domingo, 2 de março de 2014

Descaracterizou, todo mundo no bloco hoje só quer pegar mulher

folha de são paulo
ALEGORIAS
Crônicas da folia - GREGORIO DUVIVIER
Hipster de bloco
O Carnaval tá tão descaracterizado que acho que vai dar volta. E recaracterizar
Esse bloco já foi bom. Isso era antes do pessoal começar a chegar. A playboyzada estragou esse bloco. Os coxinhas arruinaram o carnaval.
Não, eu não sou hipster. Eu era hispter, antes de todo o mundo virar hipster. Hoje em dia ser hipster é coisa de coxinha.
Igual esse bloco aqui. Eu gostava antes de virar modinha. Só vinha o pessoal do bairro, mesmo. Aí saiu no jornal. Hoje em dia descaracterizou. Não, eu nunca fui do bairro.
Mas é diferente. Eu, pelo menos, sou do Rio. Nascido e criado. Esse pessoal vem de Goiás. Isso é que descaracteriza: quando vem gente de outro Estado. Aí é que vira micareta.
Antigamente era família, tinha muita criança. O objetivo era se divertir. Não, eu sempre vim com o objetivo de pegar mulher. Mas eu era uma exceção. Essa é que era a graça.
Hoje em dia descaracterizou: todo o mundo vem com o objetivo de pegar mulher. Isso é que não pode. Assim eu sou só mais um cara com o objetivo de pegar mulher. E a mulher que é bom já não vem mais.
Mulher não gosta de lugar em que tá todo mundo a fim de pegar ela. Vai entender. Mulher gosta de acreditar que as pessoas têm outro objetivo na vida. Outro dia vi uma mulher linda de costas. Cheguei junto e era um goiano.
Por isso é que eu prefiro festa junina. A festa junina é o novo Carnaval. Se bem que tá começando a ficar mainstream demais. Acho que este ano vai descaracterizar. Vou ter que voltar a frequentar o Carnaval.
Ano que vem o Carnaval vai estar tão descaracterizado que eu to achando que vai dar a volta. E vai recaracterizar.

    Sem representação política, é impossível resolver protestos - Sara Burke

    ENTREVISTA - SARA BURKE
    Sem representação política, é impossível resolver protestos
    Demandas por justiça econômica e democracia real caminham juntas, diz autora de estudo sobre manifestações em 87 países
    MARCELO LEITEDE SÃO PAULOGovernos dos mais variados países estão fracassando no atendimento das necessidades de suas populações e no combate às desigualdades. "A captura generalizada de processos governamentais por elites é tão dominante que elas não se veem compelidas a distribuir a riqueza", diagnostica Sara Burke, analista política da Fundação Friedrich Ebert, ligada ao Partido Social-Democrata alemão (SPD), em Nova York.
    Burke é coautora, com Isabel Ortiz, Mohamed Berrada e Hernán Cortés, do relatório "Protestos Mundiais 2006-2013" (http://policydialogue.org/files/publications/World_Protests_2006-2013-Final.pdf), da FES e da Universidade Columbia, que mapeou 843 eventos de contestação em 87 países. A maior parte (488, ou 58%) se batia por justiça econômica e contra medidas de austeridade.
    Seu auge se deu a partir de 2010, após a crise financeira de 2008-2009. Contudo, a solução para essas demandas, diz ela, não depende tanto da retomada do crescimento quanto de avanços na representação política, de uma "democracia real" que dê voz e ouvidos, de fato, à maioria.
    Leia os principais trechos da entrevista, feita por e-mail.
    Folha - O relatório indica protestos por justiça global como o grupo de demandas que mais crescia em 2013. Seria equivocado presumir que eles arrefeceram desde então?
    Sara Burke - Estamos todos muito atentos a Ucrânia, Venezuela, Tailândia, Egito e alhures, onde nacionalismos de vários tipos claramente desempenham papel enorme. Isso poderia nos levar a perguntar se os protestos organizados globalmente estão arrefecendo, mas nada posso dizer de definitivo sobre isso.
    Lembre que um episódio de protesto é em geral muito mais que um comício ou uma marcha isolados. Com mais frequência, é um processo corrente e quase invisível de organização, construção de redes, produção de visões estratégicas e decisões que então se expressam em um dramático evento de protesto.
    Os protestos na Ucrânia e na Venezuela não parecem nascer de queixas e demandas por justiça econômica ou contra austeridade, mas antes da segunda razão mais comum em seu levantamento, o fracasso da representação política. No Brasil, os protestos começaram com a tarifa dos ônibus e se tornaram mais e mais políticos, contra a corrupção. Há aí uma tendência?
    É importante entender a relação entre o fracasso de governos em providenciar o que as pessoas precisam da economia --empregos com salários que permitam sobreviver, serviços públicos essenciais, impostos justos e alimentos, combustíveis e moradias a preços módicos-- e a necessidade de serem de fato ouvidas sobre como e para quem as decisões econômicas são tomadas.
    Sem representação política que possa ser responsabilizada --ou seja, participação democrática e limites ao poder das elites--, é impossível resolver o grande acervo de demandas econômicas que leva as pessoas a protestar.
    Isso vale para a Ucrânia?
    Uma das razões pelas quais [Viktor] Yanukovich não assinou acordos com a Europa em novembro é que ele não se dispunha a implementar o que seriam medidas dolorosas e outras reformas exigidas pelo FMI em troca de empréstimos. Ele não queria impor a austeridade --não porque fosse um cara legal, mas porque isso enfureceria a população. Ele se voltou então para a oferta de ajuda da Rússia e isso também enfureceu as pessoas. Por quê?
    Veja, não é uma alternativa do tipo "problema econômico ou crise política": é todo o sistema político e econômico que não responde às necessidades das pessoas. No estudo encontramos isso em todos os tipos de regimes políticos, dos autoritários, como o da Ucrânia, às democracias representativas, velhas e novas.
    Pelo menos na Ucrânia, o que começou como protesto degenerou em conflito próximo de uma guerra civil, como na Síria. O Egito viu sua primavera retroceder ao inverno do antigo regime. É como se faltasse impulso, ou organização, aos movimentos de base para derrubar de vez o regime. Há exemplos para contradizer essa conclusão pessimista?
    Um dos grandes desafios para os movimentos de protesto é como obter sucesso nos seus objetivos mais ambiciosos, como criar uma estratégia para chegar a uma transformação duradoura e sustentável. Isso fica mais complicado --na Ucrânia e na Venezuela, como na Síria"" com o fato de as potências externas usarem o confronto local para praticarem suas guerras por procuração.
    Qual foi o real significado das declarações de Victoria Nuland [subsecretária de Estado dos EUA] que foram vazadas? Dizer "foda-se a União Europeia"? Será que o significado não foi que sua conversa com o embaixador americano na Ucrânia revelava o quanto o governo dos EUA tentava direcionar os protestos para seus objetivos, para aquilo que alguns alegam ser um golpe contra um presidente eleito, e não para uma solução democrática?
    Pode-se argumentar que as medidas de austeridade foram, de algum modo, assimiladas desde 2011 e perderam apelo para protestos. Não houve os desastres esperados em Portugal, na Grécia ou na Espanha. A Europa está mal, mas não mais em crise aguda, os EUA retomaram o rumo do crescimento e a China parece estar tomando a trilha do crescimento mais lento sem distúrbios sociais. Estamos a caminho de uma normalização dos protestos pelo globo?
    Os protestos antiausteridade na Europa foram maciços, mas muitos deles liderados por atores políticos tradicionais --como grandes confederações sindicais na Espanha, na Grécia e na Itália, que têm tantos vínculos com partidos desacreditados que elas mesmas se tornam inconfiáveis. Além disso, não houve virtualmente nenhum ganho com esses protestos; portanto eu diria que elas ""e não necessariamente a própria austeridade"" perderam apelo.
    E, embora seja consenso entre os "oráculos" da finança que a Europa e em especial os EUA retomam o crescimento, quem se beneficia dessa recuperação? Nos EUA, dados recentes mostram que o 1% superior de renda capturou 95% dos ganhos dos primeiros anos de recuperação da crise econômica recente!
    É consenso entre esses oráculos da finança que estamos numa nova era de volatilidade econômica global e precisamos nos acostumar. O 1% se preparou para ela sufocando a regulação e criando precedentes para socializar os resultados das crises enquanto privatizam os ganhos.
    "Democracia real", como categoria isolada, é a demanda mais prevalente nos protestos (26% dos casos). Isso implica reconhecer que procedimentos democráticos formais, como eleições livres e Judiciário independente, não bastam para acarretar justiça social?
    Por razões inteiramente coerentes com os achados sobre as principais queixas das pessoas, os maiores alvos dos protestos são "o governo" (usualmente os governos nacionais) e "o sistema" (o sistema político-econômico no qual o governo opera). Mas veja o que vem depois: corporações, FMI, elites, União Europeia, finanças, Banco Central Europeu, corporações armadas e livre-comércio!
    Essa lista (ver tabela nesta página) revela um nexo perturbador entre governos que fracassam em representar populações e elites privadas corporativas e financeiras que contornam processos políticos para exercer influência, assim como instituições financeiras internacionais promotoras de políticas que espicaçam as populações e as forças militares e policiais que as reprimem quando se agitam --todos vistos, sob a óptica de manifestantes, como cúmplices da manutenção de um sistema econômico que produz e reproduz desigualdade e privação.
    Muitos protestos que nascem da insatisfação com a falta de progresso na redução de desigualdades originam movimentos com pouco foco, cujas demandas abrangem coisas demais, numa época de limitações fiscais, e que tendem a conseguir pouco ou nada e depois arrefecem. Seria uma boa explicação para o fato de 63% de todos os protestos terminarem em fracassos?
    O Brasil fez progressos históricos contra a desigualdade, mas não foi o suficiente para satisfazer a necessidade de serviços públicos e custo de vida adequados nem suas aspirações por mobilidade real. Como afirmamos no estudo, as políticas necessárias para enfrentar as insatisfações são tão numerosas e inter-relacionadas que ultrapassam a capacidade dos arranjos políticos existentes.
    A questão não é vivermos sob limitações fiscais, mas numa era em que a captura generalizada de processos governamentais por elites é tão dominante que elas não se veem compelidas a distribuir a riqueza. Falta disposição para taxar aqueles que mais facilmente podem pagar e usar essa receita para financiar necessidades sociais.

      Helio Schwartsman

      folha de são paulo
      Berço e destino
      SÃO PAULO - Num livro que está dando o que falar, o economista Gregory Clark sustenta que a mobilidade social é bem menor do que suspeitávamos e que isso vale tanto para a politicamente correta Suécia como para a Índia das castas. As implicações dessa tese, como o leitor pode suspeitar, são profundas, trazendo elementos para repensar quase tudo, desde políticas tributárias até a noção de meritocracia, passando pelas ações afirmativas.
      Em "The Son Also Rises", Clark introduz um novo método de aferir mudanças sociais. Em vez de avaliar o que ocorre de uma geração para a outra, como fazem as técnicas convencionais, preferiu olhar o longo prazo. Valendo-se de sobrenomes e de bases de dados que permitem averiguar o perfil socioeconômico de seus portadores, pôde verificar o que ocorre ao longo dos séculos. A vantagem dessa lente é que ela é menos sensível a variações ditadas pelo acaso, como o filho do empresário que preferiu ser artista ou o jovem pobre especialmente talentoso.
      A boa notícia é que a tendência geral é de convergência. As elites tendem a tornar-se menos poderosas e as classes populares tendem a melhorar. A má é que essa regressão à média ocorre em horizontes dilatados, que variam de 300 a 450 anos. Medidas fortes como educação gratuita e compulsória, impostos progressivos, cotas e mesmo eventos históricos como as revoluções científica e industrial não parecem ter alterado dramaticamente esse quadro.
      Boa parte do livro é dedicada à exposição técnica e metódica dos dados coletados em oito países bastante diversos, o que torna a leitura até meio aborrecida. Mas Clark reserva capítulos para detalhar suas hipóteses, que se apoiam bastante na biologia, e discutir o que elas significam. Vamos ver se seus cálculos sobrevivem às críticas metodológicas que fatalmente virão. Ainda levaremos algum tempo para digerir isso tudo. É um livro polêmico e parece sólido.

        Carlos Heitor Cony

        folha de são paulo
        Momento da verdade
        RIO DE JANEIRO - Mais um Carnaval, estamos aí, quer dizer, eu não estou com nada e em nada, muito menos nesse "aí" genérico e abstrato. Na verdade, se todos estão aí, eu prefiro estar ali --e vice-versa. O Carnaval não me repugna, como a tantos outros, mas não me deslumbra.
        Já fiz esforço para gostar, apelei para complicadas razões --não deu. Do ponto de vista pessoal, guardo minhas lembranças, boas algumas, outras detestáveis, mas nenhuma que tenha entrado fundo e marcado um momento, definido uma emoção. Sim, houve um fato capital, que determinou tudo: foi num antigo baile aqui no Rio, num clube que atendia pelo nome de "High Life".
        Eu havia saído do seminário há pouco e no primeiro Carnaval decidi não brincar. Embora usasse roupas leigas, eu ainda sentia o peso da batina sobre a minha carne, o cheiro do incenso em meus cabelos.
        Passei o primeiro Carnaval numa praia, com minha mãe e irmãos, e da folia mesmo, só vi alguns blocos de sujo. Mas no terceiro ou quarto Carnaval, naquilo que lá no seminário a gente chamava de "mundo", topei o convite de uma namorada, fui parar no tal baile.
        Por sinal, um baile famoso na época. Diziam que ali, de ano para ano, valia tudo e valia cada vez mais. No fundo, sabia não valer nada. Cometia séria concessão ao Carnaval indo a um baile, mas não entregava o ouro ao bandido: recusei qualquer tipo de fantasia. Meti-me numas calças brancas, camisa de seda branca.
        No meio da folia, agarrado na namorada, deparei-me com enorme espelho, que ia do teto ao chão. E lá no espelho, vi um camarada com uma cara sórdida, olhos injetados de álcool e suor, repelente, medonho. Incomodado, quis tirar satisfação. Ele fez o mesmo. Descobri que ele era eu, eu era ele.
        Culpa do espelho, do Carnaval e da má argila da qual são feitos homens, demônios e foliões.

        Benjamin Moser

        folha de são paulo
        Digitais e implacáveis
        Nos arquivos de Susan Sontag
        Hoje, as cartas em papel são para ocasiões especiais, e o fato de enviar uma carta já revela coisas sobre o remetente. (Com frequência, sua idade avançada)
        BENJAMIN MOSER
        RESUMO
        Biógrafo de Clarice Lispector relata visita aos arquivos da escritora Susan Sontag (1933-2004), conservados na Universidade da Califórnia. A partir da experiência, reflete não só sobre os "restos literários" de sua próxima biografada mas também sobre as peculiaridades do trabalho de pesquisador na era digital.
        -
        Ao longo da vida, Susan Sontag encheu seus diários com listas de palavras ("tegumento", "fedora de aba caída", "mingau", "mofa") que encontrava em suas leituras e viagens. Essas listas e os diários que as contêm podem ser consultadas, em grande medida, do mesmo modo como pesquisadores sempre consultaram arquivos literários: indo à biblioteca onde estejam -no caso, o Departamento de Coleções Especiais da Biblioteca de Pesquisas Charles E. Young, da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA)-, preenchendo alguns formulários e aguardando enquanto o encarregado busca o desiderato nas estantes.
        Uma expressão brasileira faz logo sentido para qualquer um que já tenha pesquisado uma coleção tão vasta quanto a de Sontag:
        "arquivos implacáveis".
        Quando cheguei a Los Angeles, no início de janeiro, para trabalhar na biografia de Sontag que estou escrevendo, imaginei que três meses seriam mais que suficientes. Ao longo dos dois últimos anos, li a obra dela e viajei, principalmente pela Europa e pela América Latina, a fim de encontrar as pessoas que possam me ajudar a reconstruir seu eu implacável.
        É difícil -impossível- pensar em um escritor norte-americano importante do século 20 com uma vida tão internacional quanto a de Susan Sontag. Mesmo os expatriados famosos de gerações anteriores tendiam a se fixar em destinos bastante comuns, como Londres, Paris ou Roma. Londres, Paris e Roma eram importantes para
        Sontag, mas São Paulo, Estocolmo e Sarajevo também.
        Na maioria desses lugares, alguns dias ou uma semana bastavam. O tempo de que eu dispunha em Los Angeles parecia um verdadeiro luxo. Mas os arquivos são
        tão vastos que já perdi a esperança de algum dia poder examinar tudo: centenas de caixas com pedaços de papel, fotos, diários, faturas de hotel, programas de ópera, cartas de amor, rascunhos de manuscritos (em muitos casos, inéditos) -materiais que emocionam quem os tem em mãos e que revelam coisas que às vezes só um documento original pode expressar.
        É possível ver na caligrafia de Sontag, de uma forma como nunca o permitiria uma carta datilografada, o modo febril com que ela, pouco após completar 40 anos, lidando com o diagnóstico que lhe apontou a finitude da própria vida, esboçou as meditações sobre o câncer que se tornariam "Doença como Metáfora", e com que cuidado, entre as mesmas páginas, guardou as receitas que seu médico em Paris escreveu para um tratamento de quimioterapia então impensável nos Estados Unidos. Ela não tinha como saber, enquanto escrevia o livro, que os medicamentos nessas listas, rabiscadas entre seus escritos, a salvariam.
        Mesmo quando lemos sobre temas menos carregados, há algo de melancólico nessa proximidade com uma pessoa que existiu e não existe mais. Essas coleções eram conhecidas, em tempos passados, como "restos literários": após uma vida escrevendo, o que resta é isso.
        Ou era.
        Um escritor da geração de Sontag -ela nasceu em 1933- trabalhou a maior parte de sua vida sobre papel. As cartas de Sontag são cartas reais; seus livros foram escritos usando caneta e máquina de escrever. Mas, quando ela morreu, em 2004, esses papéis já estavam rapidamente se convertendo em "restos". Hoje, enviar uma carta, diferentemente do que há 20 anos, quase equivale a fazer uma declaração de princípios: como os telegramas, as cartas em papel geralmente se reservam a ocasiões especiais e o mero fato de enviar uma carta já revela coisas sobre o remetente que em outra época não teria revelado. (Com frequência, sua idade avançada.)
        GUARDIÕES
        A explosão de material digital nos últimos 25 anos cria um desafio especial para os guardiões dos restos literários.
        Recentemente penetrei nos recônditos da biblioteca de pesquisas da UCLA para conversar com Gloria Gonzalez, uma moça de 24 anos, natural do Mississippi. Gonzalez se viu na dianteira do movimento para preservar estes materiais desde que, ainda estudante, começou a lidar com os arquivos de Sontag. Enquanto eu conversava com ela, minhas anotações começaram a se parecer com as da própria Susan Sontag, linhas cheias de palavras pouco familiares, que definiam um mundo novo para mim; "bit rot", "software forense", "write blocker".
        "Na verdade, não é tão novo assim", Gonzalez me disse. "As pessoas usam e-mail há 20 anos. Mas é novo em arquivos. Não é comum universidades procurarem esse tipo de material."
        O material, propriamente dito, consiste em dois pequenos discos rígidos, cada um rotulado com um post-it, que Gonzalez me mostrou em um cubículo localizado atrás da sala dedicada às coleções especiais. "São objetos físicos", disse Gonzalez -e, nesse sentido, não são diferentes dos livros e manuscritos que bibliotecários sempre colecionaram e conservaram.
        Esses objetos, porém, são muito mais vulneráveis do que um livro tradicional. São ameaçados pelo "bit rot", aquilo que acontece quando os zeros e uns em que os dados digitais são gravados se confundem misteriosamente; por certos equipamentos de armazenagem instáveis (drives USB, por exemplo); e pela ameaça mais grave da obsolescência tecnológica.
        Enquanto ela me mostrava, na Wikipedia, fotos dos computadores que Sontag usou -um PowerBook 5300, o mesmo computador que minha mãe me deu quando entrei na faculdade, um PowerMac G4 e um iBook- tive sensação igual à de quando compramos um computador ou celular novo: aquele ligeiro encabulamento que nos alcança quando nos damos conta de que o objeto que alguns meses antes parecia ultramoderno ficou pateticamente ultrapassado.
        Mas as máquinas em si não estão na biblioteca: pesquisadores futuros vão poder consultar os materiais em um laptop na sala de leitura, usando um software que os mostrará do modo como Sontag os teria visto. Isso é feito para proteger os arquivos físicos. "Cada vez que você abre um e-mail ou um arquivo do Word, o material é modificado", disse Gonzalez. "Há atualizações automáticas, ou -por exemplo, em um arquivo do Word- a data muda para a data em que o arquivo foi consultado, e você não pode ver quando foi a última vez em que ela trabalhou nele." (Em "Ensaios sobre a Fotografia", Sontag escreveu que tão somente olhar para alguma coisa já significa modificá-la.)
        Para preservar os arquivos, Gonzalez recorre a técnicas desenvolvidas pelo setor policial, uma área conhecida como análise forense computacional. A principal proteção dos metadados de um computador é um "write blocker", que permite que o material seja visto sem deixar qualquer rastro do visitante. É uma intervenção técnica simples. A principal ameaça vem das pessoas que simplesmente descartam computadores velhos, desconhecendo seu valor.
        MAL-ESTAR
        Sontag escreveu 17.198 mensagens de e-mail, que em breve estarão disponíveis para consulta num laptop especial. Eu tive a oportunidade especial de vê-los na biblioteca, e a experiência me provocou um mal-estar que eu nunca antes tinha sentido em anos de pesquisas históricas.
        Qualquer biógrafo conhece o constrangimento, que ocasionalmente beira a náusea, provocado pela pesquisa extensa sobre a vida de outra pessoa. Nunca conheci Sontag ou Clarice Lispector, tema de meu livro anterior. Mas, após anos de pesquisas, entrevistas, leituras e viagens, provavelmente sei mais sobre as duas que qualquer pessoa que não tenha feito parte de seu círculo mais íntimo. Sei de sua vida sexual, de suas finanças, conheço seu prontuário médico e seus fracassos profissionais, as dificuldades que tinham com pais e filhos, os segredos dolorosos que elas tão desesperadamente queriam manter ocultos.
        Mesmo sem tais dificuldades, que fazem parte de toda e qualquer vida, também a forma impõe escolhas. Assim como a história não é o passado propriamente dito, mas um relato do passado, a biografia não é uma vida, mas a história de uma vida. Do mesmo modo como um romancista fica conhecendo seus personagens, também um biógrafo fica conhecendo os dele, e, diante do caos de uma vida inteira, sabe que qualquer coisa que possa contar sobre o sujeito é apenas uma seleção pequena que cabe em uma narrativa escolhida de acordo com seus próprios gostos e interesses.
        O biógrafo também tem a consciência, sempre, de que sua posição, a qual necessariamente envolve julgamentos acerca do caráter de sua personagem e das escolhas que fez, é profundamente injusta, pela simples razão de que ela própria não pode ser consultada.
        Essas preocupações me são familiares e sempre as tenho em mente. Ainda assim, ler papéis e manuscritos é uma coisa. Vasculhar os e-mails de uma pessoa é outra coisa inteiramente diferente, e a sensação de estranheza e voyeurismo que me dominou quando eu estava sentado com Gonzalez disputou espaço com a curiosidade irrefreável que sinto com relação à vida de Sontag.
        Ler os e-mails de uma pessoa é vê-la pensando e falando em tempo real. Se a maioria dos e-mails não é interessante ("o carro a buscará às 7h30 se for ok beijos"), outros revelam qualidades inesperadas cuja descoberta é um deleite. (Quem poderia imaginar, por exemplo, que Sontag enviava e-mails com o título "E aí, o que rola?"). Vemos Sontag, que tinha tantos amigos, felicíssima por poder estar em contato com eles tão facilmente ("estou pegando a febre do e-mail!"); vemos a escritora insaciavelmente solitária buscando entrar em contato com pessoas que mal conhecia e convidando-as a fazer uma visita. Nas reações delas, percebemos sua perplexidade, como hesitavam em incomodar o ícone de reputação assustadora.
        Com os softwares hoje disponíveis, o biógrafo que se esforça para se colocar na posição de seu sujeito enfrenta novos dilemas. Uma das ferramentas mais interessantes usadas por Gonzalez é um programa chamado Muse, que pode fazer buscas em um banco de dados de e-mails e mapear os sentimentos do autor da correspondência com precisão espantosa. Podemos ver categorias como "médico", "irada" e "parabéns". Podemos ver, em um gráfico, a porcentagem de tempo em maio de 2001, por exemplo, em que Susan Sontag esteve feliz, triste ou incomodada.
        Enquanto eu me assombrava com essa tecnologia, me perguntei como me sentiria se alguém vasculhasse meus e-mails e revelasse que eu tinha proferido uma média de 321 observações mal-humoradas por ano e que meu índice semanal de tesão tinha variado entre 34,492% e 56,297%. Deveríamos realmente resumir e reduzir emoções e vidas humanas dessa maneira, simplesmente porque está a nosso alcance fazê-lo? Teria Susan Sontag desejado que sua vida fosse analisada desse jeito? Alguém o quereria?
        Sontag escreveu que as fotos dizem respeito ao que não mostram tanto quanto ao que mostram e que o que vemos depende de como o fotógrafo enquadra a cena. Seus diários revelam um apreço por estatísticas e fatos surpreendentes, mas o cerne moral de seus escritos (sobre a fotografia, a guerra, a política) está na insistência em afirmar que aquilo que vemos nem sempre é o que está ali.
        Hoje vivemos nossas vidas cada vez mais no computador. A quantidade de informação contida em nossos smartphones é muito maior do que Sontag poderia ter imaginado em sua vida, embora tenha morrido há menos de uma década. Quem acredita no valor da pesquisa histórica entende que cada vez mais "hard drives" como os preservados na biblioteca da UCLA serão onde essa pesquisa será feita. Mas revelarão mais sobre nossas vidas? Ou, ao mostrar demais, acabarão por revelar menos?
        Benjamin Moser, 37, é autor de "Clarice," (ed. Cosac Naify, 2009)

        Reinaldo José Lopes

        folha de são paulo
        Os ossos falam
        Livro do bioantropólogo Walter Neves explica como cientistas estimam a idade, o sexo e a dieta de pessoas que morreram há milhares de anos
        REINALDO JOSÉ LOPESCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA
        Depois de passar três décadas estudando os principais esqueletos pré-históricos do Brasil, entre eles o da célebre "Luzia", o ser humano mais antigo das Américas (com mais de 11 mil anos), o bioantropólogo Walter Neves, da USP, decidiu que estava na hora de explicar como os cientistas conseguem dar voz à gente que morreu há milhares de anos.
        "A maioria dos livros de divulgação de antropologia mostra os resultados da pesquisa, mas eu queria mostrar como se chega a esses resultados", disse Neves à Folha.
        "Era o que as pessoas sempre me perguntavam: Mas peraí, como vocês sabem que fulano era homem, teve uma infecção, levou uma pancada?'. Existia uma demanda a esse respeito mesmo."
        O resultado é o livro "Um Esqueleto Incomoda Muita Gente...", publicado recentemente pela Editora Unicamp.
        O bioantropólogo criou uma espécie de beabá ilustrado de sua área. A partir dele, é possível ter uma ideia de como pesquisadores estimam a idade, o sexo, a dieta, as doenças e até as guerras que os seres humanos do passado enfrentavam.
        DOR NAS COSTAS
        Aliás, se o passado é um outro país, como diz o ditado, tudo indica que era um lugar onde pouca gente gostaria de fazer turismo.
        O livro mostra, entre outras coisas, como podia ser dolorida a vida antes do surgimento da medicina moderna: bocas tão desdentadas que os alvéolos (local de encaixe dos dentes) eram reabsorvidos, cirurgias no crânio feitas sem anestesia ou ossos das pernas permanentemente encurvados por doenças como a sífilis --não por acaso, um dos capítulos leva o título "Não tinha antibiótico".
        Esses e outros exemplos --o capítulo sobre violência pré-histórica se chama "O pau comia!", o que trata de alimentação é "A comilança"-- refletem o bom humor algo ferino com que Neves costuma tratar seu tema de estudo.
        "Eu acho o seguinte: posso não ser um bom cientista, mas sou um cientista popular. E eu me orgulho profundamente disso. Daí a vontade de quebrar esse gelo entre a academia e o público geral com o humor do livro", diz.
        Entre as ferramentas usadas pelos bioantropólogos, a obra só deixa de escanteio a atual explosão de dados de DNA --o que era de se esperar, já que Neves é um velho crítico dessas técnicas.
        "Continuo absolutamente cético quanto aos resultados da biologia molecular. A cada seis meses alguém apresenta uma evidência diferente. Ficamos quase 20 anos acreditando que não houve hibridização entre seres humanos modernos e neandertais e, out of the blue' [do nada], as mesmas pessoas que defendiam isso tiram da cartola um resultado que muda o cenário. As pessoas podiam ser humildes e ressaltar as limitações dessa abordagem."
        Ainda nessa veia polêmica, o livro critica o que Neves vê como "biofobia" da antropologia do país, excessivamente focada, para ele, nos aspectos culturais da condição humana.
        "Nossos antropólogos são formados sem ideia do processo evolutivo humano e de quando a mente moderna, por eles estudada, surgiu no planeta", escreve.
        UM ESQUELETO INCOMODA MUITA GENTE...
        AUTOR Walter Neves
        EDITORA Unicamp
        PREÇO R$ 30 (160 págs.)

        Marcelo Gleiser

        folha de são paulo
        A festa da imaginação
        Acabei virando cientista porque queria ter uma vida em que a imaginação não é aprisionada pelo bom senso
        Quando era garoto, costumava passar as férias de verão na casa dos meus avós, em Teresópolis, uma cidade na serra dos Órgãos, perto do Rio. Eram 80 km de viagem, os últimos 25 km atravessando montanhas, uma sequência espetacular de picos de granito.
        O Fusca do meu pai subia com muito esforço. Mas pouco me importava, e torcia mesmo para que o carro avançasse bem devagar. Assim, tinha mais tempo de olhar pela janela, acompanhando a incrível transformação do cenário, do caos urbano de Copacabana às montanhas sublimes, recortadas por centenas de milhões de anos de erosão, revestidas aqui e ali pela inigualável mata atlântica.
        Costumávamos parar na serra para comer e olhar as preguiças nas árvores vivendo em câmera lenta. Volta e meia, um bando de tucanos passava fazendo a maior algazarra.
        Para meus olhos de criança, a transformação da cidade em montanhas, dos prédios no majestoso Dedo de Deus, dos vasos de planta na explosão de orquídeas e bromélias, era algo de mágico.
        Talvez percebesse isso intuitivamente, mas sabia que para vivermos na cidade tínhamos de abrir mão da natureza; ou, o pouco que tínhamos dela era aprisionado: passarinhos na gaiola, árvores estranguladas pelo cimento das calçadas. Meu porteiro dizia que passarinho cego cantava melhor. Pode ser, mas é um canto sofrido, entoado pela melancolia.
        O Carnaval era sempre lá, na casa das montanhas. Minha família escapava do calor e do buchicho, e íamos nos bailes da tarde, as matinês, vestidos de pirata e de cowboy, pulando e marchando aos som da banda ao vivo. Era uma grande festa da imaginação, cada um sendo o que queria ser mas não podia.
        Crescer é perder a capacidade de imaginar que o imaginado é o real; é erguer cada vez mais a muralha entre a realidade e a imaginação, ficar sensato, esquecer de manter a mente aberta para contemplar o impossível.
        Nessas horas de nostalgia entendo por que acabei virando cientista. Queria ter uma vida em que a imaginação não é aprisionada pelo bom senso. É bem verdade que nenhuma criança pede para se fantasiar de Einstein ou de Santos Dumont. (Se bem que já saí com a Unidos da Tijuca vestido como o dito cujo.) Mas poderiam. Pois se um reinventou o que é o espaço e o tempo, o outro inventou como podemos voar.
        São exemplos de pessoas que cresceram se recusando a crescer, ao menos sem erguer uma muralha intransponível entre realidade e imaginação. Pelo contrário, mostraram que é possível transformar a realidade em algo aparentemente mágico usando justamente a imaginação.
        É esse o aspecto mais cativante da ciência, recriar o mundo. Imagino a cara do meu avô se me visse falando num iPhone, ele no Rio e eu em Teresópolis; ou se usasse o seu GPS para evitar o trânsito na avenida Brasil; ou se olhasse para o céu noturno e vislumbrasse satélites cruzando a escuridão; ou se visse imagens de mundos distantes, trazidas por telescópios espaciais.
        Que mundo mágico esse em que vivemos, hein, vô? E que pena que pouco ligamos para essa mágica toda ou paramos para refletir que ela vem justamente dessas pessoas que têm um compromisso aberto com a imaginação.

          Suzana Singer [folha ombudsman]

          folha de são paulo
          Anônimos
          Reportagem abusa de declarações 'off the record', que devem ser explicadas ao leitor e usadas com moderação
          Na segunda-feira, a Folha informava na capa que o ex-presidente Lula anda criticando o governo Dilma em conversas com políticos e empresários. Lula teria dito que confia na reeleição de sua ex-ministra, mas que ela precisa mudar em 2015. A atual equipe econômica estaria com o "prazo de validade vencido".
          A reportagem foi toda construída com declarações "off the record" ("fora dos registros"), feitas em condição de anonimato a pedido dos entrevistados. São citados "interlocutores do mundo político e empresarial", pessoas da "equipe de Lula" e um "amigo próximo do ex-presidente" (http://folha.com/no1416735).
          O segundo destaque de política, nesse mesmo dia, eram as preocupações de empresários com o intervencionismo na economia e com a formação do ministério de um eventual novo mandato de Dilma. Mais uma vez, tudo "off the record". Os anônimos eram "líderes do agronegócio", "o dirigente de uma grande indústria", "banqueiros de peso" e "empreiteiros" (http://folha.com/no1416741).
          Declarações anônimas são um instrumento importante do jornalismo, porque, muitas vezes, não há outra forma de obter uma informação valiosa. Só que seu uso não pode ser banalizado, deve ser um último recurso da reportagem.
          Quando dá espaço a vozes sem dono ou crava uma informação baseada em "a Folhaapurou...", o jornal está exigindo um voto de confiança do leitor. É como se dissesse: "Não posso contar quem afirmou isso nem como consegui o dado, mas está correto, acredite".
          A informação "off the record" costuma ser negada no dia seguinte e aí o jornal garante que as fontes são "seguras". No caso das críticas de Lula a Dilma, na própria segunda-feira, a presidente gentilmente mandou a Folha parar de fazer fofoca: "Eu acho que vocês podem tentar de todas as formas criar qualquer conflito, barulho ou ruído entre mim e o presidente Lula, que vocês não vão conseguir".
          O ideal é que a declaração anônima seja o ponto de partida de uma apuração maior, que o repórter busque documentos e entrevistas que comprovem o que foi dito. Nas reportagens sobre as ressalvas à gestão Dilma, dá para entender a dificuldade de convencer o entrevistado a mostrar a cara, mas é inegável que textos assim, sem nenhum nome citado, parecem intriga.
          Para diminuir essa má sensação, o jornal deveria explicar por que aceita reproduzir declarações de gente invisível. Algo na linha "a Folha aceitou o anonimato porque os empresários temem represálias do governo" ou "a Folha ouviu quatro petistas e dois banqueiros, que não revelaram seus nomes porque Lula pediu sigilo nas conversas".
          Aposto que, se exigir que o "off" seja justificado, o jornal constatará que ele é, muitas vezes, dispensável. A presença de anônimos deveria reduzir-se ao mínimo necessário.
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          A MORTE DA PSICÓLOGA
          A tira de humor "Psicóloga Direta", de João Mirio Pavan, durou menos de uma semana no site da Folha. Anunciada na sexta-feira, dia 21, foi retirada depois de apenas uma inserção, quando se constatou que o desenho era plagiado/inspirado/adaptado --a palavra depende do grau de indignação de cada um-- de um ilustrador espanhol.
          A ascensão e a queda da "psicóloga" aconteceram nas redes sociais. Ao apresentar a nova tira, o jornal destacou que ela tinha alcançado 250 mil curtidas em um mês no Facebook. A graça vinha das respostas, sempre maldosas, dadas aos pacientes.
          Mulher chorando: "Meu amor não me valoriza, não me dá atenção e vive ocupado quando eu ligo. O que ele tem?"
          Psicóloga: "Outra."
          Folha soube pelos internautas que não se tratava de um trabalho original. O espanhol Molg H., criador de "La Psicóloga Honesta", não quis dar entrevista, mas esclareceu no Facebook que não tinha cedido os direitos do desenho a ninguém.
          "Não fiz de propósito. Foi uma brincadeira que virou sucesso. Cometi vários erros, assumo, mas nada justifica esse ódio de alguns que me querem fora da Folha", diz Pavan, que decidiu acabar com a tira inclusive no Facebook.

          Martinho da Vila

          folha de são paulo
          MARTINHO DA VILA
          TENDÊNCIAS/DEBATES
          Cenas de um drama real
          No Brasil, parte-se do pressuposto de que, sempre que ocorre um roubo, desde que não seja de dinheiro público, um negro é suspeito
          1. Um rapaz negro caminha de volta para casa em uma rua suburbana do Rio de Janeiro. Um carro com um casal para à sua frente, a mulher grita: "É ele o ladrão!". Um homem salta apontando-lhe um revólver. É o policial Waldemiro Antunes de Freitas Junior que o obriga a deitar-se de bruços, faz a revista, constata que não encontra-se armado e o conduz à delegacia.
          2. O delegado William Lourenço Bezerra o autua, apesar dos seus gritos veementes de inocência, mesmo sem o acusado estar com o produto do roubo. Era a palavra dele contra a dela, que prevaleceu.
          3. Vinícius Romão de Souza é trabalhador empregado em uma loja como vendedor de roupas e é recém-formado em psicologia, além de ser ator que já participou de novela da TV Globo. É o orgulho da sua família, que ficou muito abalada com a notícia da prisão.
          4. O rapaz é mandado para uma casa de detenção em outro município e lá permanece por duas semanas, entre assaltantes perigosos, presos por agressões e outros negros inocentes como ele.
          5. O desespero da mãe e as andanças do pai por hospitais públicos, necrotérios e depósito de presos até conseguir descobrir onde o filho se encontrava e a notícia da prisão ser publicada pela imprensa.
          6. O drama da mulher que o acusou, agoniada pela dúvida de que tinha ou não cometido uma injustiça ao reconhecê-lo, a ponto de desejar ir retirar a queixa, o que não o fez apenas por faltar o dinheiro para a passagem. Dalva da Costa Santos é pobre. O que lhe foi furtado foram poucos reais e um telefone celular desatualizado.
          7. As reações de militantes do movimento negro e os protestos públicos dos amigos brancos do rapaz, o que levou o delegado Niandro Lima, titular da 25ª DP (Engenho Novo), a impetrar um habeas corpus, documento jurídico que tem o poder de libertar indivíduos que possam estar sofrendo alguma injustiça.
          8. Procurado pela imprensa, o pai, Jair Romão, militar aposentado, declarou: "Eu sou espírita e perdoo a acusadora e o policial que prendeu meu filho". No Brasil, muitas vezes parte-se do pressuposto de que, sempre que ocorre um roubo, desde que não seja desvio de dinheiro público, um negro é suspeito. Por motivo da lentidão das nossas ações judiciais, o habeas corpus levou ainda um dia para ser cumprido.
          9. Respondendo a um jornalista sobre os dias no presídio, Vinícius disse: "Assim que cheguei, tive medo, mas tremi mais quando fui abordado porque a arma estava apontada para mim e podia disparar. Eu sou inocente e sabia que a justiça seria feita. Por isso não me desesperei nem chorei".
          Questionado sobre discriminação racial, falou: "Racismo existe, mas o que posso dizer é que todos os meus amigos nunca colocaram um apelido discriminatório em mim. Tanto nos colégios particulares em que estudei como na faculdade, todos sempre me respeitaram e eu também me dei ao respeito. Na loja de roupas onde eu trabalho, dos 17 vendedores temporários, sou o único negro, e nas outras lojas, não há nenhum. Uma lição boa que tiro de tudo isso é aproveitar cada minuto simples da vida, como abrir a geladeira e beber um copo de água".
          10. A alegria da família e dos amigos ao recebê-lo. Romão ergueu os braços de cabeça erguida, com os cabelos simbólicos cortados no presídio. Sem rancor, declara: "Não tenho raiva dela. Ela sofreu um assalto, estava nervosa, acabou me confundindo. Desejo muita luz e felicidade para ela".
          Final. Vinícius atendendo a um freguês na Toulon, que o manteve no emprego, cena seguida pela cerimônia de colação de grau em psicologia. No letreiro do filme, apareceriam os amigos que o apoiaram e por fim uma imagem parada de Vinícius sorrindo e a frase: "O racismo existe".

          Elio Gaspari

          folha de são paulo
          ELIO GASPARI
          O coronel Avólio e seu serviço ao Exército
          Militar contou à Comissão da Verdade o que viu no dia em que mataram o deputado Rubens Paiva
          Armando Avólio Filho era um jovem tenente no dia 20 de janeiro de 1971, quando Rubens Paiva chegou preso ao DOI do Rio de Janeiro. Durante 43 anos seu nome foi tangencialmente associado a esse crime. Em 1996, pediu um conselho de justificação para livrar-se da suspeita. Seu pedido foi negado pelo ministro Zenildo de Lucena. Em diversas ocasiões mostrou seu interesse em esclarecer os fatos, mas os chefes da ocasião sempre ordenaram-lhe que ficasse calado, para proteger a instituição. Felizmente, protegendo a instituição, Avólio decidiu contar à Comissão Nacional da Verdade o que viu. Só o que viu.
          Desse depoimento, revelado pelo repórter Chico Otávio, resulta que ele viu um tenente (Fernando Hughes de Carvalho) numa sala, com um homem destruído. Mais tarde associou-o a Rubens Paiva. Até aí o caldo é ralo, pois no DOI se apanhava e lá morreu de pancada o ex-deputado. No máximo, a responsabilidade deslizaria para um tenentinho que, além do mais, está morto. A principal revelação de Avólio, hoje um coronel reformado, está no fato de que, naquele dia, contou o estado do preso ao major José Antonio Nogueira Belham, comandante do DOI. Belham sabe o que acontecia no destacamento, mas nunca se meteu com os bicheiros e contrabandistas que bicavam no DOI do Rio. Seguiu sua carreira e chegou a general de divisão. No governo de Lula, já na reserva, ocupava a vice-presidência da Fundação Habitacional do Exército. Encrencou-se com as viúvas dos militares mortos no terremoto do Haiti e foi demitido.
          Belham informa que no dia 20 de janeiro de 1971 estava de férias. (Nesse caso, a responsabilidade deslizaria para o vice-comandante, que está morto.) Estava de férias, mas estava lá. Esse fato, mencionado por Avólio, foi formalmente corroborado por um coronel (capitão à época), que morreu em janeiro.
          Quem tirou o cadáver de Rubens Paiva de lá? Quem coordenou o teatrinho? (Num caso anterior, fracassado, foi o Centro de Informações do Exército, subordinado diretamente ao gabinete do ministro Orlando Geisel e comandado por seu chefe de gabinete.) Depois da revelação da presença de Belham na cena do DOI, a comissão viu a ponta de dois fios que levam a meada para cima. Afinal, tanto trabalho para responsabilizar um tenente morto seria um novo teatrinho, institucional. Nele, cultiva-se uma narrativa segundo a qual a tortura e os assassinatos eram coisa de agentes desautorizados (de preferência, mortos). Patranha. Eram uma política de Estado, dos presidentes, ministros e generais comandantes das grandes unidades. Para ilustrar: o tenente Hughes ganhou a Medalha do Pacificador no ano da morte de Rubens Paiva. Cada torturador foi um torturador, mas o conjunto dos torturadores foi um plantel formado, disciplinado e premiado por seus superiores, transformando jovens oficiais em assassinos.
          Chegaram ao conhecimento de membros da comissão dois fatos. No primeiro, quando começou a operação de retirada do cadáver, durante a madrugada, as luzes foram apagadas. No segundo, contado por um militar, dois oficiais do CIE barraram-no na porta do DOI. Um deles está vivo.
          Atitudes como a de Avólio nesse caso servem às Forças Armadas, tirando-lhe das costas a cruz das mentiras desmoralizantes que carregam desde o século passado. Ele tirou de sua biografia uma acusação que carregou em silêncio ao longo de décadas. Negaram-lhe a oportunidade funcional, mas o coronel falou na jurisdição competente. Pode parecer que seja pedir muito, mas se os atuais comandantes militares fizessem um elogio público a todos os oficiais que estão colaborando com as investigações, todo mundo ganharia. Podem até fazer um elogio genérico, abrangendo aqueles que mentem, não faz mal. Basta sinalizar que condutas como a de Avólio servem ao Exército.
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          SELFIE
          Aconteceu em Belo Horizonte há quinze dias.
          A senhora caminhava nas proximidades da Assembleia Legislativa e aproximou-se um homem magro, de camiseta, com uma faca:
          --Vai passando a bolsa. Estou com fome.
          --Passo, mas primeiro deixe eu tirar os documentos.
          --Pode tirar, esse negócio de burocracia é uma bosta... Pera aí... A senhora não é a ministra?
          --Sou.
          --Foi mal. Pode ficar. Gosto muito da senhora, desde o tempo do governador Itamar.
          --Você quer dinheiro para comer?
          --Não, vá em paz. Agora, o que eu queria era tirar uma fotografia com a senhora.
          --Isso não. Meu cabelo está muito desarrumado.
          O cidadão guardou o celular e a ministra Cármen Lúcia seguiu em frente.
          ALZHEIMER
          O Ministério Público Federal colheu dezenas de depoimentos de civis e militares que estavam na incubadora e na cena do atentado do Riocentro, em 1981.
          Quase todos os militares lembraram de pouca coisa. Um dos que mostraram ter melhor memória foi o coronel Edson Lovato, que começou seu depoimento esclarecendo que sofre do mal de Alzheimer e toma 13 comprimidos por dia.
          VENDO O FUTURO
          Pelo andar da carruagem, alguns deputados que formaram o "blocão" e querem azucrinar o governo instalando mais uma CPI da Petrobras daqui a dez anos estarão se defendendo no Supremo Tribunal Federal. Sustentarão que é improcedente a acusação segundo a qual formaram uma quadrilha. Pelo visto, terão bons argumentos, vindos de sábios da jurisprudência.
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          UM GOLPE DO ATRASO NOS PONTOS DE ÔNIBUS
          Está em curso um novo golpe de marquetagem de prefeitos e cartéis de companhias de transportes públicos. É a colocação de painéis eletrônicos em pontos de ônibus, informando as previsões de horários de passagem dos coletivos por ali. Trata-se de uma bugiganga redundante, visto que hoje no Brasil há 271 milhões de telefones celulares e, com eles, pode-se obter essa informação, antes mesmo de se chegar ao ponto.
          Houve época, quando não existiam os necessários aplicativos, em que esses painéis eram úteis (quando funcionavam). Se alguém quiser colocá-los nos pontos, pode fazê-lo, desde que os prefeitos não joguem dinheiro da Viúva nisso, nem os cartéis dos ônibus apresentem seus custos (e sua manutenção) nas planilhas com que vão buscar aumentos de tarifas. O que o passageiro quer deles é regularidade no serviço e conforto na viagem, e isso não dão.
          Quando esses painéis são apresentados como um exemplo de políticas públicas modernas de prefeitos ou dos serviços dos cartéis, estão apenas confirmando o velho versinho do poeta Cacaso:
          Ficou moderno o Brasil,
          ficou moderno o milagre
          Água já não vira vinho,
          vira direto vinagre.

            Janio de Freitas

            folha de são paulo
            Uma frase imensa
            A sem-cerimônia com que Barbosa excede seus poderes só se compara à facilidade com que distribui insultos
            "Foi feito para isso sim!"
            Palavras simples, para uma frase simples. E, no entanto, talvez a mais importante frase dita no Supremo Tribunal Federal nos 29 anos desde a queda da ditadura.
            Um ministro considerara importante demonstrar que determinadas penas, aplicadas pelo STF, foram agravadas desproporcionalmente, em até mais 75% do que as aplicadas a crimes de maior gravidade. Valeu-se de percentuais para dar ideia quantitativa dos agravamentos desproporcionais. Diante da reação temperamental de um colega, o ministro suscitou a hipótese de que o abandono da técnica judicial, para agravar mais as penas, visasse um destes dois objetivos: evitar o reconhecimento de que o crime estava prescrito ou impedir que os réus gozassem do direito ao regime semiaberto de prisão, em vez do regime fechado a que foram condenados.
            Hipótese de gritante insensatez. Imaginar a mais alta corte do país a fraudar os princípios básicos de aplicação de justiça, com a concordância da maioria de seus integrantes, é admitir a ruína do sistema de Justiça do país. A função do Supremo na democracia é sustentar esse sistema, viga mestra do Estado de Direito.
            O ministro mal concluiu a hipótese, porém, quando alguém bradou no Supremo Tribunal Federal: "Foi feito para isso sim!". Alguém, não. O próprio presidente do Supremo Tribunal Federal e presidente do Conselho Nacional de Justiça. Ninguém no país, tanto pelos cargos como pela intimidade com o caso discutido, em melhor situação para dar autenticidade ao revelado por sua incontinência agressiva.
            Não faz diferença se a manipulação do agravamento de pena se deu em tal ou qual processo, contra tais ou quais réus. O sentido do que "foi feito" não mudaria conforme o processo ou os réus. O que "foi feito" não o foi, com toda a certeza, por motivos materiais. Nem por motivos religiosos. Nem por motivos jurídicos, como evidenciado pela inexistência de justificação, teórica ou prática, pelos autores da manipulação, depois de desnudada pelo presidente do Supremo.
            Restam, pois, motivos políticos. E nem isso importa para o sentido essencial do que "foi feito", que é renegar um valor básico do direito brasileiro --a combinação de prioridade aos direitos do réu e segurança do julgamento-- e o de fazê-lo com a violação dos requisitos de equilíbrio e coerência delimitados em leis.
            Quaisquer que fossem os seus motivos, o que "foi feito" só foi possível pela presença de um fator recente no Supremo Tribunal Federal: a truculência. "O Estado de S. Paulo" reagiu com forte editorial na sexta-feira, mas a tolerância com a truculência tem sido a regra geral, inclusive na maioria do próprio Supremo. A sem-cerimônia com que o presidente excede os seus poderes e interfere, com brutalidade, nas falas de ministros, só se compara à facilidade com que lhes distribui insultos. E, como sempre, a truculência faz adeptos: a adesão do decano da corte, outrora muito zeloso de tal condição, foi agora exibida outra vez com um discurso, a título de voto, tão raivoso e descontrolado que pareceu, até no vocabulário, imitação de Carlos Lacerda nos seus piores momentos.
            Nomes? Não fazem hoje e não farão diferença, quando acharmos que teria sido melhor não nos curvarmos tanto à truculência.
            QUADRILHA
            O resultado, na quinta-feira, da decisão do Supremo quanto à formação de quadrilha, não foi o noticiado 6 a 5 favorável a oito dos condenados no mensalão. Foi de 7 a 4. O ministro Marco Aurélio Mello adotou a tese de que era questão prescrita e reformou seu voto, que se somou aos dados, pela inocência dos acusados, de Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Teori Zavascki. Derrotados com a formação de quadrilha foram Celso de Mello, Gilmar Mendes, Luiz Fux e Joaquim Barbosa.

            'True Detective' cria tensão e inova gênero - Luciana Coelho

            folha de são paulo
            CRÍTICA SERIAL
            LUCIANA COELHO coelho.3@uol.com.br
            'True Detective' cria tensão e inova gênero
            A melancolia de Louisiana dá força aos componentes da trama: machismo, desesperança e fanatismo
            DIFÍCIL DISPUTAR atenção com o Oscar, mas o episódio de "True Detective" desta noite vale o empenho do espectador. Ele abre, avisa seu criador, o terceiro ato de uma série policial que começou lenta e cuja tensão desembesta para um fim grandiloquente e, torçamos, bem talhado como os seis episódios já exibidos.
            Um de seus trunfos coincide com o Oscar: é Matthew McConaughey, cotado para o prêmio pela atuação em "Clube de Compras Dallas". Na série da HBO, o ex-galã dá corpo ao etéreo detetive Rust Cohle de forma ainda mais espantosa.
            Cohle forma com Martin Hart (Woody Harrelson) uma dessas duplas antagônicas que povoam o gênero. São tirados da vala comum pelas interpretações enérgicas dos dois atores texanos e pelo script intrincado de Nic Pizzolatto, 38, um romancista e ex-professor da Louisiana que virou o novo nome da hora no showbiz.
            Pizzolatto, após breve incursão por "The Killing", escreve sozinho o roteiro que confiou a um só diretor (Cary Fukunaga), fórmula rara na TV. Talvez por isso, aqui os personagens importem mais que a trama, uma caçada a um assassino de mulheres cheio de fetiches e mensagens transcendentais.
            Essa busca amarra as duas linhas da narrativa (1995-2002 e 2012), mas o que cria a tensão são as camadas dos protagonistas que são despeladas aos poucos: Martin, o machista pai de família com uma visão rasteira do mundo, e Rust, um niilista cujos tropeços passados são apresentados de forma clara, enquanto seus monólogos filosóficos enevoam o cenário para o espectador.
            (Há, claro, chance de tudo desembocar junto, mantida no ar pelo errático comportamento de Cohle e as sutilezas na interpretação de McConaughey.)
            O terceiro elemento é a pantanosa Louisiana.
            Embora o sul profundo dos EUA abrigue outras séries, em "True Detective" a melancolia e a desolação do segundo Estado mais pobre do país dão força aos componentes da trama: machismo, desesperança, fanatismo, impulso autodestrutivo. Quem já rodou pela região sabe que é assim, e Pizzolatto, egresso de uma classe média baixa local pouco lembrada pela TV, domina o território.
            Há só fiapos de coadjuvantes (sim, as mulheres em cena mal passam de bundas, mas isso, assim como o apelo a clichês do gênero, é como Hart, cujo ponto de vista predomina na tela, vê a vida). A força vem dos dois homens e da relação entre eles.
            Pizzolatto, que assinará a segunda temporada com história e elenco novos, afirma que os últimos dois episódios não reservam truques. Ao site Daily Beast, ele se diz surpreso com as conjecturas da plateia.
            O teaser para esta noite indica um flerte com o sobrenatural --a Louisiana evoca esse aspecto, e o roteirista foi alimentado a "Além da Imaginação" quando criança. Não importa. É o que vai dentro de Hart e Cohle que promete assombrar espectadores e roteiristas de seriados por anos.

            Mauricio Stycer

            folha de são paulo
            MAURICIO STYCER
            Visões do castelo
            A série dinamarquesa 'Borgen' mostra bastidores do poder de forma mais viva do que 'House of Cards'
            O lançamento da segunda temporada de "House of Cards" oferece uma boa oportunidade para observar como três produções diferentes enfrentam o desafio de retratar, por meio da ficção, o mundo do poder.
            O fato de Barack Obama ser um fã declarado da série oferecida pelo Netflix faz pensar o quanto o ingênuo presidente democrata de "House of Cards" está distante da realidade.
            É verdade que, na primeira temporada, o programa se concentrou mais no exercício de poder do então deputado democrata Frank Underwood (Kevin Spacey) dentro do Congresso e junto à imprensa.
            Sentindo-se traído pelo presidente, que não o nomeou secretário de Estado, conforme estava acordado, Underwood faz tudo aquilo que nós, aqui fora, imaginamos ser da alçada de um político sem escrúpulos: ajuda a queimar o nome do indicado para o cargo com que sonhava, manipula votações, mente, troca cargos por votos, destrói carreiras, faz lobby suspeito e até comete um assassinato.
            Na segunda temporada, com Underwood já no exercício de seu novo cargo, o de vice-presidente dos Estados Unidos, "House of Cards" abandona de vez o esforço de parecer crível, mas continua irresistível como série dramática temperada com suspense.
            O mérito todo é de Beau Willimon, autor do texto, que trabalhou com vários políticos, inclusive Hillary Clinton, no final dos anos 1990, e do investimento, estimado em US$ 100 milhões (cerca de R$ 235 milhões), do Netflix na produção das duas primeiras temporadas.
            Com toda a pompa e grandiosidade que as situações exigem, Willimon vende ao espectador a ilusão de estar dentro da Casa Branca presenciando os bastidores (repletos de golpes baixos) de episódios históricos.
            Só recentemente conheci "Borgen", que faz um excelente contraponto a "House of Cards". A série dinamarquesa, lançada em 2010, já tem três temporadas. No Brasil, chamada "O Governo", é exibida na TV paga pelo canal +Globosat.
            Primeira mulher na Dinamarca a assumir o cargo de primeira-ministra, Birgitte Nyborg (Sidse Babett Knudsen) comanda uma coalizão de centro-esquerda. Na vida pessoal, administra o lar (sem ajuda de empregados) e um casamento com dois filhos.
            A cada episódio, aberto com uma citação ("O que parece idealismo é amor ao poder disfarçado", de Bertrand Russell, por exemplo), Nyborg enfrenta um problema político e algum drama familiar. Como Underwood, ela tem um assessor pessoal, que manipula a imprensa, mas frequentemente suas "plantações" a prejudicam mais que a beneficiam.
            "Borgen" é de uma simplicidade assustadora. Os políticos, da extrema direita à esquerda, defendem seus pontos de vista com franqueza explícita. A luta política é crua, objetiva e sem pompa, tanto nas sessões do Parlamento quanto nos gabinetes.
            Diferentemente de Frank Underwood, Birgitte Nyborg parece de carne e osso, seja ao pedir desculpas por ter armado contra um ministro do Partido Verde, seja ao ver a filha adolescente ter uma crise de pânico.
            Não sobrou espaço para falar de uma terceira opção. "Scandal", em exibição no canal pago Sony, mostra os bastidores da Casa Branca ocupada por um presidente republicano. A série é ruim demais, mas estou viciado. Prometo voltar ao assunto.

            Mostra no MIS emociona fã, mas pode insinuar que ele foi mais relevante como ícone fashion do que como roqueiro

            folha de são paulo
            CRÍTICA EXPOSIÇÃO
            Bowie da moda brilha mais que o da música
            Mostra no MIS emociona fã, mas pode insinuar que ele foi mais relevante como ícone fashion do que como roqueiro
            THALES DE MENEZESEDITOR-ASSISTENTE DA "ILUSTRADA"Para um fã de David Bowie, ou seja, um fã de rock --já que poucos representam tanto para o gênero quanto ele--, entrar no MIS (Museu da Imagem e do Som), em São Paulo, e ver cerca de 300 itens da exposição sobre sua vida e obra é de arrepiar.
            Trata-se da maior já feita com um astro pop, e só poderia ser mesmo com Bowie, que guardou desde sempre figurinos de shows e de clipes, manuscritos de letras, anotações nos estúdios, rascunhos e arte-final de capas de discos.
            Tudo isso está espalhado pelo MIS, mas uma apreciação plena da exposição se completa com imagens que precisam ser garimpadas nos inúmeros monitores de vídeo.
            Há aparições de TV raríssimas, cenas de filmes e peças de teatro, depoimentos do próprio Bowie e de colaboradoras sobre seu modo de trabalhar e algumas boas declarações de seus admiradores.
            Uma delas está em um filminho sobre o impacto de Bowie na época do glitter rock, no início dos anos 1970.
            Gary Kemp, músico que tocou no Spandau Ballet, diz: "Cabelo comprido não era mais suficiente para chocar a geração dos meus pais. A persona de Bowie borrava a barreira entre meninos e meninas. Íamos ao show dele e por duas horas também fazíamos isso". Quem é fã entende.
            A declaração acaba tocando em um ponto crítico na mostra. A força da música de Bowie acaba eclipsada pela exuberância das roupas. São espetaculares e são muitas.
            A exposição pode até suscitar a pergunta: Bowie é maior como ícone fashion do que como roqueiro inovador?
            Nem a pau, mas é possível sair do MIS com essa ideia na cabeça. A recomendação é ir para casa e ouvir "Heroes".
            DAVID BOWIE
            QUANDO de ter. a sex., das 12h às 21h; sáb., das 11h às 23h; dom. e feriados, das 11h às 20h; até 20/4. No dia 3/3, das 12h às 19h
            ONDE MIS, av. Europa, 158, Jardim Europa, tel. (11) 2117-4777
            QUANTO R$ 25 no ingressorapido.com.br; na bilheteria, R$ 10; grátis às terças. Classificação livre
            AVALIAÇÃO ótimo

              Ferreira Gullar

              folha de são paulo
              Resistência à ditadura
              Exposição não retrata os que optaram pela luta pacífica e foram igualmente presos, torturados e mortos
              Fui ao CCBB aqui no Rio para ver a exposição "Resistir É Preciso...", organizada pelo Ministério da Cultura e Instituto Vladimir Herzog, uma das diversas manifestações que assinalam os 50 anos do golpe militar que, em 1964, depôs o presidente João Goulart. Tais manifestações parecem demonstrar o repúdio da sociedade brasileira àquele regime e a todo e qualquer regime que pretenda cercear a liberdade dos cidadãos.
              A exposição é bem montada com fotos, desenhos, pintura e pensamentos que expressaram a resistência à ditadura militar. Mas se sente falta de referência a personalidades e atividades que desempenharam importante papel na luta de resistência ao regime autoritário.
              Lembrei-me, por exemplo do show "Opinião", escrito por Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes, dirigido por Augusto Boal e interpretado por Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale.
              Esse show foi a primeira manifestação de resistência ao regime militar, pois estreou no dia 11 de dezembro de 1964, isto é, oito meses após o golpe. O público se sentiu expressado naquele espetáculo, sem nenhuma dúvida, tanto assim que o teatro lotava com um mês de antecedência. Por que não há qualquer menção a ele na exposição?
              Após esse show, o mesmo grupo teatral montou "Liberdade, Liberdade" escrito por Millôr Fernandes e Flávio Rangel, que também o dirigiu. De novo, casa cheia. Os militares, sentindo-se criticados, tentaram tirar a peça de cartaz, provocando um conflito, com homens armados (como se viu depois) a vaiar o espetáculo e acusá-lo de comunista. Era, sem dúvida, uma denúncia do autoritarismo do regime. No entanto, não há qualquer referência a ele na exposição do CCBB.
              Como também não há referência à peça "Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come", outro sucesso de bilheteria que criticava a ditadura. A ideia de escrevê-la foi do Vianninha, temeroso da censura que acabara de proibir o "O Berço do Herói", de Dias Gomes, dirigido por Abujamra. Para burlar os censores, devíamos escrever uma obra-prima, do ponto teatral e literário. Foi o que se tentou fazer.
              A peça passou na censura e ganhou todos os prêmios do teatro brasileiro naquele ano de 1966. Há alguma referência a ela na mostra do CCBB? Não, nenhuma. Como também não há referência a "Arena Canta Zumbi", de Gianfrancesco Guarnieri, nem aos demais espetáculos montados por outros grupos de São Paulo, do Rio e de outras capitais brasileiras.
              Os organizadores dessa exposição parecem ignorar o papel desempenhado pelo teatro brasileiro na luta contra a ditadura. E a Passeata dos Cem Mil? Há dela apenas uma foto ali. Nenhuma alusão ao fato de que foi realizada graças à atuação da classe teatral, com o apoio logístico do Partido Comunista Brasileiro.
              Mas não é só isso. Ênio Silveira, desde 1965, editou uma revista chamada "Civilização Brasileira" (que depois se chamou "Encontros com a Civilização Brasileira"), que publicava ensaios, artigos, poemas, entrevistas, reportagens, denunciando os abusos do governo militar e analisando os fatores que o determinaram. Essa revista foi editada durante 15 anos, resultando na prisão de seu editor. Não há menção a ela na exposição "Resistir É Preciso...".
              Sem dúvida alguma, ao se falar do regime autoritário, não se pode esquecer aqueles militantes que escolheram a luta armada como o caminho correto para combatê-lo. Nem todos concordavam com isso, e pode-se dizer que essa era opinião da maioria das pessoas engajadas na luta, e com razão, pois era um equívoco. Não obstante, quem se dispôs a essa aventura demonstrou coragem e desprendimento.
              A exposição faz referência a eles e particularmente aos que foram mortos pela repressão. Está certo. O que não está certo é não fazer qualquer referência àqueles que, optando pela luta pacífica, foram igualmente presos, torturados e mortos. Basta dizer que, de 1972 a 1974, um terço do Comitê Central do PCB foi assassinado, mas a exposição, se não me engano, não alude a eles.
              Lula, porém, aparece ali como um exemplo de resistente. Está certo, mas por que não aparecem outros líderes como Fernando Henrique, José Serra, Miguel Arraes e tantos outros? Deve ter havido alguma razão para isso, mas não sei qual seria.

                Antonio Prata

                folha de são paulo
                No seio da família
                Então quer dizer que tem um monte de homem por aí aparando os pelos e eu sem saber de nada?
                Eu não queria jogar mais lenha na fogueira: muitas páginas, saliva e terabytes têm sido gastos com o clima de Fla-Flu que assola o país, mas é impossível me calar quando a cisão e a intolerância chegam ao seio da minha família --e "seio", como se verá, não está aqui no sentido figurado.
                Por conta do aniversário do meu pai, no último fim de semana, fiz em casa um churrasco: a grelha crepitava, as cervejas tiniam, meus tios e tias riam das histórias de infância; nenhuma agressividade pairava sobre o almoço, como nenhuma nuvem manchava o azul do céu --até que eu tirei a camisa.
                "Podia dar uma aparada, hein?", sugeriu meu tio Augusto. Na hora, não entendi. Olhei pra churrasqueira, pensando que "dar uma aparada" fosse gíria para cortar uns pedaços de carne, mas Augusto tirou também a camisa e mostrou o peito, orgulhoso: "Máquina dois, ó só que beleza". Do outro lado do quintal, meu tio Gilberto manifestou sua tonitruante indignação: "Tá maluco, Gugu?! Raspando o peito?!". "Aparando!", corrigiu Augusto, tentando apontar a nuance entre "raspar" e "aparar", mas o Fla-Flu já estava instaurado, e todas as nuances, perdidas: à direita (Flu), os pró-aparo; à esquerda (Fla), os defensores do peito orgânico.
                Confesso que fiquei confuso --menos com a questão estética do que com meu atraso em perceber a mudança dos tempos. Então quer dizer que tem um monte de homem por aí aparando os pelos e eu sem saber de nada? Seria eu um ser anacrônico, cultivando no peito um tufo de atraso? Faria há anos minha mulher passar vergonha na praia, na frente das amigas, sofrendo em silêncio por conta de meu desleixo piloso? Seriam os pelos a nova pochete?
                Meu pai, por sua vez, não se perdia em tais indagações. Fechou logo com o Gilberto, lembrando que na juventude dos dois, em Lins, homem não usava nem xampu e que ele já se achava avançado demais por passar "creme rinse". Minha irmã, pró-aparo, o acusou de, com aquela posição obtusa, negar todas as conquistas dos anos 60. Comparou-o aos que riram da sunga do Gabeira, na volta do exílio. Minha tia Beth, grande feminista, disse que não havia nada de "anos 60" em homem raspando o peito --"Aparando!", repetia tio Augusto, em vão--, ao contrário, era um modismo careta, igual ao das mulheres sem pelos púbicos, sintoma da nossa época pudica e desnaturada: em breve, ninguém mais faria sexo.
                O debate, agora, já tinha desmoronado como uma Torre de Babel e se transformado em meia dúzia de discussões paralelas --ou transversais? "Como, de direita?! Índio não tem pelo! Negro também não!", "É verão, gente! É fresquinho!", "Mentira! Eu nunca fiz o pé!", "Preconceituosos são vocês!", "O Edgar pinta a barba, sim!", "Qual o problema da mulher botar silicone?", "Só a Claudia Ohana nos salva!"
                Na semana seguinte, a discussão seguiu pela internet, os prós e os contras a poda desfiando seus argumentos, como se dos pelos dependesse o futuro da civilização. Eu, que ainda não cheguei a uma conclusão sobre essa questão cabeluda, disse que permaneceria neutro: rasparia só metade do peito. A piada acalmou os ânimos de todos. Ou quase, pois o Augusto me escreveu na sequência, furibundo: "Pelo amor de Deus, quantas vezes eu vou ter que dizer? Não é raspar, é aparar, cazzo!".