quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Bernardo Mello Franco

folha de são paulo
Vá trabalhar, prefeito!
RIO DE JANEIRO - "As chuvaradas de verão, quase todos os anos, causam no nosso Rio de Janeiro inundações desastrosas. (...) O prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou completamente de solucionar esse defeito." A crônica de Lima Barreto foi publicada no "Diário da Noite" em 1915, quase um século atrás. Trocando Passos por Paes, poderia estar nos jornais de hoje, depois de mais um dia de alagamento e caos na cidade.
Eduardo Paes, o prefeito da vez, tem repetido a prática de antecessores: gasta muito com obras de maquiagem e investe pouco no combate às enchentes. No ano passado, prometeu acabar com as cheias na Tijuca e na praça da Bandeira, outro problema ancestral do Rio. O sistema de reservatórios deveria estar pronto, mas já atrasou duas vezes. Agora, a promessa da prefeitura é acabar com as inundações em 2014. Alguém acredita?
Nomeado no início do século passado, Pereira Passos entrou para a história como o prefeito que construiu a avenida Central, atual Rio Branco. Se deixar o cargo amanhã, Eduardo Paes será lembrado como o prefeito que demoliu a Perimetral. Para substituir o elevado, abriu no mês passado a Via Binário, onde dois ônibus não conseguem passar na mesma curva. Na primeira chuva, a avenida virou um rio, e Paes admitiu que a inaugurou sem fazer as obras de drenagem. Não é preciso ser engenheiro, como Passos, para saber o que aconteceria.
Ontem o peemedebista passou o dia dando entrevistas, em ambiente coberto e usando uma patética capa de chuva. Enquanto milhares de cariocas se arriscavam nas ruas para tentar chegar ao trabalho, ele pedia que a população ficasse em casa. Os eleitores deveriam devolver o apelo: "Vá trabalhar, prefeito!".

    Burocracia restringe acesso de doente com câncer à morfina

    folha de são paulo

    Estudo mundial mostra que, na América Latina, Brasil é um dos países onde há mais entraves para obter a droga
    Excesso de regras e falta de conhecimento dos médicos sobre o remédio estão entre as causas das dificuldades
    CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULO
    Excesso de restrições, burocracia e desconhecimento estão dificultando o acesso de pacientes a morfina e outras drogas opioides que aliviam a dor do câncer.
    A conclusão é de um estudo realizado na África, Ásia, no Oriente Médio, na América Latina e no Caribe que avaliou a disponibilidade de sete opioides considerados essenciais pela OMS (Organização Mundial da Saúde).
    Entre eles estão a codeína, a metadona e a morfina. O Brasil figura entre os oito países latino-americanos mais problemáticos, ao lado de outros como Argentina, Peru e Bolívia. O estudo foi publicado na revista "Annals of Oncology" na semana passada. O acesso é gratuito.
    OS EMPECILHOS
    Na lista de entraves que os brasileiros enfrentam constam leis restritivas, o fato de poucos médicos receitarem a medicação e a pouca oferta nas unidades de saúde.
    "A pandemia de excesso de regulação nos países em desenvolvimento torna muito difícil o acesso à medicação básica para as dores do câncer", afirmou à Folha Nathan Cherny, líder do estudo e presidente do grupo de cuidados paliativos da Sociedade Europeia de Oncologia Médica.
    Mas a "tragédia" nasce de boas intenções, segundo Cherny. "Em geral, o excesso de regulação é uma medida de precaução para evitar abusos e desvios", explica.
    Nos EUA, por exemplo, o abuso e o uso ilícito dos opioides fez recentemente o governo federal aumentar o rigor nas prescrições. O país é responsável por 80% do consumo global desses remédios --dois terços seria ilegal.
    Para o anestesiologista Charles Oliveira, vice-presidente do Instituto Mundial da Dor, no Brasil, além da dificuldade de acesso a essas drogas, também há muita desinformação sobre o uso delas tanto por parte da população quanto pelos médicos.
    "O paciente e a família pensam que a morfina está restrita a doentes terminais, então rejeitam o uso. Já muitos médicos têm medo [da dependência, por exemplo] ou não sabem prescrevê-la."
    Na opinião da médica Maria Goretti Maciel, conselheira da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, a morfina é uma droga segura e barata que todo médico deveria saber como administrar.
    "Há muito paciente com câncer sofrendo desnecessariamente. Quanto mais cedo iniciar o uso da morfina, melhor o prognóstico. O manejo da dor está associado a uma maior sobrevida."
    ACESSO
    Oliveira afirma que existe também uma grande dificuldade para o paciente do SUS ter acesso aos opioides fora dos centros de referência.
    "Na rede pública, é mais fácil encontrar a metadona, que é mais barata. Mas é preciso fazer um rodízio de medicamentos a cada três ou quatro meses, e o doente não tem como arcar com isso."
    Existe ainda uma burocracia para o médico obter o bloco de receituário amarelo, específico para medicamentos controlados. Ele precisa, por exemplo, ir até uma unidade da secretaria da saúde para se cadastrar.
    O paciente também enfrente dificuldade, segundo Goretti. "Em São Paulo, só há duas unidades para a retirada do medicamento. Tem que esperar na fila, preencher uma série de formulários e, se faltar algum detalhezinho, precisa refazer a via-sacra."
    Segundo James Cleary, os governos nacionais e especialistas da área precisam tomar medidas urgentes para melhorar o acesso aos opioides.
    "Elas devem envolver a educação dos profissionais de saúde para o uso seguro e responsável desses medicamentos, a educação do público para desestigmatizá-los e uma melhor infraestrutura para o fornecimento."
    Governo diz que normas evitam abuso do remédio
    DE SÃO PAULOEm nota, o Ministério da Saúde negou que haja excesso de restrições ao uso de opioides e afirmou que o país segue as resoluções internacionais sobre o tema.
    Segundo o ministério, o SUS garante o acesso a essas drogas a quem realmente precisa, mas estabelece normas para garantir a segurança do paciente, evitando automedicação e uso irracional.
    São oferecidas a morfina, a codeína e a metadona (de forma ambulatorial e para os pacientes internados).
    O ministério explica que, para serem dispensados, são necessários a receita de controle especial (amarela) e um documento que define normas para a prescrição. A receita tem validade de 30 dias.
    Mas os hospitais inscritos no programa nacional de assistência à dor ou habilitados em oncologia no SUS podem usar a receita convencional (de cor branca), que é menos restritiva do que a amarela.
    O receituário amarelo só é distribuído pelo governo e retirado pelo médico na Vigilância Sanitária. Já o receituário branco pode ser impresso em gráfica comum por médicos ou hospitais.
    O ministério explica ainda que os opioides são indicados para determinados tipos de dor e apenas posteriormente a outros analgésicos conforme a escala estabelecida pela OMS (Organização Mundial da Saúde).
    A regulamentação sobre o uso de opioides é internacional. Há três convenções das Nações Unidas sobre o controle de drogas que são complementares.
    Essas convenções sistematizam as medidas de controle internacional com o objetivo de assegurar a disponibilidade de drogas narcóticas e substâncias psicotrópicas para uso médico e científico, e prevenir sua distribuição por meios ilícitos.
    Elas também incluem medidas gerais sobre o tráfico e o abuso de drogas. (CC)

      Cacilda, a obsessão e Livro celebra 55 anos de Teatro Oficina

      folha de são paulo
      Cacilda, a obsessão
      O diretor José Celso Martinez Corrêa estreia no sábado a quarta parte da saga sobre Cacilda Becker, iniciada nos anos 1990; ele brinca dizendo que o texto da peça é psicografado e ameaça: a quinta parte está a caminho
      GUSTAVO FIORATTIDE SÃO PAULOSentado em uma poltrona de sua casa no Paraíso, bairro paulistano, pés sobre a mesa, um colar indígena no pescoço e o cigarro apertado na mão, o diretor José Celso Martinez Corrêa, ao cair da noite de terça, divaga sobre a atriz Cacilda Becker (1921-1969).
      Bom, não é a primeira vez que ele faz isso.
      Mito maior da geração de artistas que transitou pelo Teatro Brasileiro de Comédia, Cacilda tornou-se o centro de uma louca obsessão na obra de Zé Celso, o diretor do grupo Uzyna Uzona, sediado no Teatro Oficina, no Bexiga.
      Neste sábado, ele estreia "Cacilda!!!! - a Fábrica de Cinema e Teatro", quarta parte de uma saga biográfica iniciada nos anos 1990.
      A primeira parte, "Cacilda!" (o número de exclamações determina o capítulo), trazia Bete Coelho, Leona Cavalli e Giulia Gam no personagem-título. Agora, fazem o papel Camila Mota e Sylvia Prado, veteranas do grupo.
      "Zé, quantas Cacildas mais virão por aí?". "Não sei. Vai ter a Cacilda cinco exclamações, depois encenaremos A Tempestade' [Shakespeare]."
      A nova montagem só terá cinco apresentações neste ano, uma no dia 23, em homenagem ao irmão de Zé Celso, Luis Antônio Martinez Corrêa, diretor de teatro assassinado em 1987.
      TALENTO E LOBBY
      Com um sorriso maroto, o diretor diz que os textos "são psicografados". Seu vasto campo de pesquisa inclui cartas guardadas pela biógrafa da atriz, Maria Thereza Vargas. Mas a liberdade poética fala mais alto, especialmente na criação de diálogos.
      A nova "Cacilda" visita um momento na vida da atriz em que ela já se estabeleceu como intérprete estrelada, com trânsito entre poderosos, inclusive entre ricaços da sociedade paulistana e carioca.
      Na peça, ela marca presença em eventos importantes para a cultura brasileira, esticando seu talento ao lobby entre empresários e políticos, como na criação da companhia cinematográfica Vera Cruz, no fim dos anos 1940.
      Também seus amores são retratados, com foco no relacionamento com Adolfo Celi (1922-1986). "Cacilda era namoradeira", diz o diretor, que a conheceu nos anos 1950.
      A vida sobre os palcos ganha passagens, com menções a "Arsênico e Alfazema", comédia de Joseph Kesselring, e "A Importância de ser Prudente", de Oscar Wilde.
        Publicação, que será lançada no dia 23, lista os nomes dos mais de 1.300 artistas que já passaram pelo palco do espaço
        Obra independente reproduz desde o mapa astral do grupo teatral até reportagens e programas de peças
        DE SÃO PAULOMais de 1.300 artistas já passaram pelo palco do Teatro Oficina nos seus 55 anos de existência. É uma conclusão cravada em "Oficina50+, Labirinto da Criação", livro independente organizado pelo ator e designer gráfico Mariano Mattos Martins, a ser lançado no Oficina no dia 23.
        Para juntar esses nomes em três páginas do livro, Mariano consultou programas de espetáculos e eventos que o Oficina realizou até hoje.
        A pesquisa foi levantada nos dois principais acervos do grupo, um deles guardado em uma casa no Bexiga, o outro aos cuidados da Unicamp, em Campinas.
        Embora se perca no excessivo número de reproduções de matérias de jornais, o livro traz preciosidades, como os mapas astrais riscados pelo astrólogo cubano Hector Othon a partir das datas de aniversário das três principais fases do grupo. "Consideramos que o Oficina nasceu três vezes", diz Martins.
        Ele se refere à estreia do grupo em 28 de outubro de 1958 (escorpião), com o espetáculo amador "Vento Forte para Papagaio Subir"; depois à estreia de "A Vida Impressa em Dólar" em 16 de agosto de 1961 (leão), início da vida profissional do Oficina; e, finalmente, à inauguração do projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi para o teatro, em 3 de outubro de 1993 (libra).
        Sobre as reproduções de reportagens, Martins diz que a ideia era começar a tornar público os documentos guardados pelos acervos.
        Há também textos de programas, cartas escritas pelo diretor Zé Celso à imprensa ou a órgãos do poder público e, ainda, um conjunto de textos criados especialmente para esta publicação, assinados pelos atores Aury Porto e Pascoal da Conceição e a diretora Cibele Forjaz, entre outros nomes.
        Descontados os trechos que propagam veneração à figura de Zé Celso (de fato, São Paulo está cheio de grupos que foram formados dentro do Oficina, como se aquele conhecido "terreiro eletrônico" fosse mesmo um berço), pesca-se aqui e ali alguns relatos inéditos e valiosos.
        TRIBOS
        A apresentação da saga "Os Sertões" no próprio sertão nordestino, descrita pelo ator Lucas Weglinski, é um exemplo: mostra o encontro do Oficina com o sertanejo, revelando as excentricidades das duas tribos.
        De um lado, trabalhadores e também ativistas do Movimento dos Sem Terra, do outro, atores propondo exercícios vocais e corporais aos vizinhos desconhecidos.
        Um coro é formado dentro do MST --e eles vão mesmo cantar "Asa Branca" durante as apresentações, realizadas no ano de 2004.
        Com custo de R$ 270 mil financiados a partir de lei de renúncia fiscal, a obra tem tiragem de 2.000 exemplares; 1.500 serão distribuídos para bibliotecas, universidades e outras instituições, e os 500 restantes serão vendidos no lançamento, por R$ 20.

          José Simão

          folha de são paulo
          Ueba! Obama causa em funeral!
          E essa piada pronta: 'Deputado é vítima de ladrões em Brasília'. Isso é restituição, não é furto
          Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Oba! Oba! Obama! O Obama causou no funeral do Mandela! Como disse um amigo: "O Obama estava igual ao arroz da minha mãe, soltinho, soltinho". E o grande babado: o Obama arrastando a asa pra loira, a primeira ministra da Dinamarca! Riram, tiraram foto no celular e aí a Michelle rodou a baiana.
          Fotomontagem da samara7days: o Obama azarando a loira, e a Michelle: "Vou matar essa vadia". E o fã-clube da Michelle no Twitter: "Dá na cara da perua, Michelle". "O Obama vai dormir de couro quente!". "Hoje o Obama dorme no tanque". "Vai dormir no tapete do Salão Oval com aquele w de welcome estampado na bochecha!". "Hoje o negão apanha!". Rarará! Depois cumprimentou o Raúl Castro! Primeiro milagre do Mandela! Cumprimentou o Raúl Castro e deixou o mundo estarrecido. Ué, eles são civilizados. Não é Vasco e Atlético-PR.
          E sabe o que os caras postaram no meu Twitter? "Civilizado, um cara que joga bomba e mata criança no Oriente Médio?". E outro: "Civilizado só o Obama, os Castro são uns animais". Esses não poderiam estar no funeral do Mandela. E nem em estádio de futebol! Rarará!
          E teve americano no Twitter da "Time" xingando o Obama de muçulmano comunista. O Obama é muçulmano comunista. Rarará!
          Ou seja, o Obama se comportou como se deve num funeral: cumprimentou o adversário, beijou a Dilma, azarou a loira e contou piada! Pior um amiga minha que foi a um velório e deixou o celular cair dentro do caixão. Rarará!
          E essa piada pronta: "Deputado é vítima de ladrões em Brasília". Isso é restituição, não é furto. Os ladrões, em vez de gritarem "passa o seu dinheiro", gritaram: "devolve o nosso dinheiro". Rarará!
          E essa, direto da China: "Homem se cansa de acompanhar namorada em lojas do shopping e se joga do sétimo andar". Isso é Natal! Quando a namorada ameaçou entrar na 18ª loja, ele se atirou do oitavo andar! É mole? É mole, mas sobe!
          O Brasileiro é Cordial! Olha essa placa em Campos, cidade do Garotinho: "Proibido jogar lixo! Raça do cão gerada nos infernos". Então deve ser o Garotinho, gerado nos infernos! Rarará! E eu gosto dessas placas bem básicas: "Favor não mijar no chão, vá mijar no chão da sua casa". Rarará! Hoje, só amanhã.
          Nóis sofre, mas nóis goza!
          Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

            Contardo Calligaris

            folha de são paulo
            Sou de esquerda ou de direita?
            Tenho repulsa por qualquer tipo de tutela. Por isso, sou libertário. Isso é de direita ou de esquerda?
            Li a pesquisa do Datafolha publicada na Folha de domingo passado, e tentei entender se sou de esquerda ou de direita. Não consegui concluir. As frases propostas à apreciação dos entrevistados me deixam hesitante; sempre preciso completá-las (com adversativas e reservas) para poder concordar ou discordar.
            Por exemplo, o "governo deve ser o maior responsável por investir para a economia crescer". É uma ideia que deveria seduzir meu lado esquerdo. Mas"¦ não sei se houve uma época da minha vida em que eu não desconfiasse da intervenção do Estado na vida da gente. No Brasil de hoje, então, nem se fala: qualquer aumento da presença do governo agita visões pavorosas de corrupções crônicas e de burocracias acomodadas e ineficientes.
            Em geral, a geração à qual pertenço, a dos baby boomers, não gosta de Estados e governos. Alguns de nós (uma pequena minoria) cresceram e militaram num isolamento cultural que os deixou à margem da revolução libertária dos anos 60 --isso, sobretudo em países que, na época, eram dominados por ditaduras, como o Brasil. Mas, para a grande maioria dos baby boomers, sonhar com justiça e dignidade para todos nunca significou confiar em Estados, governos, entidades coletivas, partidos e opiniões dominantes.
            Conheci de perto (apesar do cheiro) alguns moradores de rua de Paris e Nova York que não se deixam levar para um abrigo nem nas piores noites do inverno, porque não aceitam ter que ouvir um sermão ou uma missa em troca de calor, sopa e colchão. Eles são meus heróis. Nossa tendência é outra: aceitamos facilmente a tutela moral de Estados e governos, como se fosse normal retribuir assim os benefícios da social-democracia.
            Regra: o Estado que parece pagar a conta (embora ele pague com nossos impostos) sempre se sente autorizado a expandir sua tutela moral sobre nós. E eu tenho repulsa por qualquer tipo de tutela. Nisso e por isso, sou libertário. Como isso funciona com direita e esquerda?
            Houve uma época em que, nos EUA, a direita era libertária (como se espera da direita, ela não gostava que o governo se metesse na vida da gente). Por exemplo, a direita libertária podia detestar gays e lésbicas, mas não por isso reconheceria ao Estado o direito de dizer o que se pode e o que não se pode na vida sexual e afetiva das pessoas.
            Isso acabou: a direita de hoje adora tutelar os cidadãos (todos vulneráveis e meio incapazes, não é?) e tenta promover leis que regrem o comportamento de todos segundo seus "princípios".
            Será que a esquerda, então, herdou o antigo espírito libertário da direita? Nem um pouco. Quando a direita começou a querer transformar suas crenças em legislação, a esquerda fez a mesma coisa, com um agravante: ela se tornou hipócrita (ela sempre declara querer o bem de todos, até dos que ela persegue).
            Um exemplo. Hoje o Brasil recebe François Hollande, presidente da França. O governo (de esquerda) de Hollande é responsável por uma recente proposta de lei pela qual 1) é preciso abolir a prostituição e 2) o jeito é penalizar os clientes das prostitutas, com multas e prisão (leis parecidas já foram tentadas na Suécia e na Noruega, com resultados pífios e sinistros para as prostitutas).
            Sugiro que nossa presidente ofereça a seu colega francês o livro de Adriana Piscitelli, "Trânsitos "" Brasileiras nos Mercados Transnacionais do Sexo" (Uerj).
            Além de ser um bom exemplo da qualidade de nossas pesquisas, o livro lembraria a Hollande que somos menos hipócritas que seu governo: sabemos que o verdadeiro problema que o governo francês quer resolver não é a prostituição (e ainda menos a prostituição forçada), mas a imigração de mulheres, que tentam ser livres trabalhadoras do sexo e que, em geral, não são vítimas nem de traficantes, nem de cafetões, nem de seus clientes.
            Cher M. Hollande, bem-vindo ao Brasil. A França pode tomar decisões erradas, como todo mundo, mas, pela cultura e pelas ideias que ela representa sobretudo nos últimos dois séculos, ela não pode, não deve se permitir ser ridícula. Merci.
            Agora, uma palavra, em aparte, a Dilma Rousseff: Presidente, pode ser que a gente já tenha decidido comprar os Rafales, mas os franceses não sabem disso. Será que poderíamos negociar? Vamos comprar seus caças, mas vocês deixem suas prostitutas em paz? Seria generoso, e alguns brasileiros e brasileiras na França agradeceriam.

            Janio de Freitas

            folha de são paulo
            Entre os poderosos
            A consagração a Mandela em sua morte ressalta, por contraste, a falta de estadistas no mundo atual
            A consagração a Mandela em sua morte ressaltou mais do que o valor já reconhecido em vida a esse ser extraordinário. Silenciosa, em meio ao tanto que foi dito e entre todos os que representaram poderes e povos a homenageá-lo, esteve em tudo a evidência, por contraste, da falta de estadistas no mundo atual. Isto foi o Mandela pranteado: estadista.
            Quem, entre tantos detentores dos poderes, causaria hoje no mundo, não só um possível choque com a notícia súbita de sua morte, mas uma comoção sincera, a atmosfera de empobrecimento difuso, a percepção inconsciente de que uma ausência distante no planeta nos prova o quanto, no mais fundo de nós, somos e nos sentimos próximos --quem?
            OUTROS MORTOS
            Um mérito está assegurado, antes de qualquer discussão, ao relatório da Comissão Municipal da Verdade de São Paulo que afirma a morte de Juscelino Kubitschek por assassinato: provoca a retomada, em ambiente afinal favorável, desse caso repleto de imprecisões e suspeitas desde o primeiro momento. Com o reexame da morte de João Goulart, já em curso, talvez os dois gerem força capaz de fazer com que a morte de Carlos Lacerda seja estudada nos seus muitos mistérios.
            O noticiário módico, em comparação com a quase centena de provas e indícios relatados, não dá ideia da firmeza do material e das conclusões da comissão. Não há dúvida, porém, de que inova em uns e renova outros questionamentos importantes. Mais uma comprovação de que a perícia e as alegadas investigações em 1996, quando dos 20 anos da morte de Juscelino, ficaram muito aquém do necessário para respostas confiáveis, em um ou em outro sentido.
            A família de Carlos Lacerda, contrariamente às de Juscelino e Jango, jamais aderiu a propostas de esclarecimento da estranha e rápida doença fatal que o acometeu, com apenas 63 anos, em maio de 1977. Mas o assunto, hoje, já deixou de ser político e, tanto quanto familiar ou ainda mais, é da história. Tudo indica que essencial para a história da ditadura e seus crimes.
            DE PRESENTE
            O Ministério Público de São Paulo ficou muito mal no caso, que atinge o PSDB, de altas compras para o metrô e trens paulistas. E sua defesa o deixa pior.
            Como relatou o repórter Mario Cesar Carvalho (Folha, 8/12, "Testemunha nas sombras"), a promotora Beatriz Lopes de Oliveira rebate as acusações de incompetência do MP com o argumento de que o denunciante do cartel Siemens/Alstom "dizia ter provas, mas nunca apresentou nada", lá por 2010. "Sem provas", diz a promotora, "nenhum juiz concederia uma autorização de busca ou escuta telefônica".
            Tais autorizações são exatamente para coletar provas. Para concedê-las, os juízes exigem razões convincentes. E não constou, jamais, que a competência e a eficiência de promotores dependessem de ganhar provas.
            A denúncia já era um grande presente, que o Ministério Público não utilizou, seja lá pelo que for.