sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

O ano em que o país foi às ruas

folha de são paulo


Maciça e intocável - O que é a matéria escura, e como fisícos tentam capturá-la

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Cresce número de experimentos para detectar a misteriosa matéria escura



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RAFAEL GARCIA
DE SÃO PAULO
Uma série de experimentos está finalmente fechando o cerco em torno da misteriosa matéria escura -a entidade responsável por 85% da força gravitacional presente no universo, mas que ninguém ainda sabe o que é.
Pelo menos 50 novos estudos buscam saber qual é sua natureza, mas enfrentam um problema complicado: os dados de algumas pesquisas não batem com os de outras.
"Não é possível dizer que a matéria escura tenha sido descoberta, mas pode ser que estejamos mais próximos", diz Frèdèric Mayet, professor do Laboratório de Física Subatômica e de Cosmologia, de Grenoble (França).
Ele mapeou 50 experimentos recentes -alguns em projeto- para tentar detectá-la direta ou indiretamente. E há ainda a possibilidade de que a matéria escura seja produzida no acelerador de partículas LHC, na fronteira da Suíça com a França.
Editoria de arte/Folhapress
Maciça e intacável
Veja infográfico sobre a matéria escura
O ano de 2014, portanto, começa com um dilema para os físicos. Por um lado, é bom saber que há um número tão grande de estudos tentando encontrar a matéria escura. Por outro, alguns experimentos extremamente sensíveis, como o LUX, fecharam o ano sem encontrar nenhum sinal dessa entidade misteriosa.
O LUX, que funciona numa mina subterrânea da Dakota do Sul (EUA), usa um tanque de xenônio (gás inerte e incolor) para tentar capturar partículas de matéria escura. A técnica é uma das cinco diferentes ideias para detectá-la (veja quadro acima).
O resultado negativo contrariou o do experimento Dama-Libra, na Itália, que há anos afirma estar vendo sinais da matéria escura, usando uma técnica diferente.
Um outro tipo de experimento, que usa cristais ultrafrios para detecção, porém, afirma ter obtido um sinal que pode se tratar de matéria escura. O CDMS, que funciona numa mina desativada em Minnesota (EUA) também acredita ter um sinal positivo.
Projetos que buscam evidências indiretas da matéria escura no espaço, como o satélite Fermi, também obtêm resultados dúbios.
Há sinais de que partículas de matéria escura podem estar se aniquilando no espaço. Um deles é a presença de antimatéria (matéria com cargas elétricas invertidas) em uma maior concentração do que a esperada. Teorias postulam que a antimatéria é um dos produto da desintegração de matéria escura.
A antimatéria detectada pelo Fermi, porém, pode também estar sendo gerada por pulsares (estrelas mortas que emitem pulso de luz periódicos), creem alguns teóricos.
DESAFIO TEÓRICO
Nicolás Bernal, cientista colombiano recém-contratado pelo Instituto de Física Teórica da Unesp (Universidade Estadual Paulista), trabalha tentando fazer a ligação entre o que a teoria prevê e o que os experimentos efetivamente produzem.
"O desacordo entre experimentos de detecção direta e indireta, a princípio, não é um problema, porque eles não investigam os mesmos processos. O problema é quando experimentos similares têm dados diferentes."
Uma das saídas para superar o problema experimental é a aumentar a escala -e a precisão- dos projetos.
O Xenon-100, um experimento italiano que não conseguiu enxergar nenhum sinal ainda de matéria escura, usa como detector um tanque de 165 kg de xenônio, mas planeja agora aumentar a carga para uma tonelada.
Grupos como o de Frèdèric Mayet, por outro lado, têm tentado criar estratégias diferentes de detecção -técnicas que, no caso de um resultado positivo, possam explicar a ausência de sinais em outros experimentos.
"Temos a impressão, de modo geral, que estamos chegando mais perto da matéria escura", diz Mayet. "Só não sabemos quão perto."

Ciência encarcerada

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Ciência encarcerada
É bom que o paleontólogo Alexander Kellner processe o governo federal (embora soe exagerado exigir R$ 1 milhão a título de danos morais) após prisão sob acusação de tráfico internacional de fósseis em 2012.
Mesmo que não passe de uma rusga com o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), o processo terá utilidade. Vai chamar a atenção do público para a paranoia da burocracia nacional com cientistas estrangeiros.
Na companhia do francês Romain Amiot, Kellner foi detido pela Polícia Federal em Juazeiro do Norte (CE); segundo denúncia anônima, se preparavam para cometer o crime de vender fósseis brasileiros no estrangeiro.
O chefe do DNPM na região informou à polícia que havia irregularidades na coleta e no transporte de fósseis. Kellner e Amiot passaram uma noite presos.
A queixa terminou arquivada. A pesquisa se dava sob os auspícios do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), agência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Legalmente, isso isentava a equipe de licença do DNPM.
Não são poucos os órgãos federais que implicam com cientistas estrangeiros (e até brasileiros) que se aventuram a pesquisar no Brasil.
Anvisa e Receita Federal infernizam a vida de quem precisa importar equipamentos e materiais. A burocracia da Funai para autorizar a entrada em terras indígenas tem mais meandros que os rios amazônicos. O Conselho de Gestão do Patrimônio Genético reúne 19 órgãos da administração federal para criar o máximo de entraves à coleta de organismos.
Regras de acesso e controle de fronteira decerto precisam existir. Mas os burocratas parecem impregnados de mania xenófoba de que todo estrangeiro na Amazônia está ali para mapear recursos e surrupiá-los --noção muito popular entre militares e esquerdistas.
Escroques não faltam, e há que reprimi-los. Mas o dano que hoje causam ao país é mínimo para justificar tanta paranoia.
Com a crescente internacionalização da pesquisa científica, o Brasil só tem a perder fechando portas à colaboração de estrangeiros, que buscarão outros países tropicais para efetivá-las. Em ciência, a verdadeira soberania se constrói com conhecimento e inteligência, não com delírios de autarquia.

    Após 'rolezinhos', lojistas pedem PM em shoppings

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    Após 'rolezinhos', lojistas pedem PM em shoppings
    Associação reivindica que policiais façam segurança nos estabelecimentos
    Proposta envolve nova modalidade da Operação Delegada; Alckmin diz que ela ainda será avaliada
    DE SÃO PAULODepois de ao menos quatro shoppings de São Paulo receberem encontros de jovens conhecidos como "rolezinhos", a associação de lojistas do setor pediu a presença de policiamento militar dentro dos estabelecimentos.
    O presidente da entidade, Nabil Sahyoun, afirmou ontem que o setor pretende que, a partir de fevereiro ou março, policiais fardados façam a segurança dentro dos shoppings centers. Ele não detalhou quantas unidades receberiam os militares nem o horário em que eles atuariam.
    "Shopping é um equipamento urbano inserido na cidade", diz. Para Sahyoun, a presença de policiais fardados poderia aumentar a segurança e também inibir a onda de "rolezinhos", combinados por meio de redes sociais.
    Segundo a associação, os "rolezinhos" tiveram impacto negativo de 7% a 8% nas vendas do shopping Interlagos no domingo, quando ele recebeu uma dessas reuniões.
    Sahyoun disse também que foi feito um monitoramento das redes sociais para saber quando e onde ocorreriam novos encontros. Os shoppings que seriam alvo da manifestação contrataram 200 seguranças extras.
    A maneira para que os policiais atuem dentro dos estabelecimentos é aprovar uma nova modalidade de Operação Delegada --programa do governo estadual que autoriza militares a desempenhar sua função, fardados, em outros locais durante o período de folga. Hoje, ela existe em convênio com prefeituras.
    Para que a operação pudesse se estender para os shoppings, uma nova lei teria de ser aprovada pela Assembleia Legislativa.
    Ontem, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) disse que a Secretaria de Segurança Pública recebeu um pedido e que estuda o que fazer.
    "O dr. [Fernando] Grella vai examinar. Tem uma proposta de shoppings, de eles remunerarem os policiais, isso vai ser avaliado", afirmou.
    Alckmin, no entanto, fez ressalvas. "O policiamento nosso é publico, portanto o policiamento dentro do shopping deve ser privado. O nosso é publico, portanto ele é fora. Mas nós podemos estudar outras formas de fazer."
    HISTÓRICO
    Os "rolezinhos" começaram no dia 7 deste mês, quando 6.000 jovens se encontraram no shopping Metrô Itaquera, zona leste. Na semana seguinte, o local foi o shopping Internacional de Guarulhos, na Grande SP, onde --mesmo sem crimes registrados-- 23 foram detidos.
    No final de semana anterior ao Natal, outros dois shoppings "sediaram" o encontro, também sem nenhuma ocorrência criminal: Campo Limpo e Interlagos, ambos na zona sul.

      Ruy Castro

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      Um mínimo de desobediência

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      RIO DE JANEIRO - A Prefeitura do Rio liberou os despachos de umbanda das exigências do Lixo Zero. Ótimo. Enquanto os papéis de bala, guimbas de cigarro, embalagens de batata frita, garrafas PET e outros detritos continuarão na mira das multas, os arranjos de galinha preta, farofa, cachaça e velas seguirão adornando as esquinas e adulando as entidades. Não acredito nessas coisas e em religião nenhuma, mas gosto de saber que algumas práticas resistem à pasteurização atual.
      Antonio Maria, em crônica dos anos 50, observou a quantidade de despachos –quase um por esquina–no Leblon daquele tempo. Se hoje é improvável que alguém tropece em um só deles em todo o bairro, não esquecer que o Leblon de Maria ainda não tinha o metro quadrado mais caro do Brasil. Era um areal quase despovoado, cheio de terrenos baldios, mato crescendo nas calçadas e vida noturna zero –exceto entre os moradores da Praia do Pinto, a favela horizontal arrasada em 1969 e onde se construiu o condomínio Selva de Pedra.
      Da mesma forma, seguem autorizadas as oferendas a Iemanjá no fim de ano –ninguém será multado por jogar flores no mar ou deixar uma garrafa de champanha para trás na areia. O mar habituou-se a engolir as flores e a Comlurb tem uma grande tradição de pôr a orla nos trinques ao amanhecer do dia 1º. Pelo mesmo motivo, ela tolerará o papel picado caindo dos prédios do Centro no último dia útil –nem teria como subir a cada escritório para multar os infratores.
      Ninguém mais a favor de certas posturas municipais do que eu. As cidades precisam se tornar funcionais, e isso depende em boa parte de nós.
      Mas, numa época em que nos tiraram o prazer de torcer em pé nas arquibancadas, assobiar para uma mulher bonita ou chutar tampinhas na rua, um mínimo de desobediência civil será saudável e essencial.
      ruy castro
      Ruy Castro, escritor e jornalista, já trabalhou nos jornais e nas revistas mais importantes do Rio e de São Paulo. Considerado um dos maiores biógrafos brasileiros, escreveu sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda. Escreve às segundas, quartas, sextas e sábados na Página A2 da versão impressa.

      MÔnica Bergamo

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      CHÃO DE GIZ
      A chegada de estrangeiros menores de 18 anos desacompanhados, em busca de refúgio no Brasil, tem sido motivo de preocupação. No Estado de São Paulo, o número quase triplicou entre 2012 e este ano, saltando de oito para 21 casos, segundo o Centro de Acolhida para Refugiados da Cáritas Arquidiocesana. A maioria dos que viajam sem os pais ou responsáveis são rapazes com idade entre 15 e 17 anos.
      CHÃO DE GIZ 2
      "Esses menores chegam muito vulneráveis. Ficam sujeitos a todo tipo de exploração", diz Larissa Leite, do setor de relações externas da Cáritas, entidade que faz triagem e encaminhamento dos estrangeiros que fogem de perseguições ou guerras. Os adolescentes são enviados pela Justiça para abrigos ou para a casa de um guardião voluntário.
      CHÃO DE GIZ 3
      Entre janeiro e novembro, a Cáritas registrou no total 2.746 pedidos de refúgio, feitos por pessoas de pelo menos 60 nacionalidades. Mais da metade (55%) das solicitações partiram de haitianos. Bangladesh, Nigéria, Senegal e Congo também aparecem entre os líderes de emissão de imigrantes. Outras 500 pessoas estão na fila para iniciar os processos em SP, Estado que concentra a metade dos pedidos.
      EM ALTO E BOM SOM
      O ex-senador Almino Affonso prepara um livro sobre 1964. Na obra, conta os bastidores do golpe militar e as conversas que tinha com o então presidente João Goulart. Almino era ministro do Trabalho e da Previdência de Jango e acompanhou de perto os momentos dramáticos que antecederam a deposição do então presidente. O livro será lançado até abril.
      BAÚ
      José Serra (PSDB-SP) também decidiu recentemente escrever as memórias do que viveu no período, quando era líder estudantil.
      VIROU PÓ
      Dias antes de negociar com os credores, a OGX, de Eike Batista, estava com o cofre quase vazio. Profissionais que participam do dia a dia da empresa dizem que ela dispunha de menos de R$ 10 milhões em caixa.
      IMAGINE
      O senador Eduardo Suplicy (PT-SP) cantou para moradores de rua da Praça da Sé na manhã do dia 24. Levou a banda Brothers of Brazil, de seus filhos Supla e João Suplicy, e a apresentadora Maria Paula. No repertório, canções de Cat Stevens e "Imagine", de John Lennon.
      CONDOMÍNIO AMIGO
      O número de ações de cobrança por falta de pagamento da taxa condominial na cidade de São Paulo teve queda de 7,2% de janeiro a novembro deste ano, em relação ao mesmo período de 2012. De acordo com o levantamento, feito pelo Secovi-SP, o sindicato que representa as construtoras, elas caíram de 9.833 no ano passado para 9.124 ações em 2013.
      CONDOMÍNIO AMIGO 2
      Dentre os fatores que contribuíram para reduzir as pendências estão os acordos extrajudiciais e as negociações amigáveis.
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      NO CORAÇÃO DO BRASIL
      Famoso pelos retratos de celebridades de Hollywood, o fotógrafo americano Martin Schoeller desembarcou na Amazônia para fotografar, com as mesmas técnicas e luzes de estúdios, os índios caiapós do sul do Pará.
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      O mais famoso deles, o cacique Raoni posou para as lentes que já registraram estrelas como George Clooney e Angelina Jolie.
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      As imagens ilustram a reportagem de capa da edição de janeiro da revista "National Geographic" brasileira, que chega às bancas hoje.
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      Raoni falou dos efeitos da hidrelétrica de Belo Monte na vazão do rio Xingu, que atravessa as reservas do seu povo.
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      "Não gosto dos madeireiros. Não gosto dos garimpeiros. E não gosto dessa represa!", afirmou ele à publicação.
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      TEMPO DE FESTA
      O chef Christian Montgomery e a empresária Juliana Angrisani receberam convidados em sua festa de casamento no Hotel Tivoli, nos Jardins. A mãe do noivo, Renata Conti, e o pai, o ginecologista Malcolm Montgomery, com a mulher, Carla Regina, acompanharam a cerimônia. A atriz Maria Fernanda Cândido e o marido, o empresário francês Petrit Spahija, a jornalista Julie Montgomery e a empresária Carol D'Angelo também passaram por lá.
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      CURTO-CIRCUITO
      A The History traz a bateria da Vai-Vai para sua festa de Réveillon, às 21h. 18 anos.
      A corrida anual de São Silvestre terá edição infanto-juvenil amanhã, no Ginásio do Ibirapuera, às 9h.
      O filme "O Retorno", de Rodolfo Nanni, será exibido no dia 11 de janeiro, na volta do Cine Direitos Humanos, no Itaú Frei Caneca.

      Fernanda Torres

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      Humano
      Bustos romanos seduzem pelos defeitos; narigudos, papudos e olheirudos, se distanciam do ideal grego
      Em "A Invenção do Humano", Harold Bloom afirma que a consciência do homem moderno nasceu com Hamlet. Shakespeare, afinal, seria o tronco, e todo o resto --Freud, Dostoiévski e Guimarães Rosa--, seus galhos.
      O crítico americano descreve o dinamarquês como um homem contemporâneo preso em uma trama medieval. Os demais personagens não seriam capazes de raciocinar como o jovem, o autor não lhes dota do mesmo vocabulário. No choque, a razão do príncipe só se justifica através da loucura.
      Estive na Galeria Uffizi, em Florença, no começo deste ano.
      Lá, é possível acompanhar muitos desses saltos evolutivos na história da criação.
      Iniciei o périplo pelas pinturas medievais. Sacras e bidimensionais, há pouco de humano nelas; são esquemáticas como a corte do rei Claudio.
      Giotto é quem dá o passo ao descolar as figuras do fundo, dando-lhes profundidade no sentido amplo da palavra. A perspectiva expande o sofrimento de Madonas, Moisés e Cristos crucificados por bons séculos. Vale ressaltar a abnegação com que os mestres enfrentaram a restrição temática.
      Para quem segue pelos corredores da galeria, a repetição de passagens bíblicas e divindades gregas cria um estado de beleza e embriaguez interrompido pelos primeiros retratos realistas da Renascença.
      Na sala oito, os perfis da duquesa e do duque de Urbino, pintados em 1472 por Piero della Francesca, marcam, na impressionante coleção, o instante em que o homem se coloca em pé de igualdade com os santos.
      As salas seguintes exibem uma variedade fascinante de rostos comuns, nobres, mas comuns, semelhantes à turistada. O duque de Urbino é pai de Hamlet e foi criado mais de século antes dele.
      A Cosac Naify acaba de lançar uma edição preciosa do "Decameron". Cem anos antes de Piero della Francesca, Bocaccio pedia desculpas ao Espírito Santo para falar dos dilemas mundanos de quem sobreviveu ao século 14.
      Entre 1300 e 1400, a Europa enfrentou a Guerra dos Cem Anos, a corrupção desenfreada do clero e a peste negra, epidemia que dizimou 75 milhões de pessoas, um terço da população europeia.
      O cenário desolador flexibilizou a moral. A noção de família e propriedade foi abalada, bem como a crença na justiça divina. Os que sobraram se arrumaram como puderam, não como Deus queria.
      "Sabe-se que as coisas desse mundo são todas transitórias e mortais, em si e fora de si cheias de tédio, de angústias e de tormentas, passíveis de infinitos perigos; as quais nós, que vivemos misturados a elas e somos parte delas, não poderíamos certamente resistir nem evitar se a especial graça de Deus não nos emprestasse força e sagacidade."
      O discurso caberia na boca de Hamlet, ou Macbeth, não fosse a conclusão tão reverente ao Altíssimo. Aparentemente devoto, Boccaccio esclarece, logo na introdução, que sua novela não é direcionada a Deus, mas ao juízo dos homens.
      Ou à sua falta de juízo. "Decameron" é um decálogo de desvios, um paraíso de putas ardilosas, freiras volúveis, padres ladrões e bandidos de toda a espécie.
      Os bustos de mármore do Império Romano também seduzem por seus defeitos. Narigudos, papudos e olheirudos, se distanciam do ideal olímpico dos gregos.
      Admiro a Vênus e a Samotrácia tanto quanto os Tintorettos da Scuola de San Rocco, mas as rugas romanas me provocam o mesmo deleite dos rostos da Renascença, ou dos pecadores de Boccaccio; elas revelam os anseios, a fragilidade, a torpeza e a mortalidade de gente como eu e você.
      Gosto também de admirar o modelo em cera do casal de Australopithecus afarensis caminhando abraçado pela planície de Laetoli, no Museu de História Natural de Nova York. O par de macacos bípedes passeia enlaçado, enquanto admira a paisagem ancestral. São Adão e Eva encarnados e não destoam dos "sapiens" apaixonados.
      Difícil mesmo é reconhecer o que há de humano nos games interativos que meu filho adolescente joga sem parar, on-line, com os amigos virtuais.
      Quando o vejo aos berros, imerso na batalha imaginária, tenho dificuldade de acreditar que, algum dia, Hamlet fará sentido para ele; e temo, como a mais retrógrada das santas inquisidoras, pelo futuro da humanidade.