sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Tribunais não são capazes de acabar com guerras civis

Tribunais não são capazes de acabar com guerras civis

Por Thabo Mbeki e Mahmood Mamdani
  • AFP/Carl de Souza
    Pessoas deslocadas internamente (PDIs) carregam água enquanto caminham em direção à entrada de uma missão das Nações Unidas na República do Sudão do Sul (UNMISS), com base em Malakal, nesta quinta-feira (6). Em seus combates recentes, o país tem visto ondas de ataques de vingança brutal, como lutadores e milícia étnica usando a violência para saquear e acertar velhas contas. As Nações Unidas e os ativistas de direitos humanos têm relatado que atrocidades horríveis foram cometidas por ambos os lados
    Pessoas deslocadas internamente (PDIs) carregam água enquanto caminham em direção à entrada de uma missão das Nações Unidas na República do Sudão do Sul (UNMISS), com base em Malakal, nesta quinta-feira (6). Em seus combates recentes, o país tem visto ondas de ataques de vingança brutal, como lutadores e milícia étnica usando a violência para saquear e acertar velhas contas. As Nações Unidas e os ativistas de direitos humanos têm relatado que atrocidades horríveis foram cometidas por ambos os lados
O conflito no Sudão do Sul é apenas o mais recente exemplo de violência extrema que eclodiu após o colapso da ordem política. Mas, em vez de priorizar a reforma política, a comunidade internacional tende a se concentrar em criminalizar os autores da violência.

Desde o final da Guerra Fria, o mundo considera os Julgamentos de Nuremberg um modelo de resolução de problemas para eventos de extrema violência, uma vez que os julgamentos penais internacionais são a resposta preferencial a esse tipo de conflito. Essa crença comum deveria ter sido objeto de escrutínio nos últimos meses, após um número crescente de países membros da União Africana ter defendido sua retirada do Tribunal Penal Internacional. Em vez disso, o debate se concentrou nos motivos dos líderes africanos, e não na inadequação dos processos judiciais como resposta à violência em massa politicamente motivada.

O Tribunal Penal Internacional foi criado de acordo com o modelo do Tribunal de Nuremberg. Mas a violência em massa é uma questão mais política do que criminal. Ao contrário da violência criminal, a violência política envolve um eleitorado e é impulsionada por questões variadas, e não apenas pelos autores dos crimes.

A alternativa mais clara ao modelo de Nuremberg desde que esses julgamentos terminaram, em 1949, é o complexo conjunto de negociações conhecido como a Convenção para uma África do Sul Democrática (Codesa, pelas iniciais em inglês), que pôs fim ao apartheid na década de 1990. As negociações da Codesa envolveram o Partido Nacional, então no poder, o Congresso Nacional Africano (CNA) e várias organizações políticas. Por meio dessas negociações foi possível elaborar uma constituição que inauguraria uma nova ordem política pós-apartheid. A lição da Codesa é que, às vezes, é preferível suspender a questão da responsabilidade penal até que o problema político subjacente seja abordado.

Já Nuremberg fez parte de uma lógica contrária. Em um curto período de tempo, os aliados realizaram a limpeza étnica mais abrangente da história da Europa, não apenas redesenhando fronteiras, mas também deslocando milhões de pessoas através das fronteiras nacionais. O princípio primordial era o de que deveria haver um lar seguro para os sobreviventes. O termo "sobrevivente" era, por si só, uma inovação pós-holocausto: ele se aplicava às vítimas de ontem. Supunha-se então que os interesses das vítimas deveriam ser sempre colocados em primeiro lugar na nova ordem política.

Fundamental para o tipo de justiça praticada em Nuremberg era a suposição amplamente compartilhada de que não havia necessidade de que vencedores e perdedores (ou criminosos e vítimas) vivessem juntos após a vitória de um dos lados.
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Crise política vira conflito étnico no Sudão do Sul36 fotos

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16.jan.2014 - Crianças sul-sudanesas dividem a comida em acampamento próximo à fronteira de Joda, na localidade de Jableen. O embate entre as forças do presidente Salva Kiir e as do ex-vice-presidente Riek Machar é motivado pela disputa política e rivalidades étnicas Mohamed Nureldin Abdallah/Reuters

Mas os brancos e os negros da África do Sul tinham de viver juntos em um único país – assim como os hutus e os tutsis tinham que conviver após o genocídio em Ruanda.

As conversações da Codesa na África do Sul representaram o reconhecimento por parte de ambos os lados de que sua opção preferida já não estava disponível: nem a revolução (para os movimentos de libertação), nem a vitória militar (para o regime). Os dois lados foram rápidos em perceber que, quando se ameaça colocar seus oponentes no banco dos réus, eles não têm nenhum incentivo para se envolver em reformas.

Então, em vez de criminalizar ou demonizar o outro lado, como seria tentador fazer, os dois se sentaram para conversar. O processo foi pontuado por confrontos sangrentos, como o assassinato do popular líder do Partido Comunista Sul-Africano, Chris Hani, mas o resultado final descriminalizou os supostos responsáveis e os incorporou à nova ordem política. Dessa maneira, os inimigos mortais de ontem tornaram-se meros adversários.

Assim como a violência na África do Sul no início da década de 1990 era um sintoma de divisões profundas, o mesmo é válido em relação à extrema violência detectada nos dias de hoje no Quênia, no Congo, no Sudão e no Sudão do Sul. Julgamentos ao estilo dos de Nuremberg não são capazes de curar essas divisões. O que precisamos é de um processo político conduzido pela firme convicção de que não podem haver vencedores nem vencidos, apenas sobreviventes.

A transição da África do Sul foi precedida por um acordo político em Uganda ao final da guerra civil do país, que durou de 1980 a 1986. A solução política assumiu a forma de um acordo de partilha de poder, conhecido como "base ampla", que deu cargos ministeriais aos grupos de oposição (incluindo os principais membros do regime de Idi Amin) que concordassem em renunciar à violência.

O processo de paz em Moçambique descriminalizou o Renamo, um grupo de guerrilha oposicionista que era apoiado e aconselhado pelo regime do apartheid e cujas práticas incluíam o recrutamento de crianças soldados e a mutilação de civis. Os comandantes e os principais membros do Renamo foram trazidos para o processo político e convidados a concorrer nas eleições nacionais e locais.
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República Centro-Africana vive conflitos entre muçulmanos e cristãos83 fotos

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9.dez.2013 - Um homem ferido espera por socorro durante uma operação de desarmamento executada por soldados franceses em Bangui, na República Centro-Africana, nesta segunda-feira (9). Tropas francesas ocupam postos de controle na capital e procuram por armas em uma operação para desarmar rivais cristãos e mulçumanos, responsáveis por centenas de mortes desde a semana passada Leia maisSia Kambou/AFP

O acordo de "base ampla" em Uganda, a transição sul-africana e a resolução do pós-guerra em Moçambique foram alcançados antes de o Tribunal Penal Internacional ter sido criado.

Há um tempo e um lugar para os tribunais, como na Alemanha após o nazismo – mas não em meio a um conflito ou em um sistema político que não funciona. Os tribunais não servem para inaugurar uma nova ordem política após guerras civis, pois eles só podem entrar em ação depois que a nova ordem já estiver em vigor.

Como os julgamentos criminais são movidos pela lógica do "vencedor fica com tudo" – ou você é inocente ou você é culpado –, aqueles que são considerados culpados e são punidos como criminosos têm seu direito à vida negado em meio à nova ordem política. E esse pode ser um resultado perigoso, como os sul-africanos de ambos os lados perceberam quando se sentaram para negociar o fim do apartheid.

Nas guerras civis, ninguém é totalmente inocente e ninguém totalmente culpado. E a violência extrema raramente é um ato isolado. Mais frequentemente do que não, ela faz parte de um ciclo de violência. As vítimas e os agressores muitas vezes trocam de lugar, e cada lado tem uma narrativa de violência. Reivindicar simplesmente a justiça das vítimas, como faz o Tribunal Penal Internacional, é arriscar a continuação da guerra civil.

Os direitos humanos podem ser universais, mas os erros humanos são específicos. Pensar profundamente sobre os erros humanos é lutar contra os problemas que dão origem a atos de extrema violência, o que significa se fixar menos nos autores dos crimes e em atrocidades específicas e ficar mais alerta para as questões que impelem os ciclos contínuos de conflito, dos quais as comunidades precisam se livrar. Para que isso aconteça, não se pode ficar rotulando permanentemente quem são as vítimas ou os agressores. Em vez disso, deve haver um processo político no qual todos os cidadãos – vítimas, agressores e espectadores de ontem – sejam capazes de encarar uns aos outros como os sobreviventes de hoje.

A maioria das sociedades colonizadas experimentou, em algum momento, uma ou outra forma de guerra civil – muitas vezes, como resultado de debates sobre quem foi cúmplice do domínio colonial e quem não foi. Essas sociedades tendem a apresentar rachas com mais frequência quando se tenta definir quem pertence ou não pertence à nação, e quem se qualifica para conseguir a cidadania.

Os Estados Unidos também tiveram uma guerra civil. Os problemas do país já eram visíveis quase um século antes, no momento da independência. Os norte-americanos fariam bem em lembrar que a liderança política de seu país foi sábia o suficiente para descartar a realização de processos judiciais para os derrotados ao final da Guerra Civil e, em vez disso, optou pela reconstrução.

(Thabo Mbeki, presidente da África do Sul entre 1999 e 2008, atuou como enviado da União Africana no Sudão e no Sudão do Sul. Mahmood Mamdani é diretor executivo do Instituto de Pesquisa Social Makerere, em Kampala, Uganda, e professor da Universidade de Columbia).
  • A violência armada entre grupos rivais está provocando o deslocamento de milhares de famílias
Tradutor: Cláudia Gonçalves

Lobby do tabaco na Justiça é nefasto e atrasa o país - Vera Luiza da Costa e Silva

folha de são paulo
VERA LUIZA DA COSTA E SILVA
Lobby do tabaco na Justiça é nefasto e atrasa o país
Brasileira que chefiará a Convenção-Quadro Contra o Tabaco critica a pressão da indústria
FLÁVIA FOREQUEJOHANNA NUBLATDE BRASÍLIAA partir de junho, uma brasileira terá a tarefa de organizar as discussões e práticas mundiais relacionadas às políticas antitabagistas.
A carioca Vera Luiza da Costa e Silva, 62, estará à frente do secretariado da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, tratado internacional negociado sob patrocínio da OMS (Organização Mundial da Saúde) em vigor desde 2005. Nos próximos quatro anos, ela trabalhará na sede da OMS em Genebra.
Coordenadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz), Silva critica o que vê como "lobby nefasto" da indústria do tabaco no Judiciário, que conseguiu suspender o veto da Anvisa aos aditivos de sabor.
Ela defende que o Brasil se articule para barrar o comércio ilícito de cigarros e, para isso, vê como fundamental o engajamento do novo ministro da Saúde, Arthur Chioro.
Folha - Como a sra. avalia a atuação do Brasil no combate ao tabagismo?
Vera Luiza da Costa e Silva - Tem avançado muito no controle do tabagismo. O país não se furtou a fazer o que precisava, mas algumas áreas estão um pouco lentas.
Uma é a regulação da lei [federal] de 2011 que cria ambientes livres de fumo e encaminha a proibição da publicidade nos pontos de venda.
Outra é a definição do papel regulatório da Anvisa na área do tabaco, que vem sendo questionado. É preciso que haja uma mensagem clara do Judiciário de que a Anvisa pode e deve regular todos os produtos legais de consumo que afetam a saúde do brasileiro.
Uma terceira é a interferência da indústria do tabaco sobre as políticas governamentais. A indústria possui lobistas para impedir que regulações mais restritas passem, e vem tentando corromper o Judiciário para impedir que a proibição dos aditivos [estabelecida pela Anvisa em 2012] entre em vigor. E ela precisa entrar. É pelas nossas crianças que temos que fazer isso.
Esse lobby da indústria é nefasto e coloca o país para trás. Ele torna o Brasil cada vez mais subdesenvolvido.
Há chances de o país avançar nas políticas em ano eleitoral?
Ainda há tempo hábil para que essa regulação [dos ambientes livres de fumo] seja assinada [pelo governo federal]. Até onde eu sei, essa regulamentação já está pronta. É uma questão de se dar prioridade a isso. A Anvisa apoiou, no final do ano, a adoção das embalagens genéricas do cigarro, mas qual é a chance de uma medida polêmica como essa prosperar?
Como classificar as políticas antitabagistas brasileiras no contexto internacional?
Apesar da pressão da indústria no Brasil, continuamos na vanguarda. Temos desafios: o comércio ilícito do tabaco, ajustar o tratamento dos fumantes e não se deixar influenciar pelo lobby da indústria, que usa grupos de fachada. Ela tem usado plantadores de fumo, como se [adotar medidas restritivas ao tabaco] fosse influenciar a política econômica, diminuindo a demanda pelo produto e a oferta de trabalho. Não é verdade: a maior parte do fumo brasileiro é exportado.
O governo tem que estimular as políticas de diversificação e substituição das culturas. Isso é um grande passo.
Qual é o peso do comércio ilícito? E como o protocolo sobre o tema, adotado na Convenção-Quadro, pode ajudar?
O comércio ilícito é um problema que transcende fronteiras. O Brasil é o maior exportador de fumo em folha do mundo e exporta para países vizinhos, que têm, na divisa com o Brasil, fábricas que manufaturam os cigarros, que voltam ilegalmente para o Brasil, estimulando o consumo pelo preço mais baixo e aumentando a criminalidade.
Não vai haver solução sem que o país se articule com Uruguai, Paraguai, Argentina e Bolívia. A tônica do protocolo de comércio ilícito [adotado no âmbito da Convenção-Quadro, mas que precisa ser ratificado por 40 países para entrar em vigor] está na cooperação internacional.
É muito importante que esse protocolo entre em vigor o quanto antes para que se criem sistemas de monitoramento do caminho desses produtos de tabaco. É nisso que está a necessidade de o Brasil manifestar seu apoio ao tratado e ratificar o tratado.
O novo ministro da Saúde [Arthur Chioro] tem de incentivar esse tipo de processo. Se a Saúde não fizer pressão, outros setores dificilmente vão ser convencidos a fazer isso.

    OUTRO LADO
    "Não há lobistas, mas, sim, uma indústria legal"
    DE BRASÍLIA
    Por meio de sua assessoria, a Souza Cruz afirmou que "não há lobistas', e sim uma indústria legalmente estabelecida e que gera cerca de 200 mil empregos".
    "Todos têm direito de se manifestar e de defender suas opiniões e interesses e levar para apreciação do Judiciário as legislações que julguem inconstitucionais, desproporcionais ou que não levem em conta o mercado ilegal de cigarros, que vem aumentando a cada ano e traz enormes prejuízos à sociedade."
    Por fim, afirma que a empresa fabrica seus produtos para adultos que decidiram fumar por livre escolha, conscientes dos riscos associados.
    A Abifumo (Associação Brasileira da Indústria do Fumo) e a Philip Morris não quiseram comentar.
    RAIO-X VERA DA COSTA E SILVA
    FORMAÇÃO
    Medicina pela USP, doutorado em saúde pública e epidemiologia pela Fiocruz
    CARREIRA
    Atuou na prevenção e vigilância do câncer do Inca (Instituto Nacional de Câncer) por 15 anos; de 2001 a 2005, dirigiu o departamento de controle do tabagismo da OMS, acompanhando a elaboração da Convenção-Quadro; em 2013, tornou-se coordenadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde (ENSP/Fiocruz)

      Helio Schwartsman

      folha de são paulo
      Esqueceram o principal
      SÃO PAULO - Houve um tempo em que os ditos setores progressistas pautavam suas ações por filosofias coerentes. Assim, advogados da infância buscavam promover os interesses das crianças, feministas visavam a afirmar a autonomia das mulheres e militantes dos direitos de homossexuais tentavam acabar com a discriminação contra gays, mas sem perder de vista teses mais gerais da esquerda não marxista, que incluíam a ampliação das liberdades e a despenalização do direito.
      As coisas mudaram. E para pior, a meu ver. Hoje, os defensores das criancinhas deblateram para que o Congresso mantenha um mecanismo jurídico que permite mandar para a cadeia o pai que não paga em dia pensão do filho. Pouco importa que a prisão por dívidas represente um retrocesso de 2.600 anos --uma das reformas de Sólon que facilitou a introdução da democracia em Atenas foi justamente o fim da servidão por dívidas-- e que é quase certo que, encarcerado, o pai da criança terá muito menor probabilidade de honrar seus compromissos financeiros.
      As feministas agora apoiam o acórdão do Supremo Tribunal Federal que retirou das mulheres o direito de decidir se querem ou não processar companheiros, tornando agressões leves no âmbito do lar um crime de ação pública incondicionada. Pouco importa que isso torne as mulheres menos livres e introduza uma diferenciação de gênero (na situação inversa, um homem pode decidir se processa ou não).
      Por fim, homossexuais pedem a edição de uma lei que torne crime referir-se a gays em termos depreciativos ou condenatórios. Pouco importa que tal medida, se adotada, representaria uma limitação da liberdade de expressão, o mais fundamental dos princípios democráticos.
      É natural que grupos de ativistas se especializem e, ao fazê-lo, percam de vista as grandes questões, mas fico com a impressão de que estão colocando a parte à frente do todo.

      Juventudes e lazer - Maria Alice Setubal

      folha de são paulo
      MARIA ALICE SETUBAL
      Juventudes e lazer
      Parece inócuo discutir os "rolezinhos" de forma isolada e desarticulada, já que as desigualdades estão expressas em outras dimensões
      Vivemos a era do excesso de estímulos e do consumo, da exacerbação da percepção e do instantâneo. Os jovens de diferentes classes e segmentos sociais são expostos a uma avalanche de informações mediada pelo discurso dos meios de comunicação e convivem com uma diversidade de recursos visuais e auditivos.
      Diferentes estudos têm indicado de que forma esse contexto define novas formas de inserção dos jovens na sociedade contemporânea. Eles querem ter liberdade na busca das aprendizagens que lhes pareçam significativas e adequadas. Procuram colaboração em seus relacionamentos e querem integrar lazer e jogos ao trabalho e aos estudos.
      Algumas questões precisam emergir: como jovens moradores das periferias, que passaram a ter acesso a essas informações e valores, vivenciam essas experiências? Qual cidade queremos e quais políticas públicas para as juventudes podem responder a esses questionamentos? As respostas não estão prontas. É necessário profundo conhecimento sobre como as desigualdades se manifestam e um debate amplo para superação desse cenário.
      Os "rolezinhos" têm sido objeto de análises e propostas que enfatizam a necessidade de criação de espaços de lazer para a juventude. No entanto, me parece inócuo discutir esse tema de forma isolada e desarticulada, já que as desigualdades estão expressas em outras dimensões.
      A articulação das políticas de educação, cultura, saúde, segurança e trabalho, entre outras dimensões, é imprescindível para a efetividade das políticas para as juventudes. Estabelecer conexões entre o local e o global, reconhecer as aspirações e anseios das diversas juventudes que compõem esse segmento e diagnosticar as potencialidades dos territórios são pressupostos.
      Ações empreitadas por organizações da sociedade civil podem nos dar valiosos insumos para formulação de políticas. Um dos principais diferenciais está na concepção dos projetos em que os jovens são coautores de ações junto às suas comunidades. Outro aspecto relevante é a apropriação da cidade como central na formação de jovens.
      Destaco os programas Jovens Urbanos, coordenado pelo Cenpec; Mundo Jovem, Jovem Comunica e Luteria, da Fundação Tide Setubal; Virando o Jogo, da Fundação Gol de Letra; e Rede Potiguar de Televisão Educativa e Cultural, do Centro de Documentação e Comunicação Popular. São exemplos da possibilidade de se mudar a lógica do "fazer para" para o "fazer com", o que faz toda a diferença.
      Aprender com esses projetos significa caminharmos para a construção de uma cidade sustentável e educadora, que requer a instauração de processos de escuta, de participação efetiva de todos os segmentos da sociedade, considerando-se as estratégias proporcionadas pelo advento das tecnologias e das novas formas de participação.
      A equação entre a construção de uma nova lógica para a cidade e a integração das políticas da juventude que levem em conta os anseios de liberdade, protagonismo, lazer e o estabelecimento de relacionamentos parece ser o rumo para combater as desigualdades e o preconceito e discriminação delas decorrentes.

      Marina Silva

      folha de são paulo
      Cidade urgente
      Os problemas da expansão urbana estão na conversa cotidiana dos milhões de brasileiros que vivem em grandes cidades e sabem "onde o sapato aperta". São reféns do metrô e do ônibus, das enchentes, da violência, da precariedade dos serviços públicos. No vestibular, todo estudante depara com a "questão urbana" e os pesquisadores se debruçam sobre o assunto, que também é parte significativa da pauta nos meios de comunicação.
      Não poderia ser diferente: com 85% da população nas cidades (chegará a 90% ao final desta década), quem pode esquecer a relevância do tema?
      Parece incrível, mas os grandes operadores do sistema econômico e político tratam os problemas das cidades como grilos que irritam ao estrilar. Passados os incômodos de cada crise, quem ganha dinheiro no caos urbano toca em frente seus negócios e quem ganha votos, sua campanha. Só alguns movimentos populares e organizações civis --Passe Livre, Nossa São Paulo e outros-- insistem em plataformas, debates e campanhas para enfrentar os problemas e encontrar soluções sustentáveis.
      A criação do Ministério das Cidades, no governo Lula, fazia supor que o Brasil enfrentaria o desafio urbano, integrando as políticas públicas no âmbito municipal, estabelecendo parâmetros de qualidade de vida e promovendo boas práticas. Passados quase 12 anos, o ministério é mais um a ser negociado nos arranjos eleitorais.
      A gestão é fragmentada, educação para um lado e saúde para outro, habitação submetida à especulação imobiliária, saneamento à espera de recursos que vão para grandes obras de fachada, transporte inviabilizado por um século de submissão ao mercado do petróleo. A fragmentação vem do descompasso entre União, Estados e municípios, desunidos por um pacto antifederativo, adversários na disputa pelos tributos que se sobrepõem nas costas dos cidadãos.
      Os recentes conflitos em várias capitais, o protesto nos trens do Rio e agora no metrô de São Paulo indicam que a paciência da população já esgotou e as autoridades nem percebem, pois atribuem o caos à ação de sabotadores e continuam complacentes com o mau serviço.
      Precisamos superar essa lógica restrita. Temos que construir um novo federalismo feito de autonomia e responsabilidades compartilhadas no enfrentamento dos problemas reais, entre eles a qualidade de vida nas cidades.
      Uma nova gestão urbana pode nascer com a participação das organizações civis e movimentos sociais que acumularam experiências e conhecimento dos moradores das periferias e usuários dos serviços públicos. Quem vive e estuda os problemas, ajuda a achar soluções.
      Com urgência, pois, ao contrário do que dizem, pior do que está pode ficar.

      Ruy Castro

      folha de são paulo
      Maconha comestível
      RIO DE JANEIRO - No Estado americano do Colorado, onde o uso recreativo de maconha foi liberado, as crianças ainda sem idade para fumar não precisam passar sem a erva. Em Denver, sua capital, lojas dedicadas ao produto oferecem fascinantes derivados: compotas de pêssego e tangerina, drops de melancia, trufas de chocolate, barras de menta, biscoitos amanteigados, bolos, pirulitos e outros doces, todos enriquecidos em sua preparação com uma calda de maconha. Deu no "New York Times" de 31/1.
      Os médicos, professores e associações de pais não ficaram tão empolgados. Seus filhos lhes apareceram sonolentos, desorientados, babando e com respiração difícil. Levados ao hospital, testaram positivo para THC (tetraidrocanabinol), que é a substância psicoativa da droga. A ideia de tornar a maconha comestível surgiu para atender usuários impedidos de fumá-la em certos ambientes e pessoas com dificuldade para engolir fumaça. Era inevitável que seu uso atraísse outros interessados.
      As lojas alegam que é difícil manter esses produtos fora do alcance dos menores. Eles não estão impedidos de comprá-los e, mesmo que estivessem, sempre haveria quem comprasse por eles. Uma medida imposta pelas autoridades, proibir que as embalagens mostrassem personagens tipo Piu-Piu ou Pica-Pau, revelou-se inócua. Resta o preço, diz o "Times": uma única bala de maconha custa o equivalente a um saco de balas comuns.
      Intelectuais ativistas da liberação desprezam o fato de que a maconha atual contém dez vezes mais THC que a dos anos 60 --ou seja, Bob Marley precisaria fumar dez baseados para valer um fumado hoje por Justin Bieber. Talvez por isso os médicos não a recomendem para crianças.
      Mas, como a tendência parece irreversível, podemos esperar pelas novas redes de junk food: a Hashishburger, McHemp e Kentucky Fried Skunk.

        José Simão

        folha de são paulo
        Ueba! O Galinheiro dos Bambis!
        'Fumaça obriga Metrô a esvaziar trem'. Foram os vândalos orquestrados que fizeram fogueira! Rarará!
        Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Prenderam o Pizzolato.
        E todos os trocadilhos de pizza com pizzolato já foram feitos! Diz que ele foi preso porque pediu uma napolitana sem tomate! Aí o dono da pizzaria gritou: "Carabiniere! Carabiniere!". Eu não quero esse Pizzolato. Pode deixar na Itália mesmo! Eu quero dois tênis da Prada! Esse é o meu pedido às autoridades italianas: dois tênis da Prada! Troco o Pizzolato por dois tênis da Prada! Ou então troca pelo Sarney! Rarará! Tudo é o Sarney mesmo!
        E o meu São Paulo? Vai contratar o Pato. Vai virar um galinheiro. Daqueles de fundo de quintal! O Galinheiro dos Bambis: Pato, Ganso, os frangos do Ceni e a cara de galo véio do Muricy!
        E sabe qual a semelhança entre o Pato e o Ganso? Ambos estão bichados! Rarará! Bichos bichados!
        O Pato é desastrado como um ganso e o Ganso é mais lento que um pato. E nós vamos pagar o pato! E afogar o ganso! Rarará! Acho que o São Paulo está cometendo um avicídio! "Corinthians e São Paulo trocam Jadson por Pato". E ambos fizeram um péssimo negócio!
        E o Corinthians? Diz que o Mano bateu um recorde: deu quatro seguidas. Negativas, mas deu! E o site FuteboldaDepressão fez um versinho: "O Ribéry é francês/ O Tevez é argentino/ Enquanto você lia/ Gol do Bragantino". Perdeu do Bragantino, a terra da linguiça. Os manos levaram uma linguiça.
        Mas também, o goleiro do Bragantino se chama Rafael Defendi! E aí um corintiano fez gol contra! Não conseguia bater no Defendi, fez um gol contra!
        E outro milagre: o Botafogo conseguiu lotar um estádio. Diz que o Botafogo terceiriza torcida. Eles têm uma empresa de contratação de torcedores. Pra fazer olas e mosaicos! "Contrata-se torcedores para olas e mosaicos". Rarará! E diz que o Botafogo achou o Wally! o Wallyson! Rarará! É mole? É mole, mas sobe!
        E um aviso ao secretário de Transportes de SP: hoje, às sete da manhã, a plataforma da estação Sé do Metrô estava lotada de vândalos orquestrados! Rarará! Não é ele que tá chamando os usuários de metrô de vândalos orquestrados?!
        E mais essa: "Fumaça obriga Metrô a esvaziar trem". Foram os vândalos orquestrados que fizeram uma fogueira! Rarará!
        Nóis sofre, mas nóis goza. Hoje, só amanhã
        Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

        Quando decidiu fazer "12 Anos de Escravidão", o cineasta britânico Steve McQueen, 44, queria sanar uma lacuna na filmografia sobre o tema

        folha de são paulo
        Livro de Northup traz relato cru da barbárie da escravidão
        ELEONORA DE LUCENADE SÃO PAULOCães ferozes, jacarés sorrateiros ou homens embrutecidos? Solomon Northup não sabia o que mais temer.
        Desesperado, buscava fugir das correntes e dos chicotes que lhe incendiavam o corpo. Tentou nadar, escapar pelo pântano, ultrapassar a mata de troncos intrincados. Não conseguiu.
        Tal como figura kafkaniana, ele se viu enredado num roteiro perverso que durou 12 anos. Descendente de escravo, gostava de ler e tocar violino. Labutava na lavoura e desempenhava várias tarefas no norte dos Estados Unidos, onde já vigorava o pagamento de salário.
        Casado, tinha três filhos. Era um homem livre negro que buscava trabalho.
        Foi sequestrado e vendido como escravo aos 32 anos. Acordou acorrentado no meio da escuridão a poucos metros do Capitólio, no coração do poder, em 1841. Levado ao sul escravocrata de então, conheceu a rotina de crueldade nas fazendas de algodão que abasteciam a revolução industrial e a acumulação capitalista que fervilhava do outro lado do oceano.
        Resgatado na Louisiana em 1853, Northup contou sua saga em "Twelve Years a Slave", publicado em 1859. Foi um sucesso. O país estava nas vésperas da eclosão da Guerra Civil (1861-1865) que acabaria com a escravidão nos Estados Unidos. Agora essa história está nos cinemas.
        O livro, disponível em inglês gratuitamente na internet, é um testemunho cristalino da rotina das propriedades escravocratas.
        Northup relata as sequências de chibatadas e surras. Fala da comida péssima, do travesseiro de madeira, dos andrajos que usava. Conta histórias de famílias escravizadas e partidas.
        Descreve em detalhes como se organizava a produção nas fazendas. Lendo o texto, enxerga-se quais eram as dificuldades da colheita de algodão, como os movimentos do corpo deviam ocorrer para a produtividade aumentar, onde ocorriam os erros, as perdas que provocavam mais e mais punições aos trabalhadores.
        Nesse cotidiano extenuante, noites de lua cheia eram de trabalho estendido aos escravos. Alguns ensaiavam fugas para, após serem recapturados e punidos com severidade, experimentar algumas horas de descanso.
        O texto é simples, mas não simplório ou superficial. Quase jornalístico e em ritmo de diário, o relato de Northup tem vigor e consegue tecer suspenses. Sem rodeios, ele expõe os seus conflitos e tensões. Trata de como foi forçado a espancar uma escrava e de seus argumentos contra rebeliões tramadas.
        Como se destacou ao saber tocar violino, ele foi obrigado a trabalhar em festas na região. Transitando entre propriedades, acabou colhendo impressões variadas que o ajudaram a construir um quadro histórico bem amplo e claro da realidade do sul escravocrata.
        Narra casos de personagens solidários e de surtos de ira de patrões embriagados --para ele, pessoas brutalizadas pela escravidão.
        Assim, mostra algumas das contradições daquela sociedade que logo iria desmoronar com a Guerra de Secessão. Uma autobiografia rara.

        Preenchendo o vazio
        Steve McQueen, que pode ser o primeiro negro a vencer Oscar de direção, fala sobre cenas de tortura e violência que dão o tom de '12 Anos de Escravidão'

        SILAS MARTÍDE SÃO PAULOQuando decidiu fazer "12 Anos de Escravidão", o cineasta britânico Steve McQueen, 44, queria sanar uma lacuna na filmografia sobre o tema, lembrando que há mais filmes sobre o Holocausto do que sobre os negros escravizados nas Américas.
        Mas acabou apontando também uma ausência marcante nas estatísticas de Hollywood ao se tornar um dos primeiros negros com chances reais de levar o Oscar de melhor diretor, uma categoria que teve só dois outros negros indicados até agora.
        "É um filme sobre onde estivemos, onde estamos e para onde vamos nesse debate sobre raça", diz McQueen, em entrevista à Folha. "É incrível ser indicado ao Oscar, e tenho orgulho de ser um diretor negro ali. Mas, além desse dado da minha cor, estou feliz que o filme seja reconhecido pelos meus pares."
        De fato, é grande a febre em torno do longa, que tem pré-estreia hoje em São Paulo. O filme, vencedor do Globo de Ouro de melhor drama e indicado a nove estatuetas no Oscar, vem arrancando elogios rasgados da crítica e liderou as bilheterias do Reino Unido.
        Baseado na história real de Solomon Northup, negro livre do norte dos Estados Unidos que foi sequestrado e vendido como escravo a fazendeiros do sul em 1841, "12 Anos" parece ter virado o filme definitivo sobre o horror infligido aos negros. E McQueen não pegou leve nas cenas de tortura.
        "Dizem que o filme é brutal, mas estou contando uma história sobre escravidão. É preciso mostrar a violência, não só física, mas psicológica também", diz o diretor. "E isso se aplica muito ao Brasil, onde a escravidão deixou um grande legado. Todos que virem o filme devem se confrontar com o próprio passado."
        Nesse ponto, McQueen parece ter deixado de lado a ousadia estrutural de filmes anteriores, como "Fome" (2008) ou "Shame" (2011), para arquitetar uma narrativa mais crua e convencional, de longos planos de tom realista.
        Muito do impacto de seu filme se alimenta também do atual momento histórico, com um negro na presidência dos Estados Unidos, e dos aniversários de 150 anos da abolição da escravidão no país e de 50 anos da marcha a Washington na luta pelos direitos civis dos negros.
        Também tem a ver com a força do elenco, em especial de Chiwetel Ejiofor, que vive Solomon Northup. Sua atuação, que alguns críticos chamaram de "minimalista", traduz a imagem do sofrimento, o que McQueen explica como tentativa de atingir um "tom formal rebaixado".
        Não é uma novidade para o diretor que, antes de se firmar como cineasta, trilhou carreira sólida nas artes visuais. A austeridade parece atravessar toda a sua obra.
        Depois da indigestão provocada pela mistura de gêneros de "Django Livre" (2012), de Quentin Tarantino, que dividiu a crítica ao retratar a vida de um escravo num faroeste, "12 Anos" surge como um antídoto, sinalizando que o assunto talvez esteja fresco demais na memória para ser parodiado.
        "Encontrei o Tarantino em Nova Orleans e conversamos muito sobre os dois filmes", conta McQueen. "Achei ótimo o filme dele. E ele disse esperar que o meu possa ir além de um faroeste."

        CRÍTICA DRAMA
        Com escravo culto como protagonista, longa busca identificação da classe média
        RICARDO CALILCRÍTICO DA FOLHAQuem viu os filmes anteriores do cineasta Steve McQueen irá se surpreender com "12 Anos de Escravidão". Como "Fome" (2008) e "Shame" (2011), seu novo filme é um drama intenso centrado em um protagonista submetido a condições extremas. Mas seu estilo de direção mudou significativamente.
        McQueen parecia, em seus dois primeiros longas, tão interessado em acompanhar seus personagens quanto em mostrar suas credenciais como diretor --o que resultava em firulas estéticas típicas dos "filmes de arte".
        McQueen está mais sóbrio, mais dedicado a seus personagens, a sua história. Estes elementos são mais que suficientes para garantir a contundência do filme.
        "12 Anos de Escravidão" acompanha a trajetória de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor, excepcional), cidadão livre do norte dos EUA que é sequestrado e vendido como escravo no século 19.
        As torturas a que Northup é submetido não são novidade, mas McQueen usa (às vezes abusa) dos detalhes gráficos e trabalha o tempo para reiterar a crueldade (em uma cena angustiante de quase quatro minutos, Northup é enforcado em uma árvore enquanto outras pessoas brincam à sua volta).
        Há um detalhe na trajetória de Northup que talvez ajude a explicar o sucesso do filme, suas indicações ao Oscar.
        Nascido e criado livre, ele era um homem culto, com mulher e filhos, que tocava violino como profissional e falava inglês como um lorde.
        Isso pode levar a uma identificação maior do espectador de cinema, que tem subsídios para imaginar: "O que ocorreria se, de repente, tirassem a minha liberdade?".
        É o mesmo mecanismo que, grosso modo, nos faz ter mais empatia com o jovem de classe média que é assassinado do que com o homem negro que é preso a um poste com uma trava de bicicleta.
        Um contraste que McQueen sabe explorar a favor de seu filme.
        12 ANOS DE ESCRAVIDÃO
        DIREÇÃO Steve McQueen
        PRODUÇÃO EUA/Reino Unido, 2013
        ONDE Kinoplex Itaim e circuito
        CLASSIFICAÇÃO 16 anos
        AVALIAÇÃO bom


        Fernanda Torres

        folha de são paulo
        Paquetá
        O filme '12 Anos de Escravidão', além de seco e realista, era o retrato de algo que eu conhecia bem
        Londres escapou com mais galhardia do argentarismo do terceiro milênio que Nova York e Paris. As grifes dominaram as principais avenidas, o boom imobiliário cercou a velha torre, mas a cidade não perdeu a nobreza nem a rebeldia.
        A geografia forjou o caráter liberto, feroz da ilha, que a protege do continente, das estatísticas e das ruas tomadas pelo prêt-à-porter.
        Da London Philharmonic ao New Experimentalism, de Rembrandt a Mira Schendel, de Jurowski a Rie Nakajima, a arte existe e resiste em Londres.
        A mais inglesa dos brasileiros, Barbara Heliodora, me mandou de Natal uma compilação de ofensas chiques chamada "When Insults Had Class". Nela, Bernard Shaw convida Winston Churchill para a sua estreia teatral e deixa dois ingressos à disposição, para ele e um amigo: --"Caso você tenha algum." Churchill responde que não poderá estar presente na primeira noite, mas que certamente irá na segunda: --"Caso ela exista".
        De Shakespeare ao Sex Pistols, não importa a época ou as convicções morais, o inglês é um símio dominante, dono de um sarcasmo polido, terrível e admirável; o Homo sapiens sapiens por excelência. É Drake, o pirata civilizado; os tesouros do British Museum estão lá para comprovar.
        Na exposição "Come and See", na Serpentine Sackler Gallery, os irmãos Jake e Dinos Chapman traçam uma reta que liga o Mayflower, com os primeiros colonos da América, a Ku Klux Klan, a Alemanha nazista e o McDonald's.
        É uma crítica tão perversa ao progresso e ao triunfo do capitalismo que não há como não compactuar do sadismo dos artistas de pregar o Ronald McDonald na cruz.
        Holocaustos em miniatura, com pilhas de cadáveres aglomerados por SSs diante do mefistofélico M da lanchonete; e o mesmo Ronald, agora algoz, agarrado a louras de três cabeças, pilotando uma lancha guiada por golfinhos carnívoros pelo rio de "No Coração das Trevas". Manequins em tamanho natural fantasiados de KKK povoam os corredores, causando a estranha sensação de que nós, presentes, compartilhamos do mesmo ideal dos de capuz.
        "Come and See" é ácida e assustadora, fala com escárnio e horror da supremacia branca da Europa e dos fundadores da América. Passa pelo Vietnã, por Hitler e pela conquista da Lua. É assombrosa, mas não é comigo, era algo lá, com eles.
        Depois de quase um mês de civilização, já desconfiada do hedonismo burguês que costuma aflorar nas viagens de férias ao exterior, no último dia antes de embarcar para o Brasil, fui ao cinema assistir "12 Anos de Escravidão", do diretor inglês com nome de astro americano, Steve McQueen.
        Baseada no relato real de um afro-americano livre, raptado por traficantes de escravos do sul dos Estados Unidos, a película abordava muitos dos temas presentes na alegoria dos irmãos Chapman: a segregação racial, o puritanismo, a KKK. Mas "12 Anos de Escravidão", além de seco e realista, era o retrato de algo que eu conhecia bem.
        Foi botar o olho nas plantações de cana, nos pelourinhos tão iguais aos da minha terra, nos senhores sádicos cozidos sob o calor dos trópicos, foi me compadecer do drama de Lupita Nyong'o para cair num choro sem solução.
        Não há heroísmo à moda americana, só submissão. McQueen compreende o custo moral da sobrevivência e suas consequências no convívio lascivo entre a casa grande e a senzala.
        A beleza aparece raramente, na melancolia dos pântanos da Geórgia, ou no entardecer no campo de algodão, o resto é humilhação e silêncio. Cinema clássico, cada vez mais raro de se ver, imune à estética da embalagem.
        A violência do filme despertou em mim um sentimento inconfessável. Em meio a surras e chibatas, forcas e humilhações, me bateu uma saudade imensa das babás da minha infância, da cozinha das casas em que morei, dos quartos de empregada e do Odair José. E vergonha de ter saudade de tudo que é fruto da maldade que o filme denuncia.
        Nada tenho de civilizado, pensei. E me veio o banzo do ar úmido e da tragédia insolúvel da Paquetá em que eu nasci.
        Foi a pá de cal do meu "rolezinho".

        Barbara Gancia

        folha de são paulo
        Roberto Jefferson 2.0
        "Os desvios da prefeitura de S. André iam para o PT, o próprio Gilberto Carvalho me disse", afirma Tuma Jr.
        Ah, esses homens públicos mara­vilhosos e suas ações desin­teressadas, que nunca ocor­rem em benefício próprio!
        O Roberto Jefferson da vez cha­ma-se Romeu Tuma Jr., autor do bestseller "Assassinato de Reputa­ções", 70 mil cópias vendidas, ne­nhuma surpresa aí, uma vez que o prato servido satisfaz o apetite de uma imensidão de curiosos.
        Assim como Roberto Jefferson, Tuma Jr. alega ser movido por ci­vismo e nobreza de espírito.
        Não duvido. Mas que mal há em aproveitar a onda e os 70 mil inte­ressados no que ele tem a dizer e se eleger a um cargo público nas pró­ximas eleições, não é mesmo?
        A expressão de ressentimento, até de fúria em certos momentos, que podiam ser percebidos em seu ros­to no "Roda Viva" da última segun­da-feira, a mim não enganaram.
        Me disseram que ele ainda nutre algum ressentimento por ter sido afastado das investigações do caso Daniel Dantas sob alegação de que mantinha contato com um criminoso chinês.
        E que nunca engoliu o ódio a Lula, a quem culpa por apressar indire­tamente a morte do pai, o senador Romeu Tuma, que já estava doente quando o filho foi for­malmente acusado de ter vínculos com o mafioso.
        O delegado foi absolvido e livrado de qualquer constrangimento, mas seu pai acabou morrendo depois de uma internação longa e dolorosa.
        E agora temos o livro. Mais uma vez, sem que as consequências de acusações gravíssimas sejam men­suradas ou corroboradas por pro­vas minimamente detalhadas. O que existe é a prova testemunhal e nenhum desmentido até agora.
        É válido tentar varrer do mapa o único partido constituído da de­mocracia tapuia por ter ele imitado o "padrão Fifa" (literalmente) de outros partidos. Mas valeria lem­brar que não foram só Silvinhos Pereiras que fundaram o PT, há gente séria e pensante, discorde-se dela ou não, que ajudou a construí-lo. Parece às vezes que esquecemos que é um patrimônio de todos.
        Quem será que o senhor Tuma Jr., cego de rancor, gostaria de ver to­mar o lugar do PT quando ele e os Jeffersons da vida tiverem termi­nado de afundar o barco? A turma do Feliciano? Do Crivela?
        Bem, vamos ao livro de Tuma Jr., um rapaz que insiste que o pai "redemocratizou o Dops", isto, note, em plena ditadura (é para rir?). Diz ele que Lula era infor­mante do Dops. Até agora, não o vi revelar qualquer informação pres­tada por Lula ou dar o nome de al­guém a quem ele tenha entregado. É para quando, Júnior?
        O caso Celso Daniel ocorre em 2002 e Tuma Jr. diz que seu desfe­cho não ficou claro porque Lula foi eleito. Ué? Mas se o processo cor­reu em uma vara paulista, como a PF de Lula poderia interferir? E o DHPP (departamento de homicídios)? E o Ministério Público de SP? Se havia tan­ta sujeira, por que ele aceitou inte­grar o governo Lula em 2007?
        Tuma Jr. promete novo livro com provas. Acho bom, já que no "Roda Viva" deu uma de Maluf (lembra do Ma­luf sacodindo recorte de jornal em debate?) e sacou uma papelada pa­ra provar que Daniel Dantas deu R$ 1,5 milhão para a campanha Dilma. Sei. Até parece que todos eles não doam uma soma para cada candi­dato sistematicamente. Em vez de sacodir, porque não pôs no livro?
        E, mais adiante, na página 263: "Os desvios da prefeitura de Santo André eram canalizados para o partido, o próprio Gilberto Carva­lho me disse isso". Ora. Carvalho é conhecido pelo comedimento. Imagine se ia abrir o bico justa­mente para o filho do Tuma? Do Tuma, gente! Sendo que, pelo pró­prio ato da concepção do livro já dá para ver que o camarada é uma ma­traca.
        Deixa ver se entendo: o PT tentava incriminá-lo por envolvimento com a máfia chinesa e o braço direi­to do Lula resolve se abrir com ele sobre o caso Celso Daniel? Só falta dizer que viu o Fidel Castro beijan­do o Paulinho da Força à força.