sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Claudia Collucci

folha de são paulo
Reino Unido vota fertilização com três 'pais'
Consulta pública discutirá técnica que usa material genético de doadora em caso de doença transmitida pela mãe
Criança teria apenas 0,1% do DNA da doadora; nesta semana, EUA também iniciaram discussão sobre o tema
CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULOO Reino Unido deverá regulamentar até o fim do ano uma nova técnica de reprodução assistida que poderá permitir que uma criança seja gerada com DNA de um homem e duas mulheres. O intuito é evitar doenças genéticas transmitidas pela mãe.
Nos EUA, a FDA (agência que regula fármacos e alimentos) iniciou nesta semana discussão semelhante, mas ainda não há definição se haverá liberação. No Reino Unido, uma comissão avalia questões científicas e éticas da técnica desde 2011.
Ontem, o governo britânico divulgou a primeira proposta de regulamentação, que ficará em consulta pública até maio. Depois, precisa ser votada pelo Parlamento.
A Secretaria da Saúde britânica informou que apoia o uso da técnica e que a consulta pública não colocará em debate se ela poderá ser usada, mas sim como será implantada. A ideia é que até o fim do ano, esteja liberada para testes em humanos.
Há duas técnicas sendo discutidas no Reino Unido. A primeira consiste em retirar o núcleo de um óvulo de uma mãe portadora de mutações no DNA mitocondrial (aquele de origem apenas materna) e transferi-lo para o óvulo sem núcleo de uma doadora com mitocôndrias "sadias".
A outra, ainda mais polêmica, utilizaria dois embriões já formados. Em ambas as técnicas, o embrião ficaria com material genético de três pessoas: o DNA do núcleo do espermatozoide do pai, o DNA do núcleo do óvulo da mãe e o DNA das mitocôndrias do óvulo da doadora.
O DNA mitocondrial corresponde a 0,1% do DNA total --37 entre 20 mil a 30 mil genes.
A proposta do Reino Unido é que a técnica seja testada apenas em mulheres altamente suscetíveis de transmitir aos filhos doenças mitocondriais, que ocorrem quando as organelas (que fornecem energia para as células) não funcionam direito.
As doenças afetam um a cada grupo de 6.500 bebês e podem causar incapacidade muscular, insuficiência cardíaca e até a morte.
O governo do Reino Unido propõe que a doadora mitocondrial não tenha direitos sobre a criança a ser gerada.
A manipulação genética de seres humanos tem gerado debates em todo o mundo. O temor é que ela leve à produção de bebês com características selecionadas em laboratório ("designers babies").
Segundo o médico Artur Dzik, da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana, a técnica já vem sendo discutida em congressos desde 1996 e ainda não deslanchou. "É muito controvertida."
Para o ginecologista Carlos Petta, professor da Unicamp, não há como saber a repercussão futura dessa mistura de genes. "Uma coisa é acompanhar animais por algum tempo em laboratório. Outra é colocar pessoas em risco."

    Marina Silva

    folha de são paulo
    Informação e consciência
    Fiquei contente, no ano passado, quando soube que uma brasileira residente no Canadá desenvolveu um aparelho para identificar substâncias alergênicas e agrotóxicas nos alimentos que consumimos. É bom saber que tais informações, hoje obtidas por especialistas em laboratórios sofisticados, podem estar à disposição de todos por meio de um instrumento de fácil manejo.
    Não tenho uma visão salvacionista da tecnologia, mas acho que pode ser um instrumento para democratizar a informação e ajudar nas decisões da sociedade. Em nosso país temos o exemplo estarrecedor da desinformação sobre agrotóxicos. Há estimativas de que cada brasileiro consome, em média, 5,3 litros de substâncias que podem contaminar o leite materno, causar distúrbios hormonais, câncer de mama e de próstata, entre outros males.
    É evidente que há controle econômico das informações. Afinal, a venda de agrotóxicos alcançou, em 2010, US$ 7,3 bilhões. O Brasil é campeão, consome 20% do agrotóxico produzido no mundo. É o paraíso dos grandes laboratórios, que aqui vendem vários produtos proibidos na Europa e EUA.
    A liberação e fiscalização está a cargo do Ministério da Agricultura, Anvisa e Ibama, mas sofre restrições políticas e pressões econômicas. As decisões são tomadas longe da sociedade. Por exemplo, Anvisa e Ibama perderam em 2013 a competência legal de declarar emergência fitossanitária com um decreto presidencial (regulamentando uma lei oriunda de Media Provisória). Três dias depois da publicação do decreto, foi declarada uma emergência e dada autorização para importar toneladas de veneno produzido por um grande laboratório.
    A bancada ruralista, em acordo com o governo, quer criar um órgão nos moldes da CTNBio para analisar a liberação de novos agrotóxicos.
    As batalhas são nos bastidores. De um lado está a Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef), que congrega os fabricantes). Do outro, estão Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Fundação Oswaldo Cruz e Instituto Nacional do Câncer, que fazem pesquisas com alertas preocupantes sobre os efeitos dos agrotóxicos no organismo humano.
    A contradição é evidente. A sociedade cria mecanismos de transparência e controle democrático, ampliados pela tecnologia muitas vezes desenvolvida de forma colaborativa. Os governos tomam posição oposta, defendendo acentuadamente os interesses da oferta.
    Consciência, compromisso com a qualidade de vida e o ambiente saudável, inovações tecnológicas que dão poder aos cidadãos, essas são as condições para que todos possam influir nas decisões públicas, para dar a palavra à demanda por mais respeito à vida.
    Se não defendemos nossa saúde, quem o fará?

      Ruy Castro

      folha de são paulo
      Etiqueta do Carnaval de rua
      RIO DE JANEIRO - Bem que, um dia, o poeta Dante Milano (1899-1991) escreveu: "Brasileiros, vocês hão de ter saudades do Carnaval". Quando ele disse isso, nos anos 30 --certamente em meio a multidões brincando enlouquecidas em Botafogo, no Catumbi, na Gamboa--, parecia estar adivinhando que, nas décadas de 70, 80, 90, e mesmo no Rio, o Carnaval se reduziria a um longo feriado de ruas tristes e vazias.
      Bem, o Carnaval está de volta às ruas. Mas, como o fenômeno é recente, talvez algumas praças ainda não estejam muito familiarizadas com sua etiqueta e prática. Saberão, por exemplo, a diferença entre bloco e banda? Os blocos são miniescolas de samba --seus componentes cantam sambas novos, de sua própria autoria, ao som de uma bateria reduzida, mas respeitável. Já as bandas usam instrumentos de sopro e seu repertório consiste de marchinhas e sambas clássicos.
      Bandas temáticas são permitidas --como, no Rio, a Sargento Pimenta, especializada em temas dos Beatles, ou a Fogo e Paixão, em homenagem ao cantor Wando, com direito a chuva de calcinhas--, mas sempre em ritmo de marcha. Blocos e bandas são gratuitos e democráticos. Cada folião se veste como quiser e ninguém pode ser encurralado por cordas.
      Beijos de língua e à primeira vista são quase obrigatórios, desde que com consentimento mútuo. Não é preciso pedir desculpas quando se encosta casualmente --ou de propósito-- no chassis de alguém. Quem não quiser ser tocado no tríduo deve optar pelo retiro espiritual.
      Confete e serpentina, tudo bem, mas espuma, nem pensar. Mijar em árvores, postes e paredes e pisotear canteiros, jamais --cabe à prefeitura instalar banheiros químicos e tentar proteger os jardins. E é definitivamente proibido rilhar os dentes, jogar o carro em cima do bloco e atropelar pessoas que querem apenas ser felizes.

        Mais blá blá blá - Isabelle Moreira Lima

        folha de são paulo
        Mais blá blá blá
        Novos 'talk shows' de Danilo Gentili e Rafinha Bastos repetem receitaclássica e acirram a disputa pela já diminuta audiência da faixa noturna
        ISABELLE MOREIRA LIMADE SÃO PAULOA banda toca. O apresentador, egresso dos palcos de humor, saúda a plateia e inicia um discurso cheio de gracinhas. Vai à mesa e chama o convidado. O auditório aplaude. Iniciam uma conversa amistosa. De novo, gracinhas. E por aí vai.
        A descrição é do "Late Show with David Letterman", um dos mais célebres "talk shows" americanos? Sim. Também serve para o "Programa do Jô" e, muito em breve, para duas novas atrações que repetem o formato.
        A disputa por telespectadores que ficam acordados até tarde --um grupo pequeno, mas de prestígio para as TVs-- vai esquentar em março, com "Agora É Tarde", da Band, comandado por Rafinha Bastos, que estreia no dia 5, e "The Noite", de Danilo Gentili, no SBT, no dia 10.
        Em férias desde dezembro, o veterano Jô Soares volta dia 17 ao seu posto noturno na Globo.
        Sua audiência mostra que a fatia a ser disputada não é exatamente empolgante: em 2013, teve média de 7 pontos (cada ponto corresponde a 65 mil domicílios na Grande São Paulo).
        Gentili, que enfrenta processo judicial da Band por quebra de contrato, diz desejar fazer uma atração para quem quer relaxar, sem muita opinião ou política. "Eu dou prioridade para a maluquice", diz. Entretanto, ele já tem confirmada uma entrevista com a polêmica âncora do SBT Rachel Sheherazade, célebre pela sua campanha "adote um bandido".
        Gentili terá quase a mesma equipe do seu antigo programa, incluindo a banda Ultraje a Rigor, com o vocalista Roger como principal interlocutor, menos o humorista Marcelo Mansfield.
        Já Rafinha, que é sócio de Gentili em um clube de comédia e assumirá o posto dele na Band, pretende destacar temas sérios. "Vejo espaço para a política."
        Rafinha terá Mansfield em seu elenco e o músico André Abujamra à frente da banda.
        À Folha Abujamra disse que pediu para não virar alvo de bullying no programa. "Me incomoda muito e está muito em voga hoje um cinismo, as pessoas ficam se tratando mal", disse. Segundo ele, Rafinha atendeu e está sendo "gentilíssimo".
        Sobre os novos concorrentes, Jô Soares diz que todo "talk show" é diferente, depende de quem está atrás da mesa.
        "Quem recebe os convidados cria a personalidade do programa. Nenhuma conversa é igual a outra. Já vi o mesmo convidado em dois programas diferentes e eram quase duas pessoas diversas", disse Jô por e-mail.
        Escassez de convidados pode ser um problema para os "talk shows". Há tanta gente interessante assim para entrevistar?
        "Com certeza vamos ter [dificuldade com convidados]. Por enquanto, não sentimos", diz Rafinha, que já confirmou os músicos Luan Santana e Lobão.
        No Brasil, o "talk show" começou nos anos 1950 com o "SS Show". Nos EUA, o formato é mais consolidado, com dezenas de exemplares nas TVs aberta e fechada. Lá, o problema é o envelhecimento do público.
          ANÁLISE
          Nos EUA, gênero começa a trocar conversa por esquetes
          NELSON DE SÁDE SÃO PAULODuas décadas atrás, a referência de Jô Soares ao lançar o "Onze e Meia" foi sobretudo Silveira Sampaio, com quem ele havia trabalhado no começo dos anos 1960.
          Foi "o embrião do stand-up, o primeiro one man show' do Brasil", segundo o comediante Marcelo Mansfield. Na TV Rio e depois na Record, apresentou o primeiro "talk show" brasileiro, "SS Show", e outro programa, "Bate-papo com Silveira Sampaio", em que criticava Carlos Lacerda com bordão que ficou famoso, "Carlos, meu filho, não faça isso".
          Talvez Rafinha Bastos e Danilo Gentili tenham ouvido falar de Sampaio, mas suas referências são outras, americanas, de David Letterman ao recém-aposentado Jay Leno. E agora Jimmy Fallon e Seth Meyers, que estrearam nas últimas semanas.
          Fallon é quem comanda o "Tonight Show", programa mais antigo do gênero, 60 anos em setembro. Foi apresentado ao longo de três décadas por Johnny Carson, que virou lenda da TV americana. Mas o próprio "talk show" pode estar nos seus estertores --e Fallon seria o algoz.
          Em sua semana de estreia, de 17 a 21, o "Tonight" alcançou a maior audiência em duas décadas. E o fez com pouca entrevista, conversa, "talk". Com esquetes e brincadeiras, o programa está mais para o gênero "variety show", de variedades.
          Quem fez as contas foi um professor de mídia, Stephen Winzenburg: 33% de "talk" com Fallon, 51% com Leno. "O êxito da primeira semana pode indicar o fim do formato tradicional de talk show'", conclui o levantamento.
          Para ser um "Saturday Night Live" com pouca entrevista, como descreve Winzenburg, o "Tonight" contou com os roteiristas que elevaram a TV americana aos padrões atuais de qualidade. Não se espera, portanto, que o movimento chegue tão cedo à TV brasileira.
            Formato garante prestígio à TV, diz especialista
            DE SÃO PAULO
            Mais de meio século depois de sua invenção, o formato do "talk show" continua sendo repetido exaustivamente. Para especialistas ouvidos pela Folha, isso ocorre porque este tipo de programa oferece às TVs a possibilidade de receberem figuras ilustres em suas grades.
            Gabriel Priolli, ex-diretor da TV Cultura, cita o fator "prestígio" do formato, que, diferentemente de um programa de variedades, permite receber autoridades, políticos, juízes e empresários.
            Ele diz que as emissoras preferem colocar algo que já tenha sido testado no ar a tentar inovações. "Qualquer problema pode significar prejuízos gigantescos."
            "E tem ainda a onda': se todo mundo está fazendo aquilo, por que eu vou fazer diferente?", questiona.
            O fato de o apresentador falar diretamente ao telespectador em seus monólogos sobre assuntos do momento faz com que o público, ainda que restrito, seja cativado e se sinta parte do programa.
            Quem afirma isso é Lynn Spigel, professora de história da TV da Northwestern University, nos EUA.
            "O bom apresentador é aquele que acha o equilíbrio entre o comum e o extraordinário", diz Spigel.
            Para ela, um problema do formato é a resistência a apresentadores do sexo feminino.

            José Simão

            folha de são paulo
            Carnaval! É Proibido Pensar!
            Filhos de Glande! E diz que é o bloco mais democrático do mundo: todo mundo é filho de glande! Rarará!
            Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! É hoje! Carnaval! A Grande Festa da Esculhambação Nacional! Como diz aquele bloco do RIO: Tá Tudo Certo Pra Dar Merda! Rarará. E de hoje em diante é proibido pensar. A não ser que você pretenda passar o Carnaval jogando xadrez!
            E diz que no Rio vai sair um bloco chamado OS BLACK BRONCOS. Todos com a máscara do Bolsonaro! E eu só vou comprar o elástico. Porque a minha cara já é uma máscara de Carnaval! Vou na 25 de Março e pedir: "Me dá um elástico?".
            E cena de Carnaval em São Paulo é assim: um carro alegórico horrível e um repórter de TV com capa de chuva. Rarará! E as peladas? As siliconadas do sambódromo! As duas coisas que mais crescem atualmente no Brasil: a classe C e os peitos! Se um peito daqueles explodir, vai ter luta de gel na avenida. O que Deus criou, só o silicone segura!
            E não se esqueça, nesse Carnaval, transe com segurança. Segura no meu sexo. Transe com segurança: segura aqui, Ó! Rarará.
            E uma amiga jurou que vai transar com segurança: com o segurança do salão, com o segurança da avenida e se for transar no carro, manda ele tirar o terno! Rarará!
            E onde eu vou passar o Carnaval? Pulando. Pulando e copulando! Rarará. E um amigo vai passar o Carnaval fazendo retiro espiritual: deixa o espírito no retiro e leva o corpo pro litoral. Rarará!
            E um outro vai passar o Carnaval contribuindo para o aquecimento global; vai passar os cinco dias com a churrasqueira acesa! Rarará!
            E os blocos? Os blocos bombando! Direto de Fortaleza: Aí Dentro, Excelência! E no Rio uns psicanalistas criaram o bloco Nem Freud Nem Sai de Cima. E direto de Olinda: Cumêro Mãe! Mas no Carnaval nem a mãe escapa!
            E de Belém do Pará: Filhos de Glande. Deve ser uma dissidência de Filhos de Gandhi! E diz que é o bloco mais democrático do mundo: todo mundo é filho de glande! Rarará!
            E uma amiga carioca vai sair no Pinto Sarado! Pinto de academia! Pinto de big brother! Rarará! E direto de Osasco, a capital do cachorro-quente, o bloco: O Pão Tá Frio, Mas a Salsicha Tá Quente! E direto do Acre, o curto, grosso e solidário Unidos e Fudidos! Rarará! É Carnaval!
            É Carnaval! Como gritou Moisés: "Que Comece a Putaria!". Rarará.
            Nóis sofre, mas nóis goza!
            Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

            Documentário premiado retoma denúncia de massacre de índios

            folha de são paulo
            MELHOR DO DIA
            Documentário premiado retoma denúncia de massacre de índios
            Curta!, 21h30, livre. A denúncia de um massacre de índios que teria ocorrido em 1985 na Gleba Corumbiara, em Roraima, é ponto de partida para "Corumbiara", produção do francês Vincent Carelli, que levou um Kikito de melhor filme do Festival de Cinema de Gramado em 2009, e o prêmio União Latina no 25º Festival de Cinema Latino-Americano de Trieste, na Itália, em 2010.
            Orientado pelo indigenista Marcelo Santos, autor da denúncia, Carelli busca, em um terreno recém-ocupado, sobreviventes que possam falar sobre o massacre e ajudar a levar os culpados à Justiça.
            O filme narra de que maneira o local era ocupado e como os índios passaram a viver acuados naquela comunidade.
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            'Arquitetura Verde' encerra temporada
            + Globosat, 21h, classificação não informada. Entre os assuntos do último episódio está a praça Victor Civita, em São Paulo, projeto de Adriana Levisky feito em terreno onde havia um incinerador de lixo.
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            Sambistas discutem a figura do malandro
            TV Brasil, 17h30, classificação não informada. Os músicos Beth Carvalho, Martinho da Vila, Moacyr Luz e Almir Guineto debatem no "Diverso" sobre o tipo que virou parte da identidade nacional.

              Três Carnavais no Rio - Michel Laub

              folha de são paulo
              MICHEL LAUB
              Três Carnavais no Rio
              Nasceu a capital rodriguiana, na qual o desabamento de pudores se manifesta na tragicomédia da vida privada
              1.
              Há um trecho de "A Menina Sem Estrela", talvez o melhor livro de memórias já publicado em português (Companhia das Letras, organização de Ruy Castro), em que Nelson Rodrigues comenta o Carnaval de 1919: "De repente, da noite para o dia (...), toda nossa estrutura íntima fora tocada, alterada e, eu diria mesmo, substituída".
              O dramaturgo, romancista e cronista se refere ao trauma da gripe espanhola, durante a qual a cidade foi devastada pela "humilhação dos cadáveres". Para quem sobreviveu e foi à festa, as convenções sociais anteriores pareciam não ter mais sentido. "Na sexta-feira", continua o texto, "isto aqui era o Rio de Machado de Assis; e na manhã seguinte (...) houve uma obscenidade súbita, nunca vista".
              Daria para dizer que ali nasceu a capital rodriguiana, na qual o "desabamento de pudores" se manifesta na tragicomédia da vida privada --adultério, incesto, pactos de morte, confissões trêmulas entre paredes de subúrbio.
              É como se, para Nelson, o passado não fosse a escravidão e o fim do império retratados pela ironia de Machado (ou pelo naturalismo de Lima Barreto), e sim o tempo mítico da "alma imortal" que paira sobre o mundanismo e a decadência.
              Escorada num vasto catálogo de obsessões, que vão da nudez ao pão com manteiga, do bordel de normalistas aos "seres que apodrecem em chagas" nos pátios de milagres, passando por tias, padres, velórios, professoras de primário e Otto Lara Resende, essa nostalgia peculiar é imbatível como arte. Mas começa a soar datada como representação sociológica diante do que veio na sequência, ali pela virada para os 1960.
              2.
              Como efeito, em paralelo à mudança do poder para Brasília e à ditadura que duraria duas décadas, a tradução ficcional do Rio passa a exigir um realismo mais cru, que se debruça sobre os tiroteios pouco românticos nas favelas, a tortura nada caricatural das delegacias, os anônimos que eliminam uns aos outros por "comida, boceta e cobertor".
              Morre a cidade de Nelson, surge a de Rubem Fonseca, cujo primeiro conto do primeiro livro, "Os Prisioneiros" (1963), é --coincidência-- uma história passada entre a sexta-feira e a Quarta de Cinzas. Chama-se "Fevereiro ou Março", e o protagonista faz parte de um bando que pretende distribuir "um Carnaval de porrada" e acabar com "tudo que é bloco de crioulo".
              Em "Os Prisioneiros", como em "A Coleira do Cão", "Feliz Ano Novo" e "O Cobrador", livros de Fonseca hoje publicados pela Agir, havia pouco espaço para a sutileza machadiana ou o moralismo que lhe herdou a coroa.
              Talvez porque não houvesse mais ideias a ponderar nem lados a escolher. O horror totalizante, cujas razões econômicas ou individuais estão muito além do que ensinam os manuais da universidade ou da polícia, é o personagem de fundo de uma ficção largamente admirada e imitada, que reinou absoluta até pelo menos 1995 --ano da última coletânea memorável do autor, "O Buraco na Parede".
              3.
              De lá para cá, o panorama literário --como o sociológico-- é mais fragmentado e confuso. O Rio continuou mudando, houve outros Carnavais no caminho, mas é possível que nenhum venha a ter a importância histórica do que começa hoje.
              A festa está cronológica e simbolicamente entre os primeiros protestos e a Copa. Há menos de um mês, Santiago Andrade foi assassinado. Linchamentos e leis antiterrorismo entraram na pauta. Na sequência virão as urnas e a Olimpíada.
              Uma das tarefas possíveis da ficção é dar conta da realidade. Nos últimos 20 anos, em relação a passado e presente da capital fluminense, ela conseguiu isso em momentos raros. O mais notável é "Cidade de Deus", de Paulo Lins (1997).
              Mas há outra urbe além da favela, um ajuntamento provinciano e globalizado, de civilização e barbárie, que pode ser o epicentro --vide a confusão política, urbanística e social que fermenta sob o Cristo Redentor-- do futuro do país.
              O samba é outro, os novos blocos estão na rua. Quem sabe algo está nascendo aí, ou já nasceu. Para quem se dispuser a contar esta história, material é o que não faltará.

              Petistas comemoram 'fim de uma farsa'

              folha de são paulo

              MENSALÃO - AS PENAS
              STF volta atrás e inocenta réus de crime de quadrilha
              Recuo criou uma 'tarde triste para o Supremo', afirmou Joaquim Barbosa
              Presidente da corte acusou novos ministros de terem sido indicados 'sob medida' para beneficiar condenados
              DE BRASÍLIAPor 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal mudou de entendimento e derrubou ontem o crime de formação de quadrilha no processo do mensalão, reduzindo a pena do ex-ministro José Dirceu e outros sete condenados.
              O resultado fez o presidente da corte e relator do caso, Joaquim Barbosa, acusar duramente a nova composição do STF de ter sido indicada "sob medida" para beneficiar os condenados com "votos pífios", criando uma "tarde triste para o Supremo".
              Para ele, "uma maioria de circunstância" foi "formada sob medida para lançar por terra todo o trabalho primoroso levado a cabo por esta corte no segundo semestre de 2012". O caso foi julgado naquele ano, e ontem foram analisados recursos chamados embargos infringentes.
              Ao falar da nova composição da corte, o presidente do STF se referia aos ministros Luís Roberto Barroso e Teori Zavascki, nomeados pela presidente Dilma Rousseff após a condenação dos réus na primeira fase do julgamento.
              Eles substituíram Ayres Britto e Cezar Peluso. Britto votou pela condenação por quadrilha em 2012. Peluso já estava aposentado à época. Ontem, foram os votos de Barroso e Teori que viraram o placar pró-réus.
              No dia 13 de março, os ministros voltam a se reunir para decidir se houve o crime de lavagem de dinheiro para três réus, entre eles o ex-deputado petista João Paulo Cunha. Com isso, o caso enfim deverá ser encerrado, após consumir 68 sessões e levar um ano e meio para ser analisado.
              Com a derrubada do crime de quadrilha, o chamado núcleo político do mensalão --que além de Dirceu conta com o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares e com o ex-presidente do PT José Genoino-- cumprirá pena somente pelo crime de corrupção ativa.
              Como foram absolvidos pelo crime de quadrilha, os três escaparam de cumprir pena em regime fechado, e continuarão presos em Brasília em regime semiaberto.
              Ao votar, Barbosa desabafou: "Esta é uma tarde triste para este Supremo Tribunal Federal, porque, com argumentos pífios, foi reformada, jogada por terra, extirpada do mundo jurídico uma decisão plenária sólida".
              "Sinto-me obrigado a alertar a nação brasileira que este é apenas o primeiro passo, porque essa maioria de circunstância tem todo o tempo a seu favor para continuar com sua sanha reformadora."
              Gilmar Mendes insinuou que uma nova mudança pode acontecer para inocentar condenados. Isso dependeria de um recurso conhecido como revisão criminal. Tecnicamente, é difícil de ser aceito, pois exige provas novas e cabais da inocência do réu.
              A derrubada da quadrilha tem um valor simbólico, segundo os advogados dos réus, uma vez que ela foi central na denúncia do Ministério Público Federal.
              Após o julgamento, José Luis Oliveira Lima, que defende Dirceu, disse que a mudança atinge o "coração" da acusação e demonstra que "jamais existiu uma organização criminosa" chefiada pelo ex-ministro --que permanece condenado por corrupção.

              Dirceu poderá deixar a cadeia em 2015
              Pela lei, presos podem mudar de regime após cumprir um sexto da pena; trabalho também reduz tempo na prisão
              Pela mesma lógica, os petistas Delúbio e Genoino poderão migrar para regime aberto ainda em 2014
              DE BRASÍLIA
              Condenado a 7 anos e 11 meses de prisão por corrupção ativa no processo do mensalão, o ex-ministro José Dirceu pode deixar o complexo da Papuda e migrar para o regime aberto após cumprir 1 ano e 4 meses de sua pena, ou seja, em março de 2015.
              Mas o cenário pode ser ainda mais favorável e Dirceu pode deixar a cadeia neste ano caso ele obtenha benefícios por trabalhar, estudar e até por ler um livro.
              De acordo com a lei, o preso pode pedir para mudar de regime (do fechado para o semiaberto ou do semiaberto para o aberto) após cumprir um sexto de sua pena. Além disso, a legislação prevê o desconto de um dia de pena para cada três trabalhados.
              Se estudar, o preso obtém o mesmo benefício do trabalho: um dia a menos na prisão para cada três estudados. Há ainda um outro benefício ligado ao hábito da leitura. Para cada livro lido pelos presos a cada mês, é possível abater outros quatro dias do total da pena.
              O ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares, condenado a 6 anos e 8 meses, poderá deixar o presídio em dezembro deste ano, após cumprir um sexto de sua pena. Mas, como está trabalhando, deve reduzir este período. Caso ainda estude e leia livros, poderá migrar para o regime aberto --na prática, ficando em casa--, em meados de julho.
              O ex-presidente do PT, José Genoino, por sua vez, está em prisão domiciliar devido a problemas de saúde e, por isso, não pode trabalhar. Mas, levando em conta sua pena de 6 anos e 11 meses, ele poderia ir para o regime aberto em agosto deste ano.
              LIVROS
              A redução no tempo a ser cumprido é ainda mais significativa para condenados que tiveram penas altas, como o operador do esquema Marcos Valério Fernandes de Souza, sentenciado a 37 anos e 5 meses de prisão.
              Ele pode sair do regime fechado para o semiaberto, após cumprir 6 anos e 4 meses de prisão. Se estudar, trabalhar e ler livros, ficará no regime fechado por 3 anos e 11 meses antes de ter o direito de mudar de regime.
              Petistas comemoram 'fim de uma farsa'
              DE BRASÍLIADE SÃO PAULO
              Petistas comemoraram ontem a decisão do STF, vista por eles como "o fim de uma farsa", e centraram críticas no presidente da corte e relator do processo do mensalão, Joaquim Barbosa.
              Ex-ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff, Gleisi Hoffmann (PT-PR) foi ao plenário do Senado dizer que ao levantar suspeitas contra colegas, Barbosa coloca em dúvida sua própria indicação.
              "Ele abre mão da argumentação jurídica e técnica para insinuar que o processo de escolha careça de seriedade e responsabilidade. Estaria sua indicação também sujeita à suspeição?", disse.
              Os ministros do STF são indicados pelo presidente da República e aprovados ou não pelo Senado. Barbosa entrou no STF por indicação do ex-presidente Lula, em 2003.
              Por meio de sua assessoria, o presidente nacional do PT, Rui Falcão, disse que "caiu a farsa do crime de formação de quadrilha".
              Em nota, o pré-candidato do PSDB à Presidência, Aécio Neves, disse que "a expectativa da sociedade brasileira é que esse precedente possa ser pedagógico". "O fato concreto é que a mais alta corte do Brasil condenou, pela primeira vez, por crimes extremamente graves, um grupo de agentes públicos".
              O presidente do PPS, Roberto Freire, disse que "decisão judicial se respeita, apesar de discordar profundamente nesse caso". "Foi uma decisão de encomenda", disse.

              General deve ser acusado pela morte de Rubens Paiva - Bernardo Mello Franco

              folha de são paulo
              General deve ser acusado pela morte de Rubens Paiva
              Comissão da Verdade apontou José Belham como responsável pelo crime
              Militar reformado, de 80 anos, comandava DOI-Codi do Rio em 1971, quando deputado foi torturado e morto
              BERNARDO MELLO FRANCODO RIOO Ministério Público Federal deve pedir a abertura de ação penal contra o general reformado José Antonio Nogueira Belham, 80, pela morte do deputado Rubens Paiva, preso e torturado pela ditadura militar em 1971.
              A informação foi dada ontem pelo coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari. Ele apontou Belham, então chefe do DOI-Codi no Rio, como responsável pela morte e pela ocultação do corpo do deputado.
              Paiva era perseguido pelo regime e foi preso em 20 de janeiro de 1971. Morreu no dia seguinte, após sofrer espancamentos em bases da Aeronáutica e do Exército no Rio.
              Belham comandava o DOI-Codi carioca, onde a vítima foi vista pela última vez. Ouvido pela comissão em 2013, ele negou participação no caso.
              "O general Belham tem total ciência dos fatos ligados à morte e à ocultação do corpo de Rubens Paiva", afirmou Dallari. "Ele está vivo, sabe o que aconteceu e tem a obrigação moral de dizer onde estão os restos mortais."
              A comissão também apontou ontem o então tenente Antonio Fernando Hughes de Carvalho, morto em 2005, como um dos assassinos de Paiva. Ele foi visto por dois militares agredindo o deputado.
              Agora, a comissão vai pedir à Câmara dos Deputados que instale uma CPI para obrigar Belham a depor.
              Em 2012, a Casa devolveu simbolicamente o mandato de Paiva, cassado em 1964.
              O advogado do general disse à comissão que ele foi avisado pelo Ministério Público de que será denunciado em breve. A Procuradoria disse não se pronunciar sobre investigações em andamento.
              Belham não foi localizado ontem, e o Exército voltou a se recusar a dar informações sobre o desaparecimento.
              Rosa Cardoso, da comissão, disse que o órgão se esforçará para descobrir o paradeiro do corpo até o fim do ano.
              Belham disse estar de férias quando Paiva foi preso. Mas a comissão descobriu documentos que atestam que ele não só estava no local como examinou papéis apreendidos com o deputado.
              Após a morte, militares encenaram farsa para sustentar que o deputado teria sido libertado em ação da guerrilha. A versão foi derrubada recentemente pelo coronel reformado Raymundo Campos.
              TRAJETÓRIA - PAIVA SUMIU EM 1971
              Rubens Beyrodt Paiva
              Natural de Santos (1929), formou-se engenheiro em 1954
              Deputado federal
              Eleito deputado pelo PTB-SP em 1962, é cassado em 1964
              Exílio e retorno
              Morou na Iugoslávia e França, mas voltou ao país em 1965
              Desaparecimento
              Foi levado por militares ligados à Aeronáutica em 1971 e morreu sob tortura

              quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

              Fora da curva - Marcelo Coelho

              folha de são paulo
              QUESTÕES DE ORDEM
              MARCELO COELHO - coelhofsp@uol.com.br
              Fora da curva
              Barroso era contra a condenação, mas não quis repetir a tese impopular de que não houve quadrilha
              Por pouco não acabava mal a sessão de ontem do STF, julgando os últimos recursos do mensalão. O presidente do tribunal, Joaquim Barbosa, mais uma vez foi perdendo a paciência. Na circunstância, entretanto, Barbosa tinha razão. O mais novo ministro do Supremo, Luís Roberto Barroso, encaminhava-se para livrar os réus da condenação pelo crime de formação de quadrilha.
              Até aí, não haveria grande surpresa. Quatro votos (Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia) já tinham sido dados, meses atrás, nesse sentido.
              Para esses ministros, Marcos Valério, Dirceu e companhia não constituíram um bando estável, dedicado a cometer crimes indeterminados, que pusesse em risco a "paz pública", como estabelece o Código Penal. Tratava-se apenas de uma junção de várias pessoas, com funções próprias, dedicada ao propósito da compra de votos parlamentares.
              A diferença entre uma coisa e outra, segundo o exemplo clássico do jurista Nelson Hungria, pode ser entendida se pensarmos no grupo de Lampião. A mera passagem do bando de cangaceiros por uma cidadezinha era suficiente, claro, para que ninguém pusesse os pés fora da porta de casa. Mesmo sem fazer nada, Lampião e seus comparsas ameaçavam o sossego geral; a mera existência do grupo já constituía um ato criminoso.
              Os mensaleiros, sem mensalão, não constituiriam ameaça nenhuma. Não eram "quadrilha", nesse sentido. Apenas o mensalão, e não algum modo de vida turbulento, fez com que se unissem ao longo de vários anos.
              Se quisesse, Barroso poderia somar-se aos que defendem essa tese, sem maiores inovações. Mas ele escolheu um caminho estranho.
              Primeiro, repetiu suas críticas ao sistema político brasileiro, que induz à corrupção. Era, naturalmente, mais um de seus acenos à opinião pública. Rememorou então um famoso artigo que tinha escrito antes de ser conduzido ao STF. O julgamento do mensalão, repetiu, era um "ponto fora da curva". Primeiro, porque políticos raramente são condenados no Brasil. Segundo, porque a severidade das penas foi fora do normal.
              Era o caso das penas relativas ao crime de quadrilha. Em alguns casos, chegaram perto do teto permitido pela lei. Mesmo para o crime de corrupção a dosimetria do STF tinha sido mais moderada.
              Barroso deu a entender que a corte exagerou para evitar a prescrição. É que, quando as penas são baixas demais, e muito longo o tempo transcorrido entre o crime e a condenação, o Estado perde o direito de punir o criminoso.
              A suposição de Barroso era razoável. Dito isso --o que aliás punha sob suspeita toda a decisão do plenário--, ele foi adiante. Calculou, numa hipótese teórica, a pena "real" que os acusados deveriam receber, caso o tribunal não tivesse exagerado na dose. Concluiu então que o caso da quadrilha estava prescrito.
              Veio o acréscimo espantoso: de todo modo, os réus não tinham cometido esse crime! Joaquim Barbosa esbravejava. Barroso mantinha a fleugma.
              Foi Cármen Lúcia quem apontou a incoerência de Barroso. Como calcular uma pena mais branda para o réu, se ao mesmo tempo se está absolvendo o mesmo réu? Se ele não cometeu nenhum crime, por que imaginar que sua pena deveria ser, "em tese", de tantos anos a mais ou a menos?
              Barroso queria reforçar a tese de seu artigo, no sentido de que as penas foram altas demais. Mas é possível que também não quisesse ficar com o estigma de quem virou o jogo.
              Era contra a condenação, mas não quis repetir a tese mais simples, e impopular, de que não houve quadrilha. Preferiu fazer cálculos meio fora de hora sobre as penas que deveriam ter sido e que não foram.
              Foi ele, na verdade, o "ponto fora da curva". Na prática, dava no mesmo: livram-se os réus do crime de quadrilha. Mas não se livrou Barroso da opinião que de fato tinha a esse respeito.

                Ruy Martins Altenfelder Silva

                folha de são paulo
                RUY MARTINS ALTENFELDER SILVA
                A injustiça dos aposentados
                No INSS, a média mensal paga aos aposentados urbanos é de R$ 1.240. No funcionalismo federal, varia de R$ 6.558 a R$ 25.225
                Os aposentados estão sem motivos para festejar. A diferença de remunerações de segurados do INSS e da União mostra quanto os chamados benefícios pagos a quem dedicou sua vida de trabalho à iniciativa privada são escandalosos e injustamente menores.
                No INSS, a média mensal paga aos 10,8 milhões aposentados urbanos é de R$ 1.240. No funcionalismo federal dos três Poderes, a média varia de R$ 6.558, concedida a servidores civis do Poder Executivo, a R$ 25.225, recebidos pelos aposentados do Poder Legislativo.
                No intervalo, aparecem os militares (R$ 7.741), os inativos do Judiciário (R$ 16.726) e do Ministério Público Federal (R$ 19.324). Além das disparidades, há detalhes até pitorescos, como revela o ranking das aposentadorias publicado pela Folha: a remuneração média dos ativos do Judiciário é menor do que a dos aposentados: R$ 13.575 contra os já citados R$ 16.726.
                Enquanto isso, os valores pagos pelo INSS vêm sendo, sistematicamente, atualizados abaixo da inflação. Há quem defenda a unificação de dois sistemas hoje adotados para a aposentadoria: o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), que atende a contratados pela CLT, e o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), destinado ao funcionalismo. Entre outros argumentos, citam-se os recursos destinados a cobrir deficit crônicos que consomem mais de R$ 60 bilhões por ano para atender menos de 1 milhão de servidores incluídos no RPPS contra os menos de R$ 50 bilhões destinados aos mais de 30 milhões de beneficiários do INSS.
                Há outro ponto que preocupa. A Associação Nacional dos Servidores da Previdência e da Seguridade Social alerta para as alterações previstas no perfil demográfico do Brasil. Hoje, o número de pessoas com mais de 65 anos já ultrapassa um terço dos 30 milhões de aposentados e pensionistas do INSS, raspando na casa dos 14 milhões.
                Não é difícil imaginar a pressão que recairá sobre as contas da Previdência em 2060, quando a expectativa de vida terá saltado dos 71,2 anos (homens) e 78,3 anos (mulheres), segundo o IBGE, para, respectivamente, 77,8 e 84,5 anos.
                Além disso, nas próximas cinco décadas, a faixa de brasileiros com mais de 65 anos corresponderá a 25% da população, o que reduzirá os contribuintes ativos. Para quem acha que tais cenários não passam de exercícios de futurologia, vale lembrar que o total de beneficiários do INSS com mais de 80 anos já somava 3,2 milhões no final de 2011, e os com mais de 70 anos se aproximavam dos 10 milhões, quase 30% dos aposentados e pensionistas.
                Registre-se, a bem da verdade, que nos últimos anos a legislação vem limitando as distorções. Em 2003, a emenda constitucional 41 acabou com a paridade de remuneração entre servidores ativos e inativos. Em 2012, foi criada a Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo. Com isso, os servidores contratados a partir de 2013 serão submetidos a novas regras, que limitam os benefícios da aposentadoria ao teto previdenciário da época. Quem quiser receber mais terá de contribuir para um fundo de pensão.
                São bons passos. Mas ainda urge corrigir a remuneração dos milhões de aposentados do setor privado.

                Efeito mensalão - Roberto Delmanto Junior

                folha de são paulo
                ROBERTO DELMANTO JUNIOR
                Efeito mensalão
                O descrédito que o fenômeno da vaquinha trouxe à pena de multa poderá estimular tribunais a enaltecer ainda mais a pena de prisão
                A punição criminal, com suas penas de privação de liberdade e multa, há de ser sempre individualizada. O juiz, quando as estabelece, deve considerar as circunstâncias específicas dos fatos e a culpabilidade da pessoa que é condenada.
                Embora soe óbvio, nem sempre foi assim. Na antiga Grécia, por exemplo, a punição estendia-se a toda família do criminoso. Atualmente, punições coletivas, vedadas por nossa Lei de Execução Penal, ainda são uma realidade.
                Quanto à pena criminal de multa, é fato que nossas leis, para a maioria dos crimes, a preveem conjuntamente com a pena de reclusão. E quando a pena privativa de liberdade é igual ou inferior a quatro anos e o crime é cometido sem violência, sendo o condenado primário, a prisão será substituída por penas alternativas, que variam desde a prestação de serviço à comunidade a até mesmo uma outra pena de multa --a chamada prestação pecuniária--, que se soma à outra pena de multa originariamente prevista.
                É fato também que na atual redação de nosso Código Penal, toda punição pecuniária, que nada tem a ver com a reparação do dano, é considerada dívida de valor, sendo certo que a inadimplência não leva o condenado ao cárcere. Ele sofrerá penhora de bens, não podendo a execução alcançar terceiros, salvo se tiver havido fraude ou simulação para evitar que o Estado satisfaça o seu crédito.
                Estabelecidas essas premissas, gostaríamos de compartilhar com o leitor uma reflexão sobre as vaquinhas realizadas para o pagamento das penas pecuniárias impostas pelo Supremo Tribunal Federal aos condenados do caso mensalão.
                Não se discute, por certo, que as doações foram realizadas por pessoas de bem, alguns com depósitos módicos, outros substanciosos, tendo todos ampla liberdade para doar a quem quiser o seu dinheiro. Se doaram por convicção ideológica-partidária, por entender que o julgamento foi injusto, por amizade ou por admiração, não cabe a ninguém questionar. E certamente os condenados beneficiários das doações pagarão os impostos devidos, como o de transmissão de valores entre vivos.
                Porém, como todo dinheiro precisa ter origem, os depósitos deverão estar todos identificados, para a própria segurança daqueles que deles se beneficiaram.
                Por outro lado, embora insista-se no óbvio, como fez o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), de que não há lei que proíba doações para tal fim, atacando o ministro Gilmar Mendes, que levantou dúvidas diante do volume milionário e da rapidez da arrecadação, o fenômeno da vaquinha literalmente esvaziou a punição pecuniária imposta pelo Supremo, deturpando o caráter personalíssimo da sanção criminal.
                Aqueles que doam estão, no fundo, solidarizando-se e, de certa forma, cumprindo a pena no lugar do outro, o que traz para o Poder Judiciário grande desconforto.
                Ao mesmo tempo, réus mais humildes e menos politicamente influentes que se envolveram nos mesmos fatos certamente sentirão no bolso, com o arresto de seus bens, a implacável punição criminal pecuniária. A desigualdade de situações e de efetivo cumprimento de suas penas também gera uma incômoda sensação.
                Outro fato que nos chama a atenção é o de que esse episódio poderá gerar um efeito bumerangue em matéria de aumento do encarceramento. Isso porque o descrédito que o fenômeno da vaquinha trouxe à pena de multa poderá estimular que tribunais enalteçam ainda mais a pena de prisão como única resposta penal, certos de que, neste caso, a pena não poderá ser cumprida mediante vaquinha.
                Com isso, a situação das cadeias brasileiras --que hoje são a maior violação humanitária do continente americano-- poderá piorar ainda mais. De tudo, uma coisa é certa: o Judiciário, como Poder, foi desafiado e de certa forma vencido.

                Carnaval - Kenneth Maxwell

                folha de são paulo
                KENNETH MAXWELL
                Carnaval
                No ano de 1966, eu vivia com meu namorado, Carlos Alberto, um carioca negro, na rua Rainha Elizabeth, na esquina da avenida Nossa Senhora de Copacabana, perto da praia no Posto 6.
                Era minha segunda estada no Rio de Janeiro. Aluguei o apartamento na Rainha Elizabeth porque ficava perto de onde morava Júlio, por quem eu havia me apaixonado profundamente no ano anterior.
                Júlio era um estudante da Bahia que vivia em uma cobertura em frente ao Posto 6 com um empresário europeu muito mais velho. Conheci Carlos Alberto em uma noite em que Júlio e eu estávamos fazendo uma caminhada, ou melhor, um "footing" pela avenida Nossa Senhora de Copacabana, uma prática comum na época.
                O empresário europeu se sentia muito desconfortável na companhia de Carlos Alberto e, por isso, pouco vi Júlio dali por diante.
                Carlos Alberto era um jovem muito decente. Fui com ele ao Carnaval de 1967. Fomos ao "Baile dos Enxutos", no Cine São José, na praça Tiradentes, no centro do Rio, ainda que entre nós usássemos o termo "entendidos".
                A canção do Carnaval daquele ano era a marcha-rancho "Máscara Negra", de Zé Keti: "Quanto riso, ó, quanta alegria/ Mais de mil palhaços no salão/ Arlequim está chorando pelo amor da Colombina/ No meio da multidão".
                E continua assim: "Foi bom te ver outra vez/ Está fazendo um ano/ Foi no Carnaval que passou/ Eu sou aquele pierrô/ Que te abraçou/ Que te beijou, meu amor".
                (Quem quiser ouvir as marchinhas de Zé Keti e conhecer as suas letras poderá acessá-las em bit.ly/musicaszeketi).
                Foi no baile que vi Gil pela primeira vez. Ele era do Cantagalo, descendente de colonos suíços trazidos ao Brasil por dom João 6º entre 1819 e 1820. Tinha longos cabelos loiros e fortes mãos camponesas. Mudamo-nos para um apartamento na esquina da avenida Nossa Senhora de Copacabana com a rua Figueiredo Magalhães.
                Zé Keti trocou o Rio de Janeiro por São Paulo nos anos 80. As marchinhas desapareceram. Os direitos autorais se tornaram caros demais. Mas a reputação de Zé Keti foi restaurada quando ele voltou ao Rio, nos anos 90. O velho Cine São José foi demolido. Não voltei ao Brasil até 1977. Nunca mais vi Júlio, Carlos Alberto ou Gil.
                Mas Gil me levou ao Aragon, o navio no qual parti do Rio de Janeiro para Lisboa em outubro de 1967. Ele me deu um exemplar de "Os Sertões: Campanha de Canudos", de Euclydes da Cunha, a segunda edição corrigida publicada pela editora Laemmert, no Rio de Janeiro, em 1903.
                Euclydes da Cunha nasceu no Cantagalo em 1866.

                Rogerio Gentile

                folha de são paulo
                Boquinha de Carnaval
                SÃO PAULO - A Comissão de Ética Pública da Presidência enviou aos ministérios ofício lembrando como as autoridades devem se comportar no Carnaval. A recomendação básica é tão óbvia que chega a ser ridícula: todos podem festejar, "desde que por sua própria conta".
                Ainda que o texto trate de algo tão evidente, não se pode dizer que seja desnecessário. Afinal, estamos numa terra onde o presidente do Senado (Renan Calheiros, PMDB) viaja em avião da FAB para fazer implante de cabelo e o da Câmara (Henrique Alves, PMDB) leva a noiva e mais seis pessoas para assistir a um jogo de futebol num avião pago pelo erário.
                No Carnaval, então, as fronteiras entre os interesses público e privado costumam ficar mais tênues. No de 2012, por exemplo, o hoje presidenciável Eduardo Campos, aquele da "nova política", esteve no Rio com a família para assistir ao desfile. Segundo a prestação de contas do PSB em análise no TSE, os seis dias no hotel foram pagos com recursos do Fundo Partidário, criado para a manutenção das atividades dos partidos. Campos até hoje não explicou a importância da folia na vida do PSB.
                Em 2011, o governador do Paraná, Beto Richa, esteve com a mulher no Sambódromo do Rio como convidado da Brahma. Sem se importar com o papel de garoto-propaganda, usou uma camiseta com a marca da cervejaria. É esse o conceito do tucano de festejar por sua "própria conta"?
                No Carnaval de 2013, o ministro Aldo Rebelo (Esportes, PC do B) viajou pela FAB para Cuba com a mulher e o filho. Disse que estava em viagem oficial, a fim de fechar um intercâmbio olímpico, mas nunca ficou claro como seus familiares ajudarão o Brasil a obter mais medalhas em 2016.
                Razões, portanto, não faltam para o ofício do Conselho de Ética. Aliás, seria bom distribuí-lo internamente no próprio órgão, que, em setembro, arquivou apuração contra Rebelo, embora o ministro não tenha pago a "conta" da viagem dos parentes. O conselho não viu problema algum.

                  Paula Cesarino Costa

                  folha de são paulo
                  Se não houver Carnaval
                  RIO DE JANEIRO - Um motorista bêbado atropela um grupo que estava pulando em bloco na Vila Madalena, em São Paulo; valentões bêbados trocam socos e pontapés no meio de milhares de participantes de um bloco no centro do Rio; governador e pré-candidato à Presidência recebem vaias ao serem anunciados no maior bloco de Maceió, Alagoas. É o clima do país do Carnaval.
                  Nem faz dez anos que muito se reclamava de que os blocos de rua tinham desaparecido e de que o Carnaval no Rio havia se elitizado ao ficar restrito ao Sambódromo, com seus caros 60 mil lugares (hoje são 72 mil).
                  Pouco a pouco, de modo desordenado, mas espontâneo, os blocos foram reaparecendo aqui e ali. Pequenos grupos se multiplicaram como multidão e tomaram a cidade.
                  O poder público apareceu para organizar o que nasceu para não ter organização --e para perder, ano a ano, a corrida por instalar banheiros suficientes para aliviar os corpos e recolher os restos deixados no chão.
                  Bastou para que a cidade se dividisse também a respeito do Carnaval. De um lado, milhares que se divertiam de graça, sem corda nem regulamento, com nostalgia da inocência de festejos antigos. Do outro lado da calçada, os que reclamavam do trânsito tornado caótico, do xixi nas ruas, rasgando a fantasia da cidade cordial. No meio, um monte de gente cantando e dançando feliz.
                  Amplia-se o coro de quem não quer ser "atrapalhado" por semelhantes que, rindo à toa, cantam desafinados um país idílico, usando roupa do sexo oposto, jogando confete, serpentina e espuma branca. Incomodados, que sonham em transportar-se para um ano sem Carnaval.
                  Pois aconteceu em 1894. Machado de Assis assim o descreveu: "Quando eu li que este ano não pode haver Carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha, que no dia em que o deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba".

                    José Simão

                    folha de são paulo
                    Carnaval! Vai, Vomita e Volta!
                    O Jamelão detestava esse termo puxador porque puxador é puxador de fumo ou puxador de carro!
                    Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E essa: "Na festa do Oscar, caviar, 600 lagostas e 4.000 vinhos". Foi a Roseana quem fez a lista de compras? Não foi, mas ela vai copiar. Ou então achou muito modesta pro gosto dela! Rarará!
                    E essa: "SP terá blindados antiprotestos com jatos d'água". OBA! Nesse calor vai ser uma delícia! Podia ser jato de lança-perfume! Rarará! E eu tenho foto de um protesto no Rio: "Não Vai Ter Xota!". E ainda tem o cartaz: "Chupa Bolsonaro! Mas tem que revezar!". Rarará! Protesto Carnaval!
                    E escola de samba devia ser assim: quanto mais celebridade, mais ponto perde! A coisa mais antiglamorosa do mundo é ver celebridade suando. Celebridade não sua! E os carros alegóricos estão cada vez mais altos. O mais baixo tem 300 metros de altura. Carnaval em Dubai!
                    E puxador de escola de samba? O genial Marcius Melhem, da Globo, falou que puxador de escola de samba pensa que a gente é surdo: "Portela, o dia clareou, CLA-RE-O-U!". "Mangueira, mostra a tua raça. A TU-A RAAA-ÇA!". E continuam: "E lá vou eu! E LÁ VO-U EEEEE-UUUUU". Rarará.
                    O Jamelão detestava esse termo puxador porque puxador é puxador de fumo ou puxador de carro!
                    E uma amiga vai sair fantasiada de dentista: só de fio dental. E uma outra vai sair de empada: uma azeitona no umbigo!
                    E as peladas são as mesmas do ano passado. Com o peito dez vezes maior! O sambódromo é o Vale do Silicone!
                    E os blocos? Os blocos estão bombando! Direto de Niterói: Vai, Vomita e Volta.
                    Esse vai ser o meu slogan de Carnaval: Vai, Vomita e Volta. Não admitimos desistências! Rarará!
                    E direto de Olinda: Quer Mamar, Vai Pra Debaixo do Burro. Eu, hein? Que sutileza! Rarará! E no Rio, o bloco dos corretores: Os Imóveis. Rarará! E no Guarujá fizeram um bloco pra melhor idade: Bloco da Rola Cansada! Mas pela foto dos foliões não é só a rola que tá cansada, não! Rarará!
                    É mole? É mole, mas sobe!
                    O Brasil é Lúdico! Olha o cartaz no poste: "Sumo com a pessoa amada durante o Carnaval. Devolvo na quarta-feira de cinzas. Ligue já". É melhor ligar logo porque o cara deve tá com a agenda lotada. Rarará!
                    Nóis sofre, mas nóis goza! Hoje, só amanhã!
                    Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

                    Ator encarna o artista Basquiat em suas últimas horas de vida

                    folha de são paulo
                    Ator encarna o artista Basquiat em suas últimas horas de vida
                    Peça recria história do pintor americano morto aos 27
                    GUSTAVO FIORATTIDE SÃO PAULOAo fundo da cena, um painel branco pendurado ao teto desce até o chão e continua apoiado à superfície do piso.
                    Este é o elemento cênico central do espetáculo "In the Place "" Um Lugar para Estar", em que o ator Alex Mello interpreta nova leitura sobre a vida do artista americano Jean-Michel Basquiat (1960-1988). A peça está no Sesc Consolação até o dia 28.
                    Durante uma hora, Mello encarna Basquiat em seu último dia de vida. O texto é de próprio punho. A direção é de Gilberto Gawronski, diretor habituado a solilóquios. Recentemente, ele encarnou a figura de um canibal no monólogo "Ato de Comunhão" (2011), também baseado em fatos reais.
                    Como Basquiat, Mello vai pintando essa tela em branco, enquanto narra episódios na vida do personagem.
                    Recupera fatos da infância, o início da carreira grafitando muros, a escalada para o sucesso em Nova York, a relação com a heroína, o sentimento de estar deslocado no mercado nova-iorquino das artes. Por fim, vem a morte, aos 27 anos, por overdose.
                    Além de criar em cena imagens que remetem ao desenho do pintor, no painel branco, Mello também risca palavras soltas e poemas.
                    "As telas de Basquiat são assim, como diários, trazem o café que ele derrama sem querer, ou marcas dos pés dele", descreve o ator. Cada espetáculo resulta em um painel diferente.
                    FIM DE CASO
                    Também há menção à vida afetiva do artista. O espetáculo recria, por exemplo, um telefonema que ele teria recebido de uma namorada. Ela não é nomeada, mas a cena faz referência ao relacionamento entre Basquiat e Madonna.
                    Com o fim do namoro, a cantora devolveu a ele uma série de telas. "Depois, quando viu o valor que as obras conseguiram, ela se arrependeu", conta Mello, sobre episódio narrado também pela biografia "Basquiat", de Leonhard Emmerling.
                    Andy Warhol (1928-1987) é outro que está na lista de celebridades amigas.
                    SIMILARES
                    O espetáculo embarca em uma onda recente de projetos teatrais similares, criados a partir de biografias de pintores e escultores célebres.
                    Nos últimos dois anos, São Paulo viu em cena a vida de Auguste Rodin (1840-1917) e de Camille Claudel (1864-1943), em "Camille e Rodin", com texto de Franz Keppler e direção de Elias Andreato.
                    O pintor Mark Rothko (1903-1970) também foi levado ao palco, encarnado por Antonio Fagundes em 2012, com direção de Jorge Takla.

                      Janio de Freitas

                      folha de são paulo
                      Black blocão
                      É o blocão da chantagem; eles se dizem independentes, mas são os mais dependentes de verbas e cargos da União
                      Eles se dizem "independentes". São os que dependem, para qualquer dos seus objetivos, de cargos governamentais, de dinheiro liberado pelo governo e de outras deformações para fazer o seu comércio político, e outros comércios. Agregados em oito aglomerações que se fazem chamar de partidos, associaram-nas para a ação na Câmara sob o nome geral de "blocão".
                      Os líderes dos oito partidos, reunidos na casa do idealizador do blocão, deputado Eduardo Cunha, não pouparam clareza no propósito de opor resistência, com cerca de metade do plenário, às propostas e necessidades da Presidência da República nas votações da Câmara.
                      Exceto o Solidariedade do Paulinho da Força, PMDB, PDT, PTB, PP, PSC, Pros e PR são "partidos aliados" do governo. "Aliados insatisfeitos." Porque não recebem do governo "a atenção" desejada. A resistência terá, portanto, a finalidade de torná-los satisfeitos.
                      Resistir para provocar negociação. Negociação para ser atendido em indicações a cargos públicos, dinheiro do Tesouro Nacional liberado pelo governo e outras deformações que alimentam a política como comércio.
                      Logo, o que está criado na Câmara é o blocão da chantagem. Não mais a chantagem de uma bancada, nem a chantagem de dirigente com meios de direcionar a pauta, sustar votações, marcar ou evitar sessões extraordinárias. A chantagem passa a ser um componente da Câmara como instituição.
                      O esperável do governo é que procure contornar ou atenuar seu novo problema buscando entendimentos com alguns dos líderes e movimentando o vice-presidente Michel Temer, para agir no PMDB. É pena, mas a resposta do governo não será a necessária, a que seria a resposta à altura.
                      Os deputados do blocão serão, quase todos, candidatos a reeleger-se. Ou a mandatos mais ambicionados. Chantagem do blocão? O primeiro passo da resposta poderia ser apenas um aviso: a presidente comunica que irá à TV todos os dias, em aparição oficial, para informar ao país --aos eleitores-- os nomes dos deputados que exigem vantagens descabidas para votar iniciativas e soluções esperadas pela população. De quebra, despejo logo do governo, para confirmar sua disposição, de uma dúzia de pendurados em bons cargos por indicação de deputados.
                      O governo depende da Câmara e do Senado. Mas os deputados com força eleitoral bastante para garantir-se são muito poucos. A diferença é que uns têm audácia. O outro, é herdeiro do longo vício de ajoelhar-se.

                      INJUSTIÇAS


                      A comemoração de 20 anos do Plano Real foi uma homenagem à injustiça. O plano só existiu porque Itamar Franco estava determinado a arriscar tudo contra a inflação. Antes de Fernando Henrique chegar à Fazenda, Itamar destituiu dois ministros, Paulo Haddad e Gustavo Krause, por relutarem em lançar um projeto anti-inflação radical, mais um, Eliseu Resende, por falta de condições políticas para a tarefa.
                      Fernando Henrique só lembrou Itamar Franco para falar do convite que lhe entregou o Ministério da Fazenda, e a versão é, no mínimo, imprecisa.
                      Foi ainda a persistência de Itamar que fez Fernando Henrique afinal desengavetar o plano, que já estava pronto há quase um semestre. E disso veio a outra injustiça da comemoração. André Lara Resende só foi citado no discurso de Fernando Henrique em cambulhada com uma fieira de nomes, presentes até quem não colaborou --ainda bem-- sequer com vírgulas no projeto. André Lara, uma inteligência criativa, foi o artífice do plano, com a colaboração também imaginosa de Pérsio Arida.

                      Contardo Calligaris

                      folha de são paulo
                      Hip-hop na linha
                      Proliferação de regras inúteis serve para compensar o fracasso das leis fundamentais
                      Faço parte do conselho da organização social que administra a São Paulo Escola de Teatro, com sede na praça Roosevelt. A escola, uma iniciativa do Estado, oferece formação em atuação, cenografia, figurino, direção, dramaturgia, humor, iluminação, sonoplastia e técnicas de palco.
                      Muitos alunos recebem bolsa durante os estudos. O vestibular é concorrido. Os recém-formados são bem-vistos pelo mercado de trabalho. As reuniões do conselho são amistosas. Em suma, está tudo bem.
                      Agora, imaginemos que, um dia, por decreto, a escola pare de "apenas" formar seus alunos e passe a capacitá-los oficialmente, ou seja, a dotá-los de um carimbo que os separe de seus concorrentes não carimbados. Naquele dia, eu me demitiria.
                      Acho ótimo que existam formações nas artes, mas nenhuma formação artística deveria se transformar em capacitação exigida para poder exercer a profissão. Você quer ser artista plástico? Curse uma faculdade de belas-artes, entre no sindicato e tire a carteira. Quer ser cineasta? Dançarino? Poeta? Escritor? Mesma coisa.
                      Como surge uma ideia dessas? É ganância de dono de escolas particulares? É frustração de alguns, que talvez procurem migalhas de poder tornando-se quadros sindicais? É vontade de que o Estado controle a vida de artistas inquietantes, distribuindo fomentos aos patenteados?
                      Para mim, dos males, o menor é a hipótese da ganância. Os outros são pesadelos da ex-União Soviética, em que os artistas de carteirinha (profissional, sindical e do partido) eram promovidos pelo Estado, enquanto os outros lambiam vitrines no frio, ou apodreciam em campos de concentração.
                      Mas a paixão por regras e regulamentos tem também outra origem. Um exemplo. Alguns andam pelo mundo carregados de regras: não podem colocar o pé em cima de uma junta, nem subir um degrau com o pé esquerdo. Esses indivíduos sofrem de um excesso ou de uma falta de regras? Curiosamente, eles sofrem de uma falta: a paixão pela proliferação de prescrições desnecessárias é quase sempre um efeito da fraqueza das leis que importam. É como se a proliferação das regras inúteis quisesse compensar o fracasso das leis fundamentais.
                      Em regra, a Constituição de um país é uma súmula de princípios essenciais. Durante a Constituinte, muitos lamentavam (com razão) que a carta brasileira fosse excessivamente extensa e detalhada; eles observavam que, no caso do Brasil, talvez a extensão do texto fosse uma tentativa (vã) de ocultar a fraqueza endêmica dos princípios.
                      Falo disso tudo por causa do projeto de lei 6756/2013, do deputado federal Romário (texto de Juliana Gragnani na Folha de 12/2), no qual é proposta a regulamentação do hip-hop. Pelo projeto, disc-jockeys, mestres de cerimônias, rappers, beatboxers (percussionistas vocais), dançarinos de break dance de rua e grafiteiros serão profissões regulamentadas, com aprendizes (a partir dos 14 anos) e estagiários (a partir dos 16), com inscrição de todos na Superintendência Regional do Trabalho e com "cursos técnicos de capacitação profissional, em instituições credenciadas e reconhecidas pelo Ministério da Educação".
                      O projeto promete que nenhum profissional do hip-hop colocará "em risco sua integridade física ou moral". Ora, é possível que se torne obrigatório o uso de capacete e cotoveleiras para o break dance, mas, quanto à integridade moral, mal é preciso dizer que o projeto é o fim da alma do hip-hop.
                      Chega a ser engraçado que o projeto invoque a Constituição e os direitos humanos, pois ele restringe o básico: o livre exercício de uma prática cultural.
                      Agora, apesar de meu temperamento anárquico, pensando bem, acho que sou a favor de ao menos um curso de capacitação obrigatória. Proponho que seja instituído um curso de capacitação para candidatos a todo cargo legislativo: só dois anos, uma das matérias sendo um apanhado básico de história das ideias sociais e políticas.
                      Um seminário de primeiro ano poderia ser sobre o surgimento, no século 18, da ideia de que é preciso legislar para proteger a liberdade e os direitos dos indivíduos, cuidando para que o Estado não se meta à toa na organização das vidas e que a extensão de sua intervenção seja sempre a mínima indispensável.
                      Eu me ofereceria para dar esse seminário e preparar a apostila, traduzindo o essencial --tudo de graça, mas, infelizmente, não sei qual curso eu deveria fazer antes, para me capacitar.

                      quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

                      "Nós não perseguimos nazistas, nós perseguimos assassinos", dizem promotores alemães

                      "Nós não perseguimos nazistas, nós perseguimos assassinos", dizem promotores alemães

                      Benjamin Schulz
                      Promotores alemães estão atualmente preparando a apresentação de queixas contra vários homens que teriam sido cúmplices de assassinatos em Auschwitz. Algumas pessoas na Alemanha se perguntam se justiça ainda pode ser feita quase 70 anos depois da guerra.
                      Poderia proporcionar alguma satisfação, mas ela provavelmente será pequena e virá tarde demais. Décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial, os promotores públicos em Stuttgart, Frankfurt e Dortmund abriram investigações contra nove idosos que supostamente teriam sido cúmplices de assassinato em Auschwitz.
                      Os procedimentos legais ainda estão nos estágios iniciais e os homens ainda não foram formalmente indiciados. Dada a idade avançada dos homens e as acusações potenciais, é no mínimo curioso o fato de juízes terem ordenado a prisão de três suspeitos em Baden-Wurttemberg, que agora estão detidos em hospitais-prisão. Nesses casos, o risco deles cometerem crimes adicionais pode ser descartado. Além disso, eles dificilmente apresentam risco de fuga e é improvável que escondam evidência.
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                      Homenagens marcam o Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto13 fotos

                      12 / 13
                      27.jan.2014 - Homem visita memorial coberto de neve em Berlim no Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. O genocídio promovido pelo regime nazista é lembrado na data de libertação do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, há 69 anos Leia mais Markus Schreiber/AP
                      Os detalhes precisos dos casos deles variam, mas as intenções dos investigadores permanecem as mesmas: eles querem indiciar e julgar os homens por crimes que teriam cometido na juventude.
                      Alguns críticos dos procedimentos estão dizendo que é hora de um basta. A guerra acabou há 70 anos, esses homens estão fragilizados e, em alguns casos, até mesmo sofrem de demência. Na melhor das hipóteses, lhes restam poucos anos de vida. Essas vozes argumentam que eles deveriam ser deixados em paz e que os promotores públicos deveriam cuidar de problemas atuais.
                      "Eu entendo que em alguns casos as pessoas não achem que esses procedimentos são justos", disse Kurt Schrimm, chefe do gabinete da promotoria especial em Ludwigsburg, que se concentra nos crimes de guerra alemães cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. Ele diz que muitos "consideram nosso trabalho como sendo anacrônico". Mas, ele acrescenta, ele tem recebido muitas mensagens de apoio.
                      Do ponto de vista legal, há dois argumentos para rebater os céticos. Segundo a lei criminal alemã, não há limite máximo de idade para julgar alguém. Além disso, homicídio não é um crime sujeito a prescrição. Os promotores públicos são obrigados a perseguir os suspeitos e não lhes é permitido discrição.
                      O argumento moral é formulado por Andreas Brendel, que comanda a unidade central de investigação de crimes de guerra em Dortmund desde 1995. Ela já cuidou de dezenas de casos como esses, incluindo alguns poucos ligados a campos de extermínio. Ele também é responsável por um dos atuais casos. "Nós temos uma obrigação com as famílias das vítimas e com as próprias vítimas de buscar isso", ele disse. "Isso é incontestável. Não importa para mim se o acusado tenha 25 ou 92 anos. As pessoas acham honestamente que não deveríamos processar pessoas que fizeram parta da máquina nazista?"
                      Schrimm também responde aos céticos. "Nós deveríamos nos abster de processar agora só porque não conseguimos processá-los no passado?", perguntou. Ele cita o exemplo de um caso no qual as listas de transportes para Auschwitz foram peças de evidência decisivas. "Elas incluíam tanto bebês de seis meses quanto idosos", disse Schrimm. "Os perpetradores na época não tinham nenhuma compaixão, de modo que é justo perguntar se eles merecem alguma piedade hoje."

                      A culpa individual deve ser provada?

                      Nos casos em que as investigações se tornam acusações e vão a julgamento não é incomum os promotores perderem. Em alguns casos, o julgamento é suspenso e as acusações são retiradas, como no caso de um ex-membro da SS, Siert B., que foi absolvido por um tribunal em Hagen em janeiro. Os promotores acreditam que ele assassinou um membro da resistência holandesa em 1944, mas os juízes o absolveram citando falta de evidência.
                      Em outros, o réu morreu antes do veredicto ser proferido, como aconteceu no caso de John Demjanjuk. Ele morreu em março de 2012, antes do Tribunal Federal de Justiça da Alemanha proferir a decisão final de sua apelação de uma condenação pela acusação de ser cúmplice no assassinato de 28 mil pessoas.
                      O caso Demjanjuk é digno de nota porque marcou um momento de virada. Apesar dos promotores não terem conseguido provar envolvimento direto, um tribunal regional de Munique condenou Demjanjuk após ter concluído que todo guarda no campo de extermínio de Sobibór que cumpriu seus deveres foi cúmplice nos assassinatos.
                      Antes, a culpa individual era considerada necessária para uma condenação. Essa ao menos era a percepção da comunidade legal após uma decisão de 1969 do Tribunal Federal de Justiça, na qual a condenação de um dentista de um campo de concentração da SS, Willi Schatz, foi anulada. Mas o Tribunal Federal de Justiça também chegou a outros veredictos que abriram a porta para considerar os guardas culpados. Milhares de casos não tiveram andamento por causa da abordagem legal conservadora do gabinete da promotoria especial.
                      Diante da dificuldade extrema em provar a culpa individual décadas depois, muitos processos foram abandonados. Mas se os argumentos legais feitos pelo tribunal regional de Munique na condenação de Demjanjuk fossem aplicados a outros casos, haveria uma nova chance de conseguir as condenações.

                      "Nosso trabalho não é político"

                      Atualmente, documentos estão sendo revistos em várias investigações de suspeitos de serem criminosos nazistas, que foram encerradas pelos promotores por sentirem que havia pouca chance de condenação.
                      Em alguns casos, os investigadores não estavam cientes de material potencialmente incriminador. "Eu nem mesmo sabia que ainda existiam listas de perpetradores antes da unidade de investigação de crimes de guerra nazistas entregar material para mim", disse Brendel. "O mesmo se aplica a outros promotores públicos. Poderia ser debatido se alguém deveria ou não ter olhado mais atentamente essas listas 25 ou 30 anos atrás."
                      Certamente as investigações de crimes nazistas tiveram um começo lento na Alemanha pós-guerra. Até 1950, os aliados que ocupavam o país se encarregaram de processar os crimes nazistas. Depois disso, "havia a suposição de que o assunto seria resolvido em questão de poucos anos", ele disse, porque o prazo para prescrição de um crime de homicídio era de 20 anos, o que significava que os crimes nazistas teriam que ser julgados até 1965. Posteriormente, a prescrição foi ampliada para 30 anos e depois eliminada.
                      Também há casos que só vieram à tona décadas depois. Em 1997, Schrimm se envolveu na investigação de crimes nazistas na condição de promotor. A pista veio na forma de um cartão postal que incluía informação sobre "um crime do qual ninguém ainda sabe". O perpetrador acabou sendo processado mais de 50 anos após o fim da guerra.
                      Schrimm rejeita a afirmação repetida com frequência de que a Justiça alemã fechou seus olhos para suspeitos, adiou intencionalmente os procedimentos ou até mesmo ignorou alguns casos. "É tolice dizer que faltou vontade política", ele disse.
                      O Ministério da Justiça alemão declara que foram 106 mil processos relacionados a crimes nazistas. Algumas estimativas chegam até a 170 mil. "Realmente não dá para dizer que a Justiça dormiu no trabalho", disse Schrimm. Ele também defende contra a insinuação de que os procedimentos são motivados por alguma agenda pré-estabelecida. "Nosso trabalho não é político", disse. "Eu não gostaria se eu fosse descrito como um caçador de nazistas. Nós não perseguimos nazistas, nós perseguimos assassinos."
                      Diferente dos anos 50, hoje nós sabemos que em breve os processos contra suspeitos de serem criminosos de guerra nazistas chegará ao fim; os últimos perpetradores vivos em breve morrerão de velhice. Ao ser perguntado se, a essa altura, os promotores públicos ficarão expostos a acusações de que permitiram que os nazistas escapassem impunes por seus crimes de guerra, ele dá uma resposta circunspecta. "Falando objetivamente, erros foram cometidos ao longo de décadas, a partir de 1950", disse Schrimm. "O Judiciário não pode dar um tapinha em suas próprias costas."
                      Tradutor: George El Khouri Andolfato