terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Explosão no número de obesos ameaça sistemas de saúde de países emergentes1


Rémi Barroux

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Qual a melhor maneira de combater a obesidade?10 fotos

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A obesidade é considerada a doença epidêmica do século 21 para a Organização Mundial da Saúde. No Brasil, metade dos adultos são obesos, número similar ao encontrado nos países ricos. Por isto, foi criado o Dia Internacional de Combate à Obesidade, celebrado em 11 de outubro, para conscientizar a população dos malefícios causados à saúde pelo excesso de peso. A educação é o primeiro passoKokhanchikov/Shutterstock
É uma doença que vai custar cada vez mais caro à economia mundial. Mais de um em cada três adultos no mundo sofre de obesidade ou de sobrepeso, ou seja, 1,46 bilhão de pessoas. Em menos de trinta anos, entre 1980 e 2008, o número dessas pessoas quase que quadruplicou nos países em desenvolvimento, passando de 250 milhões para 940 milhões. No mesmo período, o número aumentou 1,7 vezes nos países de rendas mais elevadas.
Ao publicar, no dia 3 de janeiro, um relatório dedicado aos problemas da alimentação, o The Overseas Development Institute (ODI), um círculo de reflexão britânico sobre o desenvolvimento e as soluções humanitárias, enfatiza a explosão no número de obesos nos países emergentes. "O que mudou foi que a maioria das pessoas com sobrepeso ou obesas hoje se encontram nos países em desenvolvimento, no lugar dos países desenvolvidos", explicam os autores do relatório, Sharada Keats e Steve Wiggins, dois pesquisadores especializados em agricultura.
Inúmeros fatores explicam essa mudança. A "transição nutricional", ou seja, a mudança de comportamento e da alimentação se deu rapidamente. "Mais densidade calórica e energética, mais gordura e açúcar, o aumento do tamanho das porções, uma alimentação mais acessível e disponível, a perda dos modelos culturais tradicionais são todos fatores que caracterizam essa transição nutricional", analisa o professor Arnaud Basdevant, do serviço de nutrição no Hospital de Pitié-Salpêtrière. As migrações para as cidades, a sedentarização com mobilidade reduzida, os poluentes urbanos agravaram o fenômeno.
As consequências esperadas para a saúde são alarmantes. "Em todo o mundo vamos assistir a um grande aumento no número de pessoas que sofrem de determinados tipos de câncer, de diabetes, de acidentes vasculares cerebrais e de crises cardíacas, criando um pesado fardo sobre os sistemas de saúde pública", alerta Wiggins.
Para Arnaud Basdevant, "a epidemia de diabetes pela qual podemos esperar será praticamente insustentável financeiramente para esses países emergentes". Na escala da China, da Índia, do Brasil, do México... são milhões de pessoas que necessitarão de grandes cuidados. "Não será algo imediato, é preciso que as populações em questão tenham tempo de ganhar peso, passem para o sobrepeso e depois atinjam a obesidade até a obesidade crônica", detalha o professor. "Mas, daqui a quinze ou vinte anos, esses custos serão consideráveis."
Segundo diferentes estudos, a obesidade representaria entre 2% e 5% dos gastos com saúde nos países industrializados. Na Europa, a Comissão Europeia havia calculado esse montante em 7% dos gastos com saúde pública: "Um número que continuará a aumentar diante da tendência crescente da obesidade", afirmou a Comissão no final de 2005. Na França, em um estudo publicado no "La Presse Médicale" em 2007, a soma variava entre 2,6 e 5,1 bilhões de euros (R$ 8,4 a R$16,5 bilhões), mais de 6 bilhões se forem levados em conta os custos das interrupções no trabalho associadas a essa patologia.
Em seu relatório "A obesidade e a economia da prevenção" (2010), Franco Sassi, economista da saúde na Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos, observou que "uma pessoa obesa gera gastos com saúde 25% maiores do que uma pessoa de peso normal". Sassi apontava para o fato de que os mais afetados eram as pessoas mais vulneráveis do ponto de vista social e econômico: "Os indivíduos obesos ganham até 18% a menos que os não-obesos".
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Dezesseis hábitos diários que previnem a obesidade infantil16 fotos

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A criança deve comer cinco ou seis refeições (café da manhã, lanche da manhã, almoço, lanche da tarde, jantar e ceia) em locais apropriados e horários pré-estabelecidos. Leia mais Getty Images
Nos países emergentes, as pessoas mais expostas aos riscos da obesidade em muitos casos foram afetadas primeiro pela desnutrição. "As crianças cuja mãe sofreu desnutrição ou que elas mesmas a tenham vivido se tornam obesas ou diabéticas com mais facilidade; isso foi constatado na Índia", explica o professor Basdevant. "Quanto mais rápidas são as mudanças de comportamento alimentar, mais rapidamente a obesidade se instala". É uma forma de dupla punição. "Nos países da América do Sul, observa-se a coexistência, em uma mesma região, uma mesma cidade ou até mesmo uma mesma família, de casos de desnutrição e de sobrepeso", ele diz.
A obesidade não é mais um problema de responsabilidade individual. "Em geral, e particularmente nesses países, o combate não se dá no nível do indivíduo, pois se trata de uma doença crônica, associada à evolução dos modos de vida e do meio ambiente", analisa Basdevant. "Cabe aos governos pensar as políticas de saúde e de nutrição, tanto nas escolas como nas empresas, mas também as políticas urbanas e de transporte."
O relatório da ODI insiste na insuficiência de políticas públicas para o combate à obesidade. "Os dirigentes devem ser menos temerosos em suas tentativas de influenciar o tipo de alimentação que vai parar em nossos pratos", afirma Steve Wiggins. Nestes tempos de globalização que uniformiza os costumes alimentares, os dois autores também ressaltam a responsabilidade dos mercados e dos preços agrícolas. Essa constatação foi feita pelo Banco Mundial, que observa que "com a persistência dos altos preços dos alimentos e provavelmente cada vez mais instáveis, as calorias 'ruins' tendem a custar mais barato que as boas."
Tradução: UOL

Fuvest exigiu reflexão no 2º dia, dizem professores

folha de são paulo
Abstenção foi de 8,3%; provas continuam hoje
DE SÃO PAULOO segundo dia de provas da etapa final da Fuvest, ontem, exigiu muita reflexão dos candidatos, segundo professores ouvidos pela Folha.
Foram aplicadas 16 questões dissertativas de matérias do ensino médio, como história, biologia, e matemática.
Para Célio Tasinafo, diretor pedagógico do curso Oficina do Estudante de Campinas (SP), a prova se destacou pela interdisciplinaridade.
"A questão de matemática sobre análise combinatória dos senadores do Brasil, por exemplo, trazia uma pergunta de geografia", explica.
"Não dá para dizer que a prova foi difícil, mas não daria para fazê-la sem reflexão."
"Foi uma interdisciplinaridade real que exigia conhecimento em pelo menos duas áreas", diz Luís Ricardo Arruda, coordenador do Anglo.
Para Vera Lúcia Antunes, coordenadora do curso Objetivo, o exame também "trouxe questões atuais".
O segundo dia de prova teve 8,3% de ausentes. Hoje, os candidatos respondem a 12 questões, de acordo com a carreira escolhida.

    Subindo montanhas - Suzana Herculano-Houzel

    folha de são paulo

    Nós sabíamos que o passeio de Natal em um parque no sul do Chile envolveria cerca de seis horas de caminhadas diárias com 20 kg nas costas, de um acampamento ao próximo –mas não exatamente que seria um total de 44 km percorridos em quatro dias, com várias ribanceiras espetaculares, algumas vezes contra o vento fenomenal de uma geleira.

    A primeira hora de caminhada corria bem. Mas, já com músculos ardendo e tendões se manifestando, como encontrar forças (leia-se motivação) para as horas e muitos quilômetros por vir, para ainda encarar tudo de novo no dia seguinte?

    Ajuda saber que motivação é a antecipação do prazer que recompensará um esforço para conquistar alguma coisa. Essa "alguma coisa" vai de ver os amigos a receber um pagamento no banco –e passa por visitar lugares incríveis na companhia de quem se ama. Ver de perto o Glaciar Grey, os Cornos e as Torres do Paine e curtir todos os acontecimentos e acampamentos no caminho são recompensas que só recebe quem se dispuser a suar, e muito. As fotos deslumbrantes no mapa e nos sites que visitamos serviram como uma grande cenoura na ponta da varinha.

    Informação também é fundamental. Os marcos informativos nas trilhas a cada dois quilômetros só faltam falar: "Vamos lá, você já andou dois quilômetros, faltam apenas mais nove... mais sete... cinco...". Na falta dos postes, e quando minhas forças minguavam, criei meus próprios marcos contando meus passos, um por metro. Ajudou muito: de repente, eu tinha evidência de que os quilômetros passavam de fato. Saber que o esforço não é em vão é um santo empurrão.

    Saber que não dá para sentar e chorar também é uma ajuda e tanto: ou você anda para a frente ou para trás, mas desistir e ficar por ali mesmo não dá, pois não é permitido acampar no caminho. Em nosso caso, nossos cérebros berravam "para a frente!", pois (sabiamente) reservamos um hotel dentro do parque para as duas últimas noites, com cama de verdade, comida de verdade, chuveiro de verdade.

    Vislumbrar o hotel no horizonte após cinco horas de ribanceira foi a motivação de que precisávamos para completar os últimos quilômetros. Mas as Torres, o último passeio programado, ficaram para a próxima vez. Não houve dopamina suficiente que convencesse nossos cérebros a deixar o conforto do lobby quentinho, pisco sour em mãos, para encarar mais quatro horas de ribanceira...
    suzana herculano-houzel
    Suzana Herculano-Houzel, carioca, é neurocientista treinada nos Estados Unidos, França e Alemanha, e professora da UFRJ. Escreve às terças, a cada 15 dias, na versão impressa de "Equilíbrio".

    Claudia Collucci

    folha de são paulo

    Vidas sugadas pelos ralos


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    No primeiro dia do ano, Kauã brincava com a avó na piscina de um condomínio em Caldas Novas (GO), quando teve o braço sugado pelo ralo. Ficou dez minutos submerso até que conseguiram retirá-lo, inconsciente, da piscina. Morreu no sábado (4 de janeiro). Tinha sete anos.
    No mesmo dia, a 550 km dali, era enterrada a menina Mariana, 7, em Belo Horizonte (MG), pelo mesmo motivo: teve os cabelos sugados pelo ralo da piscina enquanto brincava em um tobogã de um clube da cidade. Foram 20 minutos de tentativas até conseguirem retirá-la da água já inconsciente.
    Duas mortes quase simultâneas que se somam a tantas outras que poderiam ter sido evitadas se as piscinas brasileiras tivessem um dispositivo de segurança que evita a sucção dos ralos. Quantas outras serão necessárias ocorrer para que esses dispositivos se tornem obrigatórios?
    Vários países, como Estados Unidos e Colômbia, já aprovaram leis sobre esse tema. Na Colômbia, a Lei de Segurança de Piscinas torna esses dispositivos obrigatórios em todas as piscinas, inclusive as residenciais.
    Mas não basta só a lei. Tem que ter fiscalização e punição para os responsáveis desses locais que estiverem fora dos padrões de segurança. Pais, sócios de clubes e condôminos precisam também estar atentos e cobrar os administradores desses locais não só para a proteção dos ralos como também para a presença de salva-vidas e outras medidas de segurança. A família de Kauã, por exemplo, diz que não havia salva-vidas no condomínio onde o menino se afogou.
    Segundo a Sobrasa (Sociedade Brasileira de Salvamento Aquático), o afogamento é a segunda causa de morte entre crianças até nove anos. As piscinas são responsáveis hoje por metade desses afogamentos, mas não se sabe quantas delas estão associadas à falta de segurança dos ralos .
    Também não há levantamento do número de crianças sequeladas. São muitas por aí vivendo em estado vegetativo pela falta de oxigenação no cérebro durante o afogamento.
    O verão está aí, as piscinas estão lotadas. Que as mortes de Kauã, de Mariana e de tantas outras crianças não tenham sido em vão. Que elas sirvam de alerta para prevenir outras.
    cláudia collucci
    Cláudia Collucci é repórter especial da Folha, especializada na área da saúde. Mestre em história da ciência pela PUC-SP e pós graduanda em gestão de saúde pela FGV-SP, foi bolsista da University of Michigan (2010) e da Georgetown University (2011), onde pesquisou sobre conflitos de interesse e o impacto das novas tecnologias em saúde. É autora dos livros "Quero ser mãe" e "Por que a gravidez não vem?" e coautora de "Experimentos e Experimentações". Escreve às terças, no site.

    Helio Schwartsman

    folha de são paulo
    Comércio e solidariedade
    SÃO PAULO - Sempre instigante, Rubens Ricupero fez em sua coluna publicada ontem na Folha algumas observações valiosas sobre a noção de progresso da história. Concordo com quase tudo, mas acho que ele foi um pouco apressado ao diminuir o papel do comércio como uma força capaz de promover a cooperação entre os povos.
    Steven Pinker sugere que o comércio foi e ainda é um poderoso agente da paz. Embora possa gerar desentendimentos ocasionais, a possibilidade de fazer negócios com estrangeiros altera a lógica por trás das relações entre grupos não aparentados.
    Durante a maior parte de nossa história evolutiva, sempre valeu a pena massacrar a tribo vizinha, desde que o fizéssemos em relativa segurança. A existência de outros clãs não apenas não nos acrescentava nada como ainda representava um risco, já que eles poderiam considerar que constituíamos uma ameaça para eles e tentar nos destruir. Na dúvida, atacávamos primeiro. É o que ainda fazem os chimpanzés selvagens.
    O comércio muda a matemática que nos punha nessa armadilha. A possibilidade de trocar bens faz com que o outro adquira valor para mim. Já não vale a pena matá-lo à primeira oportunidade. O jogo de soma zero dá lugar a um de soma positiva.
    É evidente, como sugere Ricupero, que o comércio não nos fará amar uns aos outros, mas nem sei se isso seria desejável. Se fôssemos todos poços de altruísmo que atribuíssem ao próximo o mesmo valor que damos a nós mesmos, estaríamos em maus lençóis. Em termos de logística social, faz todo sentido que a mãe se preocupe mais com seu filho do que com filhos de desconhecidos e canalize de forma nepotista e pouco solidária mais recursos para seu rebento. A isso nós chamamos de amor.
    A humanidade tem melhorado ao longo dos século e penso até que podemos falar em progresso moral, mas creio que existem limites biológicos para até onde podemos chegar.

      Eliane Cantanhêde

      folha de são paulo
      Intervenção já!
      BRASÍLIA - Não bastasse ser o último, ou estar na rabeira, do IDH, do ensino de matemática, do ensino de português, do saneamento básico e por aí afora, o Maranhão dos Sarney choca o país, quiçá o mundo, com atos de pura barbárie.
      Só os cineastas mais violentos, talvez nem eles, poderiam produzir cenas em que dissecam a perna de um preso (ou seja, sob a custódia do Estado brasileiro). Tiram a pele, depois músculos, veias, artérias, até o osso.
      Também só cineastas doentios, talvez nem eles, armariam o cenário, destacariam atores e filmariam pessoas (também sob a responsabilidade do Estado) sendo decapitadas.
      Onde nós estamos?
      Foram estupros e 60 mortes em 2013, e 2014 já começou com mais duas. A crise extrapolou as grades e foi parar nas ruas, onde vândalos atacaram ônibus e atearam fogo numa menininha na... "Vila Sarney". Ela morreu ontem. A mãe está mal.
      Meu pai nasceu em Pedreiras, o foco macabro é a penitenciária de Pedrinhas e essa nova crise não deixa pedra sobre pedra na biografia do patriarca José Sarney no seu Estado de origem. O vandalismo dos presos não é isolado. Apenas reflete a situação carcerária que, por sua vez, reflete a calamidade pública geral.
      Folheiam-se os jornais e encontram-se ali, entre os recordes do pior nisso, pior naquilo, outras muitas histórias horripilantes. Cito uma, porque o espaço é curto: os carros, carteiras, cadeiras e os materiais escolares que foram enviados pelo governo federal para a Prefeitura de São Luís, novíssimos, apodreceram debaixo de sol, chuva e descaso, sem jamais terem sido usados.
      Tudo se encaixa. Ontem mesmo, a empregada lá de casa comentou: "A moça da vizinha não sabe ler nem escrever. Pensei que não existia mais isso". De onde ela é? "Do Maranhão".
      A realidade supera a ficção mais macabra e soa patético o governo Roseana se irritar e responder à Procuradoria Geral que são "inverdades".
      Intervenção já!

        Carlos Heitor Cony

        folha de são paulo
        O barco verde
        RIO DE JANEIRO - Acabo de ler os originais do novo romance de Heloisa Seixas, que deverá ser lançado nos primeiros meses deste ano. Evidente que escreverei sobre ele, como escrevi quando ela estreou em livro com "Pente de Vênus". Acontece que o novo romance me causou um impacto que não sentia há muito. O fato de ser bem escrito e usar uma técnica surpreendente (não me lembro de ter lido um livro de ficção com a mesma construção revolucionária) seria bastante para colocá-lo na estante mais nobre da nossa literatura.
        Teria de destacar muitas passagens de uma história que começa como um diário pessoal e logo se transforma numa biografia emocionante, independente de ser ou não ser autorizada, clima e problemas do nosso tempo, um drama real que Shakespeare colocaria entre "os mil acidentes da carne".
        Há uma pequena passagem que é conhecida por muitos mas para mim foi um soco não na alma (que eu não tenho) mas nas vísceras obscenas de ateu assumido e, pelo menos nesse departamento, ple- namente realizado.
        O livro tem título inspirado num dos clássicos filmes de Bergman: "O Sétimo Selo", o homem devastado que encontra a Morte numa praia deserta e joga com ela uma partida de xadrez. Se perder, será levado por ela para a sombra final. O personagem de Heloisa nem tem a possibilidade de ganhar a partida, mas joga assim mesmo, enfrentando os xeques-mate do fantasma que sempre nos vence.
        Em dado momento, o personagem está numa clínica de recuperação e ouve um pastor perguntar se alguém na plateia não crê em Deus. Ele levanta a mão: não crê nem gosta de Deus. O pastor propõe uma situação limite: você está se afogando num oceano profundo e distante. Aparece um barco verde, mas você não gosta do verde e recusa a salvação.

          Vladimir Safatle

          folha de são paulo
          Uma política dos afetos
          A verdadeira tarefa política é a reconstrução de nossos afetos. Inebriados por discussões a respeito de sistemas de normas e instituições, demoramos muito tempo para perceber que a política é, acima de tudo, uma questão de mobilização de afetos. Discursos circulam e levam os corpos a sentirem de uma determinada forma, a temerem certas situações.
          A política é a arte de afetar os corpos e de levá-los a impulsionar certas ações. Devido a isso, nunca entenderemos nada das dinâmicas dos fatos políticos se esquecermos sua dimensão profundamente afetiva.
          Por exemplo, não é difícil perceber como, nas últimas décadas, uma máquina de medo e ressentimento foi colocada em funcionamento.
          Esses são, há tempos, os principais afetos que circulam no campo político. Medo do tempo que não conhecemos e que pode ser diferente do passado e do presente. Medo de ficar longe demais da segurança da "nossa terra", de ser assaltado, de ter sua propriedade violada, da morte violenta. Mas, principalmente, um ressentimento travestido de pessimismo prudente a respeito dos acontecimentos e da errância necessária à toda procura.
          A política baseada no ressentimento é, de fato, algo a ser pensado. Talvez possamos dizer que, em política, o ressentimento é sempre o sentimento mobilizado contra a errância.
          Quando um acontecimento ocorre, muitas vezes ele não instaura imediatamente uma nova ordem. Só em situações muito amadurecidas, e por isso mesmo muito raras, vemos essa passagem imediata de uma ordem a outra. Normalmente, acontecimentos são aquilo que instaura uma nova errância, com seus erros, suas perdas, seu tempo confuso.
          Esse tempo confuso é, em certas situações, onde acontecimentos ocorrem "cedo demais", praticamente inevitáveis. Contra ele, o ressentimento sempre dirá: melhor que nada tivesse ocorrido, melhor ter ficado na situação passada, por mais que ela fosse insatisfatória, ou seja, vamos dar um jeito de voltar à antiga morada, mesmo que ela esteja em ruínas. Basta ver o que hoje lemos a respeito das revoltas no mundo árabe.
          No entanto, esse tempo confuso produzirá sua própria superação, por mais que ela demore, por mais que refluxos ocorram, mas à condição de produzirmos novos afetos.
          Nesses momentos, cria-se uma divisão entre os que se voltam aos velhos afetos de sempre e aqueles capazes de adquirir uma nova confiança, uma nova força, mesmo quando o céu é turvo. Pois eles sabem que nunca haverá nova política com os velhos sentimentos de sempre.

          Para Nelson Ned, morto anteontem, o Brasil era 'a terra mais preconceituosa' que conhecia

          folha de são paulo
          'Quem passou a vida humilhado aprende a se defender', disse Ned
          Para Nelson Ned, morto anteontem, o Brasil era 'a terra mais preconceituosa' que conhecia
          Em entrevista exclusiva de 2013, o cantor falou sobre seus hábitos envolvendo armas, drogas e mulheres
          ANDRÉ BARCINSKIESPECIAL PARA A FOLHA
          Em uma de suas últimas entrevistas, realizada há cerca de dez meses, o cantor Nelson Ned alternava momentos de bom humor com lapsos de memória.
          Ned morreu anteontem, aos 66 anos. Sua condição física vinha deteriorando há seis anos, depois de sofrer um derrame que o deixou confinado a uma cadeira de rodas.
          Era um sujeito sarcástico e dono de um humor ácido, que não se importava em fazer piadas com a própria altura.
          "Depois de três filhos, fiz uma vasectomia. Sou pequeno, mas não sou burro!", disse Ned na entrevista realizada num sítio em Cotia que pertence a Neuma, sua irmã.
          Ned nasceu em 1947, em Ubá (MG). Foi o primeiro de sete filhos do casal Nelson de Moura Pinto e Ned d'Ávila Pinto. Era um bebê de tamanho normal. Quando completou quatro meses, seus pais começaram a perceber algo errado em seu crescimento. O bebê sofria de displasia espondiloepifisária, doença rara que causava nanismo e deformações esqueléticas.
          Foi um choque para os pais. Não havia nenhum caso de nanismo na família (os seis irmãos de Ned são normais). "Na escola zombavam de mim, mas minha mãe se recusou a me tirar da escola. Ela dizia: Vou criar meu filho para o mundo, e não um mundo para meu filho'", disse.
          Desde pequeno, Ned cantava muito bem. Ainda criança, conheceu o grande Ary Barroso, seu conterrâneo de Ubá. Ned sentou no colo do compositor e cantou "Risque", uma das canções de Ary. O compositor caiu na gargalhada quando o pequenino errou o verso "Afogue as saudades/ nos copos de um bar" e cantou "nos copos de Ubá".
          Nos anos 70, Ned virou um astro: fazia shows lotados no exterior, ganhou oito discos de ouro nos EUA e muito dinheiro. Tinha apartamentos de luxo no Rio e em São Paulo, andava em limusines e frequentava boates da moda, como o Gallery, em São Paulo. Bebia, cheirava cocaína e colecionava armas. "Quando ia ao Gallery, só queria saber de duas coisas: champanhe Dom Pérignon e pó."
          Vaidoso, cercava-se de belas mulheres e seguranças armados. Para sacanear os grã-finos da elite paulistana, que torciam o nariz quando viam aquele anão metido entrando no Gallery, Ned combinou com o DJ que lhe pagaria US$ 100 para tocar "Eu Não Sou Cachorro Não", de Waldick Soriano, quando chegasse à boate. "Você tinha de ver a cara de espanto do pessoal!"
          Sempre que se apresentava na Colômbia, Ned era visitado nos camarins por membros dos cartéis de drogas, que lhe ofereciam mulheres e cocaína. Disse ter conhecido Pablo Escobar, chefão do Cartel de Medellín: "Conheci, claro, cantei várias vezes pra ele. Mataram ele, né?" (Escobar foi morto em 1993).
          Ned sempre reclamou do preconceito: "O Brasil é a terra mais preconceituosa que conheço. O preconceito era contra o meu tamanho e meu estilo de música." O cantor afirmou que isso o ensinou a encarar qualquer plateia: "Quem passou a vida toda sendo humilhado aprende a se defender. Quando canto, me transformo, consigo ver o ar transformado em música. É uma sensação gloriosa."

          João Pereira Coutinho

          folha de são paulo
          Retratos de família
          Hoje vivemos o supremo paradoxo: nunca se tiraram tantas fotos; nunca elas tiveram tão pouco valor
          1. Fotografias: haverá coisa mais preciosa? Em tempos arcaicos, talvez. A minha avó costumava contar que o maior tesouro que trouxe da casa dos pais eram as fotos de família. Álbuns e álbuns com fotos em preto e branco, algumas coloridas (manualmente, claro) e impressas em cartão grosso. Todas elas insubstituíveis. Estranho tempo, esse, em que os retratos valiam tanto como ouro. Ou até mais que ouro.
          Hoje vivemos o supremo paradoxo: nunca se tiraram tantas fotos; nunca elas tiveram tão pouco valor.
          O jornal "Guardian" avisa que 2014 será o ano em que o mundo vai bater recordes no número de fotos tiradas: qualquer coisa como 3 trilhões. Esse excesso não pode ser coisa boa: a facilidade com que hoje se tiram fotos é diretamente proporcional à facilidade com que nos esquecemos delas.
          Uma amiga, aliás, contava-me há tempos uma história instrutiva: em três anos de maternidade, ela acumulara mais de mil fotos do primogênito. Até descobrir que não tinha nenhuma para mostrar em papel ou em moldura --permaneciam todas na memória do laptop, ou na câmera, ou no celular. À espera de melhores dias.
          Três trilhões de fotos para 2014, diz o "Guardian". E, no fim de contas, é como se o mundo não tirasse uma única foto que realmente importe.
          2. Só existem dois tipos de pessoas que se preocupam genuinamente com Deus: os crentes e os ateus. Os primeiros por razões óbvias. E os segundos por razões ainda mais óbvias: a não crença, sobretudo quando levada a excessos de negação, converte-se sempre numa forma de crença e até de afirmação.
          O escritor Kingsley Amis é um bom exemplo. Um dia perguntaram-lhe por que motivo ele não acreditava em Deus. Amis corrigiu a pergunta e ripostou: "Não é bem não acreditar; é mais detestá-lo". Haverá forma mais sofisticada de fé na transcendência?
          Não admira por isso que já existam igrejas ateias nos quatro cantos do mundo ocidental. Leio que a moda começou em Londres, com a Assembleia de Domingo. A autora do artigo publicado no site Salon, Katie Engelhart, foi assistir a uma "celebração". E encontrou um mimetismo perfeito das celebrações religiosas tradicionais, com um "pastor", um "sermão", momentos de "oração" --no fundo, a busca de um sentido de "comunhão" para o rebanho ateu.
          A coisa fez sucesso em Londres, espalhou-se pelo Reino Unido, emigrou para os Estados Unidos (e para a Austrália) e, palavra de honra, até já teve a sua primeira "reforma protestante": em Nova York, dissidentes da Assembleia de Domingo resolveram fundar a sua própria "igreja" por entenderem que a original não era suficientemente ateia.
          Imagino que, no futuro, outras "igrejas" se seguirão, dispostas a espalhar a "palavra" (mas qual "palavra"?) em adoração ao "não-deus". O fenômeno é interessante e só confirma o que os clássicos da ciência política sempre escreveram sobre o assunto: a negação da religião estabelecida não liberta os homens da sua condição de "animais religiosos".
          Que o diga o filósofo Raymond Aron, por exemplo, para quem o nazismo e o comunismo não eram mais do que "religiões seculares", dispostas a oferecer aos seus "fiéis" o Reino da Raça (ou do Proletariado) em substituição do Reino dos Céus.
          As igrejas ateias, pelo menos, sempre me parecem mais inofensivas e até divertem na sua óbvia palhaçada.
          3. Antes de Saramago ou de Cristiano Ronaldo, e sabendo-se que Fernando Pessoa foi uma descoberta tardia da década de 1980, Portugal tinha dois nomes para oferecer ao século 20: Amália Rodrigues e Eusébio.
          Amália, a única fadista que verdadeiramente transcende o fado, morreu em 1999. Não deixou herdeiros, apesar de talentos maiores como Carminho ou Camané.
          Eusébio morreu agora, aos 71, e o país perdeu o segundo rosto que iluminava a vida dos lusos nos tristes anos da ditadura salazarista.
          Logicamente, nunca vi Eusébio jogar. Mas recordo as lágrimas do meu pai sempre que ele relatava as lágrimas do próprio Eusébio depois da eliminação de Portugal nas semifinais da Copa de 1966 pela Inglaterra.
          Pergunto honestamente se, hoje, existe algum jogador profissional que, perante uma eliminação idêntica, chore copiosa e sinceramente como Eusébio no Estádio de Wembley. Duvido.

          José Simão

          folha de são paulo
          Voltei! Botaram a rede pra lavar!
          E diz que, com a morte do Nelson Ned, o único anão celebridade do Brasil agora é o PIB do Mantega! Rarará!
          Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E 2014 mandou avisar que só vai entrar mesmo depois do Carnaval! Alguém tem um barranco aí pra eu poder me encostar? Tô com preguiça até de passar manteiga no pão!
          Volta ao trabalho: depois de comer tudo aquilo, voltamos a comer por quilo! Já tô com saudades de 2013. Principalmente dos últimos dez dias! Voltei da Bahia! Fui despejado da rede. Botaram a rede pra lavar! E a Bahia é boa porque acabou o Réveillon, já começa o Carnaval. Não tem aquele intervalo insuportável!
          E a Dilma na praia, de biquíni e boné? Vou usar a foto dela de biquíni pra espantar pernilongo! Rarará!
          E como disse o Marcelo Rubens Paiva, a Dilma foi a única brasileira que encontrou uma praia limpa e deserta.
          E sabe o que a Dilma gritou na praia pro netinho dela? "Cuuuiiiidado, cuidado pra não pisar no PIB". Rarará! E diz que, com a morte do Nelson Ned, o único anão celebridade do Brasil agora é o PIB do Mantega! Rarará!
          E essa vai ser a Semana da Dieta! Semana Nacional Pra Fazer Força pra Calça Fechar! Dá três pulos e no terceiro enfia. VUMPT!. Semana do filé de frango. Pra diabético e sem glúten!
          E uma amiga alugou uma casa na praia e perguntou: "Tem rede?". "Tem, se a senhora trouxer!". Rarará! E uma amiga passou a virada virada pra Lua! E um leitor mandou um recado direto de Ubatuba: "Não comi, mas também não dei. Empate fora de casa é vitória".
          E depois da grande virada, todo mundo se virando. Pra pagar os fogos. Chegou a conta dos fogos. Você pensa que os fogos foram de graça? Os impostos já vêm embutidos. Sabe aquela translumbrante estrela roxa que você achou linda? Era o seu IPTU explodindo nos céus! Sabe aquela chuva de estrelinhas laranjas? É o IPVA! Rarará.
          E uma pergunta às minhas leitoras: entraram ou foram entradas? Rarará! É mole? É mole, mas sobe!
          O Brasil é Lúdico! Olha essa num supermercado em Lauro de Freitas, Bahia: "Saída de emergência. Favor manter a porta DESOBSTACULADA!". Essa "desobstaculada" é da família do "por obséquio". E na Estrada do Coco achei o melhor rio pro Ano-Novo: "Ponte sobre o Rio SONRISAL". Rarará!
          Nóis sofre, mas nóis goza!
          Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

            Janio de Freitas

            folha de são paulo
            Sentença dupla
            Nos presídios há monstros humanos, mas outros tantos são só humanos; igualá-los é uma injustiça terrível
            O presídio de Pedrinhas, no Maranhão, com as 14 decapitações de presos por outros presos, foi que conquistou status de escândalo, mas foi o Presídio Central em Porto Alegre que no dia 30 passado motivou notificação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao Brasil, com prazo de 15 dias para sanar as monstruosidades ali impostas aos presos.
            Resumo mínimo: o presídio comporta 1.985 presos, amontoa 4.590; esgoto a céu aberto atravessa o que seria o pátio; o comando real há muito tempo é exercido por facções criminosas. De Norte a Sul, portanto, o mesmo sistema. Não só nos presídios. Também o Judiciário e o Ministério Público se reproduzem no Brasil todo.
            Os governos estaduais e o federal são os acusados de sempre. Por merecimento. Mas por exagero acusatório também, como é igualmente de praxe. A nenhum juiz, desembargador ou integrante de tribunal superior falta conhecimento das condições criminosas vigentes em presídios brasileiros. A nenhum promotor e nenhum procurador do Ministério Público Federal falta o mesmo conhecimento. O padrão geral em suas atividades funcionais, no entanto, é este: nenhuma demonstração prática de interesse pela existência dessas masmorras medievais, configuráveis como crimes tanto na legislação brasileira de direitos humanos, como em tratados internacionais de que o Brasil é signatário.
            E o conhecimento indiferente é apenas o começo. Aqueles monturos humanos se formam nos presídios por ação de promotores e julgadores, em princípio convictos da razão dada a seus atos pelo autos dos processos. E pronto, acabou-se. Vamos ao próximo.
            Mas daí resulta que as condenações no Brasil são mentirosas. A lei e as sentenças referem-se a anos de reclusão. O cumprimento das penas inclui, porém, outra condenação, implícita na primeira e não declarada, logo, ilegal: a pena cronológica de muitos milhares será cumprida nas condições mais degradantes, física e moralmente. A pior condenação, o maior sofrimento, não estão na sentença.
            Dizia há pouco Gilmar Mendes:..."essas cadeias em que os presos fazem necessidades uns sobre os outros", palavras de ministro do Supremo Tribunal Federal. Gilmar Mendes a quem se deve, aliás, o programa de inspeção a presídios e verificação de penas concluídas, tarefa que levou representantes do Conselho Nacional de Justiça a desvendar o presídio maranhense. Em contrapartida às palavras e medidas de Gilmar Mendes, também há pouco dizia um ex-desembargador em seu comentário radiofônico, sobre determinados presos:..."concluída a reabilitação"... --haja hipocrisia.
            Nos presídios há muitos monstros humanos, para os quais é difícil dirigir alguma piedade. Mas outros tantos são apenas humanos, humanamente criminosos. Igualá-los na perversidade da condenação dupla e degradante é uma injustiça terrível em nome da justiça. E faz ser o caso de perguntar-se se a degradação, nessas circunstâncias, atinge só os que estão dentro dos presídios.