segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Evgeny Morozov

folha de são paulo

O perigo da publicidade baseada em emoções

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Uma das queixas mais antigas sobre a ascensão de intermediários digitais como o Google e o Facebook é a de que, devido ao seu entusiasmo irrestrito quanto à personalização, eles causam uma feia polarização da esfera pública. Os cidadãos são protegidos de visões divergentes, e por isso corremos o risco de viver a vida toda naquilo que o escritor Eli Pariser definiu como "a bolha dos filtros".
Mas a bolha de Pariser é apenas uma entre as muitas que existem no horizonte.
Para começar, ela tem origens técnicas muito específicas. Até recentemente, os sensores envolvidos no processo de personalização eram capazes de registrar o que teclamos e como movemos nossos mouses, mas não eram capazes de registrar o que sentimos. Chamá-los de "sensores" na verdade representa algum exagero --eles funcionam mais como detectores rudimentares de pistas. Assim, nossa história de navegação na web é usada para prever o que podemos desejar ver ou onde pretendemos navegar a seguir. Nossas buscas podem ser usadas para priorizar determinados resultados de busca no futuro.
Mas, longe de nossos olhos, uma grande mudança estrutural aconteceu nos últimos anos. Os sensores responsáveis pela personalização já não são apenas textuais e se tornaram capazes de capturar muitas outras dimensões de nossas atividades. Eles não se limitam a armazenar endereços de web e termos de busca. São capazes, também, de lidar com dados não linguísticos, de indicadores neurofisiológicos (estamos queimando poucas calorias?) a indicadores emocionais (estamos nos sentindo ansiosos ou excitados?).
Considere apenas dois produtos que recentemente ganharam destaque na mídia de tecnologia: um carro que desacelera quanto sente que você está dirigindo sem prestar atenção, e uma mesa que registra quantas calorias você queima e ajusta sua altura com base nisso. É verdade que o carro com sensor de atenção é apenas um modelo de teste que requer que o motorista use um capacete especial, mas é possível imaginar o número de sensores incorporados à coluna do volante que tornaria menos visível o processo de detecção de atenção. (A Toyota já testou sensores como esses em 2011, enquanto a Ford vem testando monitores de batimento cardíaco incorporados ao assento do motorista.)
Já a mesa é um produto real (ainda que caro e exclusivo). Ao contrário das mesas convencionais, ela busca criar interação com o usuário ao "mudar as coisas durante o dia, subindo um ou dois centímetros, bem gentilmente". Se combinada a fluxos de dados dos demais sensores de nossas vidas, a mesa pode ser transformada de um tedioso lugar de trabalho em uma máquina de exercícios.
O presidente-executivo da companhia que fabrica a mesa diz que existem planos até para "importar fluxos de dados externos, para tornar a mesa mais inteligente --por exemplo, dados de apps e monitores de exercícios" Se a mesa estiver informada de que você correu cinco quilômetros antes de trabalhar, isso afetará o perfil de atividades que ela sugerirá a você naquela manhã.
"Tecnologia inteligente" é um nome um tanto equivocado --o que estamos vendo em ação aqui é "tecnologia plástica". A súbita plasticidade de nosso ambiente físico pode não gerar muita preocupação em termos de política pública, mas existe ampla gama de possibilidades de abuso que a envolveriam. Se nossos aparelhos e engenhocas podem se ajustar tomando por base aquilo que sentimos, que dizer sobre os anúncios que nos são exibidos?
Há apenas algumas semanas, encontrei por acaso um estudo recentemente publicado, de título tedioso mas apresentando um plano fascinante: "CAVVA: vídeos computacionais afetivos na publicidade em vídeo". Escrito por três cientistas da computação de Cingapura, o estudo propõe um método elegante para inserir anúncios em vídeos com base em uma análise detalhada sobre o impacto emocional deles no usuário.
Tomando por base uma experiência, os pesquisadores provaram que sua abordagem --que depende de uma análise cena a cena do conteúdo emocional do vídeo em exibição-- é mais efetiva do que depender de pistas puramente "textuais" sobre relevância, como as usadas pelo YouTube e serviços semelhantes hoje.
A limitação desse método é que ele seleciona que anúncios exibir, e quando exibi-los, com base no conteúdo emocional do vídeo, e não no "conteúdo" emocional do usuário. Assim, o próximo passo óbvio será estudar o que os usuários sentem, em tempo real. Isso pode ser feito pela observação de nossas expressões faciais ao assistirmos a um vídeo, ou pela mensuração de nosso pulso ou de nossos movimentos oculares.
Algumas empresas iniciantes já estão explorando esse lucrativo terreno. Houve uma reportagem recente no "Wall Street Journal" que mencionava a MediaBrix, uma empresa especializada em "direcionamento emocional exclusivo". Como isso funciona? Bem, eles estudam a pessoa quando ela está jogando um videogame, e oferecem um produto a ela em seu momento de maior vulnerabilidade emocional. É claro que não é assim que a companhia descreve suas atividades. Ela afirma, em lugar disso, que ajuda "na comunicação com os jogadores de videogames em momentos naturais e críticos de seu uso dos jogos, nos quais estão mais receptivos a mensagens de marca".
Com a proliferação de sensores nos espaços construídos --quer sob o lema da "Internet das Coisas", quer sob o das "Cidades Inteligentes"--, o escopo para esse tipo de técnica de "direcionamento emocional exclusivo" poderia se expandir consideravelmente.
Uma década atrás, esses métodos pareceriam pouco realistas, mas não hoje --não no momento em que o Google já conta com um óculos inteligente e a Apple adotou o M7, um poderoso chip sensor de movimentos, em seu mais recente iPhone. Como declarou o vice-presidente de marketing da Apple ao introduzi-lo, "o aparelho aproveita todos esses maravilhosos sensores e os mede continuamente", para que, mesmo quando em standby, o iPhone possa informar se o usuário está "estacionário, andando, correndo ou dirigindo".
Google e Apple podem ter chegado ao jogo com algum atraso: no ano passado a Microsoft obteve patente para "direcionamento de anúncios com base em emoções" (em um pedido que menciona seu sistema de controle de videogames Kinect). A Samsung conta com diversas patentes parecidas para tecnologias que variam de facilitar o compartilhamento de emoções em redes sociais à produção de fragrâncias em celulares.
Se o futuro da publicidade está no processamento de traços não linguísticos, então quem controlar a infraestrutura sensória para análise e monetização desses traços --o "aparato de compartilhamento de emoções", como a Samsung define o processo em uma das suas patentes-- será o sucessor dos atuais magnatas da publicidade on-line. Pois apesar de todas as alegações quanto à inevitável virtualização, o hardware --conectado a telas, câmeras e rastreadores de dados-- só ganhará importância, simplesmente porque permitirá a exploração em tempo real de dados emocionais dinâmicos muito mais adequados à publicidade do que as pistas textuais que os gigantes da Internet vêm recolhendo sobre nossa navegação, buscas e atividades sociais.
Seria desnecessário dizer que nossas autoridades regulatórias --hoje ocupadas com os problemas de privacidade criados pela coleta e armazenagem de informações textuais-- estão despreparadas para os desafios de sistemas de dados não linguísticos e de base emocional. Técnicas como o "direcionamento emocional exclusivo" apresentam dilemas que vão bem além das preocupações com a privacidade; em certo sentido, elas por fim substanciam os medos recorrentes sobre "persuasão secreta" que afligem a publicidade há décadas.
Esses medos não pareciam muito sérios quanto todo mundo via os mesmos anúncios ao mesmo tempo. Não pareciam sérios quando o Google e o Facebook entraram na parada., porque os anúncios eram previsíveis e podíamos bloqueá-los. Mas a forma de publicidade altamente personalizada e de base emocional que se tornaria possível em um mundo no qualquer superfície de toque possa adivinhar como nos sentimos, e nos exibir um anúncio relacionado a esses sentimentos, deveria nos levar a reconsiderar.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
evgeny morozov
Evgeny Morozov é pesquisador-visitante da Universidade Stanford e analista da New America Foundation. É autor de "The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom" (a ilusão da rede: o lado sombrio da liberdade na internet). Tem artigos publicados em jornais e revistas como "The New York Times", "The Wall Street Journal", " Financial Times" e "The Economist". Lançará em 2012 o livro "Silicon Democracy" (a democracia do silício). Escreve às segundas-feiras, a cada quatro semanas, no site da Folha.

Falta mais eficiência ao SUS do que verba, afirma estudo

folha de são paulo
Maior problema é a desorganização, segundo relatório do Banco Mundial
Instituição analisou 20 anos do sistema; governo admite falhas, mas aponta avanços nos últimos anos
CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULOOs problemas de acesso e cuidados especializados no SUS têm mais a ver com desorganização e ineficiência do que com falta de dinheiro.
Essa é uma das conclusões do Banco Mundial em relatório obtido com exclusividade pela Folha que analisa 20 anos do SUS e traça seus desafios.
O próprio governo reconhece a desorganização, mas aponta avanços nos últimos anos.
O subfinanciamento é sempre citado por especialistas, gestores e governos como uma das principais causas para as deficiências do SUS.
E o Banco Mundial reforça isso: mais da metade dos gastos com saúde no país se concentra no setor privado, e o gasto público (3,8% do PIB) está abaixo da média de países em desenvolvimento.
Mas o relatório afirma que é possível fazer mais e melhor com o mesmo orçamento.
"Diversas experiências têm demonstrado que o aumento de recursos investidos na saúde, sem que se observe a racionalização de seu uso, pode não gerar impacto significativo na saúde da população", diz Magnus Lindelow, líder de desenvolvimento humano do banco no Brasil.
Um exemplo citado no relatório é a baixa eficiência da rede hospitalar. Estudos mostram que os hospitais poderiam ter uma produção três vezes superior à atual, com o mesmo nível de insumos.
Mais da metade dos hospitais brasileiros (65%) são pequenas unidades, com menos de 50 leitos --a literatura internacional aponta que, para ser eficiente, é preciso ter acima de cem leitos.
Nessas instituições, leitos e salas cirúrgicas estão subutilizados. A taxa média de ocupação é de 45%; a média internacional é de 70% a 75%.
As salas de cirurgias estão desocupadas em 85% do tempo. Ao mesmo tempo, os poucos grandes hospitais de referência estão superlotados.
"No Brasil, sempre houve grande pressão para não se fechar os hospitais pequenos, o que não ocorre no exterior. O problema não é só ineficiência, mas a falta de segurança desses locais", diz a médica Ana Maria Malik, do núcleo de saúde da FGV.
Mas a questão hospitalar é só um ponto. Grande parte dos pacientes que vão a emergências hospitalares é de baixo risco e poderia ser atendida em unidades básicas.
Dois estudos citados pelo Banco Mundial estimam que em 30% das internações os pacientes poderiam ter sido atendidos em ambulatórios.
"O Brasil tem alto índice de internações por causas sensíveis à atenção primária, que poderia ser minimizado com melhor organização do fluxo assistencial, gerando, assim, uma menor pressão na rede hospitalar", diz Lindelow.
Cuidado adequado para hipertensos e diabéticos, rastreamento de câncer de colo de útero e mama, por exemplo, são ações que podem reduzir parte dessas internações e da mortalidade precoce.
Para o médico Milton Arruda Martins, professor da USP, uma razão para a baixa eficiência na atenção básica é o grande número de pacientes por equipe de saúde da família. "É do dobro do que se preconiza. Se cada equipe tivesse um número menor de pessoas para atender, a capacidade resolutiva seria maior."
Segundo Lindelow, a atenção especializada é outro desafio que não se restringe a equipamentos e insumos. "É essencial investir em capacitação, criação de protocolos e regulação de demanda que permita o acesso a especialistas, exames e cirurgias."
Na opinião de Milton Martins, a rede secundária também é insuficiente. "Pequenas cirurgias, como catarata e hérnia, podem ser feitas fora de hospitais, em ambulatórios, mas não há especialistas nem estrutura para isso."
    OUTRO LADO
    Governo aponta avanços e diz que rede hospitalar será redesenhada
    Ministério aposta em atendimento integral e tecnologia de informação para melhorar SUS
    DE SÃO PAULOO Ministério da Saúde reconhece a desorganização no SUS apontada pelo Banco Mundial, diz que há um longo caminho para tornar a gestão mais eficiente, mas aponta avanço nos últimos anos.
    Helvécio Magalhães, secretário de atenção à saúde da pasta, afirma que o problema vem desde a origem do sistema, que aglutinou instituições com diferentes perfis e tamanhos, sem um plano estratégico adequado.
    Uma das iniciativas para organizá-lo, segundo ele, tem sido a criação de redes que buscam um atendimento integral do paciente, da consulta no posto à internação.
    Exemplo: a rede cegonha, que acompanha a mulher no pré-natal, parto e pós-parto.
    "Formar pessoas, organizar o sistema como redes, usando tecnologia de informação, melhorar a gestão interna das instituições. Tudo isso vai melhorar a qualidade da gestão no SUS. Mas é uma longa caminhada."
    Segundo ele, com as redes, a área hospitalar será redesenhada. Os pequenos hospitais, alvo de críticas do banco, por exemplo, passarão por avaliação minuciosa.
    Magalhães diz que todos os 3.500 hospitais com menos de 50 leitos serão visitados até março. "Não fecharemos os pequenos, mas eles deverão ter clareza de sua função na rede regional. Pode ser que virem um centro de parto normal ou uma base de apoio à saúde da família."
    Para ele, é preciso expandir os leitos com qualidade e conforme a demanda regional. Por exemplo, se a área tem muito acidente de moto, é preciso um hospital para atender traumas.
    "Temos que crescer em áreas críticas. Os hospitais devem se transformar em grandes UTIs, para quem precisa de cuidados intensivos. O resto pode ser tratado em ambulatórios ou em casa."
    SAÚDE BÁSICA
    Sobre a estagnação da rede de atenção básica, outro problema apontado pelo estudo, Magalhães diz que nos últimos três anos a opção foi melhorar a qualidade das equipes (médicos, enfermeiros, técnicos e agentes) em vez de crescer em números.
    Catorze mil unidades (de um total de 43 mil) ganharam banda larga, por exemplo. Equipes de saúde da família foram convidadas a aderir a um programa de capacitação, a partir do qual começaram a ter maior remuneração de acordo com o desempenho no cuidado dos pacientes.
    Ele afirma ainda que haverá a ampliação das equipes de saúde da família, atualmente sobrecarregadas. Em vez de cada uma atender 3.500 pessoas, como hoje, a meta é chegar a 2.000.
      Sem médico, hospital tem 60% dos leitos vagos
      GABRIELA YAMADADE RIBEIRÃO PRETOPor falta de médicos especializados, 60% dos 31 leitos do Hospital de Misericórdia de Altinópolis, na região de Ribeirão Preto, ficam vazios todos os meses.
      Único hospital da cidade, a instituição só realiza atendimentos de urgência e emergência, internação, pediatria, clínica geral e partos.
      No entanto, segundo a diretora Carmen Barufaldi, há estrutura para atendimentos e cirurgias de baixa complexidade em ortopedia, hérnia e varizes --mas faltam profissionais contratados.
      "Para estas especialidades, acionamos a regulação médica e os pacientes são transferidos para hospitais da região", afirmou. O Hospital de Misericórdia também não tem UTI (Unidade de Tratamento Intensivo), o que aumenta a necessidade de acionar os atendimentos na região.
      Um dos hospitais mais procurados é o HC (Hospital das Clínicas), de Ribeirão Preto. Último levantamento do HC apontou que, ano passado, foram feitos 6.300 atendimentos de Altinópolis.
      Além de Ribeirão, o município também envia pacientes para hospitais de Batatais e Franca.
      Segundo Carmen, o valor da tabela SUS (referência de remuneração aos hospitais), sem reajuste há 15 anos, afasta os médicos, que dão preferência para hospitais de cidades maiores, além de convênios particulares.
      "Poderíamos estar faturando se houvesse médicos. Atendemos até 200 pacientes por mês, mas esse número poderia ser maior", disse.
      A prefeitura mantém o hospital, com repasses mensais de R$ 500 mil. Entretanto, a instituição tem uma dívida de R$ 2 milhões em encargos trabalhistas --há um total de 110 funcionários registrados.
      Para levantar fundos, a entidade promove campanhas. Atualmente, há venda de canecas de porcelana.
      O hospital também recebe doação de alimentos da população para o consumo de funcionários.

        Dilema do Colesterol

        folha de são paulo

        Reduzir níveis de gordura no sangue continua fundamental, dizem médicos


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        DÉBORA MISMETTI
        EDITORA DE "CIÊNCIA+SAÚDE"

        Novas orientações das sociedades americanas de cardiologia estão deixando muita gente em dúvida: pessoas que não tiveram infarto ou derrame e têm colesterol alto devem ou não tomar remédios para baixar esses níveis?
        Ao eliminar as chamadas metas de colesterol --o número máximo de LDL, o colesterol "ruim", que cada grupo de pessoas deve ter de acordo com seu perfil de risco para derrame e infarto-, o documento publicado em novembro deixou a impressão de que já não importa qual o nível de gorduras no sangue.
        Assim, não seria mais necessário tomar remédios contra colesterol, as estatinas, nem fazer exames para ver o progresso do tratamento.
        Editoria de Arte/Folhapress
        No sábado retrasado, o oncologista Drauzio Varella, colunista da Folha, escreveu, ao citar as novas diretrizes da American Heart Association e do American College of Cardiology: "Segundo elas, os níveis de colesterol não interessam mais. Se seu LDL é alto, não fique aflito para reduzi-lo: o risco de sofrer ataque cardíaco ou derrame cerebral não será modificado".
        Cardiologistas brasileiros envolvidos na elaboração das diretrizes nacionais de controle do colesterol, publicadas também neste ano, discordam do colunista.
        Raul Santos Filho, da Faculdade de Medicina da USP, diz que a nova diretriz dos EUA é clara ao recomendar redução de 30% a 50% ou mais dos níveis de colesterol a depender do perfil de risco do paciente como ato eficaz para evitar infarto e derrame.
        "Se o nível de colesterol não fosse importante, por que mandariam baixar tanto?"
        O cardiologista Hermes Toros Xavier, editor da atual diretriz brasileira sobre o tema, diz que as metas não foram suspensas pela irrelevância dos níveis de colesterol, e sim porque os estudos nos quais as orientações se basearam viam só o efeito da redução das taxas, e não o desempenho em cada nível.
        De fato, o texto americano classifica a redução de 50% do colesterol "ruim" como um "fator crítico" para evitar eventos cardiovasculares.
        REMÉDIO PRA QUEM?
        Tendo como base estudos nos quais a resposta de grupos equivalentes de pacientes a um tratamento ou a um placebo são comparados, a diretriz americana conclui que há quatro tipos de pessoas para as quais o uso de remédios anticolesterol tem mais benefícios do que riscos.
        O primeiro grupo é são os que já têm doenças cardíacas, como os infartados. Aqui não há controvérsia. Depois vêm as pessoas com LDL bem alto, maior do que 190 mg/dl. Os diabéticos com LDL entre 70 e 189 mg/dl constituem o terceiro grupo.
        O último e mais controverso grupo é tem potencial de incluir o maior número de pessoas: adultos sem doenças cardíacas, com LDL entre 70 e 189 mg/dl e com risco igual ou maior a 7,5% de ter um evento cardiovascular nos próximos dez anos.
        Esse risco é calculado por meio de uma fórmula já bem conhecida dos cardiologistas mas que foi atualizada para a nova diretriz --e muito criticada, por superestimar o risco em certos grupos e por subestimá-lo em outros.
        A tabela leva em conta os seguintes itens: sexo, idade, raça (afroamericana ou branca e outras), níveis de colesterol, pressão arterial, se a pessoa faz tratamento para baixar a pressão, se tem diabetes e se fuma.
        EVIDÊNCIAS
        A última pesquisa grande sobre estatinas em pessoas sem doenças cardiovasculares foi publicada neste ano pela Cochrane, entidade de renome que realiza grandes revisões de estudos. Ela concluiu que o tratamento com estatinas é benéfico mesmo para quem nunca teve problemas cardíacos e que não traz efeitos colaterais graves.
        John Abramson, da Escola Médica de Harvard, publicou uma análise no "British Medical Journal" questionando conclusões dessa revisão e de outra de 2012, a CTT, uma colaboração internacional.
        O problema principal é o número de pessoas que precisam tomar as estatinas para que um evento cardiovascular ou uma morte sejam evitados. Esse número deve ser comparado com o de pessoas que precisam tomar o remédio para que uma tenha um efeito colateral grave. Pesando o benefício e o risco, chega-se a uma indicação.
        Mas esses números são controversos. O estudo da CTT mostra que, entre pessoas com risco de 20% ou menor de problemas cardíacos em dez anos, são evitados 11 eventos cardiovasculares por mil pessoas tratadas a cada 39 mg/dl de redução de LDL. As conclusões da CTT classificam esse benefício como mais importante do que o risco trazido pelo tratamento.
        Nesse estudo, era preciso tratar 2.000 pessoas para haver um caso de problema nos músculos, um dos efeitos colaterais mais comuns do tratamento. No entanto, Abramson, no "BMJ", cita outros estudos que mostram um número muito maior de casos de dores musculares causados por estatina.
        Segundo esses estudos, é preciso tratar só 19 pessoas para que uma sofra de miopatia. O diabetes também aumenta entre os tratados,em especial entre mulheres.
        Segundo Xavier, da Sociedade Brasileira de Cardiologia, o risco de diabetes sobe cerca de 9% entre usuários de estatina, risco menor do que o benefício do remédio.
        Para Drauzio Varella, o importante é trazer à tona a discussão sobre esse tema. "Quis mostrar [com o artigo] que a questão não é tão simples assim. É preciso discutir."
        TENTAIVA DE EVITAR INFARTOS
        Por que, afinal, existe um esforço tão grande para saber quem deve tomar um remédio para evitar uma doença que pode nem se manifestar?
        As estatinas são classificadas como "blockbusters", drogas responsáveis por grande fatia do faturamento das maiores farmacêuticas. Enquanto as patentes e os preços desses remédios vêm caindo, novas substâncias têm sido testadas para serem usadas como estatinas ou por pessoas que não toleram o tratamento com elas.
        Para críticos da indústria farmacêutica, existe um esforço grande em demonstrar benefício desses remédios simplesmente para fazer gente saudável comprar remédio.
        Mas a questão não pode ser resumida a uma "teoria da conspiração", segundo Raul Santos Filho, da USP. Cerca de metade das pessoas que infartam nunca teve sintomas de doenças cardíacas antes de sofrer o evento ou até morrer por causa dele.
        A esperança dos médicos é identificar pessoas com maior risco de infartar ou ter derrame e evitar que isso aconteça. Daí surgem as escalas de risco futuro e as receitas de estatinas e anti-hipertensivos.
        Além das mudanças de estilo de vida, que dependem muito da força de vontade do paciente, o colesterol é um fator no qual os médicos conseguem interferir, principalmente com remédios.

        Na educação, Brasil tem motivos para celebrar e para se preocupar

        folha de são paulo
        ENTREVISTA DA 2ª - AMANDA RIPLEY
        Na educação, Brasil tem motivos para celebrar e para se preocupar
        Jornalista visitou os melhores sistemas escolares do mundo e concluiu que a eficiência está no ensino desafiador e em professores bem preparados
        FABIANO MAISONNAVEDE SÃO PAULOAo topar com um gráfico comparativo da evolução educacional em 15 países ricos, a jornalista dos EUA Amanda Ripley, 39, viu sem surpresa, que, em meio século, quase nada mudou no desempenho medíocre dos alunos da nação mais rica do mundo. Mas lhe serviu como revelação a melhora apresentada em lugares como Finlândia e Coreia do Sul em apenas uma década.
        Ripley decidiu, então, acompanhar alunos americanos de intercâmbio em três países bem avaliados no Pisa --reputado teste internacional de desempenho de alunos entre 15 e 16 anos em matemática, leitura e ciências. Do mais recente participaram de 65 países, com o Brasil nas últimas colocações.
        Na Finlândia, a jornalista encontrou crianças que "alcançam alto grau de pensamento sem competição excessiva ou interferência paterna". O contrário da "panela de pressão" sul-coreana, onde as jornadas escolares já tiveram 16 horas. Na Polônia, o fim do comunismo criou uma escola mais rigorosa, porém estimulante.
        As conclusões estão no recém-lançado "The Smartest Kids in the World" (As crianças mais inteligentes do mundo, em tradução livre), que está na lista dos cem livros "notáveis" deste ano do "New York Times". O lançamento no Brasil será em 2014. Confira trechos da entrevista concedida à Folha, por telefone.
        FOLHA - A sra. diz que o Pisa é um bom método de avaliar o pensamento crítico. O que isso significa do ponto de vista educacional?
        Amanda Ripley - Eu mesma fiz o teste enquanto escrevia o livro. Ele requer mais pensamento do que qualquer outro teste padronizado que conheço. Exige que um problema do mundo real seja traduzido em termos matemáticos. Que você critique um trecho de leitura e diga como ele pode ser melhorado. É uma avaliação com base na qualidade do argumento.
        A partir do Pisa, a sra. escolheu visitar três países bem diferentes entre si. O que eles têm em comum?
        Acompanhei três adolescentes americanos, de Estados diferentes, e que foram a três países muito diferentes também. Todos notaram que as crianças desses países levam a escola mais a sério do que nos EUA --justamente pela escola ali ser mais séria. O trabalho que fazem é mais desafiador, os professores são mais bem treinados e o foco é no aprendizado.
        Nos EUA e em outros países está menos claro para que a escola serve. Entrevistei centenas de alunos de intercâmbio nos EUA, e 90% disseram que as escola americana era mais fácil. Disseram ainda que havia mais tecnologia, o que é importante apenas na medida em que há muito investimento nessa área no país, e é preciso um retorno. Porém, ter iPads em sala de aula não leva necessariamente ao aprendizado.
        Qual é a importância do professor?
        Anos de pesquisa têm mostrado o que, no fundo, já sabíamos: o professor é o fator intraescolar mais importante na educação. Alguns países concentram toda a energia no recrutamento, treinamento e aprimoramento dos professores. Esses países são poucos e distantes entre si, mas parecem ter sistemas mais justos, com crianças mais inteligentes.
        Uma de suas conclusões otimistas é que o sistema educacional pode mudar rapidamente. Isso é verdade mesmo em países grandes?
        Acho que sim. Escrevi este livro porque as mudanças são muito estimulantes. É muito encorajador ver países grandes e complexos, como Polônia, Canadá e mesmo partes da China melhorarem dramaticamente o que as crianças podem fazer em dez anos, que não é um período muito longo.
        Mesmo nos EUA, há dois Estados, Massachusetts e Minnesota, onde nossa performance é de muito alto nível em comparação com o resto do mundo.
        No Brasil, o governo comemorou ter sido o que mais avançou em matemática desde 2003, mas o país continua nas últimas posições. Há mais motivos para celebrar ou para se preocupar?
        Não saberia interpretar os resultados do Brasil, mas o país ainda tem um longo caminho adiante, assim como outros países na América do Sul. Mas há muitas nações que não estão nem perto do Brasil ou que estão piorando. No caso brasileiro, há bons motivos para comemorar e motivos para gerar ansiedade e preocupação.
        O sistema educacional mais exigente parece ser o sul-coreano. Ele deve ser copiado?
        Há lições a serem aprendidas, mas não é o modelo ideal para nenhum país. O caminho é extremamente infeliz --muito eficiente, porém doloroso. Você não vai querer ter dois sistemas escolares, um de dia, outro de noite [aulas de reforço], e os alunos assistindo a ambos. É melhor investir num sistema escolar durante o dia confiável a pais e alunos. Lá todos me diziam que o modelo finlandês é o melhor para o mundo.
        A sra. diz que o rigor com o aluno é parte importante do sistema educacional eficiente. Isso explicaria a diferença entre escolas privadas de elite e escolas públicas no Brasil?
        O último Pisa é o primeiro a mostrar que as escolas privadas estão agregando valor em todo o mundo. Isso é preocupante, porque o acesso à educação não deveria ser baseado em quanto dinheiro os pais têm.
        Sobre o rigor, os sistemas mais humanos e de alta performance são os que priorizam qualidade sobre quantidade. Portanto, o objetivo não é gastar muitas horas na escola e muitas horas fazendo tarefa de casa. O objetivo é que o tempo usado seja desafiador, com trabalho difícil que valha a pena fazer. Muitos americanos fazem mais lição de casa que os finlandeses. Mas não é muito criativo ou exigente, é apenas para mantê-los ocupados.
        A surpresa do ano foi o Vietnã, país pobre que teve um desempenho melhor do que países ricos. O que explica?
        Não sei muito sobre o Vietnã, mas fiquei impressionada com a performance do país. Tem o mesmo nível da Finlândia, Canadá e Holanda, apesar da pobreza. O que eu sei é que, como a Coreia do Sul, há muita aula de reforço depois da escola. É algo com que você tem de ser cuidadoso, ninguém quer que as crianças sejam tristes, estudem dia e noite. Especialmente porque países como Finlândia, Alemanha e Canadá estão no topo sem serem infelizes.
        Se a sra. pudesse voltar no tempo, onde faria o ensino médio?
        Definitivamente, não seria na Coreia do Sul. É um país fantástico e interessante, mas o sistema é muito esgotador.
        Eu estudei no exterior quando era adolescente. Como muitos jovens, estava desesperada para sair da minha escola, então eu embarquei na chance de passar um semestre na França.
        O país não tem um forte sistema educacional em relação ao topo do mundo, mas foi uma das melhores decisões que eu tive na minha vida. De repente, entendi que o mundo era um lugar grande, que não gira em torno dos EUA --uma grande conclusão para um norte-americano.
          RAIO-X
          NOME
          Amanda Ripley, 39
          OCUPAÇÃO
          Repórter investigativa para as revistas norte-americanas "Time" e "The Atlantic", entre outras publicações
          LIVROS
          "The Smartest Kids in the World" (As Crianças Mais Inteligentes do Mundo, em tradução livre) e "Impensável - Como e Por Que as Pessoas Sobrevivem a Desastres" (ed. Globo)

          A USP rumo ao futuro

          folha de são paulo
          JOSÉ ROBERTO CARDOSO E JOSÉ ANTONIO RAMIRES
          A USP rumo ao futuro
          O ensino de graduação precisa de um choque conceitual e de investimentos para recuperar o prejuízo causado pela atual gestão
          É inegável que a USP seja a universidade de maior visibilidade do país. Suas diretrizes tornaram-se paradigmas de gestão e foram reproduzidas nesse universo complexo e heterogêneo do ensino superior.
          Quais são, então, os agentes e as razões responsáveis por colocar nossa universidade no centro de críticas e agressões como há muito não se via? Em nossa avaliação, foi a ruptura dos canais de comunicação e o isolamento do poder.
          Essa ruptura aboliu agendas com pró-reitores, vice-reitor e diretores e promoveu a maior concentração de poder em um único dirigente.
          O restabelecimento desses canais é prioritário não só para garantir a governança perdida, mas também para promover uma cultura de paz que nos leve a praticar o diálogo e a superar dificuldades com civilidade.
          A USP precisa voltar a ter serenidade para garantir a formação de qualidade e avançar na busca pelo conhecimento por meio de pesquisas de ponta, em ambiente que exale cultura, responsabilidade social e consciência ambiental.
          A luta pela autonomia deve ser diária, pois problemas orçamentários a ameaçam. Mas, antes, é preciso superar a burocracia que hoje dificulta a conquista pela USP de um lugar entre as melhores universidades do mundo.
          As demandas por inclusão social e rediscussão do poder precisam ser respondidas, e a comunidade deve ficar atenta para que compromissos já assumidos com ações afirmativas sejam cumpridos. A criação de um canal permanente de discussão mostrará a real intenção ao diálogo. Essa postura inibirá conflitos, invasões, preconceitos e agressões.
          Quanto ao ensino, apesar de iniciativas isoladas, o impacto da tecnologia da informação e comunicação na graduação não está devidamente valorizado na universidade.
          Observaram-se, na atual gestão, grandes avanços na computação corporativa. No entanto, o ensino on-line como suporte ao ensino presencial e como ferramenta de difusão do conhecimento gerado na USP precisa de uma solução definitiva para estarmos preparados para as mudanças do novo tempo.
          O ensino on-line quebrará barreiras de acesso ao conhecimento qualificado. Em breve, a telepresença será corriqueira e os softwares reproduzirão as reações humanas, de modo que a aula presencial, no formato que a praticamos hoje, sofrerá modificações.
          O estudante passará a ser um agente ativo na busca do conhecimento, e não passivo como em nossos dias, nos quais o professor é a única fonte do saber. O relacionamento do professor com o aluno evoluirá para a tutoria e para a orientação, e a carga horária será reduzida, pois o trabalho independente e dirigido será a maior ferramenta para a aquisição do conhecimento.
          A redução da carga horária dará maior flexibilidade ao aluno para que realize atividades extraclasse, esportivas e culturais. Espaços lúdicos multidisciplinares, onde todos os saberes estejam presentes, serão abertos para estimular sua criatividade na produção de inovações em todas as áreas do conhecimento, para torná-lo um cidadão completo e avançado no seu tempo.
          O ensino de graduação precisa de um choque conceitual e de investimentos para recuperar o prejuízo causado por uma gestão que não deu a adequada atenção à atividade-fim mais relevante da universidade.
          O ramo de cultura e extensão será partícipe e chamado para assumir a tarefa de orientação nas questões sociais e, com ações articuladas, estabelecer agenda permanente de eventos para a comunidade. Essa pró-reitoria deverá prover a ponte segura de relacionamento com o setor produtivo com transparência e lucidez, para acelerar o processo criativo, inovador e levar a USP rumo ao futuro.

          Ruy Castro

          folha de são paulo
          O sobradinho do vovô
          RIO DE JANEIRO - Deu no jornal: a casa da família da presidente Dilma Rousseff em Uberaba (494 km de Belo Horizonte) foi declarada patrimônio histórico. É uma construção de 1938, de porta, janela e varanda com escadinha, como tantas. Em solteira, a mãe de Dilma morou ali com os pais. Casou-se com Pedro Rousseff e os dois se mudaram para Belo Horizonte, onde Dilma nasceu, em 1947. A menina só conheceu a casa nas vezes em que voltou à cidade para visitar o avô. Deve ter rabiscado seu nome a lápis em algumas paredes, não mais.
          Para um imóvel se tornar patrimônio histórico, submete-se a um processo que o considere de utilidade pública. Daí é tombado e desapropriado, pagando-se ao proprietário um valor arbitrado por um órgão oficial. A casa, vazia e em mau estado, ainda pertence à família de Dilma. A ideia é transformá-la num memorial dos presidentes brasileiros, com os recursos do Ibram (Instituto Brasileiro de Museus) e do Ministério da Cultura.
          O prédio não tem qualquer interesse arquitetônico ou histórico, mas o prefeito de Uberaba é aliado político de Dilma e capaz de envolver órgãos federais nesse ato de puxa-saquismo explícito. Houve quem se revoltasse ao ler a notícia, mas prefiro vê-la por um ângulo otimista.
          Se há dinheiro para salvar o sobradinho do vovô, não deverá faltar para recuperar, por exemplo, as magníficas edificações da antiga Universidade do Brasil, na Praia Vermelha, construídas por d. Pedro 2º, em 1852. A Reitoria era originalmente o Hospital dos Alienados, onde Lima Barreto foi internado em 1914 e 1919. A cultura brasileira deve muito ao complexo por inteiro. Na Faculdade de Arquitetura, aconteceu em 1959 o primeiro grande show de bossa nova.
          Ao passar por ali, hoje, a sensação é de abandono. Mas o MinC parece ter outras prioridades em matéria de patrimônio histórico.

            Gregorio Duvivier

            folha de são paulo
            A metade do copo
            Viajar de avião é uma sucessão de filas: fila do check-in, fila do embarque, fila da imigração, fila do táxi
            A viagem foi insuportável. Viajar de avião é uma sucessão de filas: fila do check-in, fila do embarque, fila do desembarque, fila da imigração, fila do táxi. Hoje em dia, pra piorar, você pega um ônibus da sala de embarque até o avião.
            Eles não entendem que se você viaja de avião é exatamente porque você não queria pegar um ônibus? A comida do avião, nem precisa dizer, era odienta. Nova York estava um gelo. As ruas são cheias de brasileiro e kombis de cachorro-quente. Parece Osasco. Só que nevando.
            Os taxistas são todos paquistaneses ou afegãos e falam inglês pior que você. Passam a viagem falando no celular --em paquistanês ou afegão. E, no final, você tem que dar gorjeta.
            No bar é a mesma coisa. A cerveja é quente, amarga, sem colarinho e custa uns 20 reais.
            Fora a gorjeta. Voltamos de metrô, que tem um cheiro de cachorro com notas de rato, urina e ovo podre. A única coisa boa é que a viagem foi com a minha esposa. Ela se diverte com qualquer coisa.
            A viagem foi uma delícia. Pra começar, viajamos de avião --podia ser de navio, que seria uma opção muito mais demorada.
            Como a gente tá acostumado a andar de busão, o pessoal do aeroporto levou a gente num ônibus até o avião, pra transição entre os meios de transporte ser mais amigável.
            No avião, linda surpresa: a TAM ainda serve comida! E vinho e sobremesa. Foi um festim.
            Chegamos em Nova York. E estava nevando! Foi muito bom pra gente que queria fugir do calor de São Paulo. E quando a gente sentia falta de casa, era só ir ao Times Square. Só tinha brasileiros. E kombis de comida!
            Parece a rua lá de casa. Só que nevando! Pegar táxi é uma experiência antropológica. Cada táxi que você entra é uma imersão em uma cultura distante. A trilha sonora não poderia ser melhor: o taxista dirige, invariavelmente, falando ao celular em línguas que você nunca ouviu antes.
            Fomos a um bar delicioso, que teve a ideia brilhante de servir a cerveja um pouco mais quente pra contrabalançar o frio que estava lá fora. E sem o colarinho, que é um desperdício de cerveja. E a cerveja tem gosto, ao contrário das brasucas.
            Valeu cada centavo. Na volta, pegamos um metrô. Isso é surreal: eles têm metrô! E funciona até tarde. E passa na cidade toda. E o cheirinho me lembrou do Jorge, nosso bassê.
            Quase chorei de saudade. Não sei se o meu marido gostou. Acho que ele preferia ter ido sozinho.

              Luiz Felipe Pondé

              folha de são paulo
              Moral da história
              No Brasil, muitos juízes acham que devem fazer (in)justiça social com as próprias mãos
              Hoje vou contar uns casos para você. Aproximam-se o Natal e o Ano-Novo, e sempre pensamos o que poderia ser diferente no Brasil. Eu, diferentemente daqueles que creem em modas como "consciência política" (para mim isso é uma coisa tão real quanto carma), espero que um dia o Brasil se livre de sua inhaca de ser um país no qual quem dá emprego é visto como bandido. Porque, ao contrário do que diz a moçada da "justiça social" (carma...), quem dá emprego é quem faz verdadeira justiça social.
              Imaginem uma jovem empresária cheia de vida e fé no seu negócio. Isso aconteceu alguns anos atrás, hoje ela se transformou numa cética com relação ao valor da atividade do pequeno e médio empresário brasileiro, porque acha que só ingênuo e mal informado dá emprego no Brasil.
              Um dia sua loja de produtos finos foi assaltada em plena luz do dia. Ela e sua sócia tiveram suas vidas ameaçadas. Vários talões de cheques da empresa roubados do cofre. Não tinha muito dinheiro em "cash", por sorte.
              Na sequência, se inicia a via crúcis para cancelar os talões e fazer o BO. Horas em delegacias com funcionários que complicavam as coisas com clara intenção de, quem sabe, garantir um "extra".
              Alguns dias depois, a dona de um pequeno restaurante fora de São Paulo liga para elas dizendo que um grupo grande de homens havia passado um cheque de sua empresa como pagamento de uma festa que eles tinham dado no restaurante dela. Nossa jovem empresária, prontamente, informa à mulher que a loja tinha sido assaltada, que esses talões estavam cancelados e que tinha a documentação necessária para comprovar o relato, e, portanto, sentia muito, mas o cheque não tinha qualquer valor.
              Claro que a dona do pequeno restaurante não quis saber e "pôs elas no pau". Foram obrigadas a depositar em juízo. Quando da audiência, após apresentar toda a documentação, o juiz decidiu que sim, elas deveriam pagar o cheque.
              Quando questionado em sua decisão (já que elas tinham sido vítimas de um assalto!), o juiz as ameaçou dizendo que, caso não aceitassem a decisão, o processo se alongaria e sairia mais caro para elas. Ao ser indagado acerca da injustiça que ele cometia ao obrigá-las a pagar por um gasto que não fizeram, o juiz soltou a pérola de costume: "As senhoras são ricas, podem pagar por isso".
              Eis o juiz fazendo caridade com a grana alheia. Comunista gosta de distribuir o dinheiro dos outros. No Brasil, muitos juízes acham que devem fazer (in)justiça social com as próprias mãos.
              Moral da história: as empresárias foram roubadas duas vezes, uma pelos ladrões, outra pelo Estado.
              Outro caso. Funcionário rouba o patrão. Ele demite o funcionário por justa causa. Abre processo na Justiça comum contra o funcionário. O juiz do trabalho decide que o patrão deve pagar "todos os direitos trabalhistas" do funcionário sob alegação de que uma coisa é roubar, outra é ser demitido. Risadas? Claro, o juiz do trabalho argumentou que as duas Justiças "não se comunicam" e que os direitos trabalhistas são inquestionáveis.
              A questão é: afinal, roubar não seria causa suficiente para você demitir alguém? O problema é que cá nestas terras demitir é crime. O Brasil é mesmo o fim da picada.
              Moral da história: o empresário foi roubado duas vezes, uma pelo funcionário ladrão, outra pelo Estado.
              Mais um. Jovem empresário de uma cidade em outro Estado faz uma reforma na fachada de sua loja. Fica muito bonita. Dias depois, roubam quase tudo dessa fachada.
              No Brasil, tudo é roubável. A fachada fica destruída. Passados poucos dias, aparece aquele cara chamado "fiscal da prefeitura". O "amigo" avisa ao empresário que vai lhe passar uma bela multa, a não ser que ele seja razoável. O jovem empresário, munido da fé comum daqueles que creem que escândalos com fiscais é coisa rara, argumenta e apresenta documentação provando a destruição criminosa e o roubo. Não adianta, o "representante do bem público", leia-se, o fiscal, lhe apresenta uma multa enorme.
              Moral da história: o jovem empresário foi roubado duas vezes, uma pelo ladrão, outra pelo Estado.
              ponde.folha@uol.com.br