intercede quando vê um atleta jovem torrando a grana em carro novo em vez de ajudar os pais.

Mesmo com as campanhas vitoriosas, Felipão ainda tinha crises de insegurança. Cacalo lembra um caso emblemático. Em 1995, a um mês do Mundial em Tóquio, o Grêmio perdeu de 3 a 2 para a Portuguesa, em Chapecó (SC). Após o jogo, no vestiário, Felipão chamou o dirigente no canto, debaixo de uma escadinha, e pediu demissão. “Tô fora, não quero mais ir.” Cacalo argumentou que era uma derrota sem importância, mas Felipão não se acalmou. “Não gostei do que aconteceu aqui hoje, quero sair.” A demissão foi negada. “Tá de sacanagem comigo”, disse Cacalo. “Vai ficar na marra, à força, não vai sair!” Na viagem de volta, Cacalo conversou com o comandante do voo fretado e levou Felipão para “brincar de piloto” na cabine. “Ele se divertiu e esqueceu a ideia da demissão. Ele tinha esses rompantes. Depois amadureceu.”
Em janeiro de 1997, Felipão se despediu do Grêmio e foi treinar o Júbilo Iwata no Japão. Uma saída semelhante quase aconteceu no final de 1995, para o Yokohama Flügels, mas o presidente do Grêmio, Fábio Koff, conseguiu renegociar a permanência do técnico, que rabiscou os novos termos em um guardanapo e o sacou do bolso, mais de um ano depois, para reivindicar os valores combinados. A anedota é evocada por conhecidos de Felipão para ilustrar seu caráter de homem de palavra, que funciona na base da confiança. É difícil encontrar depoimentos que questionem sua retidão no que diz respeito a compromissos assumidos, pelo menos até interpelar um coritibano. Em 1990, antes da projeção nacional do técnico, o Coritiba perdeu a terceira partida consecutiva sob seu comando na série B do Brasileiro, contra o Juventude de Caxias do Sul. Scolari estava no comando do time havia apenas dezessete dias. Acuado, subiu no ônibus do adversário, foi embora e nunca mais voltou.
Felipão chegou ao Palmeiras em junho de 1997, depois de uma curta temporada no Júbilo Iwata. A negociação foi mediada por Fábio Koff a pedido do então presidente do clube, Mustafá Contursi. Não seria de se estranhar uma rejeição da torcida, dada a rivalidade entre Palmeiras e Grêmio à época e o gênio do treinador, mas Felipão se entusiasmou com a ideia de treinar um grande clube do centro do país, que estava em ascensão com a parceria feita com a Parmalat. Após um momento inicial conturbado, o treinador foi conquistando aos poucos a simpatia dos torcedores por meio de resultados positivos e inaugurou uma das eras mais vitoriosas do clube. A equipe foi vice-campeã brasileira em 1997 e ganhou a Copa do Brasil e a Copa Mercosul em 1998. O ápice veio em 1999, com uma conquista inédita: a Libertadores da América. Mais uma vez deixou escapar por pouco um título mundial, perdendo para o Manchester United. No ano seguinte, levou o Palmeiras novamente à final da Libertadores, mas perdeu para o Boca Juniors nos pênaltis.
De início, Felipão teve problemas para se adaptar ao trânsito e à vida caótica da capital paulista, mas encontrou lugar nos centros de imigração italiana da cidade, cuja cultura e gastronomia remetiam às suas origens do interior gaúcho. Era querido pelos jogadores. Já a relação com a torcida oscilava entre o amor e o ódio. A Mancha Verde homenageou o técnico após a conquista da Libertadores e pediu sua cabeça em seguida, após a derrota na final do Mundial Interclubes. Scolari foi chamado de gênio e de burro. Após sua saída em 2000, Murtosa estava no comando do time quando o Palmeiras venceu a Copa dos Campeões contra o Sport, em Maceió. Depois da partida, enquanto o time festejava a vitória debaixo de chuva, erguendo a taça, o repórter Marcello Lima, da rádio Jovem Pan, colocou Felipão na linha. Os jogadores fizeram fila para falar com o ex-técnico. “Eu nunca tinha visto nada assim. Uma fila de sete ou oito jogadores parados no meio do campo, esperando para falar com o Felipe”, lembra o repórter. “Isso continuou no vestiário. Fiquei umas duas horas com o celular na mão. Até o roupeiro falou com ele.”

As coisas não correram tão bem com a imprensa. Foi nessa época que o choque de seu temperamento com a cultura futebolística do centro do país cristalizou a fama de sargentão, bronco, grosseiro. Felipão estava acostumado com a imprensa esportiva de Porto Alegre, com tradição mais incentivadora, e ficou abismado com a cobrança e a atitude menos receptiva que encontrou em São Paulo. A imprensa paulista tampouco estava habituada ao tipo de figura que Felipão representa. Um de seus filhos, Fabrício, então com 8 anos, viu o pai ser chamado de “truculento” na televisão e foi perguntar o que aquilo significava. Felipão ficou possesso.
Marcello Lima conta que certa vez ele fez um “teste de confiança” com alguns jornalistas. Saiu do clube com sua “maletinha 007” e comentou – na presença de Murtosa, do assessor de imprensa Acaz Fellegger e de alguns repórteres – que andava armado em São Paulo por causa da insegurança. No dia seguinte, um dos repórteres noticiou, com toques de sensacionalismo, que Luiz Felipe Scolari andava armado. Felipão confrontou o repórter, revelou que tinha inventado a história e anunciou que nunca mais falaria com ele. A informação falsa havia sido compartilhada em contexto informal, fora de uma coletiva. Era uma intromissão e, mais do que isso, uma traição. Um dos momentos mais tensos com a imprensa nessa época ocorreu quando o técnico agrediu o repórter Gilvan Ribeiro, do Diário Popular. Felipão se irritou com uma pergunta insistente sobre o suposto envolvimento do treinador na proibição de acesso da torcida aos treinos. Após uma troca de xingamentos, deu um soco no rosto do repórter.
Para Scolari o jornalista é, por definição, um bisbilhoteiro. O bom profissional de imprensa é aquele com quem tem relação pessoal, um amigo, ou aquele com quem estabelece uma relação de franqueza, do tipo que o jornalista Juca Kfouri chama de “olho no olho”. Apesar de ter criticado o treinador em diversas ocasiões, Kfouri garante que os dois têm uma ótima relação. “É preciso enfrentá-lo lealmente. O que o irrita são as armadilhas.” Revela que Felipão já o visitou algumas vezes em seu apartamento para conversar em off em momentos complicados.
Na última Copa das Confederações, Kfouri solicitou ao assessor de Felipão dois minutos de conversa privada e recebeu uma recusa. Durante a coletiva, porém, enquanto o zagueiro David Luiz falava com os jornalistas, recebeu instrução para “ir atrás daquela coluna” dali a cinco minutos. Kfouri obedeceu. No canto do salão, atrás de um biombo, “escondido ali como uma criança”, estava Felipão. “Psiu, o que tu queres?” Em breve conversa, Felipão confirmou a presença de Olga, sua mulher, na final e fez brincadeiras com os protestos que agitavam as ruas. “Essas manifestações na rua... tu deves estar adorando! Tu não tens nada a ver com isso, né?”
Felipão tem um assessor de imprensa que, pelo que se depreende de conversas com jornalistas esportivos, tem mais atritos com a imprensa do que ele próprio. Acaz Fellegger foi contratado pela Parmalat para a assessoria do Palmeiras. Mustafá, o presidente do clube, não gostava dele e tentava demiti-lo, mas o patrocinador não permitia. Quando a demissão finalmente ocorreu, Felipão e um grupo de jogadores lhe fizeram a proposta de abrir uma assessoria própria para cuidar de suas carreiras. Em tempo de preparativos para a Copa, Fellegger atua como uma muralha em torno de Felipão. Durante três meses, rebateu todas as tentativas de entrevista feitas por piauí. “Ele não está atendendo nem aos pedidos da Fifa, por que iria falar com vocês?” Embora a atitude de Felipão na relação com a imprensa seja mais frequentemente vista como uma demonstração de agressividade ou desprezo, há nele uma dificuldade real de se expressar diante de câmeras e microfones. Cacalo entende que “o Felipe tem um certo sentimento de preservação e inibição, por causa da timidez. A facilidade de comunicação que ele tem no vestiário não existe diante do microfone”. A linguagem de Scolari é a linguagem da preleção, perfeita para motivar times, mas insuficiente para o debate público. “Ele cria um certo distanciamento do microfone, não da pessoa que faz a pergunta”, explica Cacalo. “Ele se sente agredido. A rudeza dele nessas ocasiões tem muito de autodefesa.”
João Garcia faz outra avaliação: “Felipão forma uma couraça de ignorante porque tem muito coração. E isso é perigoso. As pessoas se aproveitam.” A palavra “coração” é muito empregada por quem conhece o treinador. Em certo sentido, Felipão é um exemplo do homem cordial. O conceito de Sérgio Buarque de Holanda às vezes é confundido com o do sujeito festivo e cordato, aberto ao convívio com tudo e todos. Quando forjou a expressão em seu Raízes do Brasil, o historiador procurava na verdade captar um traço formativo do país, segundo o qual as relações pessoais e afetivas, os “laços de sangue e coração”, se sobrepõem à “noção ritualista da vida” e à letra fria da lei. Ajuda a compreender Felipão vê-lo como um homem que só pode se sentir à vontade transitando nos domínios da cordialidade. Nisso, a despeito da identidade gaúcha que o distancia em alguns sentidos das demais regiões do país, ele é tipicamente brasileiro.

Felipão recebeu o primeiro convite de Ricardo Teixeira para treinar a Seleção Brasileira em outubro de 2000, quando tinha recém-chegado ao Cruzeiro, mas declinou. Emerson Leão acabou entrando no lugar de Vanderlei Luxemburgo. Sob seu comando, a Seleção fracassou na Copa das Confederações e corria o risco de não se classificar para a Copa do Mundo. Quando o convite a Scolari foi renovado, sua campanha no Cruzeiro corria bem e incluía a conquista da Copa Sul–Minas de 2001, com a qual igualou a marca de Telê Santana de quinze títulos em dezenove anos de carreira.
O momento era tenso. A CPI do Futebol realizava uma devassa no esporte e restavam cinco jogos das eliminatórias para a Copa. Felipão assumiu no dia 12 de junho, fez as malas, chamou Murtosa e viajou ao Rio no dia seguinte para fazer a convocação. Na primeira partida sob seu comando pelas eliminatórias, o Brasil perdeu para o Uruguai por 1 a 0. As turbulências mais graves vieram com a Copa América, realizada em julho. A Seleção foi desclassificada nas quartas de final com uma derrota tenebrosa para Honduras por 2 a 0. Começou a perder apoio do torcedor e a receber patadas da imprensa.
Além disso, houve Romário. Em sua biografia, Ostermann credita o azedamento da relação entre Felipão e o craque carioca a um episódio primordial de perda de confiança. Romário pediu para ser dispensado da Copa América em razão de uma cirurgia no olho, mas foi ao México jogar pelo Vasco e depois tirou férias no Caribe. Felipão passou a barrá-lo nas convocações, para revolta de grande parte da torcida e da imprensa, principalmente no Rio de Janeiro. As justificativas dadas pelo treinador foram sempre táticas. Se a versão de Ostermann é correta, Felipão omitiu o real motivo, a quebra de confiança. Juca Kfouri pensa que o fator determinante foi puramente pragmático: “Romário era elemento estranho na família Felipão.” O treinador intuiu que ele mais atrapalharia do que ajudaria e apostou nos Ronaldos e em Rivaldo. Kfouri crê, como muitos, que a conquista do penta teria sido mais fácil com a participação do atual deputado federal, que tem sido crítico feroz das irregularidades que cercam a realização da Copa no país. Sua assessoria me disse que ele não falaria sobre Felipão.

Em seu livro Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil, José Miguel Wisnik escreve que o teor carismático do trabalho de Felipão em 2002 deu à campanha “mais o tom de uma eficiente administração de recursos humanos do que de preparação para uma sequência tática de jogos de xadrez em campo”. O estilo Felipão batia de frente com a opinião nacional, mas operava magia entre os atletas. “Felipão parecia não intimidar ou distanciar os jogadores com a frieza esquemática e teórica de um Parreira, com a mania de grandeza forrada de títulos e mitos de um Zagallo, com o dandismo de um Vanderlei Luxemburgo”, escreve Wisnik.
Em A Alma do Penta, Ostermann, um dos poucos jornalistas em quem Scolari confia, reproduz as páginas de um diário que o técnico manteve, a seu pedido, durante a campanha de 2002. São preciosas para flagrar o modus operandi de Felipão, pelo menos naquela época. A ênfase é dada aos diversos esquemas de jogo adotados, quase todos variações do 3-5-2. Alterações que transformaram o sistema de jogo, como a entrada de Kléberson no lugar de Juninho Paulista contra a Bélgica, são mais registradas do que propriamente comentadas. A maior parte das anotações se refere às palestras dadas aos jogadores nas preleções, que começam com orientações táticas e terminam com exposições motivacionais com direito a discursos, música, vídeos e apresentações de críticas e provocações colhidas da imprensa mundial. Por exemplo: “Todos entenderam e termino a palestra com uma fita de dez minutos do povo brasileiro e da Seleção, usando no final uma canção de Ivete Sangalo num ritmo bem baiano com gols e participação da maioria dos atletas. Foi muito interessante observar a reação dos atletas. Pedem para levar o vídeo até o campo e a fita para passarem e ouvirem antes do jogo. Acho que atingimos o objetivo.”
A participação de Rivaldo na Seleção de 2002 é um dos mais acabados exemplos da sensibilidade de Felipão para identificar as necessidades de um jogador, direcionar o talento individual e lhe dar o papel adequado dentro das complexidades do grupo. Discreto, avesso à ostentação e dono de um futebol brilhante, porém pouco chamativo, Rivaldo padecia do que Wisnik chama de uma “angústia do reconhecimento”. Como aponta Juca Kfouri, “Felipão compreendeu que Rivaldo era um caramujo”. Com ajuda da psicóloga Regina Brandão, que o auxilia na elaboração de perfis dos atletas, o treinador reconheceu a introspecção do jogador e ajustou o tratamento. Assim como há jogadores que só funcionam no grito, em relação a Rivaldo era essencial jamais levantar a voz. Felipão teria garantido a ele, em reservado, que seria titular absoluto e seu capitão no meio de campo, mesmo que jogasse mal por duas ou mesmo três partidas seguidas.
“É impossível minimizar o papel de Rivaldo nessa campanha”, escreve Wisnik. Taticamente, foi o jogador mais completo do time, contribuindo com assistências precisas e conclusões inspiradas. Seu comprometimento foi tamanho que, contrariando a própria natureza, protagonizou aquele que considero um dos maiores lances da história do futebol brasileiro. Nos descontos da partida contra a Turquia, posicionado para cobrar um escanteio, Rivaldo foi atingido um pouco acima do joelho por uma bolada do defensor turco Ünsal. O jogador girou o corpo para o lado em reflexo, levou as duas mãos ao rosto e se atirou no chão “como se estives-se sofrendo uma hemorragia cerebral”, nas palavras do então presidente da Federação Turca de Futebol. O turco foi expulso. Foi um momento surreal. A transmissão ao vivo captou a simulação de perto, em exposição quase didática. Lembro-me de ter saltado da poltrona, urrando de exultação. A Fifa acabou multando Rivaldo pela malandragem. Jogadores como Roberto Carlos e Denilson defenderam o lance como inteligente. Rogério Ceni declarou que Rivaldo estava apenas “defendendo os interesses do Brasil”. Família unida. Aquele era um time de Scolari. Aquilo era futebol.
Mas a situação mais importante envolvendo Rivaldo aconteceu nos vestiários, longe das câmeras, um pouco antes da final contra a Alemanha. Em meio à preleção, o calado camisa 10 fez algo inédito: pediu a palavra. “Chefe, eu quero falar.” Entre outras coisas, disse que, caso necessário, passaria a bola para Ronaldo Nazário, para o Brasil ser penta. Não se importava que o companheiro fosse o goleador e ficasse com a glória pela conquista do título. Foi uma manifestação espantosa, que podia parecer gratuita, mas estava profundamente relacionada com as conversas que o jogador tivera com Felipão. De fato, no segundo gol marcado pelo Brasil na final contra a Alemanha, Kléberson dá o passe para a entrada da área, Ronaldo grita “Abre!” e Rivaldo abre as pernas e faz o corta-luz para que o companheiro ajeite e enfie na rede. Ronaldo comemora correndo de braços abertos. Rivaldo vai ficando para trás, trotando devagar, abre os abraços apenas por um instante, e a câmera o perde de vista.

Após a conquista da Copa do Mundo com uma campanha perfeita de sete vitórias, Felipão foi convidado para dirigir a seleção portuguesa, cargo que ocupou por cinco anos. Quando chegou, a população tinha pouco interesse por sua seleção de futebol. Felipão sabia que não atingiria seus objetivos sem conquistar o apoio e a paixão da torcida. Entre seus estratagemas estava o apelo à forte religiosidade dos portugueses. Felipão é católico fervoroso e devoto de Nossa Senhora de Caravaggio, cujo maior santuário brasileiro está no município de Farroupilha, vizinho a Caxias do Sul. Participa de romarias e visita o templo com frequência para pagar promessas. Seu amigo João Garcia enviou pelo correio estátuas da santa, e Felipão tratou de introduzi-la em Portugal. Mencionava sua devoção nas entrevistas e visitava igrejas em suas viagens pelo país. Conquistou Portugal do interior para a capital.
Recebido inicialmente com críticas, levou o país à final da Eurocopa de 2004, que foi perdida para a Grécia em um jogo dramático. Mesmo assim, conseguiu fazer com que Portugal voltasse a torcer por Portugal, exerceu papel protetor com o iniciante Cristiano Ronaldo e tirou a seleção da mediocridade. A partida contra a Holanda nas oitavas da Copa de 2006 entrou para a história: uma carnificina com direito a doze cartões amarelos e quatro vermelhos. Portugal venceu por 1 a 0 e Felipão declarou que foi “um jogo típico da Libertadores, como as partidas que estou acostumado a jogar em clima de guerra contra equipes argentinas”.
Faltava ainda a chance de dirigir um grande clube europeu. Em julho de 2008, foi apresentado como treinador do Chelsea. Na Inglaterra, ganhou o apelido de Big Phil, mas seu carisma não teve a reciprocidade encontrada em outros países. Apesar de alguns bons resultados, pelo menos em números, perdeu clássicos importantes e não se entendeu bem com os jogadores. Uma das versões para sua demissão prematura em fevereiro de 2009 foi um motim de parte dos jogadores, liderados pela estrela Drogba, que depois de uma contusão foi colocado no banco. Verdade ou não, o fato é que não rolou “família Felipão” em terras britânicas. Em seu emprego subsequente, treinando o Bunyodkor, no Uzbequistão, foi recebido com festa pela torcida e emplacou uma série de 23 vitórias consecutivas que garantiram ao time a taça do Campeonato Uzbeque de 2009.
Em julho de 2010, Felipão assinou o contrato de seu retorno ao Palmeiras. Conseguiu levar o elenco limitado de jogadores a vencer invicto a Copa do Brasil de 2012. Assisti àquela semifinal entre Grêmio e Palmeiras no Estádio Olímpico, em Porto Alegre, e vi o Palmeiras de Felipão enfiar dois gols no final do segundo tempo. Felipão gesticulava, gritava e ondulava o corpo à sua maneira típica a poucas dezenas de metros de onde eu estava. Sua estratégia para aquela partida foi perfeita. Parecia ter previsto a escalação de Kleber, o Gladiador, que retornava de lesão. Armou uma defesa infernal. Fiquei enfurecido com a derrota, mas não conseguia deixar de admirar Luiz Felipe Scolari, ele próprio gremista doente, que dobrava o Grêmio em sua casa, na mesma arena em que havia levado o clube a tantas glórias. Um amigo gremista me mandou um torpedo ao fim da partida: “FELIPÃO = DEUS”. Na véspera, após um almoço familiar, Felipão havia chamado o neto de seu amigo João Garcia até a mesa e mostrado ao pequeno colorado como derrotaria o Grêmio no dia seguinte. Ilustrou a tática posicionando latas de refrigerante e anunciou que venceria por 2 a 0, como de fato ocorreu. Garcia me contou essa história para argumentar que Scolari não é somente um motivador, mas também possui apurada visão tática.
A sequência da campanha do Palmeiras no Campeonato Brasileiro foi melancólica. Felipão conseguiu fazer o time jogar no limite numa competição curta como a Copa do Brasil, mas não teve condições de manter o rendimento dos jogadores no campeonato de pontos corridos. Marcello Lima diz que Scolari pediu demissão porque acreditava que o time precisava de outro técnico para dar uma chacoalhada. Sua permanência faria o Palmeiras afundar de vez. Todavia, para muita gente ficou a imagem de que Felipão abandonou o barco assim que a tempestade apertou. Não é muito comum deixar um time na rota do rebaixamento e ser premiado com o cargo de técnico da Seleção que sediará a Copa.
Segundo Juca Kfouri, Felipão conversou três vezes com o presidente da CBF, José Maria Marin, ainda quando estava no Palmeiras. Seu retorno para a Seleção teria sido articulado desde aquela época. Koff só não teria demitido Luxemburgo e trazido Felipão para o Grêmio porque já havia algum tipo de compromisso com a CBF. Felipão e Marin negam. Mas Kfouri está convencido de que Scolari sonhava encerrar a carreira treinando novamente a Seleção Brasileira. “Ele me disse isso uma vez e eu gravei. Agora ele se faz de louco e nega, diz que sonhava em treinar uma seleção qualquer na Copa sediada no Brasil. Mas era o sonho dele.”

Luiz Felipe Scolari tem se dado bem com a imprensa, pelo menos em comparação com o passado. Fez os jornalistas rirem à beça nas coletivas da Copa das Confederações. Evita expor o que pensa, mas não teme explorar a própria imagem comercialmente. Vem estrelando uma série de campanhas publicitárias, recebendo cerca de 1 milhão de reais por produto. Numa zapeada de fim de semana em março deparei com ele em comerciais televisivos da operadora de celular Vivo, do refrigerante Guaraná Antarctica e dos supermercados big, esse ao lado da mulher. Em algum momento ele apareceu também num comercial da montadora Peugeot, chamando os clientes à concessionária (“Você está escalado!”). Ninguém confirma qual o salário de Scolari na cbf. Um ranking recente do site espanhol FútbolFinanzas diz que ele recebe 4,5 milhões de euros por ano, o que daria quase 1,2 milhão de reais por mês. A fortuna amealhada desde as primeiras incursões ao Oriente Médio é investida sobretudo em imóveis e administrada pelo cunhado, o engenheiro Marco Pasinato. É comum ouvir apostos como “o dono de Canoas” ao interpelar as pessoas sobre as posses de Felipão. Seus investimentos estão concentrados em Canoas, na serra gaúcha, no estado de Santa Catarina e em Portugal.
No dia 6 de abril, a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem intitulada “Filipinho paz e amor”, ressaltando o tom cristão e carinhoso do atual livro de cabeceira do técnico, Como se Tornar um Líder Servidor, de James C. Hunter. Durante a Copa de 2002, Felipão empunhava o best-seller A Arte da Guerra, de Sun Tzu, como fonte de inspiração para seus comandados. Já no dia 7 de abril, o site da Folha se baseou em declarações dadas numa conferência em Portugal para noticiar que ele pretende deixar os jogadores à vontade nas concentrações, inclusive para fazer sexo. “Sexo normal, sim. [...] Mas tem pessoas que fazem malabarismo. Isso aí, não”, brincou. O amaciamento se alinha com a crescente ênfase dada aos perfis psicológicos dos jogadores na definição das escalações e esquemas técnicos da Seleção. Um texto do New York Times em dezembro do ano passado mostrou que Felipão conta com os questionários e conselhos da psicóloga Regina Brandão para tomar decisões importantes que vão da escalação do time à escolha do capitão.

O desempenho da Seleção na Copa das Confederações fez de Felipão uma espécie de unanimidade. De início, seu retorno à Seleção em dupla com Carlos Alberto Parreira causou certo espanto. Como dois estilos tão diferentes poderiam funcionar juntos? Mas, pela primeira vez em anos, a Seleção mostrou uma união e uma consistência que tinham cara de time, e não de uma agregação ocasional de jogadores que estavam mais preocupados com outras coisas. O treinador também mudou consideravelmente seu discurso. Em outubro do ano passado, declarou, em um evento em Bento Gonçalves, que “o Brasil vai ganhar a Copa”. Ao New York Times, disse que “se pudermos, vamos jogar bonito e vencer. Se não, vamos só vencer”. Seu estilo nunca foi de garantir vitória, muito pelo contrário. Mas isso parece fazer parte da estratégia para mobilizar os jogadores e a torcida para o desafio da Copa. Ao chamar para si os holofotes e a responsabilidade, alivia um pouco a pressão sobre os jogadores, em especial a grande estrela do time, Neymar. João Garcia, que é seu confidente, perguntou-lhe a respeito dessa “mudança de paradigma”. Felipão responde que confia no time. Mas Garcia suspeita que “ele confia mesmo é na comissão técnica. Parreira é um para-choque pro Felipão”.
Mesmo o ex-jogador e colunista Tostão, um dos críticos mais consistentes de Felipão, reconhece o favoritismo da Seleção Brasileira em 2014. Suas objeções recentes têm girado em torno do otimismo exagerado e do “pensamento mágico”. Em coluna publicada na Folha de S.Paulo em 16 de fevereiro, escreveu: “Com o evidente crescimento individual e coletivo da Seleção, que vai além da conquista da Copa das Confederações, a avaliação do time, que era excessivamente negativa, como se o Brasil estivesse mil anos atrasado na parte tática e tivesse apenas um grande jogador, Neymar, passou a ser exageradamente positiva, como se a Seleção fosse a única favorita no Mundial e possuísse inúmeros foras de série. Nem uma coisa nem outra.” Mais adiante: “Um dos méritos de Felipão foi fazer com que a Seleção tenha sistema tático e estratégia muito parecidos com os das melhores equipes do mundo. Isso só é possível porque quase todos atuam na Europa, ao lado de muitos craques e sob o comando de ótimos técnicos, como Mourinho, do Chelsea, clube com quatro brasileiros na Seleção.”
Ainda que traga verdades, a análise parece conceder algum mérito a Felipão somente a contragosto, a exemplo do que ocorreu com boa parte da imprensa do centro do país em 2002, após a conquista do penta. Em artigo publicado na edição 77 depiauí, de fevereiro de 2013, intitulado “Obrigação e retrocesso”, Tostão diz: “A grande dúvida é se o torcedor brasileiro vai ficar feliz apenas com a vitória ou vai também reivindicar um futebol que o encante, como já encantou. Tudo a partir de agora, e cada vez mais, vai girar em torno da ‘obrigação de vencer’. [...] Seria melhor se estivesse em curso uma modernização efetiva no estilo de jogo e na organização mais geral do futebol brasileiro, independentemente do resultado na Copa.”
Em defesa de Felipão, alguém poderia dizer que, sem domínio tático e experiências como as da seleção portuguesa e do Chelsea, ele não teria como catalisar o potencial dos jogadores que tem à disposição. Amistosos como o ocorrido em março contra a África do Sul apontam para uma manutenção da fórmula esboçada na Copa das Confederações. Mas ninguém, é claro, pode afirmar com certeza que a mágica se estenderá por todas as etapas do Mundial que se aproxima.
José Miguel Wisnik foi outro pensador do futebol que viu a volta de Felipão como um retrocesso e depois mudou de ideia. “Em 2002, o futebol ficou igualado, ninguém mais ganhava de lavada, e pequenas diferenças e talentos individuais definiam resultados”, ele me disse em conversa na sua casa em São Paulo. “Com a ‘barcelonização’ em nível mundial, o talento individual passa a não bastar se o time não estiver muito entrosado. Após 2002, o Brasil demorou a se atualizar, com um futebol que parecia mais um espectro de si mesmo.” Ao insuflar seu time de jogadores europeizados com esse entrosamento e o espírito de garra e vontade que orienta sua visão de futebol desde os primórdios, Felipão poderá obter, em vez de um retrocesso, uma síntese que, se não merece ser chamada de vanguardista ou artística, é ao menos contemporânea e competitiva. Mas é, como dizia o capitão Froner: “Vamos ver.”
Em relação ao contexto político e social que cerca a realização da Copa do Mundo no Brasil, Felipão ocupa uma posição curiosa. Suas declarações públicas tendem a ser desastradas, principalmente quando o assunto é política. Seu elogio ao ditador chileno Pinochet ficou célebre. Na entrevista do Roda Viva em 2005, ao ser questionado sobre o assunto, Felipão perdeu a chance de se calar ou de corrigir a barbeiragem anterior e respondeu com uma ingenuidade que chega a ser comovente: “[Não me arrependo] porque algumas pessoas levaram para outro lado. [...] Para chegar num ponto bom, num ponto em que o Chile cresceu, alguma coisa tinha que ser feita, foi ele. Iniciou, fez a parte boa, fez a parte ruim, a parte ruim eu não conto, eu só conto a parte boa.” Depois conclui: “Quem sabe seja até uma alienação minha.”
Recentemente, enquanto assistia ao desfile das escolas de samba campeãs do Carnaval carioca no camarote da Brahma, Felipão se manifestou sobre os casos de racismo que assolam o futebol no país. “Estão dando ênfase a uma bobagem. Não deveríamos nem debater isso. Não adianta punir, a solução é ignorar. Vocês [imprensa] não podem dar moral e ficar falando dessas pessoas. Este caso não tem solução, esses babacas nunca vão aprender.” A vista grossa para a “parte ruim” e a atitude do “deixa estar” nos casos acima refletem uma mentalidade de “conservador do povo” que abunda em muitos rincões. Por um lado, Felipão é o que João Garcia chama, de maneira meio jocosa, de um “socialista de direita”, capaz de defender com igual ardor a propriedade e o bem-estar do povo, independentemente de regime ou partido político, ignorando as complexidades e variadas contradições que isso acarreta. Juca Kfouri formula da seguinte maneira: “É o tio que, no almoço familiar, toma duas caipirinhas e sai fazendo piada suja na frente das sobrinhas, que é conservador e reacionário, capaz de elogiar o Pinochet mas também o Fidel Castro, pois antes de mais nada ele quer ordem. Quer que as coisas tenham limites.”

Do ponto de vista da inconformidade popular que desencadeou as manifestações de junho de 2013, que tinham entre seus alvos a corrupção, os abusos das forças de repressão do Estado e a privatização do espaço público, tais concepções são problemáticas. Mesmo assim, a alardeada sensibilidade de Felipão entrou em cena em um momento importante dos protestos. Em coletiva oficial da Fifa realizada em Fortaleza no dia 18 de junho de 2013, na segunda rodada da Copa das Confederações, ele declarou aos repórteres: “A Seleção é do povo. Somos do povo.” Não chegou a apoiar os protestos, mas defendeu que eram algo comum e normal em uma democracia. Os jogadores Daniel Alves, Dante e David Luiz se disseram a favor das manifestações. No jogo contra o México, no dia seguinte, parte da torcida conseguiu driblar a proibição da Fifa e levou cartazes de protesto ao Estádio Castelão. Cerca de 50 mil torcedores cantaram o Hino Nacional na íntegra, ignorando o limite de noventa segundos previsto no protocolo. Nas ruas, os protestos descambavam em mais violência entre manifestantes e policiais. No campo, a Seleção venceu o México por 2 a 0, embalada pelo protesto pacífico dos torcedores.
Embora a Fifa, os estádios e a Copa do Mundo sejam alvos simbólicos dos protestos, a relação histórica dos brasileiros com o futebol traz ambiguidades ao cenário. “Em 1970, quando eu era aluno da USP, meus colegas ficavam horrorizados quando eu torcia pela Seleção, diziam que o futebol era o ópio do povo, essas coisas”, lembra Kfouri. “Na Copa das Confederações, houve quem dissesse que os torcedores nos estádios eram a porção alienada do Brasil que não estava nas ruas. Vejo de maneira diferente. Era um público que complementava as manifestações. Tinham dinheiro para o ingresso, entraram no estádio, mas de alguma maneira ecoaram as ruas ali dentro quando cantaram o hino a capela.”
Wisnik tem opinião semelhante: “Antes da Copa das Confederações, o país estava por cima e a Seleção por baixo. Depois, inverteu. O hino tem muito valor simbólico, dentro e fora dos estádios. Dizem muito que a vocação lúdica brasileira não leva à manifestação política, mas é o contrário. As manifestações só atingiram aquela escala por causa do futebol, que, mesmo quando negado, tem enorme importância ao potencializar a energia social. A Copa virou uma alegoria de todas as inconsequências do Estado, da incapacidade de gestão, da corrupção. A antena de Felipão certamente captará isso.”
Vamos ver, vamos ver.