domingo, 2 de fevereiro de 2014

Livro de ensaios revela embates da literatura russa do século 19 - RUBENS FIGUEIREDO

folha de são paulo
Romance de formação
Como a Rússia viu crescer sua literatura
RESUMO A força da literatura russa provém em grande parte da integração de seus autores ao debate sobre o destino do país. "Antologia do Pensamento Crítico Russo (1802-1901)" exprime em 22 ensaios, de nomes como Tolstói e Bielínski, o embate entre a modernização ao estilo ocidental e o apego às raízes nativas.
*
Vem de muito tempo a noção de que a literatura possui um estatuto de exceção entre as atividades humanas. Ocuparia uma dimensão tão específica que poderia bastar-se a si mesma e sobre ela não teriam efeitos relevantes os fatores que atuam no restante da vida social. E mais: supor que tais efeitos sejam relevantes significaria diminuir a literatura, empobrecê-la.
Vista do presente, a literatura russa parece que nasceu para pôr em questão essa tese, hoje quase consolidada como norma. Pois a surpresa inicial com a quantidade de obras memoráveis dessa literatura, obras capazes de resistir às transformações históricas e até de ganhar mais força com elas, nos leva espontaneamente a perguntar de onde provém tudo isso.
O livro "Antologia do Pensamento Crítico Russo (1802-1901)" [vários tradutores, Editora 34, R$ 76, 608 págs.], organizado por Bruno Barretto Gomide, permite entender melhor a questão.
Podemos perceber que a vida intelectual russa se configurou como uma vasta polêmica em torno do destino de um país em formação, cujos horizontes pareciam abertos para muitas direções e possibilidades.
Divulgação
O escritor russo Lev Tolstói
O escritor russo Lev Tolstói
A literatura russa se integra organicamente a essa polêmica. Daí provém grande parte de sua força e de seu alcance, pois por meio de tais debates ela se enraizou na dinâmica da sociedade. Os autores não viviam isolados em bolhas de uma genialidade inexplicável. O livro, recém-lançado, reúne extratos dessa polêmica e assim abre caminho para refletirmos de modo mais racional sobre o fenômeno da literatura russa.
É UMA CRIANÇA
Um ponto de partida pode ser um trecho do ensaio de Vissarion Bielínski, de 1846, presente no volume. Após afirmar que a literatura do país "ainda é uma criança", ele propõe: "Por isso nossa literatura, semelhante a nossa sociedade, apresenta um espetáculo de possíveis contradições, contraposições, extremos e esquisitices. Isso porque ela não se iniciou por si mesma, mas foi, de início, transplantada de um solo alheio para o nosso". Portanto, uma forma social foi transplantada em bloco para a Rússia, de uma só vez. E, dentro dela, veio a literatura.
Essa forma social e seus conteúdos (a literatura é um deles) tendem a ser percebidos como invasores, que tomam o lugar de formações sociais e expressões culturais próprias. Em maior ou menor medida, um sentimento de opressão estará sempre associado a esse processo e à presença de tais formas sociais, mesmo quando descritas como progresso. A modernização, ou seja, a introdução das relações capitalistas, é vivida em geral como um trauma.
Se Bielínski diz que a literatura russa "ainda é uma criança", outro autor, Piotr Tchaadáiev, em 1836, explorara a mesma imagem por outro ângulo: "Assimilamos apenas ideias completamente prontas e por isso aqueles vestígios indeléveis -que se depositam nas mentes por meio de um desenvolvimento consequente do pensamento e criam uma força intelectual- não sulcam nossas consciências. Crescemos, mas não amadurecemos [...] Parecemos aquelas crianças a quem nunca fizeram raciocinar sozinhas, de modo que, quando crescem, não têm nada de próprio". E mais: "Viemos ao mundo como filhos bastardos".
A noção de "povos avançados" e "povos atrasados", repetidas por Tchaadáiev, faz paralelo com as imagens de adulto e criança, em que a história procede à semelhança das etapas da vida do corpo. Assim, do ponto de vista da Rússia, a história tende a parecer uma corrida desigual em que os países tidos como modelos jamais poderão ser alcançados.
Também por isso chama atenção o ensaio de Lev Tolstói de 1859, cujo título basta para nos situar em outra perspectiva: "Quem Deve Aprender a Escrever com Quem: as Crianças Camponesas Conosco ou Nós com as Crianças Camponesas?". Aqui, a criança -e ainda por cima camponesa- ocupa a posição oposta e Tolstói inverte a direção da corrida. "Vemos nosso ideal à frente, quando ele está atrás."
EDUCABILIDADE
Outro autor, Ivan Kiriêievski, em 1852, arma sua argumentação por uma via diferente: "Havia a opinião geral de que a diferença entre ilustração da Europa e a da Rússia é apenas de grau e não de caráter, e menos ainda do espírito e dos princípios básicos da educabilidade. [...] diziam que antes, entre nós, havia apenas a barbárie, que nossa educação tinha começado apenas a partir do momento em que passamos a imitar a Europa".
O alcance do argumento é maior do que pode parecer, pois ele postula a possibilidade de um caminho alternativo para a sociedade se aprimorar, a partir de formas sociais enraizadas na vida popular.
Vale a pena citar novamente Kiriêievski: "Então será possível na Rússia uma ciência baseada em princípios originais, diferentes daqueles que nos propõe a ilustração europeia. Então será possível na Rússia uma arte que floresça a partir de uma raiz nativa. Então a vida social na Rússia será firmada numa direção diferente daquela que lhe pode transmitir a formação ocidental".
Muito por alto, temos aqui uma ideia do rico e profundo debate entre as tendências eslavófilas e ocidentalistas, que marcou a Rússia no século 19 e, como diz Bruno Gomide, sobreviveu de outras formas no século 20, prolongando-se até hoje. Não admira, pois tal debate exprime com pertinência os dilemas históricos de fundo da Rússia e de países em situação similar.
Cumpre ressaltar que, se Tchaadáiev enfatiza expressões como "educação universal", Kiriêievski prefere ser mais específico e dizer "formação ocidental" e "ilustração europeia". Assim, de um lado, o ocidentalista exprime o sentimento de "atraso" na grande corrida da "civilização universal", e o eslavófilo dá voz ao sentimento de opressão, da coerção de uma forma imposta de fora, em condições sempre desvantajosas para a Rússia. Latente está o questionamento da pretensão de universalidade e de superioridade de formas sociais e culturais, a rigor particulares de uma pequena região do mundo.
De fato, a literatura local seria percebida pelos russos apenas como mais um componente do suposto atraso do país, caso não tivesse se incorporado a tal polêmica. Porém isso se deu menos em função do esforço individual dos autores do que pela pressão das expectativas da sociedade em torno deles.
Dobroliúbov, em seu clássico ensaio "O Que É o Oblomovismo?", de 1859, escrito quando tinha 23 anos, ao passo que argumenta em defesa de "Oblómov" (Cosac Naify, 2012), de Ivan Gontcharóv, discute a relação entre a literatura e a sociedade na Rússia: "De forma alguma concordamos que o poeta que despende seu talento em descrições de imagens de folhinhas e riachinhos possa ter o mesmo significado daquele que, com igual força de talento, é capaz de reproduzir, por exemplo, fenômenos da vida social".
A mesma expectativa pode, no entanto, se manifestar em termos mais sutis. Como no texto de Pável Ánnenkov, de 1856: "A plenitude e a vitalidade de conteúdo não podem ser obtidas de outra forma senão por meio da combinação do talento criativo com uma compreensão ampla e multilateral do tema escolhido [...] cada artista deve estar, em sua esfera, em plena posse dos materiais relacionados ao seu tema". E assim a obra "se torna uma expressão de sua época, o seu melhor testemunho e um importante documento histórico".
EQUIPE
"Antologia do Pensamento Crítico Russo" é fruto do trabalho de uma equipe de excelentes pesquisadores e tradutores de russo, de centros universitários de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, como Denise Sales, Sonia Branco, Renata Esteves e outros, com a organização de um grande especialista no assunto, Bruno Gomide. O trabalho de todos eles é um alerta para quem ainda não se convenceu da seriedade e da relevância da universidade brasileira. Por isso me atrevo a concluir este texto com uma pequena polêmica, bem a calhar, à luz do livro aqui apresentado.
Acho difícil subestimar o fato de que o governo dos EUA patrocinou pesadamente durante décadas os estudos de russo em suas universidades, em função de seu combate contra a União Soviética, uma potência em forte ascensão pelo menos até a década de 1970. Essas pesquisas trazem as marcas desse interesse histórico determinado.
Não vejo como supor uma validade científica, universal, para suas teses, seus postulados e a maneira como os dados são arranjados e interpretados nesses trabalhos. Seria muito proveitoso para a universidade brasileira elaborar uma interpretação da experiência histórica da literatura russa desde a perspectiva do Brasil e da América Latina.
Um panorama bem diferente deve surgir. Mudanças de fundo e de contorno que nos ajudarão a entender e questionar nossas opções nessa muito suspeita corrida de crianças contra adultos.
RUBENS FIGUEIREDO, 57, é professor, escritor e tradutor. Transpôs do russo, entre outros, "Guerra e Paz" (Cosac Naify), de Lev Tolstói, e escreveu o romance "Passageiro do Fim do Dia" (Companhia das Letras

O mini Jorge Amado sorriu para mim - J.R. DURAN

folha de são paulo
"O Bóris não quer morrer, Zélia."
A voz era do Jorge Amado, e o comentário em voz alta tinha sido dirigido para Zélia Gattai. Cada um estava em uma sala dentro da casa, escrevendo, enquanto eu esperava do lado de fora, sentado na varanda, a hora certa para fotografar o escritor.
Estávamos em 1994. A casa era a da rua Alagoinhas, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador, casa que ele tinha construído com a venda para o cinema dos direitos de "Gabriela, Cravo e Canela".
J.R. Duran/Acervo Pessoal
Jorge Amado autografa exemplar de "Navegação de Cabotagem" para J.R. Duran
Jorge Amado autografa exemplar de "Navegação de Cabotagem" para J.R. Duran
Na época eu morava em Nova York e fui contratado pela Standard Ogilvy, uma agência no Brasil, com a missão de fotografar Jorge Amado para uma campanha publicitária do cartão de crédito American Express.
A tarefa não era simples; normalmente as fotos publicitárias para o cartão eram feitas por Annie Leibovitz, uma das feras -e um dos meus ídolos- da fotografia mundial. Por reentrâncias e saliências da vida (questão de agenda, se falou), ela não poderia fazer esse trabalho. Eu teria de entrar no seu lugar e, claro, mimetizar seu estilo.
Era uma tarefa bastante inglória, tanto quanto seria a de um reserva do Barcelona ter que entrar no lugar do Lionel Messi e fazer dois gols nos últimos 15 minutos de um jogo de futebol.
No dia do trabalho, chegamos antes da hora combinada e nos pediram, gentilmente, para esperar um pouco. Foi aí, tomando um cafezinho, que ouvi a frase.
"O Bóris não quer morrer, Zélia." "Que safado", respondeu ela.
Demorei alguns minutos para entender que Jorge Amado comentava alguma coisa que estava escrevendo, e que eu tinha o privilégio de presenciar esse fenômeno criativo em que os personagens começam a ter vida própria e vão traçando eles mesmos seu destino. Os escritores costumam dizer que, nesse momento, a magia do ato de escrever atinge seu ápice.
Só anos mais tarde me dei conta de que naquele instante ele deveria estar lidando com o protagonista de um livro que nunca seria concluído: "Bóris, o Vermelho".
Na hora certa, Jorge Amado se submeteu a todas as solicitações. Foi simpático, gentil e educado, mesmo com os constantes pedidos que eu fazia ao tentar achar a imagem que, imaginava, passaria à história da fotografia publicitária dos cartões de crédito.
Aproveito sempre, quando tenho a oportunidade de fotografar alguma celebridade, para fazer alguns registros para um livro que, desconfio, nunca será publicado.
Dessa vez, além de Jorge sozinho e ao lado de Zélia, pedi autorização para fazer algumas fotos retratando o escritor em seu lugar de trabalho. Com paciência, ele aceitou. Uma forte luz iluminava as folhas de texto colocadas sobre uma mesa, que me surpreendeu pelo seu tamanho reduzido.
Em certo momento, o que me pareceu o sinal para que o deixasse em paz, ele me deu um exemplar de "Navegação de Cabotagem" autografado com um generoso "Para J.R. Duran, mestre da fotografia, um obra de Jorge Amado. 1994".
O tempo passou e voltei à Bahia para um outro trabalho. Fiz uma série de fotos de moda para uma revista italiana. A editora, uma moça divertida e culta, quis conhecer o Pelourinho e, como não, entramos no casarão da Fundação Casa de Jorge Amado.
Uma prateleira, encostada em uma parede, alinhava bonecos de todos os tamanhos reproduzindo a imagem do escritor. Para minha surpresa, uma das fotos que tínhamos feito para o American Express -a de Jorge Amado sentado numa rede laranja, vestindo shorts azuis, com uma camisa florida, chapéu de palha e chinelos brancos com listras azuis, segurando um bastão de madeira- tinha se convertido em um boneco de barro, daqueles feitos pelo Mestre Vitalino. O escritor, com não mais do que dez centímetros de altura, estava lá sorrindo para mim.
Sem querer querendo, tinha entrado na vida de Jorge Amado.
J.R. DURAN, 61, é fotógrafo, editor da "Rev.Nacional" e autor do romance "Cidade sem Sombras" (Benvirá, 2013

Pacientes fazem "poupança da beleza" de células para uso estético no futuro - Giuliana Miranda

folha de são paulo

Pacientes fazem "poupança da beleza" de células para uso estético no futuro

Um serviço que congela e armazena células jovens e saudáveis para serem usadas em tratamentos estéticos no futuro –apresentado pela empresa responsável como uma "poupança da beleza"– já está disponível nos consultórios de São Paulo. Especialistas na área, no entanto, ainda se dividem quanto à validade e à utilidade desse tipo de procedimento.

Isso porque, embora existam pesquisas com resultados bem-sucedidos, uma boa parte das possíveis aplicações das células preservadas ainda está longe de sair dos laboratórios. E, as que já são aprovadas e têm aplicações efetivas no exterior, ainda não tiveram seus resultados validados para serem realizadas regularmente no Brasil.
"Ainda são necessários estudos para que esses tratamentos sejam desenvolvidos e usados rotineiramente, mas os resultados das pesquisas feitas no exterior são excelentes. Estamos trabalhando para desenvolver isso no Brasil também", rebate Andresa Forte, cientista da TechLife, empresa que presta o serviço e é um braço da CordCell, que armazena células-tronco do cordão umbilical.
Embalado pelo sucesso da técnica lá fora, a grande aposta da companhia são os fibroblastos, as células produtoras de colágeno –um dos principais "ingredientes" da firmeza da pele.
Editoria de Arte/Folhapress
Nos EUA, a FDA (agência que regula remédios e alimentos) aprovou o uso de uma técnica que usa os fibroblastos para corrigir rugas e depressões na pele.
Para isso, é retirado um pequeno pedaço de pele do paciente, preferencialmente de uma área pouco exposta ao Sol, para minimizar as chances de mutações. Depois, essas células são cultivadas em laboratório e reinjetadas, corrigindo as imperfeições.
Embora as atuais aplicações de colágeno, ou até de botox, já consigam bons resultados, as empresas apostam na maior durabilidade do método e na menor ocorrência de alergias ao usar as próprias células da pessoa.
A TechLife está montando um protocolo para tentar validar uma técnica semelhante à aprovada nos EUA para uso no Brasil. Além dos fibroblastos, a empresa também armazena outros tipos de material, com ênfase sobretudo nos que podem ser derivados em células-tronco: gordura e polpa do dente de leite.
Convidado pela TechLife para elaborar protocolos que validem as aplicações dos fibroblastos e outras células no Brasil. o geneticista Alysson Muotri, professor da Universidade da Califórnia em San Diego, diz que o armazenamento das próprias células em um banco privado é como um "seguro saúde" e vai além das questões estéticas.
"Pode ser que você nunca use. Mas, se precisar, pode estar ali o diferencial para salvar a sua vida. Os bancos públicos são bons, mas, para quem tem condições, guardar as próprias células é mais vantajoso", diz. "Mas sou uma pessoa cética. Estou trabalhando com muito rigor na questão da validação."
Ele reconhece que no Brasil ainda há desconfiança na parceria de cientistas com empresas privadas, mas diz que essa é uma oportunidade que traz benefícios para ambos os lados.
APOSTA
Para a geneticista da USP Lygia da Veiga Pereira, esse tipo de serviço ainda é uma "aposta sem garantias".
"Célula-tronco é uma expressão que vende. Há muitas pesquisas promissoras na área, mas isso não significa que elas vão necessariamente resultar em uma terapia com uso prático. Já vimos muita coisa que em laboratório parecia linda, mas, quando começou a ser usada na vida real, não deu em nada."
Segundo a cientista, o fato de uma técnica ter tido sucesso em um laboratório não significa que, necessariamente, outras semelhantes terão os mesmos resultados.
"Quando se trata de células, há muitas variáveis em jogo. Qualquer mudança no método, por menor que seja, pode representar uma alteração no resultado final", diz.
CAUTELA
Embora não tenha se pronunciado especificamente sobre o caso, o CFM (Conselho Federal de Medicina) já emitiu uma nota técnica recomendando que os médicos tenham "cautela na divulgação do uso de células-tronco em procedimentos estéticos".
A Sociedade Brasileira de Dermatologia indicou como porta-voz a médica Marisa Gonzaga, professora da Faculdade de Medicina do ABC, que é ligada à TechLife.
"Hoje ainda não há uma definição quanto a isso [as aplicações práticas], mas tudo indica que os resultados são excelentes", disse a médica, que participa da elaboração do estudo de validação dos fibroblastos no Brasil. 
'Seguro' de células tem benefícios, diz geneticista
DE SÃO PAULO
Convidado pela TechLife para elaborar protocolos que validem as aplicações dos fibroblastos e outras células no Brasil. o geneticista Alysson Muotri, professor da Universidade da Califórnia em San Diego, diz que o armazenamento das próprias células em um banco privado é como um "seguro saúde" e vai além das questões estéticas.
"Pode ser que você nunca use. Mas, se precisar, pode estar ali o diferencial para salvar a sua vida. Os bancos públicos são bons, mas, para quem tem condições, guardar as próprias células é mais vantajoso", diz. "Mas sou uma pessoa cética. Estou trabalhando com muito rigor na questão da validação."
Ele reconhece que no Brasil ainda há desconfiança na parceria de cientistas com empresas privadas, mas diz que essa é uma oportunidade que traz benefícios para ambos os lados.

Marcelo Gleiser

folha de são paulo
Buracos negros em crise?
Stephen Hawking quer salvar a relatividade e a física quântica decretando o fim dos buracos negros
Buracos negros são objetos extremamente estranhos. Imagine uma região do espaço de onde nada pode escapar, nem a luz. Essa é a ideia por trás dos buracos negros, uma consequência da teoria da relatividade geral de Einstein, que diz que a força da gravidade pode ser interpretada como sendo devida à curvatura do espaço em torno de uma massa: quanto maior a massa, mais curvo o espaço e mais intenso o puxão gravitacional.
Einstein nunca foi fã dos buracos negros. E com boa razão. Normalmente, buracos negros são restos de estrelas que gastaram o seu combustível e sucumbem à atração gravitacional de sua própria massa: feito um balão que implode, vão ficando cada vez menores e mais densas, encurvando o espaço cada vez mais à sua volta, até que, no centro de tudo, a gravidade fica infinitamente forte: essa é a singularidade, o ponto onde a teoria de Einstein deixa de funcionar. Einstein e outros achavam que algo deveria ocorrer antes de se chegar na singularidade.
Buracos negros são cercados pelo "horizonte de eventos", que delimita seu poder atrativo: algo que passa de lá não escapa mais. Por outro lado, se alguém cai num buraco negro, não percebe nada ao passar pelo horizonte de eventos, fora a força cada vez maior em direção ao centro. Isso é consequência do chamado princípio de equivalência, de Einstein. Existe, portanto, uma assimetria no buraco negro: caindo, não percebemos o horizonte de eventos, mas, se tentarmos sair de dentro dele, não conseguimos.
Ao menos, essa é a teoria aceita hoje. As coisas complicam quando incluímos a física quântica na descrição dos buracos negros. Stephen Hawking mostrou que a física quântica implica que buracos negros evaporam aos poucos, expelindo parte da matéria de seu interior. Imediatamente, surgem duas questões: se a matéria que cai dentro é organizada (por exemplo, um livro, um sapo), mas escapa apenas como radiação, o que acontece com toda a informação? É perdida? Se for, isso viola a física quântica. E se o buraco negro evaporar totalmente? Ficamos com a singularidade exposta, um ponto absurdo, sem sentido?
A crise põe os dois pilares da física moderna --a física quântica e a relatividade-- em pé de guerra. Em 2012, John Polchinski, da Universidade da Califórnia, sugeriu uma solução que piorou as coisas: talvez o horizonte de eventos seja uma espécie de muralha de fogo, devido a todas as partículas que evaporam do buraco negro e perdem contato com suas irmãs no interior. Se a muralha existir, violaria o princípio de equivalência, pois quem passasse por ela saberia onde está o horizonte de eventos. Nesse caso, Einstein estaria errado. A alternativa seria aceitar que informação é perdida quando cai no buraco negro, violando as leis da física quântica.
Para complicar, na semana passada Hawking sugeriu uma solução ainda mais dramática: talvez o horizonte de eventos não exista e seja só um "horizonte aparente". Hawking quer salvar a relatividade e a física quântica abolindo os buracos negros! Por ora, sabemos apenas que a controvérsia seguirá por um bom tempo. Afinal, em jogo estão as duas teorias mais preciosas da física. Será que uma terá que ceder?

    Carlos Heitor Cony

    folha de são paulo
    Romance sem palavras
    RIO DE JANEIRO - Zapeando pelo guia de filmes, dei com o resumo de um filme bem ordinário, "Havana", que tem passado com frequência na TV a cabo. Com Robert Redford, a produção tentava reproduzir o clima e o dilema final de "Casablanca", com os últimos dias da ditadura de Batista e a chegada dos revolucionários liderados por Fidel Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos numa contrafação de "Casablanca".
    Já disse que revejo o filme por um motivo tolo: ouvir o bolero "Me Voy al Pueblo", que tanto custei a identificar, só o conseguindo em Paris, quando o ouvi numa calçada do Quartier, justo na esquina das ruas de L'Harpe e Saint Severin.
    Em Paris, comprei diversos CDs com músicas antigas e lá estava o bolero que eu caçava havia mais de dois anos. Mas, ao ler o resumo da história, vi que havia ali o final que inconscientemente eu procurara para um romance meu.
    A situação do meu romance, embora com clima, elementos e mensagens totalmente diferentes, repete até certo ponto o final desses dois filmes, "Casablanca" e "Havana", um triângulo amoroso, quando um dos envolvidos faz a opção da renúncia.
    Eu havia terminado o romance com um final feliz. Ficou bonito, mas falso. Quando me lembrei do final dos filmes, achei que ali estivesse o que eu queria. Ao contrário dos filmes, no meu romance o importante é um quarto ângulo, inesperado porque sua história não é contada. Mas há a mesma renúncia do personagem principal, um ex-padre que, desconfiando de que a mulher amasse outro, decide se abrigar num mosteiro beneditino.
    Mudei tudo, porém. Também o amante, convencido de que poderá ser feliz, tem uma surpresa. A mulher ama outro homem, antes mesmo do amante e do marido.
    O final combina em tudo com os meus finais. O livro ficou realmente meu.

    Senhor do tempo - Stephen Hawking em 120 minutos - JOSÉ EDELSTEIN

    folha de são paulo
    Senhor do tempo
    Stephen Hawking em 120 minutos
    JOSÉ EDELSTEINTRADUÇÃO CLARA ALLAINRESUMO Em visita à Universidade de Cambridge, físico argentino entrevista o cientista mais popular da atualidade. Um retrato da vida e do pensamento de Stephen Hawking, que voltou ao noticiário nesta semana ao negar, em novo artigo, a existência dos buracos negros, contrariando conclusões de 40 anos de suas próprias pesquisas.
    Os corredores dos pagodes modernos que compõem o Centro de Ciências Matemáticas da Universidade de Cambridge convidam ao assombro. No primeiro andar, uma porta se destaca em meio à coreografia confusa criada pela infinidade de salas idênticas. É a única que não tem maçaneta; abre-se com um código numérico, e nela ainda se veem quatro furinhos nos quais, até há pouco, parafusos sustentavam uma discreta placa dourada, com 17 caracteres negros gravados em tipografia clássica, em letras maiúsculas, dizendo "LUCASIAN PROFESSOR".
    A placa percorreu uma breve distância até parar na porta de Michael Green, um dos pais da teoria das cordas. O mesmo rótulo tinha sido fixado, em 1669, à porta de um jovem professor universitário de apenas 26 anos que respondia pelo nome de Isaac Newton. A partir daí, ser titular da cátedra Lucasiana converteu-se em distinção superlativa, legendária, compartilhada por gigantes da história da ciência. Como aquele que me aguarda atrás da porta da sala B1.07, Stephen William Hawking.
    Se um encontro com Hawking é sempre aguardado com ansiedade máxima, a minha ansiedade se viu redobrada pela frustração da primeira tentativa.
    Algumas semanas antes, eu tinha visita marcada à sua casa, mas um problema de última hora causou seu cancelamento. Foi preciso trocar o ambiente sóbrio e acolhedor da residência de Hawking pelo de sua sala de trabalho, luminosa e moderna. Em seu lar, eu o teria encontrado, como anos antes, mais descontraído, diante de estantes de madeira, nas quais livros convivem com desenhos que lhe são enviados por dezenas de crianças do mundo todo e com algumas primeiras edições que ele coleciona, e ouvindo Wagner. "Ninguém conseguiu, nem antes nem depois dele, transmitir tanta emoção com a música."
    DOENÇA Como se sabe, Stephen Hawking sofre de uma doença degenerativa que o imobilizou quase por completo. Não obstante essa deficiência grave, cujos primeiros sintomas apareceram na época de sua tese de doutorado, quando completou 21 anos, ele conseguiu desenvolver uma carreira científica que o elevou ao Parnaso dos maiores físicos teóricos da segunda metade do século 20.
    Para dar a dimensão de sua importância como cientista, serei categórico: boa parte do que sabemos quanto aos aspectos teóricos mais fundamentais acerca da origem do universo e seus mais misteriosos e monstruosos habitantes, os buracos negros, é obra dele.
    Apesar de toda sua carreira ter sido marcada pelas limitações impostas pela doença, foi nos primeiros anos que ela avançou mais rapidamente. O jovem Stephen Hawking tinha grandes aspirações quando chegou a Cambridge e, em muito pouco tempo, viu-se diante da possibilidade real de não viver nem para concluir o doutorado.
    O prognóstico habitual para os pacientes com esclerose lateral amiotrófica é de dois ou três anos de vida. A ponto de jogar a toalha, Hawking se apoiou em três pilares: o amor de sua primeira mulher, Jane Wilde; o incentivo intelectual que foi conhecer o físico matemático Roger Penrose; e, não menos importante, um aspecto de sua personalidade que se fará notar neste encontro: sua rebeldia impetuosa, obstinada e por vezes presunçosa. A rebeldia de alguém que vê a ciência "como uma disciplina não apenas racional mas também romântica e passional".
    Seu caráter indômito o levou a enfrentar a autoridade acadêmica da época, Fred Hoyle, e sua "teoria do estado estacionário" (segundo a qual o universo, em permanente expansão, não se dilui graças à criação contínua de matéria), que era vista como alternativa promissora à então infamada teoria do Big Bang (cujo nome, paradoxalmente, foi cunhado por Hoyle).
    Apesar de sua dificuldade crescente para escrever ou caminhar, Hawking publicou uma série de trabalhos cujo ápice foi um artigo assinado com Penrose, em janeiro de 1970. Nesse texto, eles demonstraram matematicamente que eventos em que o espaço e o tempo nascem e morrem, como o Big Bang e os buracos negros, não apenas são prováveis na teoria da relatividade geral como são simplesmente inevitáveis. Os cientistas só se encontraram cara a cara uma vez durante o processo de redação do que hoje se conhece como o "teorema da singularidade".
    CASCA DE NOZ Pouco antes, Arno Penzias e Robert Wilson tinham descoberto acidentalmente que o universo emitia, a partir de toda e qualquer direção, uma radiação térmica, indicação de que, levando em conta que a expansão produz resfriamento, ele teria de ter sido menor e mais quente no passado. Se regredíssemos no tempo tanto quanto a imaginação nos permitisse, chegaria um momento em que o universo inteiro caberia numa casca de noz e que sua temperatura seria altíssima. O Big Bang, como fruto desse teorema e dessas observações, adquiriu desde então status de teoria científica.
    O trabalho feito com Penrose bastaria para que Hawking conquistasse um lugar na história da física. Mas suas contribuições mais características têm a ver com os buracos negros, criaturas fantásticas cuja história é fascinante.
    Sua descoberta matemática foi feita por Karl Schwarzschild, que completou os cálculos nas trincheiras do front russo na Primeira Guerra, pouco após Einstein publicar a teoria da relatividade geral. Schwarzschild não chegaria a saber que, por um quarto de século, seus resultados seriam recebidos como uma extravagância. Algo tão excêntrico quanto o pênfigo paraneoplásico, doença autoimune que o mataria meses mais tarde.
    Em 1939, Robert Oppenheimer e Hartland Snyder demonstrariam que uma estrela suficientemente pesada poderia implodir devido à atração gravitacional, colapsando até chegar ao estado descrito por Karl Schwarzschild.
    Muitos outros físicos contribuiriam com pistas relevantes. Mas a mudança que fez com que esses seres mitológicos, cuja força gravitacional é tão intensa que nem sequer a luz consegue escapar, fossem considerados como entidades possivelmente reais deve muito a John Archibald Wheeler, que em 1967 os chamou buracos negros.
    Nessa época o jovem doutor Stephen Hawking começava a domesticá-los, armado com papel e lápis, ao mesmo tempo em que sua mulher, Jane, se ocupava de Robert, seu recém-nascido primogênito.
    Já confinado a uma cadeira de rodas, Hawking viu nascer sua filha Lucy, cuja chegada auguraria outras alegrias: pouco depois ele descobriu que os buracos negros deviam ter entropia, conceito estatístico associado a sistemas compostos. Mas, diferentemente do que ocorre em todos os sistemas naturais conhecidos, sua entropia parecia residir em sua fronteira, e não no buraco negro em si.
    Toda a informação se encontraria, portanto, na superfície que o rodeia, como uma lata de alimento em conserva que não se pode abrir, mas cujos detalhes podemos acessar pela leitura do rótulo. De acordo com o estabelecido então pelo cientista, os buracos negros seriam como hologramas.
    As contribuições teóricas de Hawking dotaram de substância física esses entes misteriosos que, segundo ele, se emitissem radiação, evaporariam, levando junto o que haviam deglutido. Isso causa um conflito frontal com as leis da física quântica: a informação, como a energia, não pode ser perdida. Se os buracos negros evaporam sem deixar rastro daquilo que engoliram, tanto faz se o livro era uma antologia poética de Vinicius de Moraes ou se era o mesmo livro, mas com páginas em branco.
    Agora, depois de 40 anos de intensos debates, durante os quais Stephen Hawking ajudou a dar entidade aos buracos negros, o físico britânico a nega.
    Ele divulgou sua nova posição, na semana passada, em um artigo na plataforma arXiv, que acolhe trabalhos antes de sua publicação em revistas científicas.
    No texto, Hawking sugere que o chamado horizonte dos eventos, fronteira matemática a partir da qual toda e qualquer coisa desapareceria dentro de um buraco negro, simplesmente não existe. Se não há horizonte de eventos, não há buracos negros! Para ele, em vez de horizonte de eventos, haveria um "horizonte aparente", capaz de capturar a luz por um tempo. O processo pelo qual o buraco negro engoliria matéria seria assim tão caótico que, ainda que a informação não se perdesse, estritamente, reconstrui-la seria tão difícil quanto, digamos, prever que tempo vai fazer em São Paulo no instante preciso em que você estiver lendo estas linhas.
    O novo artigo ainda não foi revisado por outros cientistas nem apresenta fundamentação matemática para suas conclusões audazes e provocadoras. De fato, nenhuma das previsões de Stephen Hawking pôde ser comprovada.
    NOBEL Por isso ele não recebeu o Nobel. Foi, no entanto, agraciado com uma distinção ainda mais prestigiosa, a medalha Copley, prêmio científico mais antigo do mundo, outorgado pela Royal Society de Londres desde 1731.
    Hawking a recebeu em 2006, dois anos antes de Penrose. Enquanto o Nobel de Física, Química ou Fisiologia é habitualmente dividido, a medalha Copley é entregue a uma só pessoa por ano. Darwin, Einstein e Pasteur a receberam. Em 1838, numa rara ocasião em que foi difícil escolher um nome, ela foi compartilhada por Michael Faraday, um dos dez físicos mais importantes da história, e Carl Friedrich Gauss, rei da matemática.
    No início dos anos 80, Hawking se propôs a escrever um livro em que pudesse explicar os conceitos avançados da física fundamental ao grande público. Recusou-se a fazê-lo com editoras acadêmicas, pois lhe interessava que o texto pudesse ser acessível a qualquer leitor. Habituado a usar uma linguagem metafórica e carregada de imagens em suas palestras, sentia-se preparado para lançar uma ponte sobre a enorme distância que separa do cidadão comum as sofisticadas teorias da física moderna, cuja expressão natural depende do idioma das matemáticas.
    O lento processo de redação e correções do livro acabou dificultado por um enorme contratempo. Em meados de 1985, numa visita que fazia ao Cern (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear), uma pneumonia deixou Hawking à beira da morte, e foi necessária uma traqueostomia para salvá-lo. Desde então, ele ficou mudo. Apesar disso, em 1988 saiu, finalmente, "Uma Breve História do Tempo", que catapultou a divulgação científica ao status de best-seller. O estímulo que o livro representou para que milhares de jovens se inclinassem à ciência é incalculável.
    CQC No horário novamente agendado, ali estava eu, à porta da sala de trabalho de Hawking; e, quando passei por ela, ali estava o próprio Hawking. O primeiro contato visual teve um ingrediente inesperado: o cientista mais famoso do planeta usava óculos escuros que pareciam saídos do "CQC" --lembrei-me de que era possível, pois, quando em visita a Santiago de Compostela, ele havia participado da versão espanhola do programa.
    Diante do espanto que não tive como esconder, Jonathan Wood, o assistente técnico que monitora com extrema atenção o sistema através do qual Hawking se comunica, assinalou a claridade ofuscante que chegava pelas grandes janelas da sala: "Ele precisa dos óculos de sol para poder utilizar o sistema de comunicação".
    Há quase três décadas, Stephen Hawking se comunica com o mundo externo por meio de um computador integrado à sua cadeira de rodas e de um programa especial com que monta suas frases, emitidas por um sintetizador de voz. Apesar dos avanços tecnológicos Hawking não quer nem ouvir falar em melhorar a qualidade do sintetizador --cuja voz, além de metálica, para o constrangimento de um professor britânico, tem sotaque americano. "Essa é minha voz", diz, com lógica arrasadora.
    Até o início da década passada ele era capaz de mover os dedos de sua mão direita com agilidade suficiente para manipular um mouse. Mas, quando perdeu a mobilidade da mão, teve que recorrer ao reconhecimento de movimentos faciais. Seu assistente anterior, Sam Blackburn, concebeu um detector que sai da parte superior de seus óculos, semelhante a uma pequena lâmpada de leitura, registrando os movimentos de sua bochecha.
    Com essa única maneira de clicar, Hawking não pode navegar pela tela, como antes fazia. Sua velocidade de comunicação diminuiu muitíssimo, até chegar a uma palavra por minuto. Alternativas de todo tipo vêm sendo exploradas --desde o scanning cerebral até o rastreamento dos olhos, passando por um sistema sofisticado que monitora seu rosto, aproveitando a complexidade de movimentos a seu alcance. Mas, por ora, ele continua usando esse sistema.
    A perspectiva de encará-lo numa conversa tão cheia de silêncios prolongados era perturbadora. Eu o cumprimentei e me sentei ao seu lado. Ele me observou com especial atenção quando eu lhe disse que María, uma menina que ele conheceu na Galícia e que tinha recebido o diagnóstico de uma doença semelhante à dele, estava muito bem. Reforçado pela imobilidade do resto de seu corpo, o efeito que produz o olhar de Hawking quando seus olhos claros se fixam sobre os nossos é assombroso: você tem a certeza de estar com ele e de que ele está com você. É um breve instante de comunicação intensa.
    MENU No primeiro almoço que tivemos em Santiago de Compostela, veio à tona, devido ao menu, seu gosto pela boa carne. A imobilidade de seu rosto converte o momento da refeição numa situação difícil, e ali se manifesta sua proverbial determinação. Hawking jamais parece fazer uma opção culinária pensando em simplificar a operação de comer. Não se priva de nada. Na Galícia, não deixou de provar nenhum marisco e comeu polvo e crustáceos até se cansar.
    Ao falar de comida, foi inevitável que a conversa se voltasse à qualidade da carne argentina. Assim eu soube que não é apenas da carne que ele se recorda ao pensar em meu país mas também do tango. Falei disso com ele ao entrar em sua sala de trabalho. Perguntei se havia algum outro aspecto da Argentina que tivesse chamado sua atenção e ele me respondeu da maneira mais inesperada: "O papa. Sou membro da Pontifícia Academia de Ciências e espero vê-lo na próxima reunião".
    Surpreendeu-me o fato de que um agnóstico como ele tivesse optado por essa referência, quando poderia ter recorrido a tantas outras --entre elas, a de uma nova figura, que marcou a física teórica das duas últimas décadas, revolucionando aquele que talvez seja o terreno mais árido do século passado: a busca de um formalismo que compatibilize as duas grandes teorias do século 20, a física quântica e a teoria da relatividade geral.
    Aos 45 anos, Juan Martín Maldacena é atualmente membro do prestigiosíssimo Instituto de Estudos Avançados de Princeton, onde Albert Einstein trabalhou --além de ser conselheiro no braço sul-americano do ICTP (Centro Internacional de Física Teórica), com sede na Unesp, em São Paulo.
    Hawking o conhece bem porque, em 2003, eles fizeram juntos um trabalho em que convivem a noção de entropia gravitacional introduzida por ele e a chamada conjectura de Maldacena. De modo que poderia ter aludido a ele, em lugar do papa.
    Achei interessante perguntar a alguém que viveu a condição de estrela emergente da física teórica sobre outro jovem na mesma situação. A resposta de Hawking foi tão sucinta quanto contundente: "Ele é brilhante. Muito original". Não me atrevi a contar-lhe que em 1999, na conferência anual da teoria das cordas em Potsdam (Alemanha), Maldacena e eu quase o derrubamos quando retornávamos apressados ao banquete da conferência e topamos com ele num corredor do hotel: ao abrir uma porta, foi quase por milagre que conseguimos desviar de sua cadeira de rodas.
    MEIA HORA Mais de meia hora tinha transcorrido para que obtivesse essas duas breves respostas.
    O sistema de comunicação de Hawking é frágil. No canto superior direito da tela de seu computador há dois quadrados pequenos. O quadrado superior contém as letras do alfabeto. No inferior, há os números e algumas teclas de função.
    Quando Hawking começa a escrever uma palavra, abre-se uma janela retangular, colada às outras, com dez palavras sugeridas, numeradas de zero a nove. O sensor preso a seus óculos detecta o único gesto que ele usa no sistema: um movimento do maxilar para a bochecha, que ativa um clique. Como não há sinais distintos para indicar vertical ou horizontal na tela, um cursor executa uma dança perpétua sobre os quadrados: para cima, para baixo, para cima...
    Quando ele clica, o cursor se fixa sobre o quadro selecionado e então, devagar, começa a percorrer as linhas distintas. Uma vez escolhida uma linha, percorre cada letra ou símbolo nela. Se há um erro, é preciso esperar que o cursor reinicie a dança para, então, dirigi-lo pacientemente até o ícone que representa a função "apagar".
    O modo como Hawking faz questão de escrever corretamente, sem pular uma letra ou um sinal de pontuação, é comovente. Impossível não pensar na preguiça que habitualmente se manifesta em abreviadas mensagens de texto no celular ou nas redes sociais.
    Com frequência, devido à degeneração muscular ou ao cansaço, suas pálpebras quase se fecham, em um movimento que ele provavelmente não pode controlar e que em muitas ocasiões causa erros de comunicação. Embora ele tenha alguma liberdade de movimento facial, como arquear as sobrancelhas, seu gestual é limitado. Esses movimentos sutis, quase imperceptíveis para quem não está acostumado, servem, contudo, para que Hawking se comunique com as pessoas mais próximas, para poder concordar ou discordar rapidamente, ou para comunicar-se quando não está em sua cadeira de rodas --por exemplo, quando está na cama. Ali ele também recorre ao método que usava antes de dispor de um computador, o qual é exaustivo só de imaginar: forma palavras reconhecendo letra por letra, em uma cartolina.
    Há um momento em que a impressão de rigidez em seu rosto se apaga repentina e explosivamente. É quando ele desenha uma risada. Seus cuidadores, sobretudo os veteranos, conhecem seu senso de humor e captam sua gargalhada com facilidade. Nesses momentos, manifesta-se em toda a plenitude o ser humano que vive nas profundezas de seu corpo imóvel. Por outro lado, sua prostração lhe confere certo ar atemporal. É fácil esquecer que estamos diante de um homem de 72 anos.
    Ao lado de Albert Einstein, Galileu Galilei está no altar pessoal de Stephen Hawking. Naquela que provavelmente seja a única concessão que faz ao pensamento mágico, Hawking intui alguma forma de causalidade no fato de ter nascido exatamente 300 anos após o 8 de janeiro de 1642, último dia na vida de Galileu.
    Quando, em 2012, o homem que deveria morrer antes dos 25 anos chegou aos 70, a comemoração foi um jantar no imponente refeitório do Trinity College, o mais respeitado da Universidade de Cambridge --entre seus antigos membros, além de 32 Prêmios Nobel, figuram nomes como lorde Byron, Vladimir Nabokov, Bertrand Russell e Ludwig Wittgen- stein. Éramos uns 250 convidados, entre os quais só um envergava o smoking como se fosse uma roupa de todo dia: o ator Daniel Craig, o James Bond. O principal ausente foi o próprio Hawking, que não pôde comparecer por problemas de saúde. Estava ali sua mãe, Isobel, com quem ele manteve uma relação muito estreita até a morte dela, aos 98, em abril passado.
    APOSTA Stephen Hawking criou o hábito de fazer apostas com seus colegas a respeito de previsões científicas. Com uma particularidade: se não me engano, ele não ganhou nenhuma. A última é muito recente: foi quando ele apostou que o bóson de Higgs jamais seria encontrado. Em 4 de julho de 2012, o laboratório Cern confirmou a descoberta ocorrida no Grande Colisor de Hádrons (LHC). Hawking rapidamente declarou-se perdedor e pediu o Nobel para Peter Higgs (o britânico de fato veio a partilhar o prêmio com o belga François Englert, em 2013).
    Sempre tive a impressão de que ele sistematicamente apostava contra o que julgava mais provável, como se desafiasse a natureza a seguir por um rumo inesperado, levado por sua rebeldia obstinada e seu espírito brincalhão (não seria seu trabalho mais recente uma "boutade", um produto desse espírito?). No caso do bóson de Higgs, por exemplo, parece-me claro que ele, como muitos físicos teóricos, desejava que não fosse encontrado para que o jogo pudesse ser aberto a novas teorias. Comento essa hipótese e, embora ele não me responda, uma gargalhada muda que se desenha em seu rosto parece me dar razão.
    CULTURA POP A presença de Hawking na cultura popular é incomum para um cientista, e poderia ser ainda maior se ele fosse alguns anos mais jovem. A julgar pelos bonequinhos que exibe no seu escritório, ele se orgulha muito das participações que fez em episódios de "Os Simpsons", "Jornada nas Estrelas" e, mais recentemente, "The Big Bang Theory".
    Seu espírito lúdico é, de fato, extraordinário. Suas palestras sempre têm momentos cheios de graça, dos quais ele desfruta, prolongando seu próprio silêncio para ouvir as risadas do público. Quando, anos atrás, foi recebido pelo prefeito de Santiago de Compostela na praça principal da cidade, depois de percorrer o trecho final do Caminho de Santiago, aceitou sem pensar duas vezes minha sugestão de saudar o prefeito pelo nome, com o único objetivo de ver sua expressão de surpresa.
    Enquanto esperava que Hawking respondesse às minhas perguntas, eu contemplava com a respiração contida o esforço titânico que ele fazia.
    Quando falam com ele, as pessoas habitualmente ficam a seu lado, olhando para a tela do computador. Assim, em muitas ocasiões a leitura da primeira metade de uma frase já prenuncia seu final. Isso não impede que Hawking continue a lutar contra a adversidade para terminar a frase, sem erros de ortografia.
    Lembrei-me do que sua filha, Lucy, tinha me dito: "As pessoas às vezes se esquecem de que meu pai tem uma deficiência grave. Estão tão acostumadas a vê-lo funcionar com a cadeira de rodas e o sintetizador de voz, a dar palestras de forma fluente e com linguagem polida, que esquecem a magnitude da luta e o esforço tremendo que estão por trás disso". Eu não poderia concordar mais.
    O denominador comum da vida de Hawking tem sido o tempo. O tempo escasso que lhe deram aos 21 anos; o tempo inicial e o final, aos quais ele dedicou sua carreira científica com tanta paixão; o tempo que não transcorre, que só pode ser vivido no ponto sem retorno dos buracos negros; o da breve história, que revolucionou o conceito da divulgação científica. Os primeiros versos de "Auguries of Innocence", de William Blake, parecem escritos para ele:"Num grão de areia ver o mundo / e numa flor agreste o céu, / reter na mão o infinito / e numa hora a eternidade".
    Se podemos chamar de milagrosa a conexão que Hawking, a partir de seu corpo imóvel, tem com o universo formal e abstrato da física, não é menos milagrosa sua preocupação com assuntos sociais que poderíamos supor que lhe fossem alheios ou distantes.
    Sua relação com a deficiência física mudou com o passar dos anos. Durante muito tempo, Hawking não queria ser identificado com ela. Uma vez tomada a decisão de concluir seu doutorado, foi como se tivesse dado as costas à sua doença e optado por viver ignorando-a. Desafiando-a.
    Quando começou a usar a cadeira de rodas, o cientista deslocava-se pelas ruas de pedra de Cambridge em velocidades temerárias. Em várias ocasiões acabou esparramado no gramado perfeitamente cortado das faculdades, obrigando os transeuntes ocasionais a transgredir as normas que proíbem que os não membros das faculdades pisem na relva, a fim de ajudá-lo a subir na cadeira outra vez.
    "Eu nunca quis ter pena de mim mesmo. A deficiência era normalmente vista como algo vergonhoso a ser escondido." Ele negava tão fortemente a sua doença que nem queria ouvir falar das organizações que, nos anos 1980, trabalhavam em prol da integração das pessoas com alguma forma de deficiência.
    Como todos que veem Stephen Hawking pela primeira vez, quando o conheci no Chile, em 1997, fiquei impressionado com a dignidade e a força de vontade com que ele levava sua vida adiante. Essa era uma viagem muito especial, pois o último dia da conferência ocorreria na Antártida.
    "Quero fazer as coisas da melhor maneira possível. Obviamente, devido à minha deficiência, preciso de ajuda, mas sempre procurei superar as limitações de minha condição e levar a vida mais plena possível. Percorri o mundo até a Antártida e experimentei a ausência de gravidade. Algum dia, quem sabe, eu possa viajar ao espaço. Sou mais feliz hoje que antes de a doença ter se manifestado."
    Conforme passaram os anos e aumentou sua dependência de sua equipe de cuidadores e enfermeiras, ao mesmo tempo em que se tornou consciente de sua posição privilegiada, Stephen Hawking converteu-se numa voz de referência na luta pela integração das pessoas com deficiências. Foi assim que, em 2012, aceitou com orgulho o convite para participar da cerimônia de abertura dos Jogos Paraolímpicos de Londres.
    "O grande sucesso dos Jogos Paraolímpicos mostrou que os atletas com deficiências são como quaisquer outros atletas e devem ajudar a fazer com que as pessoas com algum tipo de deficiência sejam aceitas pela sociedade. Creio que a ciência deve fazer tudo o que for possível para prevenir ou curar as deficiências. Ninguém quer ser deficiente, se puder evitar. Espero que meu exemplo dê ânimo e esperança a outros que estejam em situações semelhantes, para que nunca desistam."
    O compromisso social e político de Hawking pode ser apreciado tanto em suas declarações públicas quanto em seus silêncios escolhidos. Sempre foi defensor aguerrido da saúde pública e da necessidade de investir em pesquisa científica. Define-se ideologicamente como socialista, o que não o impediu de manifestar sua rejeição firme à guerra do Iraque sustentada pelo trabalhista Tony Blair --que ele não parece ter em muita estima.
    "O futuro da humanidade e da vida na Terra é muito incerto. Corremos o risco de nos destruirmos graças à cobiça e à estupidez."
    Sua sensibilidade ideológica se evidencia também quando ele aborda temas díspares e aparentemente exóticos. "A descoberta de vida extraterrestre inteligente seria o achado científico mais importante da história. Mas seria arriscado tentarmos nos comunicar com civilizações extraterrestres. Se elas decidissem nos visitar, o resultado poderia ser semelhante ao de quando os europeus chegaram à América, algo que não terminou muito bem para os nativos."
    CONTROVÉRSIA Em maio de 2013, Hawking se viu envolvido numa controvérsia. Ele havia aceitado participar de uma conferência sobre o fator humano na formação do futuro, organizada em Jerusalém em homenagem ao presidente de Israel, Shimon Peres.
    No entanto, um mês e meio antes do evento ele enviou uma carta breve e discreta aos organizadores, anunciando que, após ter consultado cientistas palestinos que havia conhecido em 2006, durante uma viagem a Ramallah, tinha desistido de participar.
    De algum maneira, a carta chegou ao Comitê Britânico para as Universidades da Palestina (Bricup), de onde vazou para a imprensa; o movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) apressou-se a declarar que o cientista tinha aderido à sua causa.
    A missiva sucinta e respeitosa de Hawking terminava dizendo: "Se eu participasse, expressaria minha opinião de que a política do governo atual de Israel provavelmente vai conduzir ao desastre".
    Tratando-se de um tema delicado para a opinião pública internacional, as críticas se intensificaram de imediato. Para piorar as coisas, num primeiro momento a Universidade de Cambridge declarou que Hawking não viajaria a Israel por problemas de saúde; horas depois, foi obrigada a se desdizer, deixando no ar a sensação de que tinha tentado ocultar a realidade.
    Ninguém se deu ao trabalho de ler a declaração de Hawking e enxergá-la no contexto do pacifismo militante de alguém que já visitou Israel em outras ocasiões, recebeu a distinção científica máxima desse país, o Prêmio Wolf, e mantém vínculos estreitos com seus pesquisadores. Alguém que de maneira alguma aderiria a boicotes como os promovidos pelo BDS, que são uma negação total do diálogo.
    O cientista dedicou 45 minutos de esforço comovente para me explicar sua posição; definitivamente, ele procurava contribuir com um grão de areia para o restabelecimento do diálogo entre as partes.
    "Eu ia a Israel com a condição de poder dar uma conferência na Cisjordânia, porque sinto que as universidades palestinas necessitam de contatos com o exterior, mas todos os acadêmicos palestinos me disseram que eu deveria respaldar o boicote. Senti não ter ido", disse. "Se tivesse ido, teria dito que Israel precisa dialogar com os palestinos e com o Hamas, como a Grã-Bretanha fez com o IRA. Não se faz a paz falando com os amigos, mas com os inimigos. Estou satisfeito pelo fato de as conversações de paz estarem sendo retomadas. Se isso tivesse acontecido antes, teria ido a Israel."
    CAVALEIRO Chama a atenção o fato de um inglês da envergadura acadêmica de Stephen Hawking ainda não ter sido nomeado cavaleiro. Todos os cientistas britânicos de seu nível já o foram, incluindo Roger Penrose, com quem ele compartiu muitas honrarias. Há outra exceção notável: Peter Higgs. É inimaginável que isso não lhes tenha sido oferecido.
    Não creio que em qualquer dos dois casos se trate de uma posição antimonárquica, já que ambos foram laureados Companheiros de Honra pela rainha Elizabeth 2ª e aceitaram a distinção.
    A oferta do título de cavaleiro costuma ser levada aos candidatos por um intermediário, que deve apresentar as razões que a motivam. Hawking e Higgs são homens de princípios, que não hesitariam em recusar uma distinção se a julgassem em desacordo com seus méritos pessoais ou se a oferta lhes chegasse por um emissário que achassem inapropriado. Se a rainha da Inglaterra lê a Folha, eu a incentivo a tentar outra vez.
    Antes de nos despedirmos, vamos à Potter Room para fazer as últimas fotos. Esse salão é o ponto nevrálgico do Departamento de Matemática Aplicada e Física Teórica, onde acontecem os debates, os seminários, as conferências e até os obrigatórios chás das cinco. A presença de Hawking na Potter Room já foi imortalizada em um busto --última obra do escultor inglês Ian Walters, morto em 2006.
    As lâmpadas estão apagadas, e as janelas laterais produzem um jogo de luz e sombras que conferem realidade à estátua e irrealidade ao Hawking verdadeiro, que parece muito à vontade posando e se divertindo com os comentários que, com frequência crescente, geram seu sorriso franco e o olhar atento. Depois as vozes se calam, os olhares se cruzam pela última vez, e a confusão dos corredores e seu labirinto volta a tomar conta de nossos passos.

      Antonio Prata

      folha de são paulo
      Vespertina tropical
      É um troço estupendo: mais bonito que o pôr do sol, mais improvável que a girafa, mais grandioso que o relâmpago
      Então Deus, tendo acabado de criar o firmamento e os continentes, o homem e a mulher, a zebra, os elétrons, o umbu e a neblina, quis dar um último toque em Sua obra: num arroubo de lirismo, lá pelas 17h54 do sexto dia, pintou a aurora boreal. É, de fato, um troço estupendo: mais bonito que o pôr do sol, mais improvável que a girafa, mais grandioso que o relâmpago. Era pra ser o corolário da criação, a maior atração da Terra, diante da qual casais em lua de mel deixariam cair os queixos, japoneses ergueriam as câmeras e mochileiros bateriam palmas, contentes por terem nascido neste planeta abençoado e multicolor, mas, infelizmente, como se sabe, a aurora boreal não pegou.
      Claro: é longe, é raro e é muito cedo, como esses espetáculos incríveis encenados domingo de manhã no Sesc Belenzinho. Imagina se a aurora boreal fosse nos trópicos, seis e meia da tarde? O sujeito tá num táxi na avenida Atlântica, olha pro lado, o céu todo verde e amarelo e laranja e roxo, saca o celular, faz um "selfie" [tava louco pra usar essa palavra], posta "#vespertinatropical!!!" e segue pra casa, satisfeito. Mas não, é pra lá da Groenlândia, 4h30 AM, ninguém sabe quando: aí, não adianta reclamar que o público é ignorante e prefere a caretice hollywoodiana de um arco-íris.
      Fosse só a aurora boreal, beleza, mas a natureza tá cheia de desarranjos semelhantes. Não surpreende: ela foi criada há milhões de anos, nunca passou por uma revisão e ainda é administrada pelo fundador. Se eu fosse Javé, chamava uma dessas consultorias especializadas em fazer a transição de empresas familiares para organizações, digamos, mais competitivas, e dava um choque de gestão. Nem precisa gastar muito, basta alocar melhor os recursos.
      Veja os cometas, por exemplo. Tudo espalhado por aí, nos visitam só a cada 70, cem anos, às vezes chegam de lado, outras vezes de dia, ninguém vê, baita desperdício de energia. Por que não otimizar essas órbitas? Fazer com que venham cinco, dez ao mesmo tempo na noite de Réveillon, proporcionando uma queima de fogos global à nossa sofrida humanidade?
      A gravidade é outro assunto que merece uma calibrada: tem que ser mesmo 9,8 m/s2? Por quê? Como Deus chegou a esse número? Gostaria que Ele abrisse as planilhas para entendermos se cada m/s2 é realmente necessário. Com metade dessa atração, nós continuaríamos colados ao chão e seria muito mais agradável se locomover por aí. O mínimo que o Senhor poderia fazer era dar uma amainada de dezembro a março: imagina que alívio encarar esse calorão com 25% menos esforço, durante a "Gravidade de Verão". Sem falar, óbvio, em 50% para grávidas, idosos e cadeirantes.
      Não tenho dúvida de que o Todo Poderoso resistirá a essas e outras reformas. Criar o Universo é o tipo da coisa que infla um pouco o ego do sujeito, mas seria bom se Ele se animasse a colocar o mundo nos eixos --literalmente: já repararam como a Terra gira toda torta, envergada como um frei Damião?
      Se meu pacote de sugestões não puder convencê-Lo pelo bom senso, quem sabe ao menos uma parte cutuque a Sua vaidade? Ora, El Shaddai, a aurora boreal é um negócio tão lindo, tão grandioso, tão divino, não é justo que siga sendo exibida, ano após ano, apenas para os ursos-polares, as focas e a Björk, é ou não é?

        1984 - Suzana Singer [folha ombudsman]

        1984
        folha de são paulo
        folha_ombudsman

        Lula, Fernando Henrique Cardoso e a Folha. Os três convivendo em paz. Mais do que isso, embalados em uma mesma campanha. O jornal, crescendo rapidamente em circulação e em prestígio, é uma unanimidade na "sociedade civil".
        O que hoje parece impossível era realidade em 1984. O pano de fundo: asDiretas-Já. A Folha percebeu antes as oportunidades da abertura política e, enquanto os outros veículos da grande imprensa hesitavam, abraçou a causa do voto direto para presidente da República. Conquistou jovens e intelectuais. Virou o "jornal das Diretas".
        Por alguns meses, as páginas de política ganharam um tom militante, romântico e empolgado. A descrição do comício na praça da Sé, de 25 de janeiro de 1984, ocupou praticamente toda a capa do jornal no dia seguinte. O texto afirmava que o verdadeiro "herói" da manifestação foi a "multidão, as 300 mil pessoas que provaram ser possível (e desejável) fazer política com amor, garra e alegria".
        Quando a emenda constitucional que previa a eleição direta não foi aprovada, em abril do mesmo ano, a manchete foi "A NAÇÃO FRUSTRADA!", assim mesmo em letras maiúsculas, sob uma tarja que convidava o leitor a "usar preto pelo Congresso Nacional".
        Trinta anos depois, parece que estamos falando de outro jornal. A Folha não se engaja mais em campanhas – a última foi pelo impeachment de Fernando Collor– , busca um tom sóbrio em política, e a camaradagem com Lula e FHC terminou quando cada um ocupou a Presidência da República.
        Aquele texto sobre o grande comício da Sé não passaria pelo editor e tamanho entusiasmo destoaria até dos editoriais, em geral ponderados e comedidos. As circunstâncias políticas mudaram radicalmente. É difícil imaginar uma causa que obtivesse um consenso suprapartidário como o que havia para combater a ditadura. Conquistada a abertura, cada um foi para o seu lado e começou a disputa pelo poder, o que é da natureza do regime democrático.
        Da mesma forma, a Folha não é mais unanimidade. Muitos dos que se apaixonaram pelo jornal nas Diretas-Já estão hoje entre os seus críticos mais ferozes. Sentem-se traídos pela metralhadora de denúncias e de críticas.
        O distanciamento que se tomou dos partidos políticos e dos chamados "formadores de opinião" foi deliberado. Ainda em 1984, quando surfava na empolgação das Diretas-Já, a Folha desafiou os anseios da "sociedade civil" ao não apoiar a candidatura de Tancredo Neves, que disputava com Paulo Maluf a Presidência. Foi acusada de malufista.
        No ano seguinte, cobriu a doença do presidente eleito com informações que contradiziam a tese oficial de que Tancredo estava melhorando. Foi acusada de agourenta e antipatriótica ("Médicos esfriam Tancredo" era a manchete de 16/04).
        Nesse mesmo ano, o novo projeto editorial pregava que "não devemos ambicionar as unanimidades, mas sim o reconhecimento da identidade pela diferença". Com um ímpeto quase juvenil, o texto defendia que "praticar a crítica substantiva (...), contra tudo e contra todos, é obrigação não apenas moral mas política do jornalismo, especialmente em um país que as circunstâncias dotaram tão generosamente de problemas e de possibilidades".
        É bom relembrar essas palavras 30 anos depois, quando acontecem eleições presidenciais e uma Copa do Mundo. Impuseram-se ao jornal novos desafios, como manter a relevância e a qualidade num mundo inundado por informação, mas "apartidarismo", "crítica" e "pluralidade" ainda são metas a serem perseguidas com afinco.
        Mal começou o ano, as acusações já esquentaram. Uns dizem que a Folhatorce para que tudo dê errado na Copa, outros que o jornal serve de fornecedor de munição à oposição, enquanto um grupo vê a Redação rendida ao petismo. Que venham muitas críticas, ajuda valiosa no trabalho de um ombudsman, mas que levem em conta aquilo a que a Folha se propõe. 
        suzana singer
        Suzana Singer é a ombudsman da Folha desde 24 de abril de 2010. No jornal desde 1987, foi Secretária de Redação na área de edição, diretora de Revistas e editora de 'Cotidiano'. Escreve aos domingos na versão impressa. E-mail: ombudsman@uol.com.br

        Sem pânico - Keila Jimenez

        folha de são paulo

        Sabrina Sato fala sobre o programa em que 'aprendeu tudo' e do novo projeto

        PUBLICIDADE
        Ao desfilar pelos corredores da Record num salto de 20 cm e com microvestido, Sabrina Sato, 32, nova estrela da emissora, encontra um time de seguranças querendo uma foto com ela.
        "Pessoal, vamos botar umas cadeiras naquele solzinho, pra gente vir de biquíni e se bronzear?", pede ao mais recente fã-clube, que não sabe se baba ou responde. Sabrina gosta de "causar".
        Pai e mãe psicólogos não foram capazes de dissuadi-la da busca pela fama. Sabrina foi modelo e dançarina do Faustão antes de entrar no "Big Brother Brasil 3" (2003).
        Não demorou para virar musa do reality da Globo, alvo da "Playboy" e ir parar no "Pânico" (primeiro na Rede TV! e agora na Band), onde ficou por uma década. O jeitinho atonteado somado ao corpão e ao carisma lhe renderam contratos publicitários, licenciamentos e o interesse de outras emissoras.
        Sorte? Sabrina chama de "intuição". Mas pode também ter nome e sobrenome: Karina Sato, irmã e empresária que ajudou a conduzir a carreira da ex-"BBB" que deu certo (leia texto ao lado).
        Em entrevista à Folha, Sabrina comenta seu novo passo: a estreia, em abril, de um programa solo na Record, aos sábados. Ela fala, ainda, da dificuldade de deixar o "Pânico", da imagem de "gostosa burra" e do Carnaval. Leia abaixo os principais trechos.
        Eduardo Knapp/Folhapress
        A apresentadora Sabrina Sato, 32, na sede da Record, em São Paulo
        A apresentadora Sabrina Sato, 32, na sede da Record, em São Paulo
        Folha - Quando você começou a querer um programa seu?
        Sabrina Sato - Sempre tive esse sonho, mas nunca tive coragem de colocar para fora. Achava que não merecia. Quando a oportunidade da Record surgiu, senti que era o momento. Não sou mais um menininha. Não posso mais continuar no "Pânico", falando aquelas bobeiras até os 40 anos. Tenho de mudar.
        Quando entrou no 'BBB' imaginava que a fama ia durar?
        Quando resolvi mandar minha gravação para o "BBB", minha irmã [Karina Sato, empresária de Sabrina] escondeu a fita. Ela dizia: "Ninguém lá dá em nada, para com isso". Mas eu sentia que daria certo. Depois do "BBB" fui convidada para participar do "Pânico" no rádio. Mas acabei voltando várias vezes. Fiquei um tempão sem ganhar nada. Um dia me contrataram. Na época, fui chamada para fazer a novela "Da Cor do Pecado", na Globo. Ia beijar o Cauã [Reymond], mas segui minha intuição. Já ouvia na época que o "Pânico" iria para a TV. Escolhi ficar com eles. Novela eu ia fazer uma só e depois iria sumir.
        Sua saída do "Pânico" foi sofrida?
        Nossa, foi. Aprendi tudo lá. Amo o Emílio (Surita). Ele tem medo de eu desperdiçar o meu talento. Mas eu to seguindo meu coração. Mas dá muito medo. Só vou dormir quando o programa estrear. (risos)
        E antes da estreia ainda tem a loucura do Carnaval, não?
        Adoro Carnaval. Saio como madrinha da Gaviões da Fiel, rainha da Vila Isabel e talvez abra o Carnaval com a Ivete em Salvador. Também sou rainha do camarote da Brahma neste ano.
        Ah, você é a verdadeira rainha do camarote?
        (Risos). Ééé verdade. A caipirona de Penapólis virou rainha do camarote. Não me importo de ficar muito no camarote, sou a última a ir embora mesmo, já ficava de graça, agora então, que estão pagando (risos). Mas estou me preparando para o Carnaval. Estou malhando e parei de beber vinho. Um litro por dia eu bebia (risos). Acordava a cara do Zeca Pagodinho, inchaaaada. Parei com isso.
        Você ouviu a opinião de sua família, de seu namorado (João Vicente, integrante do Porta do Fundos) quando resolveu ir para a Record?
        Foi uma decisão minha. Houve propostas de outras emissora, mas eu nem sentava para conversar. Dessa vez eu quis ir e pronto. Ouvi muita gente, mas ouvi também o pessoal do posto.
        Que posto?
        De gasolina. Eu fazia enquete, pesquisa de público nas ruas. (risos)
        Sua carreira mudou muito. Você mostrava muito o corpo no início, a bunda, depois passou a ficar no palco, ir fazer entrevistas em Brasília. Você pautou essa mudança?
        Eu nunca disse "não" para o "Pânico", sempre topei tudo. Não fazia diferença para mim fazer ou não. A mudança foi natural. Eu estava gravando um dia e me mandaram para Brasília falar com o Sarney. Nem sabia o que falar e me jogaram lá em Brasília.
        Você incentiva essa história de "menina burra"?
        Quando entrei no "Pânico" não acompanhava mesmo os meninos, não entendia todas as piadas. Depois, no palco, você acaba dando um forçada na brincadeira.
        Você realmente não fala inglês?
        Eu tô melhorando. Mas acho difícil conseguir falar até a Copa (risos).
        Como foi para sua família quando você resolveu posar nua?
        Meu irmão trancou a faculdade e falou que ia embora para o Japão. Ele chorou (risos) Mas minha mãe e minha irmã me apoiaram. Minha família queria cuidar de tudo, mas não sabia cuidar direito (risos). Minha mãe foi comigo na sessão de fotos com o Bob Wolferson. Quando olhei, ela estava dormindo. Ela dormiu enquanto eu tirava a roupa (risos).
        Você posaria nua de novo?
        Ah não. Já foi. Agora é uma nova fase. A fase comportada, fase Record. Tem tempo certo para usar as coisas. Não vou ter 50 anos e andar de shortinho.
        E o programa, como está?
        Ainda não tem nome. Estou montando a equipe ainda, está tudo em construção. O programa terá duas horas e meia, deve entrar no ar às 20h25. Vai ter bailarinas, game, reality... Mas sei que não vou inventar a roda na TV. Gente, vamos diminuir a expectativas, por favor (risos)?
        Não te assusta o fato de agora estar sozinha no palco com um microfone na mão?
        Eu sinto que vou me sair bem. Tirando a parte que falo muito acelerado. Vou ter que arrumar isso (risos) e outras coisinhas. Já pensou eu com um ponto eletrônico no ouvido?. Vou ficar como a Maisinha (do SBT), falando com o ponto, parecendo doida.
        Você não pensa em fazer um esquete do Porta dos Fundos?
        (Risos) Mais adiante. Agora tenho de focar no programa. Acabei até de falar um 'não' para uma proposta de cinema. Agora tô focada no programa.
        Você vai ganhar salário de R$ 1 milhão na Record?
        Nããoooo. É 20% disso. Tá, um pouquinho mais vai. (risos) Agora, sem os merchandisings, estou ganhando menos do que estava ganhando no "Pânico" (Estima-se que Sabrina chegava a tirar R$ 500 mil por mês no "Pânico" entre salário e contratos de publicidade). Com os merchandisings na Record, a grana aumenta um pouco. Mas hoje, a TV não vive mais aquela fase de salários milionários. Infelizmente faço parte dessa nova fase (risos). Fazer o quê, né? 
        'Cérebro' financeiro e empresarial, irmã registrou marca
        DA COLUNISTA DA FOLHA
        Há 11 anos, quando Sabrina foi eliminada do "BBB 3", seus irmãos Karin Sato, 30, e Karina Sato, 34, a esperavam do lado de fora com saudade e algumas instruções. "Meu irmão me abraçou e falou: Você não sabe como está aqui. Não te acho linda, mas o povo te acha gata. Se perguntarem se vai posar pelada, diz que não'", ri Sabrina.
        Mas a determinação oriental na carreira de Sabrina vem de Karina, advogada que concilia a jornada de empresária da irmã famosa com a carreira jurídica de 16 anos.
        "Assim que a Sabrina entrou no BBB', registrei a marca dela", conta Karina. "Queríamos contratar um empresário, mas todos com quem conversávamos queriam só saber de cachê da Playboy'."
        Karina tem quatro funcionários fixos e alguns colaboradores para administrar os passos da irmã. Fecha contratos, cuida do dinheiro, dá pitacos em roupas e eventos. "A Sabrina diz que a gente não briga porque eu mando e ela obedece, mas não é isso. Ela conquista as coisas."
        "Eles cuidam do meu dinheiro. Sou desligada, outro dia fui sacar e não tinha nada na conta --meu irmão tinha aplicado tudo. Nunca tenho dinheiro na carteira", diz Sabrina, dona de 25 contratos, entre licenciamentos e publicidade.
        "Ela é pé no chão, sabe o valor do dinheiro", conta Karina. Sabrina confirma. "Toda vez que eu penso: Estou cansada, não vou fazer esse evento', faço a conta. Quanto vão me pagar por duas horas de sorrisos? Minha mãe não ganha isso em um mês de trabalho na loja dela. Então eu vou."

        José Simão

        folha de são paulo
        Vai ter Copa! Nóis é Tóis!
        O Fernando Henrique quando viajava só comia no rodízio. Rodízio de trufas e Cabernet Sauvignon
        Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E o predestinado da semana! Candidato a presidente da Fifa: Jérôme CHAMPAGNE! Tá eleito! Fifa combina com champanhe.
        E o peso argentino está tão desvalorizado que virou peso morto!
        E a Cristina Kirchner tá a cara da Gretchen, com aquela boca de bico de tênis Conga. Com aquela boca de "VOU TE BEIJAR!". Rarará!
        E aí um argentino botou esse cartaz na porta da loja: "Vendo todo, me voy a la mierda". Rarará! Um amigo tá indo pra Buenos Aires e vai levar uma caixa de Miojo.
        E atenção, Black Brócolis! Vai ter Copa e a Argentina vai ganhar!
        E essa: Jennifer Lopez, Pitbull e Claudia Leitte cantarão a música-tema da Copa, "We Are One"! Então #naovaitercopa! Esse é o único motivo pra não ter Copa: Claudia Leitte. Rarará!
        E a versão tupiniquim da música "We Are One": "Nóis é Um!". Ops, "Nóis é Tóis!". Música-tema da Copa: "Nóis é Tóis!". Rarará!
        E a Turma do Contra: Não Vai Ter Copa, Não Vai Ter Carnaval, Não Vai Ter Verão, Não Vai Ter Feriado, Não Vai Ter Praia, Não Vai Ter Pipoca. Não Vai Ter Piroca! Rarará!
        E a escala da Dilma, a Granda Chefa Toura Sentada, em Lisboa? O PSDB quer que a Dilma, na próxima viagem, durma em camping e coma no quilo! No dogão! No dogão do Félix e da Tetê Paralama Parachoque!
        E o Fernando Henrique quando viajava só comia no rodízio. Rodízio de trufas e Cabernet Sauvignon. Rarará! E PAC agora quer dizer Pograma de Ajuda a Cuba! E Cuba é boa em três coisas: saúde, educação e gambiarra. Eles pegam uma batedeira anos 30 e transformam num Chevrolet anos 60.
        E a Dilma com o Fidel? Bob Esponja e El Coma Andante! Fidel: "Lula, raspate la barba". "Non, comandante, yo soy Dilma, nel Brasil hay eleciones." "O que? Vacaciones?" "Non, comandante, ELECIONES." "Non compreendo." Rarará.
        E a Dilma tuitou de Cuba: "Estou numa ilha aqui em cima governada pela mesma família há 50 anos". SÃO LUÍS! Ela estava em São Luís! Rarará!
        E o Fidel todo dia acorda gritando: "Médicos, yo quiero médicos". "Non tienen, foran todos pro Brasil!" A Dilma roubou o médico do Fidel! Rarará! Nóis sofre, mas nóis goza!
        Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!
        simao@uol.com.br
        @jose_simao

          Mauricio Stycer

          folha de são paulo
          Aula de roteiro
          A estreia de dois programas policiais, 'True Detective' e 'A Teia', ajuda a entender o que falta às séries nacionais
          No seu esforço para formar bons roteiristas, a Globosat convocou mais uma vez ao Brasil o professor Robert McKee, uma espécie de guru no assunto, que deu o seu famoso curso para mais de 300 profissionais no Rio.
          Na véspera da abertura, McKee foi questionado pela Folha sobre a qualidade das séries brasileiras. Criticando uma das melhores exibidas pela Globo em 2013, a sua resposta vale por um curso inteiro:
          "São ok', mas ainda precisam melhorar muito! Assisti a O Canto da Sereia'. O problema é a falta de subtexto. As séries boas têm algo que não é dito, mas somente sugerido. O espectador entende a expressão do rosto do personagem. No Brasil, não existe isso. Eles fazem os personagens explicarem os sentimentos e as ações. A inteligência do público é subestimada. Os roteiristas acham que, se não fizerem isso, as pessoas não irão entender. Quando confiarem no telespectador, a qualidade vai melhorar."
          A estreia, quase simultânea, agora em janeiro, de duas séries policiais, "True Detective", na HBO, e "A Teia", na Globo, ajuda a entender o que McKee está falando.
          Criada por Nic Pizzolatto, a série americana começa em 2012, com o ex-investigador Martin Hart (Woody Harrelson) dando um depoimento gravado a dois policiais sobre o seu antigo colega de trabalho, Rust Cohle (Matthew McConaughey). "Estranho? Rust brigaria com o céu se não gostasse do tom de azul", ele diz.
          Na cena seguinte, os mesmos dois policiais questionam Cohle, que entende logo do que se trata. "O assassinato do ritual oculto", ele diz. O ex-investigador acende um cigarro. "Não pode fumar aqui", diz um dos entrevistadores. "Não sejam idiotas. Vocês querem ouvir a história ou não?" E segue fumando.
          Na cena seguinte, Hart e Cohle estão em 1995, num carro da polícia, a caminho de uma cena de crime, em Louisiana. A dupla encontra uma cena macabra: uma mulher morta, nua, de joelhos, amarrada junto a um tronco, com uma coroa de galhos e ossos na cabeça.
          Ao longo do episódio, oscilando entre os dois tempos, por 50 minutos, acompanhamos os primeiros passos da investigação e vamos conhecendo a vida dos investigadores. Nenhuma música ou cena de ação preenche a narrativa; só diálogo e dois grandes atores.
          Na última cena, o espectador entende que a dupla de policiais que interroga Hart e Cohle em 2012 está investigando um crime semelhante e desconfia que o criminoso possa ser o mesmo do caso ocorrido 17 anos antes. "Como pode ser ele se o prendemos em 1995?", pergunta Cohle. "Achamos que você poderia nos responder isso", diz um dos policiais. "Então comecem a fazer as perguntas certas, porra!"
          Tenho o maior respeito por Bráulio Mantovani e Carolina Kotscho, mas na comparação com o piloto de "True Detective" o primeiro episódio de "A Teia" é um exercício colegial.
          Entupida de cenas de ação, câmera "nervosa" sem motivo nenhum, música a todo momento e alguns diálogos inaudíveis, a estreia da série da Globo foi uma decepção. A promessa de um mergulho na alma dos protagonistas --um delegado da Polícia Federal (o ótimo João Miguel) e um assaltante (Paulo Vilhena) --ficou apenas na intenção. Que Robert McKee não veja isso.
          mauriciostycer@uol.com.br
          @mauriciostycer

            Ferreira Gullar

            folha de são paulo
            O prazer de matar
            É a insensatez levada ao último grau, que só se explica pela cegueira a que leva o fanatismo religioso
            Não passa uma semana sem que novos atentados matem dezenas de pessoas. Isso ocorre com mais frequência no Iraque, no Egito, no Afeganistão, na Síria, em países da África Central. Matar inocentes indiscriminadamente é difícil de entender. Toda vez que leio uma notícia dessas, surpreendo-me como se a lesse pela primeira vez.
            Não há dúvida de que homicídio puro e simples não deixa de me espantar. De fato, tirar deliberadamente a vida de alguém é coisa que não compreendo nem aceito. Mas sei, como todo mundo, que, dependendo de seu temperamento, pode uma pessoa perder a cabeça e matar um suposto inimigo.
            Há, porém, pessoas que têm o prazer de matar e, por isso mesmo, fazem isso com certa frequência. Lembro-me de um jovem que foi preso logo depois de liquidar um desafeto. Quando o policial lhe disse que no próximo ano seria maior de idade e, se voltasse a matar alguém, iria para a cadeia, ele respondeu: "Pois é, não posso perder tempo".
            No que se refere aos atentados, há os motivados por razões políticas e religiosas e há os que, ao que tudo indica, têm causas psíquicas, ou seja, o cara é pirado. Esses são os atentados tipicamente norte-americanos. Com impressionante frequência, surge um sujeito empunhando um revólver ou um fuzil-metralhadora que começa a disparar a esmo dentro de um shopping ou de uma universidade. Ele sabe que vai morrer e, quase sempre, é abatido por policiais.
            A loucura é certamente um componente desse desatino homicida. Não obstante, a gente se pergunta por que só acontece nos Estados Unidos. Será porque todo mundo lá tem armas em casa e aprende a atirar desde criancinha, no quintal de casa ou no porão? Os fabricantes de armas garantem que não, que não é por isso, mas tenho dificuldade de acreditar neles.
            Esse tipo de atentado difere daqueles outros, cuja motivação é político-religiosa, e difere também, por seu resultado, não de um surto psicótico e, sim, pelo contrário, fruto de uma decisão tomada objetiva e friamente por um líder.
            A afinidade que há entre eles é o propósito de assassinar pessoas inocentes. E é precisamente este ponto que tenho maior dificuldade de aceitar. Por exemplo, um terrorista, com o corpo coberto de bombas, entra num ônibus escolar do país inimigo, explode as bombas e a si mesmo, matando dezenas de crianças. Não vejo nenhum sentido nisso, a não ser mostrar seu ódio ao adversário; e, nesse caso, por se tratar de crianças, mostrar que sua fúria homicida desconhece limites. É outra modalidade de loucura.
            Mas há ainda os casos em que a fúria homicida mata indiscriminadamente pessoas de outros países, que nada têm a ver com os propósitos do atentado. Exemplo disso foi o caso das Torres Gêmeas, em Nova York, onde morreram quase 3.000 pessoas. O atentado visava os norte-americanos, mas matou franceses, holandeses e até muçulmanos. Nem mesmo se pode excluir, dentre as vítimas daquele atentado, pessoas que possivelmente apoiavam a causa defendida pelos terroristas. É a insensatez levada ao último grau, que só se explica pela cegueira a que leva o fanatismo religioso.
            O que torna mais absurdo tudo isso é o fato de que o atentado terrorista não traz nenhum benefício a quem o projeta e o faz acontecer, a não ser satisfazer seus desejos homicidas. De fato, o terrorismo é a expressão da derrota política de quem o promove, a reação desesperada de quem sabe que não tem qualquer possibilidade de vencer o adversário e chegar ao poder.
            Mas, ao fim de tudo, não consigo na verdade entender tal desvario, mesmo porque, além do assassinato em massa de crianças e cidadãos quaisquer, que o terrorista nem sequer conhece ou sabe que matou, há fatos quase inacreditáveis.
            Como o que ouvi da boca do chefe supremo do Hezbollah, na televisão. Ele afirmou que o menino-bomba, que praticou o atentado no ônibus escolar, em Israel, era seu filho e tinha 16 anos. E acrescentou: "O mais novo, que tem 12 anos, já está sendo preparado para se sacrificar por Alá". O curioso é que ele manda os filhos morrerem, mas ele, o pai, continua vivo.