sexta-feira, 7 de março de 2014

Que lições podemos tirar da crise da Ucrânia?

Que lições podemos tirar da crise da Ucrânia?

Natalie Nougayrède
Que lições podemos tirar até esse momento da impressionante crise na Ucrânia, que por tanto tempo foi o "fantasma da Europa", para usar uma expressão do ex-dissidente Leonid Plyushch?
1. A diplomacia russa é um tremendo rolo compressor que avança incessantemente, no estilo Gromyko dos anos 1970, na direção de objetivos com grande persistência. Moscou quer a criação de uma ordem pan-europeia revisada, afastando os americanos. Isso não vem nem de ontem nem de Putin, mas sim da visão que já era tida pela URSS no tempo dos acordos de Helsinque de 1975. Todos se lembram de que o objetivo da Otan era, segundo seu primeiro secretário-geral, "manter os americanos do lado de dentro, os russos do lado de fora e os alemães embaixo."
Em 2008, o jovem presidente russo Dmitri Medvedev havia inaugurado seu mandato propondo aos ocidentais um acordo de segurança coletiva na Europa saído diretamente da naftalina da era Brejnev. Esse texto proibia a cada Estado europeu de se juntar a uma aliança ou entidade internacional caso essa escolha entrasse em conflito com os interesses de um outro Estado europeu. O revisionismo opressivo de Vladimir Putin constitui um grande desafio para os europeus hoje.
2. Com razão ou não, Moscou sentiu no presidente Obama fraquezas que podem ter incentivado o líder do Kremlin a empregar o método da força bruta contra o vizinho eslavo. Para explicar essa percepção, podemos citar o desinteresse pessoal de Barack Obama pela Europa, o "reset" (retomada da relação bilateral com Moscou) pouco convincente, e o "redirecionamento" para a Ásia que marcava uma retirada estratégica americana do Velho Continente paralelamente aos desengajamentos no Afeganistão e no Iraque. Seriam oportunidades se abrindo aos olhos de Moscou.
As hesitações de Obama quanto à Síria, no início de setembro de 2013, que desistiu de defender sua "linha vermelha" quanto às armas químicas, puderam ser interpretadas como covardia, episódio rapidamente explorado por Moscou. O efeito dessas sequências sobre Vladimir Putin teria sido suficientemente analisado? Seis meses mais tarde, vemos a relação de forças na Crimeia.

Crise na Ucrânia - 16 vídeos

Barack Obama havia guardado de sua experiência como senador do Congresso americano a imagem de uma Rússia muito diminuída. Sua única viagem a esse país antes de se tornar presidente fora para visitar locais de armazenamento de materiais nucleares, e ele voltou chocado de lá pelo estado de decrepitude das instalações. Para Obama, a Rússia foi nos últimos anos uma interlocutora difícil em vários assuntos, mas ela certamente não era considerada uma ameaça.
3. A questão das prioridades ocidentais, portanto, foi colocada em segundo plano. A obsessão antiterrorista desde 2001, as poderosas redes de vigilância da NSA e de seus aliados empregadas contra a Al-Qaeda fizeram perder de vista ameaças mais "clássicas", e portanto, consideradas coisas do passado nessa Europa banhada por um espírito kantiano e pelo princípio da regra normativa.
Foi redescoberta, a duas horas de voo de Paris, a capacidade de um Estado - a Rússia - de empregar a força contra a soberania de um outro Estado em nome da proteção de seus cidadãos ou de russófonos. Após a queda da URSS, e até 1994, a CIA havia avaliado que existia um risco de conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia, mais precisamente na Crimeia. Com o tempo, esse cenário passou a parecer pura ficção. O despertar foi brutal.
Acostumados com a espionagem russa relançada em todas suas formas, os ocidentais foram incapazes, em tempos recentes, de compreender exatamente a atitude de Putin quanto à Ucrânia, ou de antecipar sua obsessão sobre essa questão. Angela Merkel o teria descrito recentemente como "desconectado da realidade."
4. A ingenuidade na análise de alguns europeus agora equivale a um erro estratégico. Em Paris, não faltaram sicofantas do sistema Putin desde que ele chegou ao poder, em uma mistura de visão fantasiosa de uma aliança franco-russa romântica e redes de dinheiro e de negócios, até o domínio militar.
A venda para a Rússia do Mistral, navio indicado para invadir um território como a Crimeia, é o exemplo manifesto de uma política míope. Os italianos, com a ENI, e sobretudo os alemães, com seu poderoso lobby industrial, foram os arquitetos de uma dependência europeia dos hidrocarbonetos russos.
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7.mar.2014 - Mais de 65 mil pessoas participaram de uma manifestação no centro de Moscou para apoiar a iniciativa do Parlamento regional da república autônoma ucraniana da Crimeia de se incorporar à Rússia, nesta sexta-feira (7) Yuri Kochetkov/Efe
A Europa também ignorou o passado ao virar com pressa a página da invasão parcial da Geórgia em 2008, após uma mediação que não resolveu nenhum dos problemas de fundo. O desprezo de Putin era visível durante seu discurso recente para a televisão, largado em uma poltrona, com as pernas afastadas, dando sua visão de um Ocidente decadente. Agora será preciso definir quais podem ser os instrumentos europeus de uma relação lúcida e construída junto com uma Rússia cuja impulsividade não pode mais ser descartada.
5. As turbulências às quais temos assistido lembram que a democratização do espaço europeu não foi completa. A Ucrânia foi no século 20 uma terra de sangue, concentrando em seu território os crimes mais terríveis: a fome e as repressões stalinistas dos anos 1930, e depois o "Holocausto por balas". Em 1986, o desastre nuclear de Tchernobyl provocou um abalo decisivo do sistema soviético. Os acontecimentos da Praça da Independência em Kiev, onde dezenas de pessoas morreram exigindo o fim de um governo cleptocrata e a aproximação com a União Europeia, podem marcar uma forma de reconquista democrática da Europa.
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O antes e depois das manifestações na Ucrânia visto no Instagram32 fotos

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A vida cotidiana mudou em questão de dias em Kiev, na Ucrânia, devido as manifestações com confrontos entre manifestantes e forças do governo do presidente deposto Viktor Yanukovich. Veja como o Instagram registrou a mudança no comportamento dos ucranianos que antes postavam selfies ou fotos do prato do almoço e passaram a fotografar os protestos Leia mais Divulgação/Instagram/esquire.com
Depois de 1945, após as transições da Grécia e da Espanha, após a cesura de 1989, após a decomposição violenta da Iugoslávia, após as "revoluções coloridas", a cartografia europeia política está novamente em movimento. Existem milhares de incertezas, mas conseguir ter a dimensão dessa tendência é entender o pavor de um Vladimir Putin, que sabe que nada mais será como antes se a Ucrânia se democratizar de maneira estável.
A Ucrânia é a etapa crucial na direção de uma Europa democrática desde o Atlântico até os Montes Urais, uma ameaça ao coração do sistema putiniano. O acompanhamento desse movimento que o historiador Francis Fukuyama descreveu com sutileza voltou a se tornar o grande assunto de todos. A União Europeia tiraria dali motivo para se reencantar.
 
Tradutor: UOL

Os gringos estão chegando! - Barbara Gancia

folha de são paulo
BARBARA GANCIA
Os gringos estão chegando!
E eles vêm animadíssimos para ficar na casa do amigo, da ex-namorada... Ninguém quer perder a Copa no Brasil
Sem querer desanimar meu leitor habitual --se é que ele existe--, mas já desanimando, começo a me dar conta de que sou eu a Velhinha de Taubaté, Eremil­do, o Idiota e sabe lá quantas outras virgens iludidas que vegetam por aí como zumbis. Apenas existindo, consumindo oxigênio, sem conse­guir diferenciar o que é peito do que é a carne escura na hora de des­trinchar o frango assado.
Andava reconfortada pelo fato de que, sendo caro demais o pernoite nos hotéis tapuias durante a Copa, a gringolândia não iria se aventurar a tomar um avião para vir ser assaltada do outro lado do mundo.
Fui perceber o quanto estava en­ganada durante o Carnaval, passado em Nova York, no qual me entreti­ve desfilando no bloco das ofertas da Bloomingdale's, quero dizer, na ala das baianas do MoMA, do Gug­genheim e do Lincoln Center.
Fiquei sabendo pelo motorista do táxi, pelo garçom e até pelos ursos que hibernam no Central Park (menti­ra) que meio mundo pretende vir ao Brasil em junho passar uma temporada na casa do amigo que mora em Belo Horizonte, do ex-co­lega de faculdade que trabalha na Petrobras ou da namorada cearen­se. A fuzarca está armada.
Visse que animação. Mal sabem eles que tem gente por aqui fazen­do até novena na esperança de que nada ocorra de mais grave... Alô, controladores de voo! Já estamos tratando de garantir que, durante a Copa, ninguém irá trabalhar pres­sionado, não é mesmo? Alô, nobres engenheiros responsáveis pelos cálculos das estruturas dos está­dios! Falem agora ou calem-se para sempre! Ainda está em tempo de revelar ao Folhaleaks aquele erri­nho que anda lhe tirando o sono.
Eu sei, eu sei. Oscilo entre a passi­vidade lobotomizada e a paranoia mirabolante. Mas melhor uma neurótica viva do que uma mula morta, é o que eu sempre digo.
Na Quarta de Cinzas fui à opera­dora de celular repor um chip per­dido. Cheguei antes de a loja abrir e dei de cara com uma fila. Puxei papo. Foi só o que tinha tido o celular furtado na Sapucaí contar sua história que ou­tras seguiram. O atendente da loja confirmou. "Depois de fim de ano e Carnaval sempre há filas de com­pra de aparelho para repor o rouba­do". Imagino que na Índia, Costa Rica, Malásia, Vietnã, Croácia e Ucrânia aconteça o mesmo. Não? Será? O que você acha?
Também odeio quem fala mal co­mo se não fizesse parte desta geleia de jabiraca de país, como se vivesse suspenso em uma redoma blinda­da. Mas ainda estou me esforçando para atingir os níveis de otimismo do Ronaldo e do Nizan.
E a tarefa ficou mais tenebrosa ainda depois de passar pelo aero­porto André Franco Montoro, com suas esteiras de malas da época do avião à lenha e o indefectível táxi para voltar para casa a preço de co­caína pura.
Por falar em droga, o Conselho In­ternacional de Controle de Narcó­ticos divulgou estudo dizendo que o consumo de cocaína dobrou nos últimos dez anos no Brasil e que es­tamos entre os que mais conso­mem no cosmos.
Imagino que gostemos tão mais da droga do que os outros países pela facilidade em obtê-la, por sermos rota de tráfico e pelas disparidades que tornam tanto o consumo quan­to o tráfico atraentes a uma camada menos favorecida e escolarizada. Mas, além destes fatores, há entre nós e ela uma atração fatal.
Veja: a cocaína é a droga do eu, nós somos um dos países em que mais se realizam cirurgias plásticas e mais se gasta, em termos propor­cionais, com aparência. Por exce­lência, o demônio ralado é a droga da superficialidade. Bem, um de nossos mais famosos produtos de exportação é a depilação da virilha. O outro são as telenovelas e o ter­ceiro é o Michel Teló.

Atraso em código - editorial folhasp

folha de são paulo
EDITORIAIS
editoriais@uol.com.br

Atraso em código
A disputa entre Executivo e Legislativo em torno da flexibilização do Código Florestal já se arrasta por década e meia. A última batalha, comandada pela presidente Dilma Rousseff desde 2012, não dá, porém, sinais de concluir-se.
A golpes de vetos, medidas provisórias e decretos, o Planalto logrou conter a ofensiva ruralista em limites razoáveis --apenas para ver o conflito transferir-se, agora, para o campo da regulamentação.
O novo código, definido no final de 2012, criou regras para a regularização de fazendas onde houvera desmatamento ilegal. A precondição para eliminar o passivo ambiental seria comprometer-se com a recuperação de áreas desmatadas e cadastrar a propriedade com imagens digitais num banco de dados, o que viria a facilitar o monitoramento da recomposição.
Pela nova norma, pequenos proprietários enfrentarão exigências mais brandas de recuperação (faixas mais estreitas de área de preservação permanente ao longo de cursos d'água, por exemplo).
Ruralistas defendem a opção de cadastrar terras separadamente, com base nas matrículas dos imóveis. Isso permitiria enquadrar parte das propriedades na categoria com menos obrigações.
Mais uma vez, as posições conflitantes encontram representação no seio do próprio governo federal. De um lado, o Ministério da Agricultura se alinha com os grandes proprietários na defesa do cadastramento a partir das matrículas. De outro, a pasta do Meio Ambiente se inclina pelo conceito de imóvel rural em sua totalidade, mesmo que nos cartórios esteja registrado com várias matrículas contíguas.
Fato é que o agronegócio já obteve vitórias importantes nas diversas escaramuças com o Executivo. O Código Florestal, hoje, mesmo que não seja o diploma dos sonhos dos produtores rurais, é uma lei bem mais compatível com a realidade do campo moderno e produtivo que fornece o lastro insubstituível para evitar o desequilíbrio da balança comercial, com seu superavit na casa de US$ 80 bilhões.
A proposta de desmembrar os imóveis rurais é uma clara tentativa casuística de livrar alguns poucos de obrigações legais e uma burla óbvia ao espírito do novo código. Cabe ao Planalto, e à vanguarda do agronegócio, rechaçar essa manobra em favor do atraso.

    Helio Schwartsman

    folha de são paulo
    O que faz um povo?
    SÃO PAULO - A crise na Ucrânia tem como pano de fundo uma mistura de geopolítica com elementos econômicos, mas o que lhe dá combustível são os nacionalismos. A essa altura, é difícil evitar que ao menos a Crimeia passe para as mãos dos russos. Mas será que isso é um mal?
    Assim como me parece irracional fazer uma guerra para juntar povos, creio que é igualmente estúpido ir às vias de fato para evitar que parte de um país se desmembre, mas admito que sou atípico nessa matéria: minha reação emocional diante do nacionalismo é nula. Penso até que pessoas que se dizem dispostas a morrer por sua pátria têm um parafuso a menos. Entre as muitas abstrações pelas quais não faz sentido sacrificar-se está a ideia de nação, um conceito para lá de artificial do qual tiranos e mesmo dirigentes democráticos abusam bastante.
    O que, afinal, constitui uma nação ou um povo? E a resposta é basicamente "uma narrativa". Ela pode estar voltada para o passado, como queriam os românticos com suas descrições dos feitos míticos de um povo, ou para o futuro, como defendem, de forma mais razoável, aqueles que falam em construir juntos novas oportunidades. Trata-se, ainda assim, de um discurso que visa a encontrar pontos em comum para unir grupos de pessoas que reúnem mais diferenças do que semelhanças.
    O gaúcho de Porto Alegre está culturalmente mais próximo do argentino de Buenos Aires do que de um pescador amazonense, e o médico do Rio tem mais a ver com seu colega nova-iorquino que com um peão pantaneiro. O discurso nacionalista, porém, faz com que coloquemos a cor do passaporte à frente de tudo.
    Faz sentido? Não muito, mas os nacionalismos são tão prevalentes (e podem custar tão caro) que parece lógico concluir que se escoram em vieses cognitivos poderosos o bastante para escapar aos temperos da razão. Não são muito boas, portanto, as perspectivas para a Ucrânia.

    Marina Silva

    folha de são paulo
    Quem não sabia?
    Os jornais noticiaram a intenção da bancada ruralista, com apoio do Ministério da Agricultura, de flexibilizar o "novo" Código Florestal. Talvez exista alguém ingênuo a ponto de se surpreender por que estão boicotando uma lei que eles mesmos fizeram e apresentaram ao país como a salvação da lavoura. Mas quem conhece esse bloco de outros Carnavais já avisava que isso aconteceria.
    As mudanças no Código Florestal foram mostradas como um "consenso" para facilitar a produção agrícola e pecuária sem prejudicar as florestas. Havia quem dissesse que era o caminho para o desmatamento zero. Na verdade, só anistiava o desmatamento já feito e diminuía a proteção para permitir novos desmatamentos. Para manter as aparências, foi dado o prazo de um ano para fazer o CAR (Cadastro Ambiental Rural) de todas as propriedades com suas áreas de proteção.
    Quem se inscrevesse teria tudo: perdão da maioria das multas, conversão do restante em reflorestamento --podendo usar de espécies de valor comercial--, financiamento, assistência técnica etc. Claro, os "pequenos produtores" eram mostrados como os únicos beneficiados. Assim, ninguém poderia dizer que os grandes proprietários, bem representados no parlamento, legislavam em causa própria.
    Passou o prazo e ninguém se regularizou. O desmatamento aumentou quase 30%. Mas permanecia a promessa de que a nova lei era para valer: o governo preparava lentamente o decreto para regulamentar o CAR e uma bela cartilha sobre ele foi distribuída aos produtores em todo o país. Quanto ao prazo, poderia ser estendido por mais um ano, embora isso não tenha sido feito oficialmente --ou seja, desde maio do ano passado todo mundo está na ilegalidade, sem a segurança jurídica tão alardeada nos discursos.
    E agora, o que querem os "flexibilizadores"? Chegar ao fim do prazo sem o cadastro, para que o governo emita mais uma Medida Provisória adiando tudo e abrindo outra temporada de mudanças na lei. E querem permitir que grandes propriedades sejam cadastradas com registros que as dividam em áreas menores, sendo incluídas nas exceções reservadas aos pequenos produtores.
    Em 2012, apelamos à presidente Dilma para que mantivesse o compromisso assinado na eleição e vetasse permissões ao desmatamento. Todas as manifestações da sociedade, em campanhas ou pesquisas de opinião, eram em favor das florestas e contra a devastação. Tudo isso foi desprezado, o governo e sua maioria parlamentar fizeram o "tratoraço" sobre a legislação.
    E agora, sem ter a quem apelar para que mantenham o pouco que prometeram na lei que eles mesmos criaram, podemos ao menos recorrer à chatice do "eu avisei"?

    Ruy Castro

    folha de são paulo
    Cultura do lixo
    RIO DE JANEIRO - A greve dos garis cariocas --ou de uma facção deles, com indisfarçável inspiração política-- serviu para nos alertar sobre o lixo. Só na Zona Sul, o volume de embalagens, latas, garrafas e plásticos que se deixou de recolher em quatro ou cinco dias daria uma montanha da altura do Pão de Açúcar. O progresso é porco.
    Os peritos estabeleceram que é a quantidade de lixo produzido que separa os ricos dos pobres. Os ricos, leia-se o hemisfério Norte, geram em média 2 kg de lixo/dia --os EUA, 3 kg. Nós, os pobres, que comemos e consumimos menos, não passamos de 1 kg. O que não é motivo de alívio ou regozijo porque nem assim sabemos o que fazer com ele --metade do lixo produzido no Brasil vai para depósitos inadequados, e 800 mil brasileiros vivem do que recolhem naquela nojeira.
    No que ainda nem fomos, os ricos já estão de volta. Os EUA, por exemplo, vendem o seu excesso de lixo para a China. E, enquanto o mundo se preocupa com o lixo industrial, eletrônico e radioativo, de difícil assimilação, ainda não nos entendemos nem com o lixo orgânico --imagine o resto. Para onde irão os nossos 270 milhões de celulares quando morrerem? Eles não se decompõem na natureza.
    Um clássico do teatro americano, a comédia "Nascida Ontem", de Garson Kanin, tem como protagonista um brutamontes chamado Eddie Brock, o rei do lixo na América. Sua fortuna, medida em toneladas, é de tal ordem que lhe permite ter no bolso até um senador. O que ele faz com o lixo não é mostrado, mas dá para entender que, já então --a peça é de 1946--, o lixo podia ser um grande negócio. E, hoje, é muito mais.
    Obrigado aos grevistas por me fazer pensar. Mas seria justo que fossem multados pelo lixo que deixaram na rua. Se uma guimba de cigarro no chão vale R$ 157 no Lixo Zero, quanto eles não estarão devendo?

    Eduardo&Joan - Mônica Bergamo

    folha de são paulo
    MÔNICA BERGAMO
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    EDUARDO & JOAN
    UM JANTAR PARA SUPLICY E JOAN BAEZ
    O senador Eduardo Suplicy (PT-SP) telefona feliz da vida, anteontem, para a Folha. E confirma a notícia: ele vai jantar com a cantora americana Joan Baez no próximo dia 22. E, na noite seguinte, assistirá ao seu show em São Paulo, junto com os filhos, Supla, André e João.
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    Será um reencontro depois de 33 anos sem se verem. O petista estava tão feliz que declamou, em português, "Blowin' in the Wind", de Bob Dylan, para Clara Bastos, secretária da coluna. A canção, que Suplicy canta em quase todos os eventos aos quais comparece, é um dos hits do repertório de Baez.
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    "Quantas estradas um homem precisará andar/ Antes que possam chamá-lo de homem?/ Quantos mares uma pomba branca precisará sobrevoar/ Antes que ela possa dormir na areia?/ Sim, e quantas balas de canhão precisarão voar/ Até serem para sempre banidas?", disse Suplicy ao telefone.
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    Baez faz parte das dezenas de histórias pitorescas que cercam o senador. Na década de 80, numa visita ao Brasil, eles quase teriam namorado, não fosse o fato de o petista ter pedido antes autorização para sua então mulher, Marta Suplicy. Que teria negado.
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    A história não é bem assim, diz Suplicy. "Eu almocei com ela [Baez] no Copacabana Palace, no Rio. Depois fomos ao hotel Excelsior. No seu apartamento, ela me deu um beijo, bem forte. E só. Depois, contei para a Marta."
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    Na época, Baez, fundadora do Instituto Humanitas, visitava o Brasil. Suplicy, que era deputado estadual pelo PT, foi procurado para apresentar a cantora a Lula, que então presidia o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. "Ela queria conhecer melhor como se desenvolvia no Brasil a batalha pelas liberdades democráticas e pelos direitos dos trabalhadores", diz Suplicy.
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    Lula logo viu que Suplicy gostava de Baez. "Ele brincava que eu a olhava de um jeito especial, de muita amizade. De fato, naquela época ficamos muito amigos."
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    À noite, Suplicy levou Baez para o Tuca, em São Paulo, onde ela faria um show. Chegando lá, souberam que a apresentação estava cancelada porque os organizadores não submeteram previamente à censura as músicas que Baez cantaria.
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    "Fiquei pasmo, assim como Joan Baez", conta Suplicy num e-mail enviado à coluna. "Ela estava tendo uma mostra de como funcionavam as nossas instituições, ao tempo do presidente João Batista Figueiredo."
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    O teatro estava lotado. "O pessoal ficou bravo", lembra Suplicy. "Eis que então ela sentou na plateia, ao meu lado, toda sorridente (...) e começou a cantar, em português, de Geraldo Vandré, Pra Não Dizer que Não Falei das Flores'." E, em seguida, "Blowin' in the Wind". "Então mais fortemente soou a sua bonita voz em defesa da liberdade, da justiça e da paz."
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    Eduardo Suplicy segue: "Soube que, pelas redes sociais, há alguns saudosistas da ditadura conclamando as pessoas para saírem às ruas no próximo dia 22 de março para se recordarem das Marchas com Deus pela Família e pela Liberdade que precederam o golpe militar".
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    "Que estejam todos conscientes que, como resultado, ficamos com as nossas liberdades restritas. Felizmente, dias 23 e 24 de março, vamos poder ouvir em SP as lindas canções que Joan Baez escolheu para recordar sua longa trajetória em busca da justiça e da liberdade."
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    Desta vez, diz, não haverá beijo. "Eu vou explicar pra ela que eu tenho namorada [a jornalista Mônica Dallari] e tudo", finaliza o senador.
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    TERAPIA DE ESPELHO
    Dilma Rousseff vai convidar a presidente do Chile, Michelle Bachelet, para visitar o país no encontro que as duas devem ter na próxima semana, em Santiago. A brasileira pretende formar uma aliança simbólica: as duas são mulheres e lutaram contra a ditadura. Além disso, governariam num estilo moderado, diferenciando-se de outros países do continente --à esquerda (Venezuela e Argentina, entre outros) e à direita (Colômbia, entre outros).
    ESPELHO 2
    Como Dilma, a presidente chilena enfrentará desafios como uma forte demanda por mais qualidade dos serviços públicos depois de um período de crescimento e melhoria de vida da população. Terá que aumentar impostos numa fase de instabilidade econômica no mundo.
    GIRO
    Dilma deve também agendar viagem ao México nos próximos meses.
    TEMPO AO TEMPO
    E a presidente ainda não decidiu se autoriza a vinda de mais cerca de 3.000 médicos cubanos para o Brasil, além dos já anunciados. Quer mais detalhes da situação dos doutores já instalados em cidades brasileiras.
    ENTRE PÁGINAS...
    Jean Wyllys (PSOL-RJ) vai lançar um livro com textos com reflexões políticas e sociais. "Tempo Bom, Tempo Ruim" sai em abril pela editora Paralela, braço da Companhia das Letras. "Escrevo sobre meus pensamentos, as questões com as quais trabalho", diz o deputado federal.
    ...E CENAS
    E Wyllys estreia em outubro no Canal Brasil um programa apresentado e roteirizado por ele. Com o título provisório de "Cinema em Outras Cores", a atração vai exibir filmes com temática LGBT feitos por diretores envolvidos na causa. "Vou conciliar as gravações com o lançamento do livro e a campanha de reeleição", conta.
    AMIGO VELHO
    Tony Bellotto, o escritor, vem aí com o seu detetive Remo Bellini em dose dupla. Além de uma "grafhic novel" ("Bellini e o Corvo"), ele pretende lançar mais um romance da série. "Isso se o novo disco do Titãs deixar", diz. Bellotto afirma que fazer a sinopse para o trabalho gráfico o fez retomar o prazer de mergulhar no personagem com o qual se lançou na literatura. "Foi como reencontrar um velho amigo."
    É TUDO VERDADE
    O documentário "Rio Sete", de Ana Paula Guimarães, tem pré-estreia hoje, às 20h, na Cinemateca, em SP. Rodado em Santa Catarina, o trabalho mostra as impressões de moradores de uma colônia alemã sobre a vida no campo. O filme faz parte da série "Majestades Anônimas", em que a diretora aborda histórias desconhecidas do grande público.
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    SAI DE MIM No ar como uma ex-viciada em "A Teia" (Globo), a atriz Juliana Schalch, 28, não leva a carga da personagem para casa: "Aprendi a separar as coisas"
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    CARNAVAL SEM "LEPO LEPO"
    Rico Mansur e Ana Paula Junqueira foram à apresentação do DJ Jack-E no Café de La Musique, no Itaim, na terça-feira de Carnaval. O empresário e DJ Paulo Velloso, que também tocou na festa, foi acompanhado da top Caroline Bittencourt, com quem reatou namoro recentemente. Os atores Danton Mello e Miguel Rômulo também participaram do evento.
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    CURTO-CIRCUITO
    Alexandra Richter estreia a comédia "Minimanual de Qualidade de Vida", hoje, às 21h30, no Teatro Jaraguá, na Bela Vista. 12 anos.
    A banda Bixiga 70 faz show hoje e amanhã no Sesc Santo Amaro. 10 anos.
    Alunos do Colégio I. L. Peretz, da Vila Mariana, iniciaram a 13ª edição do projeto de inclusão digital para jovens de Heliópolis.
    A peça "Bola de Ouro" encerra temporada no Teatro Faap, hoje, às 21h. 12 anos.

    José Simão

    folha de são paulo
    Ueba! O Galvão ficou cegueta!
    O Putin tem cara de Guerra Fria! E tá proibido fazer trocadilho com o Putin. Só com o filho do Putin
    Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Piada Pronta: Unidos da Tijuca tirou primeiro lugar porque homenageou o Senna. Se tivesse homenageado o Rubinho, teria ficado em segundo! Ou teria quebrado na largada! Estouraria o pneu do alegórico! Rarará!
    E se tivesse homenageado o Massa, um dos carros alegóricos ia bater, com certeza! Engavetamento de alegóricos! E todo ano, no Rio, sai o bloco Me Beija que Eu Sou Cineasta. E em São Paulo, depois das manifestações, saiu pela primeira vez: Me Bate que Eu Sou Jornalista. Rarará!
    E o site Futirinhas fez uma apuração de notas do futebol. "Quesito Apanhando da Torcida, Sport Club Corinthians, nota deeeezzzz". "Quesito Virada de Mesa, Fluminense Football Club, nota deeeezzzz". "Quesito Ajuda da Arbitragem, Clube de Regatas Flamengo, nota deeeeezzzz". "Quesito Falta D'água, Clube de Regatas Vasco da Gama, nota miiiil". Rarará!
    E o amistoso Brasil x África do Sul! O Galvão ficou cego. Tá cegueta. Mr. Magoo! Não viu, nem narrou e nem gritou o primeiro gol do Brasil! Ele fala tanto, quer mostrar tanta informação que não vê mais nada! Ele passa o jogo inteiro gritando: "Olha o gol, olha o gol, olha o gol", que na hora de olhar ele não olhou! Rarará!
    E a Ucrânia? Como disse uma amiga: "por favor, alguém me explica o que está acontecendo na Ucrânia?". Silêncio geral. Rarará! Traumatismo ucraniano! A Ucrânia é um país tão louco que, nas eleições de 2004, ambos os candidatos se chamavam Viktor! E ambos se consideraram VIKTORIOSOS.
    E a Rússia é um país tão louco que proibiu a Parada Gay. Por cem anos! Rarará! E o Putin tem cara de vilão de filme de 007. O Putin tem cara de Guerra Fria! E tá proibido fazer trocadilho com o Putin. Só com o filho do Putin. Rarará!
    E como dizia o Golias, o Bronco: "A civilização não se comportou". E como dizia o Nelson Rodrigues: "A humanidade não deu certo".
    E esse repórter de programa policial em Natal: "mulher foi presa por tentar entrar na penitenciária com drogas alojadas em suas cavidades naturais". Essa é inédita: chamar as partes pudendas de cavidades naturais. Buraco agora é cavidade natural! E teve um bloco em Marituba, no Pará, só de idosos, chamado Bloco da Rola Morta! Rarará!
    Nóis sofre, mas nóis goza!
    Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

      Inácio Araujo

      folha de são paulo
      CRÍTICA - DRAMA
      'Eles Voltam' revela diretor promissor
      Longa de Marcelo Lordello mostra as transformações de garota deixada na estrada pelos pais
      SERÁ UM TRAJETO LIBERTADOR PARA A PERSONAGEM, MAS TALVEZ AINDA MAIS PARA O ESPECTADOR QUE PARTILHAR A AVENTURA
      INÁCIO ARAUJOCRÍTICO DA FOLHALogo na abertura de "Eles Voltam" algo se produz que dificilmente podemos entender: na vasta paisagem, morros e estrada, um carro para. Pouco depois duas pessoas descem. São dois adolescentes: os irmãos Cris e Peu.
      O carro arranca e, durante a discussão entre os jovens que vem a seguir ficamos sabendo que, por brigar dentro do carro, foram castigados pelos pais: ficariam na estrada. Nada de tão estranho assim, podemos imaginar que os pais voltariam logo depois, quando os irmãos tivessem sossegado.
      Não é, no entanto, o que acontece. Os pais não voltam. Peu, o mais velho, que comanda a situação, resolve ir a um posto de gasolina próximo em busca de ajuda. Mas Peu também não retorna.
      Cris, de 12 anos, agora está sozinha no meio da estrada, forçada a tomar suas próprias decisões em sua tentativa de voltar para casa.
      CASA E LAR
      Com seus planos longos, reflexivos, que nos vinculam à personagem, o diretor Marcelo Lordello nos introduz sutilmente a algumas questões, como o que é voltar para casa? E o que é "a casa, o lar"?
      A odisseia de Cris, desde então, se dará no reino da diferença: os pobres, os que vivem à beira da estrada, aqueles com quem ela, menina da classe média recifense, não tem contato habitualmente.
      Voltar é, assim, um aprendizado de mundo, uma aula de civilização. Como diz o próprio autor, existia para Cris a opção --crescer ou estagnar.
      Sua escolha possível consiste em permanecer à espera, no meio do nada, ou conhecer um mundo fora "do lar", ou seja, exterior a esse território norteado por grades de isolamento, onde o lar, assim como a escola, os amigos, é mais ou menos sinônimo de "o mesmo": nós, a classe média culta, recifense ou não.
      A viagem da garota ao mundo do outro compõe, afinal, um trajeto de autoconhecimento. Ele se revelará ao espectador aos poucos, como para a própria Cris.
      OLHOS ABERTOS
      Será um trajeto libertador, para ela, sem dúvida, mas talvez mais ainda para o espectador que tenha a paciência de partilhar a aventura desse filme em que tudo parece ser ousadia.
      A começar pela imagem da protagonista, na qual à fragilidade aparente responde um caráter de resistência (ao nosso olhar, ao tempo, ao infortúnio), e a capacidade de manter os olhos abertos, isto é, de não se fechar a nada.
      Ela voltará, é certo, mas é improvável que seja a mesma pessoa. O próprio da aventura é transformar: Cris transforma-se ao longo desse filme de estreia mais que promissor.