quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Claudia Collucci

folha de são paulo
'Cuidar de doente mental exige treinamento'
Psiquiatra André Carvalho defende em livro capacitação de clínicos gerais para tratamento
CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULOUm dos caminhos para melhorar o atendimento aos doentes com transtornos mentais no Brasil é a capacitação de outros profissionais de saúde, como os clínicos gerais, no atendimento às emergências psiquiátricas.
É o que defende o psiquiatra André Carvalho, professor da Universidade Federal do Ceará, e um dos autores do livro "Emergências Psiquiátricas" (Artmed Editora).
Carvalho diz que, ao mesmo tempo que as emergências dos hospitais gerais viraram porta de entrada para muitos doentes mentais, como mostrou a Folha anteontem, falta treinamento adequado aos médicos geralistas para atender esses transtornos.
O Ministério da Saúde diz que está nos planos do governo capacitar os clínicos para o atendimento das emergências psiquiátricas. A seguir, trechos da entrevista de Carvalho.
Folha - Como estão as emergências psiquiátricas?
André Carvalho - A situação é bem preocupante. Hoje temos um décimo do número de leitos psiquiátricos recomendados pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Em alguns Estados brasileiros, menos que isso.
O novo modelo proposto não está maduro. A grande maioria dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) não funciona à noite nem está presente em todas as cidades.
Isso leva os pacientes de emergências psiquiátricas aos prontos-socorros comuns. Só que esses locais são muitas vezes ineficientes nesses casos porque não há treinamento e conhecimento dos profissionais de saúde.
Soma-se a isso o fato de que temos um número muito reduzido de psiquiatras, que não são capazes de suprir a demanda das emergências.
*Falta capacitação ou é muito mais estigma em relação aos pacientes psiquiátricos?
As duas coisas. Ainda há muito preconceito. Estudos feitos na Europa e nos EUA demonstram que os médicos generalistas se sentem desconfortáveis e também não têm capacitação adequada para lidar com esses pacientes. Eles temem pela própria segurança.
Os médicos têm medo dos doentes mentais?
Há muitas concepções errôneas a respeito da periculosidade desses pacientes não só aqui como em sistemas de saúde bem mais consolidados, como o britânico.
Lá, estudos demonstraram que as consultas [com clínicos gerais e médicos de família] de pacientes com transtornos mentais graves, que têm outros problemas crônicos, como hipertensão e diabetes, são agendadas menos frequentemente se comparadas aos que não têm transtornos.
E por que isso acontece?
Porque esse profissional não está bem esclarecido sobre o que é o diagnóstico e as opções de tratamento. Nosso livro tenta viabilizar esse tipo de conhecimento, uma capacitação prática de avaliação e manejo de diversos quadros de emergência. É muito importante lembrar que uma grande proporção das pessoas que se suicidam consulta um clínico geral seis meses antes de cometer o suicídio, mas os médicos não conseguem detectar isso.
Falta também disseminar conhecimento às famílias?
Sem dúvida. As famílias precisam entender que os pacientes não fazem determinadas coisas porque querem ou porque são agressivos deliberadamente. São alterações cerebrais, bioquímicas, biológicas que geram esses comportamentos.

    Julia Sweig

    folha de são paulo
    Revolução na Flórida?
    Pesquisa mostra que 62% da população do Estado defende a normalização das relações entre EUA e Cuba
    Nós, americanos, gostamos de nos enxergar como pessoas pragmáticas que solucionam problemas. Mas, no caso dos últimos 55 anos de política em relação a Cuba, ainda adoramos ídolos falsos que pregam a mitologia da era de Eisenhower e Kennedy, segundo a qual guerras econômicas (e às vezes militares) promoverão mudanças de regime.
    Mas não por muito tempo.
    Novos dados divulgados nesta semana mostram que a opinião pública dos EUA e da Flórida é favorável a mudanças substanciais na política cubana de Washington.
    De acordo com pesquisa bipartidária, 56% dos americanos são a favor da normalização das relações com Cuba. O apoio é maior entre democratas e independentes, mas, fato notável, chega a 52% entre os republicanos.
    A maior notícia, possivelmente, é que a Flórida, que abriga a maior população cubano-americana, lidera a nação por sete pontos percentuais no apoio à normalização, defendida por 63% dos latinos e 62% da população total do Estado.
    Além disso, na Flórida 67% dos adultos e 66% dos latinos querem o fim da proibição às viagens a Cuba para todos os americanos, direito hoje reservado a cubano-americanos.
    Ah, e lembra a Guerra Fria? Foi quando Ronald Reagan colocou Cuba na lista do Departamento de Estado de países que patrocinam o terrorismo. Conservar Cuba na lista é um importante símbolo de deferência aos deuses e deusas do status quo atual, além de grande obstáculo às relações comerciais e de investimentos com os EUA.
    Hoje, porém, 61% dos americanos acham que Cuba deve sair dessa lista. Na Flórida, antigo reduto de exilados que planejavam ataques terroristas a Cuba e agora uma das primeiras beneficiárias dos laços econômicos nascentes, essa porcentagem sobe para 67%.
    Os políticos do Estado captam a mensagem. Charlie Crist, ex-governador republicano, trocou de partido e agora lidera a contestação democrata ao governador Rick Scott.
    Na semana passada, Crist disse em rede nacional que é hora de acabar com o embargo. Ele focou na oportunidade de empregos e crescimento da Flórida, ligando o futuro econômico do Estado ao de Cuba.
    O governador Scott atacou Crist, mas sabe que a resposta de Crist de que a Flórida não pode mais curvar-se diante de alguns poucos ídolos na questão de Cuba acertou na mosca.
    Afinal, foi Rick Scott quem, em uma mesma semana de 2012, se opôs e, depois, pressionado, apoiou uma lei que proibiria empresas como a Odebrecht de firmarem contratos na Flórida se também tivessem negócios com Cuba.
    Depois, uma corte federal considerou a lei anticonstitucional. A Odebrecht e o Brasil provavelmente se beneficiarão de um futuro econômico interligado da Flórida e de Cuba.
    Esses números de opinião pública são ainda melhores que os resultados eleitorais do presidente Obama em 2012: 51% do voto popular nacional e 50% do voto cubano-americano na Flórida. É política doméstica por números: é hora de um pouco de pragmatismo presidencial.
    @JuliaSweig

      Elio Gaspari

      jornal o globo
      A histeria dos comissários
      Manifestante é manifestante, delinquente é delinquente, bandido é bandido e terrorista é terrorista
      Os surtos histéricos diante da violência urbana dão em nada. Se dessem, ela já teria acabado há décadas. Já os surtos de histeria política, quando dão em alguma coisa, acabam mutilando as liberdades públicas.
      O senador Jorge Viana defendeu a aprovação em regime de urgência de um projeto de seu colega petista Paulo Paim que classifica como terrorismo os atos de violência física praticados durante manifestações de rua. Depredações e mesmo desacato à autoridade policial são delitos previstos no Código Penal. Isso para não se mencionar o homicídio do cinegrafista Santiago Andrade.
      O projeto petista define assim o ato terrorista:
      "Provocar ou difundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoas".
      A pena iria de 15 a 30 anos de prisão. Se a ação resultar em morte, sobe de 24 a até 30 anos. Fica por aí porque esse é o limite máximo da pena de reclusão nas leis brasileiras.
      Deixando-se de lado o caráter vago do que seria "provocar ou difundir terror ou pânico generalizado" e a precisão da pena mínima (15 anos de reclusão), pode-se buscar um caso semelhante de histeria, com danos historicamente conhecidos.
      Que tal assim?
      Será crime "comprometer a segurança nacional, sabotando quaisquer instalações militares, navios, aviões, material utilizável pelas Forças Armadas, ou ainda meios de comunicação e vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, depósitos e outras instalações:
      Pena: reclusão de 8 a 30 anos."
      Essa era a redação do artigo 11º da Lei de Segurança Nacional, baixada a 21 de outubro de 1969, no auge da ditadura, pouco depois do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick.
      A pena mínima para um sabotador de quartel ou aeroporto (imputações específicas) era de 8 anos. Para assalto a banco ou sequestro de avião ela ia de 10 a 24 anos. Nos dois casos, as penas eram inferiores às que prevê o surto petista. Caso o delito resultasse em morte, a pena seria de fuzilamento. Apesar de ter havido uma condenação, ninguém foi executado dentro das normas legais.
      O comissariado quer expandir a definição de terrorismo precisamente numa época em que sexagenários que militaram em organizações da esquerda armada aborrecem-se quando alguns de seus atos são chamados de ações terroristas. O atentado do aeroporto dos Guararapes, por exemplo, quando explodiu uma bomba no saguão, matando duas pessoas e ferindo 14. Ele ocorreu em 1966, dois anos antes da edição do Ato Institucional nº 5. Oito meses antes do AI-5, um documento do Comando de Libertação Nacional, o Colina, dizia que "o terrorismo, como execução (nas cidades e nos campos) de esbirros da reação, deverá obedecer a um rígido critério político". Assim, quatro meses antes da edição do AI-5 mataram um major alemão que pensavam ser o capitão boliviano que estivera na operação que resultou no assassinato do Che Guevara. Nessa organização militava, com o codinome de Wanda, a doutora Dilma Rousseff. Tinha seus 20 anos e nunca foi acusada de ter participado de ação armada.
      Como diria Ancelmo Gois: "Calma, gente".

      Helio Schwartsman

      folha de são paulo
      A resposta de sempre
      SÃO PAULO - O que fazer quando você não sabe o que fazer? Se você é parlamentar, a resposta é simples: dê a impressão de que age, criando uma lei. Nem é necessário produzir uma peça nova. É sempre possível recorrer a projeto já em tramitação ou que repouse nos escaninhos do Congresso. O estoque é inesgotável.
      Desta vez, não foi diferente. Políticos aproveitam a justa indignação em torno da morte do cinegrafista Santiago Andrade, vítima de um artefato explosivo lançado por "black blocs", para tentar acelerar a aprovação do projeto de lei que tipifica o crime de terrorismo. Pouco importa que essa proposta já estivesse na pauta do Senado antes do homicídio e que ela seja, ao mesmo tempo, inoportuna e indesejável.
      Para começar, o Brasil --felizmente, frise-se-- não tem um problema de terrorismo, se o compreendermos em sua acepção clássica, que é a violência política que se vale de homens-bomba, sequestros etc., exercida por organizações clandestinas razoavelmente bem estruturadas.
      A ação dos "black blocs" é mais bem descrita como uma combinação de vandalismo com estupidez. O Código Penal já traz ampla coleção de artigos que podem ser usados para reprimi-los. Ela inclui homicídio, perigo comum, dano à propriedade, formação de quadrilha, entre outros.
      Não é por falta de tipos penais que manifestantes violentos não estão presos, mas porque a polícia é na maioria das vezes incapaz de identificá-los e reunir as provas que poderiam condená-los. Passar a chamá-los de terroristas e agravar as penas certamente não vai mudar isso.
      Por fim, mas não menos importante, o projeto é ruim. Ele lança uma definição vaga e imprecisa de terrorismo e estabelece sanções duríssimas. Um sujeito que provoque pânico incendiando um carro, mesmo que não fira ninguém, pegaria de 20 a 40 anos de cadeia. A título de comparação, a pena reservada para o homicídio qualificado é de 12 a 30 anos.

      Ruy Castro

      folha de são paulo
      Trevas dos brasileiros
      RIO DE JANEIRO - Nelson Rodrigues, numa crônica dos anos 60, falou de um inglês de passagem pelo Rio. Ao lhe perguntarem que característica identificava no brasileiro, o visitante espiou em volta e declarou: a cordialidade. Referia-se às pessoas que, nas ruas, se dirigiam umas às outras como se se conhecessem, fossem íntimas e se estimassem, embora nunca se tivessem visto.
      Nelson fez disso um artigo, mas talvez não partilhasse da ideia do inglês --ou não de todo. Porque, em outra crônica, pouco depois, escreveu: "O brasileiro tem suas trevas interiores. Convém não provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro".
      Mas se não sabíamos como era o brasileiro por dentro, não é por falta de exemplos que estamos deixando de saber. Nosso passado recente inclui prisioneiros metralhados às centenas numa cadeia, homens fritando seus semelhantes em "micro-ondas" nas favelas ou abatendo helicópteros com fuzis. Chacinas são vistas como faxinas. Outros degolam companheiros de cela, chutam cabeças de adversários caídos nas arquibancadas, agridem moradores de rua e gays e vão às ruas para destruir, queimar, matar.
      Conheci Santiago Andrade, o cinegrafista morto pelos "black blocs". Durante anos, veio semanalmente a meu apartamento, com o produtor João Paulo Duarte, para gravar uma coluna diária que eu fazia na TV Band News. Era grande profissional e pessoa. Insistia no melhor enquadramento, melhor som, melhor luz. Se, por minha culpa, tivéssemos de refazer cada coluna duas ou três vezes, era com ele mesmo.
      Santiago foi vítima desses brasileiros que estão pondo suas trevas para fora. Há algo de monstruoso em quem dispara um rojão em meio a uma multidão, indiferente ao que pode acontecer. Alguém fracassou na formação desses indivíduos. Não somos cordiais, somos cruéis, e é bom que o mundo se cuide a nosso respeito.

      José Simão

      folha de são paulo
      Ueba! Depois do Apagão, o Sujão!
      Sabe quem inventou o chuveiro? Merry Delabost. Então devia ter inventado a privada, e não o chuveiro!
      Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Direto do País da Piada Pronta: "Bebedouro adota racionamento de água". Rarará. Depois do Apagão, vem o Sujão!
      Primeira dica para economizar água: não pode lavar a calcinha no chuveiro!
      Segunda dica pra economizar água: você não entra no chuveiro, você PASSA pelo chuveiro.
      Por isso que aquela minha amiga já botou a placa no box: "Favor só lavar o que for usar hoje".
      E aquela pilha de roupa pra lavar? Manda pra casa do Alckmin! Rarará!
      E como diz um amigo meu: "Com esse racionamento, não dá nem pra bater uma no chuveiro". Rarará!
      Aliás, sabe quem inventou o chuveiro? Um francês chamado Merry Delabost. Então devia ter inventado a privada, e não o chuveiro! E francês inventar o chuveiro já é uma piada pronta! Rarará!
      E o site Piauí Herald revela que Alckmin acusa São Pedro de formação de cartel: "Alstom, Climatempo e São Pedro se uniram pra sabotar o nosso governo".
      E o Padilha, do PT: "Quando eu for eleito, importarei uma frente fria de Cuba". Rarará!
      E quem economizar água ganha desconto! Então espreme a família inteira embaixo do chuveiro. Lava a jato!
      Família que lava a jato junta, permanece junta! Rarará!
      E o Pizzolato virou Prezolato e o Azeredo virou Azarado! E o mensalão mineiro vou chamar de POLVILHÃO!
      E sabe como se chama a empresa do Marcos Valério? SMPB.
      Então SMPB quer dizer: Surgiu em Minas e Pegou o Brasil! Rarará! PT e PSDB, não tem virgem na zona.
      E como diz o chargista Elvis: "Sensação térmica: ovo frito". O Brasil virou um ovo frito! Rarará.
      E hoje cedo recebi o e-mail de um amigo: "Ônibus delicioso, quentinho, cheio de gente". Rarará!
      É mole? É mole, mas sobe!
      Os Predestinados! Mais três para a minha série Os Predestinados! Aqui em São Paulo tem uma cirurgiã plástica chamada: Deusa Pires! Chama a Rosana: "Como uma deeeeusa". Rarará.
      E direto de Belém do Pará, o neurologista: Heraldo CABEÇA!
      E em Portugal tem uma médica chamada Sara Rola! Rarará.
      Nóis sofre, mas nóis goza!
      Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

      Marcelo Coelho

      folha de são paulo
      Luxo e miséria das popozudas
      Com injeções de silicone, ela pode construir o corpo feminino que alguns homens gostariam de ter
      O clipe me chegou pelo Facebook, e é tão delirante que merece comentário. Chama-se "Beijinho no Ombro", e o título só na aparência transmite mensagens amorosas.
      Trata-se da produção mais recente da musa funk Valesca Popozuda. O vídeo, disponível no YouTube, começa em grande estilo: sobre um fundo negro, as letras brancas de "Map Style Entertainment" se destacam com elegância, em perfeita imitação do que seria o começo de um filme indicado ao Oscar.
      Sons de filme gótico introduzem o ambiente, um castelo branco-azulado, como nas melhores produções de terror dos estúdios ingleses da Hammer, na década de 1970. Monges de capuz avançam lentamente na penumbra, prestando reverência a uma rainha coberta de vison preto.
      É ela, Valesca: uma loira de traços algo masculinos, cabelos presos em coque, brincos de brilhante. Não chega a ser inconvincente na imagem de "grande dama", algo que só mais adiante, quando ela começa a cantar, sua voz e seu sotaque irão comprometer.
      O close no seu rosto se interrompe, há um corte no filme, para dar lugar a outra cena... em que aparece a mesma Valesca, no mesmo cenário, só que agora com outra roupa, descendo a escada do palácio.
      Ela está vestida de rainha, até que bem, com mangas bufantes de cetim cor de vinho rosé, um diadema na testa, o mesmo olhar imperioso e classudo. Em primeiro plano, um lustre dourado de cristal. Não é tão de mau gosto como dou a imaginar nesta descrição. Estamos, talvez, num belo desfile de Carnaval, mas certamente longe da 25 de Março.
      Só depois disso vemos que, da cintura para baixo, Valesca abandonou o estilo renascentista para adotar o visual típico da Xuxa em sua primeira fase. Botas, shortinho, meias fosforescentes. Os monges que a acompanhavam na primeira cena agora são bailarinos maquiados de calçãozinho preto, numa estética de strip-tease gay.
      Agora ela entoa, com a mais assumida vulgaridade, o seu canto de guerra. Os plurais se atropelam. "Desejo a todas inimigas vida longa/ pra que elas veja cada dia mais nossa vitória."
      O "beijinho no ombro" não é uma carícia no namorado, mas o gesto de quem vira o rosto com desprezo antes de seguir em frente, deixando a fila das invejosas para trás. "Late mais alto que daqui eu não te escuto", diz Valesca às supostas rivais.
      "Do camarote quase não dá pra te ver", completa a poderosa funkeira, e ameaça: "bateu de frente é só tiro, porrada e bomba".
      A música prossegue, e ela já trocou novamente de roupa e de cenário, toda de arminho, num trono vermelho de Papai Noel com neve artificial; mas volta ao vison, recai na Xuxa veneziana, entregue a um carrossel de fantasias que só termina com o recado definitivo: "rala, sua mandada".
      Muita coisa se mistura nesse clipe. Antes de mais nada, é o hino da emergente social, a que ascendeu "ao camarote". Seu problema é que, embora tenha dinheiro para gastar, não se desvencilhou do círculo de origem. Não tem amigas nas "altas esferas": dá-se, ainda, com as colegas mais pobres, tendo de enfrentar a inveja à sua volta.
      É triste a situação: nesse enfrentamento, Valesca corre o risco de se revelar a "barraqueira" que não deixou de ser --e ameaça com "tiro, porrada e bomba" as possíveis inimigas. Como prosseguir na nova vida, se para se defender está aferrada aos códigos do tráfico e da polícia?
      A solução será a de imitar aqueles que, mesmo privilegiados, tenham sido oprimidos também. Nada melhor que o gay rico em algum lugar do passado: sabe o que é o triunfo e a humilhação.
      Valesca Popozuda se veste de rainha e se mostra desdenhosa em seu poder, como se correspondesse, digamos, ao sonho que Clodovil Hernandes tinha a respeito de suas vidas passadas.
      É possível que algum gay da velha guarda imaginasse um tipo de mulher dominadora, rainha de conto de fadas, figura de infância inatingível, que lhe tivesse roubado o falo. A funkeira concretiza, na vida real, essa madame imaginária.
      Não é apenas uma mulher dona de si mesma, mas uma madame "assumida", como se falava dos "gays assumidos" 30 anos atrás, ou da "direita assumida" do cenário político atual. Com injeções de silicone, ela pode construir legitimamente, em pleno direito, o corpo feminino que alguns homens gostariam de ter.
      Aquele universo infantil de Disneylândia e Parque da Xuxa é também um castelo assombrado, em que a "popozuda" adquire poder invocando os fantasmas de Clodovil e Clóvis Bornay.
      O imaginário emergente, com suas fantasias de luxo, medo da inveja e agressividade à flor da pele, exalta o corpo perfeito e o "sucesso merecido". Mas perde tempo quem procurar sinais de felicidade nisso, tal o peso da violência e do ressentimento.
      Há outras formas de celebrar a ascensão social no mundo "funk", mas ficam para um próximo artigo.

      Jairo Marques

      folha de são paulo
      A sociedade da intolerância
      Forçar na fuça do outro o que se considera ideal é prerrogativa de tempos que não deixaram saudade
      Na semana passada, duas deputadas federais que são cadeirantes, Mara Gabrilli (PSDB-SP) e Rosinha da Adefal (PTdoB-AL), receberam uma vaia retumbante ao conseguirem, após uma hora de atraso, embarcar em um avião em Brasília.
      Os passageiros estavam possessos com aquela demora que ocasionaria transtornos diversos em suas vidas. Tudo por causa de duas políticas que, provavelmente, estavam tendo algum tipo de regalia como poderiam pensar alguns, os que puxaram a reprovação coletiva.
      Não era nada disso. As duas, como qualquer pessoa com deficiência deste país, passaram maus bocados para que a empresa aérea e a Infraero conseguissem o equipamento que garante o embarque --com alguma dignidade, e não como um saco de batatas-- para quem usa cadeira de rodas ou tem movimentos restritos.
      Também na semana passada, um adolescente negro e "bandidinho" foi amarrado a um poste com um cadeado fixado a sua goela para mostrar como se faz com quem é infrator e um homem foi ridicularizado nas redes sociais porque estava no aeroporto de camiseta regata e bermuda, afinal, o calor está de matar.
      Adicione a esses "fatos isolados" as surras que gays têm tomado diuturnamente nas grandes cidades, os ataques como quais os de enxame de abelhas em pessoas que externam pontos de vista avessos ao padrão dito comum e as ameaças a grupos de piadistas.
      Velozmente, atitudes pouco pensadas e questionadas, com consequências nada imaginadas e medidas, estão sendo postas em curso, doa a quem doer. O que importa é colocar para fora insatisfações ligeiras ou que incomodem ao ponto de gerar um beicinho, uma sensação de mal-estar.
      Tolerância com as diferenças e com a diversidade é valor em franco declínio. O pato a pagar com essa falta de maturidade social, que não analisa, apenas age, tende a cair no colo de quem não se alinha ao óbvio.
      Sendo o óbvio os atrevidos, os que compõem minorias, os que não jogam no meu time, os que não comem no meu restaurante e os que "eu" considero incomuns diante do que "eu" acredito ser bacana.
      O incômodo com o outro é do homem desde as cavernas, mas sacar as bordunas e empunhá-las na fuça alheia a troco de querer garantir o que unilateralmente se considera Justiça ou se considera ideal é prerrogativa de tempos históricos que não deixaram saudade.
      Lá em casa, Cláudia e Marcos ficaram grávidos de gêmeos e estavam ansiosos para que seus pequenos trouxessem ainda mais confusão à família, que foi agregando gente de todos os tipos: japonês, mineiro, italiano, gordo, magro, "mal-acabados" e muitos cachorros.
      Pois não é que Luiza nasceu branquinha, como a mãe, e Bernardo fincou os pés na África e tem a cara do pai, que é negão? Motivo de orgulho, de festa e de reflexão sobre como é bom ter próximo um carnaval de diferenças para tentar entender mais a multiplicidade de verdades em torno das pessoas.
      Sair do quadrado daquilo que se acha correto, normal e dentro dos padrões expondo-se a vestir uma roupa do avesso pode ajudar a diminuir o protagonismo da intolerância e ampliar o direito do outro de ser o que quiser e de ser mais bem compreendido em suas demandas.