domingo, 23 de fevereiro de 2014

Isabel Coutinho

folha de são paulo
DIÁRIO DE LISBOA
O MAPA DA CULTURA
Os pináculos da rebaldaria
Vagalhões lusitanos, climatéricos ou não
ISABEL COUTINHOBelisquem-me que não acredito: a "Mixórdia de Temáticas" está de volta. De manhã muito cedo há portugueses, dentro dos seus carros parados nas filas de trânsito, a rirem-se às gargalhadas. Estão a ir para o trabalho ou a levar os filhos à escola e a causa de tanto riso é o regresso da rubrica do humorista Ricardo Araújo Pereira (RAP), o mais famoso dos humoristas do Gato Fedorento, ao "Programa da Manhã", todos os dias a partir das 7h na Rádio Comercial.
A equipa do programa é famosa: Pedro Ribeiro, Vanda Miranda, Vasco Palmeirim e Nuno Markl trabalham juntos há sete anos e lideram as audiências de rádio em Portugal. Mas lideram mais ainda quando a eles se junta o RAP e suas personagens. Um ano depois de ter terminado a série Ribeiro, a "Mixórdia de Temáticas" regressou a 3 de fevereiro com a série Miranda. A primeira série deu um livro, e a rubrica, que costuma ser gravada em vídeo diariamente, pode ser vista no Facebook e no YouTube ou ouvida em podcast no iTunes.
"TURISMO DE BORRASCA"
Um dos últimos esquetes chamava-se "Turismo de Borrasca" e contava a história da personagem Abel Miranda, que gosta "muito de ver mau tempo" e é apaixonado pelos "três grandes pináculos da rebaldaria climatérica": "o tufão, a saraivada de granizo e a agitação marítima". É que Portugal tem estado em alerta por causa do mau tempo, das ondas gigantes, dos ventos fortes, da chuva e da neve. E, como os portugueses não estão habituados a ter de lidar com tempestades com nomes de pessoas, como Hércules ou Stéphanie, não resistem a ir ver o espectáculo.
Nos últimos tempos têm aproveitado "para irem ver o mar nos paredões e a fugir sempre que veem uma onda". É "como se fosse uma garraiada", mas em vez de ser com touros é com "vagalhões".
Diz que o RAP escreve os textos de madrugada, corre para a rádio, distribui pela equipa e todos participam na leitura. É uma risota. Os ouvintes telefonam e mandam recados pelo Facebook. Segue-se a rubrica "O Homem que Mordeu o Cão", em que o humorista Nuno Markl aborda notícias bizarras e que já deu também origem a best-sellers e a um espectáculo ao vivo.
DIRECTORA POR UM DIA
RAP tem participado do Risadaria, em São Paulo, e, no ano passado, Nuno Markl esteve também no Brasil a fazer o documentário sobre os actores de telenovelas que fascinaram os portugueses nos anos 1980. Chama-se "Tudo o que Sei Aprendi com as Novelas da Globo" e um dia desses estreia.
E, como o Brasil está sempre no nosso coração, este 2014 será o Grande Ano do Brasil aqui no jornal em que trabalho. O "Público" (www.publico.pt) convidou Adriana Calcanhotto para ser "directora por um dia". Ela cuidará da edição especial de aniversário, que será publicada a 5 de março, dia em que o jornal celebra 24 anos.
A gaúcha passará uns dias em Lisboa a preparar essa edição. Há a coincidência de ela ter editado o seu primeiro disco em 1990, ano em que o "Público" saiu para as bancas pela primeira vez, e de ter um disco que se chama "Público".
Pelo caminho, Adriana Calcanhotto participará do 4º Festival Literário da Madeira, em Funchal, de 17 a 23 de março. Ao lado dela estará o escritor Luiz Ruffato. Nesta semana que agora termina, aconteceu no país a 15ª edição do Correntes d'Escritas, o Encontro de Escritores Ibero-americanos na Póvoa de Varzim, que neste ano teve como convidado Michel Laub.
BELEZA ESMAGADORA
Ninguém duvida da beleza das ondas gigantes, mas, para dias de chuva, melhor passar o tempo na mostra "O Peso do Paraíso", de Rui Chafes, que este mês se inaugurou no Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian. Abrange 20 anos de produção do artista, que nasceu em 1966 e que traz em si o peso de, nos anos 1990, ter sido considerado um "génio".
Chafes mostra suas esculturas gigantes em ferro, mais de cem obras espalhadas pelo CAM e pelos jardins da fundação. Chama-as "momentos de vida triunfante" e são de uma beleza esmagadora. Quem por lá passar pode aproveitar para assistir a um concerto no Grande Auditório, que reabriu no dia 14, depois de sete meses de obras, que representaram um dos maiores investimento já feitos pela fundação: 19 milhões de euros (R$ 62 milhões). A sala está agora ao nível das melhores da Europa.

    Onde estão os negros? Steve McQueen - Ana Francisca Ponzio

    folha de são paulo
    ARQUIVO ABERTO
    MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
    Onde estão os negros?
    São Paulo, 2001
    ANA FRANCISCA PONZIO"Sinto muito se eu esperava ver negros na universidade. Nunca mais farei essa pergunta."
    Com essa frase irônica e dita em tom mal-humorado, Steve McQueen despediu-se da turma de alunos do departamento de artes da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado) que, em um dia de abril de 2001, compareceu a um encontro com o artista plástico britânico, que acabava de inaugurar uma exposição no MAM-SP (Museu de Arte de São Paulo).
    Na época, aos 31 anos, antes de se tornar o diretor de três longas que ampliaram a difusão de seu nome --o mais recente, "12 Anos de Escravidão", concorre a nove Oscars no domingo que vem--, ele não parecia nada animado com a agenda de compromissos daquela estada na cidade.
    Diante dos alunos da Faap, sempre com ar provocador, indagou por que não havia negros naquela plateia universitária e em outras situações, como o vernissage de sua exposição, ocorrido na véspera.
    Ao deixar clara sua decepção com o elitismo que vinha presenciando, McQueen desencadeou um clima de desconforto. A maioria dos estudantes reagiu com um "não é bem assim". Alguém disse que ali era a faculdade mais cara do país e que, antes de tirar conclusões, ele deveria procurar conhecer melhor o Brasil, visitar diferentes regiões e se deparar com a multiplicidade cultural do país.
    "Vocês estão muito defensivos, parece que pisei em algo sensível. Não estou agitando bandeiras, mas, desde que aqui cheguei, percebo que as pessoas não ficam à vontade quando toco nesse assunto. É como se certas questões, no Brasil, estivessem deixadas de lado, tornando-se invisíveis", disse.
    No fundo da sala, eu me surpreendia com aquele primeiro encontro com McQueen. Eu lá estava para escrever sobre o cogitado intercâmbio que deveria ocorrer entre estudantes brasileiros de artes e aquele artista plástico com nome idêntico ao de um dos atores mais famosos do cinema americano, que parecia avesso a bajulações sociais.
    O texto me havia sido solicitado pelo No. (No Ponto), publicação virtual então recém-lançada, que deixaria de existir em 2007 (já com o nome No Mínimo). Se bem me lembro, não havia outra chance de contato com McQueen, que não estava marcando entrevistas durante a rápida passagem por São Paulo.
    Aquele tumultuado encontro, no entanto, muito revelou sobre o artista, que ganhara o Prêmio Turner dois anos antes e que hoje é mais conhecido como cineasta.
    Na exposição no MAM, foram exibidos três vídeos de McQueen, que considerava uma evolução ter abandonado os tradicionais desenho, pintura e escultura para fazer uso da câmera. "Estou interessado em fazer um trabalho que não seja rotulado", explicou, quando eu lhe perguntei sobre sua obra.
    Suas videoinstalações ficaram na memória. Feitas a partir de registros nas antigas películas de 16 mm ou super-8, depois convertidos em vídeo, impressionavam pelo virtuosismo com que ele captava os movimentos. "Bear", em preto e branco e com 10 minutos de duração, mostrava dois negros, um deles o próprio McQueen, em uma luta quase ritualística. As imagens, projetadas do teto ao chão de uma parede, numa sala escura, interferiam na mobilidade e no sentido de espaço do observador, estimulando-o a se deslocar e despertando uma noção de ameaça.
    "Quero que meu trabalho tenha o efeito de um bumerangue, que vai e volta. Prefiro filmar em preto e branco porque permite evidenciar os contrastes do movimento e os limites esculturais das imagens. A cor representa um excesso, que eu procuro sugar como se estivesse usando uma seringa. Por meio do silêncio que envolve a exibição dos filmes, procuro gerar um estímulo no observador, de maneira que ele fique mais sensível a si mesmo, percebendo sua própria presença e respiração", definiu McQueen.
    A fragilidade humana, as situações de encarceramento físico e psicológico e também as injustiças sociais foram as conotações mais fortes deixadas pela obra de McQueen e por suas reações naquele encontro de quase 13 anos atrás. Hoje, dão coerência e alargam a compreensão sobre esse artista, que se diz influenciado apenas pela vida real.

      As imperfeições absolutamente certas de Eduardo Coutinho - José Hamilton Ribeiro

      folha de são paulo
      MEMÓRIA
      O final errado
      As imperfeições absolutamente certas de Eduardo Coutinho
      JOSÉ HAMILTON RIBEIRORESUMO Amigo recorda trajetória de Eduardo Coutinho, morto no último dia 2. Indo do jornalismo ao cinema, o documentarista perseverou em sua convicção de que os filmes não deviam perseguir o belo e o grandioso, mas a vida, em suas imperfeições, e que toda e qualquer história vale por si e, portanto, merece ser contada.
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      No filme "Edifício Master" (2002), Eduardo Coutinho, sentado numa cadeira, entrevista moradores de um prédio classe média baixa de Copacabana. Pessoas comuns, histórias comuns. Começa e termina com gente contando sua "vidinha mais ou menos", aí já mostrando o propósito do diretor --"cada vida dá um livro", ou "nada é mais importante para uma pessoa que sua própria história", ou "o espetáculo do homem é mesmo o homem".
      O filme vai mostrando as entrevistas, mas uma delas, no terço final, indica --para um observador comum-- que ali está o fim. Um personagem forte conta quanto sabia da história de Frank Sinatra (a quem até tinha visto de perto) e termina imitando o cantor em "My Way". Empolga-se à medida que canta, seu rosto fica vermelho do esforço, e nos acordes finais, diz, abrindo os braços, no último fôlego: "Fim!".
      É, mas o filme não termina aí. Passa o personagem do "My Way", vêm outras "entrevistas comuns" e "Edifício Master" morre como se tivesse acabado o tempo do filme.
      -- Coutinho, o homem do "My Way" não era naturalmente --e gloriosamente-- o final do "Edifício Master"?
      -- Você não é a primeira pessoa a me dizer isso...
      METRALHADORA Coutinho falava rápido. Não falava, metralhava as palavras, aparentemente sem pensar nas respostas, como se já soubesse as perguntas. Tinha dificuldade em palavras com dois erres. Assim, dizia em espanhol "muer", em vez de "murrer" ("mujer"); "esfia", em vez de "esfirra".
      Era um querido amigo; puro, bom, solidário, leal, honrado. Nos conhecemos como jovens jornalistas em São Paulo na segunda metade da década de 1950; ele na revista "Visão", eu, na Folha.
      Uma circunstância muito nos aproximou: seus pais eram separados, e ele ficara do lado da mãe, dona Carolina, que se unira a um jornalista, Aristides Lobo, também da Folha. Aristides era um comunista histórico, passível de ser preso a qualquer hora. E eu gostava muito dele. Quando me levou num domingo para almoçar em sua casa, dei ali com Eduardo Coutinho e ficamos ainda mais próximos.
      Todos nós torcíamos por sua atuação num programa de TV, "Absolutamente Certo!", uma espécie de gincana intelectual em que a pessoa respondia sobre um tema de sua escolha. Coutinho escolhera Chaplin e, aflito como era, não esperava o locutor terminar a pergunta, já emendava a resposta --certa, "absolutamente certa".
      Entrara no programa com objetivo declarado de continuar até que conseguisse dinheiro para ficar dois anos em Paris estudando no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos.
      Quando alcançou o dinheiro que queria (nem era muito, Coutinho sempre foi modesto e frugal), saiu do programa, deixando em todos a impressão de que, se quisesse, poderia ficar ali até ganhar uma bolada. Era quase impossível formular uma questão sobre Chaplin cuja resposta ele não soubesse.
      Isso era em 1957 e, nesse ano, o destino nos uniu mais ainda: fomos os dois ao Festival da Juventude Comunista, em Moscou. Depois de um mês na União Soviética, um convite para outro mês em Praga, mais um em Berlim (do lado comunista, quanta mordomia!) e um tempo na França (já a essa altura comendo sanduíche). Ficamos quase seis meses juntos no exterior.
      O filme "O Cangaceiro" (1953), de Lima Barreto, estava rodando o mundo com tanto sucesso que as pessoas que a gente conhecia no "mundo comunista" nos chamavam --ao Coutinho e a mim-- de cangaceiros. Coutinho era o "Cangaceiro chico" e eu, um pouco mais alto, o "Cangaceiro grande".
      Voltei para o Brasil, ele ficou na França para passar seus dois anos no "Institut" de cinema. Nos reencontramos nos anos 1980, na TV Globo. Ao lado de Washington Novaes, Coutinho era mestre na edição do "Globo Repórter", e ambos eram escalados para ajudar eventuais repórteres novos por lá --como era o meu caso.
      Nesse tempo, ele já estava com "Cabra Marcado para Morrer" na cabeça; só faltava a decisão de deixar o emprego e ir atrás do dinheiro --coisa para a qual ele era praticamente inábil.
      -- Coutinho, você está com uma obra-prima na mão!
      -- Tá mais é pra matéria-prima...
      À medida que fazia filmes, expunha --metralhava-- suas ideias: "Filme militante é uma tragédia porque já está escrito antes" (numa conversa com Zuenir Ventura).
      Sobre seus filmes serem toscos, sem acabamento: "A pureza e a perfeição são fascistas". "Então meus filmes são pela vida, porque a vida será sempre imperfeita. A perfeição é a morte" (conforme citado pela antropóloga Debora Diniz em entrevista a Mônica Manir, no caderno "Aliás", de "O Estado de S. Paulo").
      Enquanto a agenda não ficou carregada por sua nova condição de celebridade, toda vez que vinha a São Paulo me ligava e a gente se via. Na estreia de um de seus filmes, na sala de cinema da livraria Cultura, na avenida Paulista, comentei com ele:
      -- Quem poderia pensar que você, que precisou ganhar dinheiro para estudar cinema se exibindo na televisão, iria ser o cineasta tão premiado de hoje?
      -- Se é por prêmio, você deve ter a resposta: volta e meia vejo notícia que você ganhou prêmio de jornalista...
      -- Seja por você ou por mim, o que explica tanto prêmio?
      -- Acho que estamos durando muito...
      Coutinho era um pouco mais velho que eu. O fato de comer de maneira irregular --gostava mais de croquete e "esfia" que de comida-- e de viver sempre com um cigarro na boca parece que cobrou caro de sua saúde, seu rosto, sua postura. Tinha hora que parecia transparente. Fernanda Torres via nele a magreza do santo.
      Eu estava preparado para a notícia: "Coutinho morreu!". Mas não do jeito que foi...
      ERROU O FINAL? O assunto da última cena do "Edifício Master" tinha surgido na conversa porque eu contara a ele que um grupo de jornalistas da Globo, numa roda de corredor, tinha discutido o filme. Um dos colegas, versado em cinema, arguto e agudo, dizia que o homem do "My Way" era obviamente o encerramento, tanto que as entrevistas que vêm depois nada acrescentam. Seria um final grandioso.
      -- Como disse, você não é a primeira pessoa a me dizer isso...
      Metralhou as palavras no "ritmo Coutinho"; eu, sem gravador, registrei mais ou menos isso:
      -- Se terminasse com o personagem do "My Way", seria um final de melodrama. O filme não era uma escada para o "My Way", não era escada para ninguém. Cada história vale por si. Cada vida vale por si.
      O tiroteio continuou por mais algumas frases que agora não tenho como confirmar. Na dúvida sobre o final do filme, Coutinho talvez tivesse razão. Não seria novidade.

        Antonio Prata

        folha de são paulo
        A pátria de ponteiros
        Quando o brasileiro diz 'tô chegando!', em quanto tempo, exatamente, o brasileiro chega?
        Numa demonstração de abertura e inequívoca coragem, Fritz pediu uma feijoada. Eu comentei que, aparentemente, ele não estava tendo dificuldades de adaptação. O alemão disse que não. Por conta do seu trabalho --instala e conserta máquinas de tomografia computadorizada--, viajava o mundo todo. A única coisa que lhe incomodava, no Brasil, era nunca saber quando as pessoas chegariam aos encontros. O problema era menos o atraso, confessou, do que nossa dificuldade em admiti-lo: "O pessoa manda mensagem, diz tô chegando!', eu levanta do minha cadeirrra e olha prrro porrrta da restaurrrante, mas pessoa chega só quarrrenta minutos depois". Então me fez a pergunta que só poderia vir de um compatriota de Emanuel Kant: "Quando a brrrasileirrro diz tô chegando!', em quanto tempo brrrrasileirrro chega?".
        Pensei em mentir, em dizer que uns atrasam, mas outros aparecem rapidinho. Achei, porém, que em nome de nossa dignidade --ali, naquela mesa, eu era a "pátria de ponteiros"-- o melhor seria falar a verdade: "Fritz, é assim: quando o brasileiro diz tô chegando!' é porque, na real, ele tá saindo". Tentei atenuar o assombro do alemão: veja, não é exatamente mentira, afinal, ao pôr o pé pra fora de casa dá-se início ao processo de chegada, assim como ao sair do útero se começa a caminhar para a cova. É só uma questão de perspectiva.
        "Mas e quando o pessoa diz tô saindo!'?" Expliquei que as declarações do brasileiro, no que tange ao atraso, estão sempre uma etapa à frente da realidade --são uma manifestação do seu desejo. Se a pessoa diz que está chegando, é porque tá saindo, e se diz que tá saindo, é porque ainda precisa tomar banho, tirar a roupa da máquina e botar comida pro cachorro.
        Fritz ficou pensativo. Uma morena entrou no bar e percebi certa reverberação nos hormônios teutões. Era a chance de mudar de assunto, mas eu havia sido mordido pela mosca da sinceridade e resolvi ir até o fim: revelei que, além do "tô chegando!" e do "tô saindo!", ele teria de aprender a lidar com "chego em 15!" e "cinco minutinhos!".
        "Chego em 15!" é sinônimo de "tô chegando!": quer dizer que o patrício está saindo. Quinze minutos é o tempo mágico que o brasileiro acredita gastar em qualquer percurso --a despeito da experiência, da Sulamérica trânsito e do Waze. Da Mooca pra USP? "Chego em 15!" De Santo Amaro pra Cantareira? "Quinze!" Mais uma vez, não é propriamente mentira. Se pegássemos todos os faróis abertos e todos os carros saíssem da nossa frente, em tese, vai que...?
        Já o "cinco minutinhos!" é um pouco mais vago. Pode significar tanto que o brasileiro está a cem metros do destino quanto a 27 quilômetros. Às vezes, cinco minutinhos demoram muito mais do que quinze, mais do que uma hora: há casos, até, menos raros do que se imagina, em que a pessoa a cinco minutinhos jamais aparece.
        Fritz ficou olhando o chope, contemplativo, imaginando, talvez, na espuma branca, a tomografia multicolor desses cérebros tropicais. Senti que, agora sim, era o momento de mudar de assunto, de mostrar ressonâncias, digamos, mais magnéticas do nosso país. Chamei o garçom. "Chefe, a gente pediu uma feijoada, já faz um tempinho..." "Tá chegando, amigo, tá chegando!"

        Letras brasileiras [análise] - Luciana Villas-Boas

        folha de são paulo
        LETRAS BRASILEIRAS
        ANÁLISE
        A tradução, essa faminta quimera
        Para quem escreve o autor local?
        LUCIANA VILLAS-BOAS
        RESUMO Propelida por programas de apoio à tradução, obsessão do autor nacional por reconhecimento no exterior mascara desprestígio da ficção brasileira no mercado local. Pouco e mal editados no país, escritores que não venham de carreiras de sucesso em jornal ou TV dependem em larga medida de compras do governo.
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        O autor brasileiro é vidrado numa tradução. Tradução de sua própria obra, bem entendido. Não há prêmio, elogio de leitor nem sequer boas vendas no Brasil que se comparem à validação de seu texto por uma editora estrangeira. Se possível, a tradução para o inglês, mas servem versões exóticas, como para o sérvio ou o romeno, edições sem significado monetário e que atingem uns 300 leitores. Dão a impressão que se está chegando longe.
        Por isso, passado quase meio ano da homenagem ao Brasil na Feira do Livro de Frankfurt, percebe-se uma amargura entre muitos escritores: "Não disseram que a homenagem iria escancarar as portas do mercado internacional para o autor brasileiro?", perguntam. Que eu saiba, ninguém disse isso. Se disse, era um ingênuo falando do que não conhece.
        Este artigo não quer criticar ou ridicularizar a participação do Brasil em Frankfurt. Nem elevá-la a momento de gala da nossa literatura. A homenagem se ressente por não ser pensada como uma instância da política do Ministério da Cultura visando à exportação da criação literária brasileira. Avaliar o projeto do governo é relevante porque ajuda a elucidar a situação da literatura no Brasil e põe em perspectiva a quimera da tradução, que tanto persegue e é perseguida pelos escritores.
        Não existe tabulação do número de autores brasileiros hoje traduzidos no exterior em comparação com dez anos atrás. Mas o multiplicador é altíssimo. Naquela época, até nossos clássicos estavam em baixa, como Jorge Amado, tão popular nos EUA e Europa na década de 70 do século passado. Hoje, além de estarem aparecendo novas traduções de Amado, Clarice e Machado, muitos escritores não canônicos podem ser lidos em inglês, francês, alemão, espanhol, italiano, em alguns desses idiomas, ou em todos eles e outros.
        Essa relativa capilarização da literatura brasileira no exterior é resultado quase exclusivo do programa de tradução da Biblioteca Nacional reinventado em 2011. O programa já existia, mas não honrava seus compromissos, as bolsas prometidas não eram pagas, e sua credibilidade era zero. Foi difícil recuperar a confiança do editor estrangeiro. Fábio Lima, da Biblioteca Nacional, informa que, entre 2011 e 2013, foram concedidas 390 bolsas de tradução para 181 autores.
        POMPA Além de cumprir o combinado, o programa deslanchou graças ao pacote que foi montado: anúncio com pompas em Paraty e gancho com homenagens em várias feiras, não só a de Frankfurt --mas esta sempre mencionada com destaque. Foi naquele momento e com essa função que a homenagem na Alemanha teve importância. A crise econômica prestou sua contribuição: até editoras internacionais da primeira divisão viram com ótimos olhos a possibilidade de publicar autores de qualidade pagando adiantamentos baixos e recebendo uma injeção de grana antes de incorrer nos custos do processo editorial.
        Diante das planilhas da BN, fica difícil compreender por que nossa literatura não ganhou mais impulso. Mesmo considerando as bolsas que foram para a não ficção, é muito livro brasileiro no panorama internacional. Mas, sem cobrar do pessoal da Biblioteca o que eles não podem saber, os profissionais do mercado entendem que esse número deve ser ponderado.
        O primeiro problema que se pode supor é a concentração de bolsas beneficiando poucos ficcionistas. O segundo problema é que a maioria delas foi para editoras mínimas em mercados insignificantes --países africanos ou do Leste europeu. Não vamos defender que não se contemplem essas editoras, porque a lógica do Estado é outra e, para o Brasil, pode ser estratégico ter sua literatura na África ou entre vizinhos sul-americanos. Mas houve casos de gente com o olho só no dinheiro da Biblioteca, sem intenção de lançar dignamente os livros contratados. O problema mais grave é o terceiro, que escapa ao controle do ministério.
        Se os gastos do governo em Frankfurt foram excessivos, ou se a delegação não era representativa, não importa agora. A discussão aqui é mais ampla. Seria desejável que o programa continuasse, talvez com mais atenção ao detalhe, mas que não fosse ameaçado por novas administrações. A literatura nacional ainda não anda com as próprias pernas no mercado internacional; e, depois dos escritores, o principal interessado numa imagem literária da nossa cultura é o Estado brasileiro. Não se leva a sério um país que se reduz a samba e futebol; espera-se que sejamos alfabetizados, e a literatura seria nosso melhor testemunho.
        Comparado com outros programas de projeção da imagem do Brasil, o da BN parece apresentar boa relação custo x benefício. O governo só não pode gastar mais do que gasta, e o programa não deve ser ampliado enquanto o setor editorial não somar esforços. Há dois anos, o governo faz a sua parte, e está de bom tamanho.
        FARRA Em sua coluna da Folha, às vésperas da inauguração da Feira de Frankfurt, Elio Gaspari afirmou que a homenagem era uma "farra" com o dinheiro da Viúva para beneficiar os editores brasileiros. "Se os empresários do mercado editorial precisassem de homenagem na feira poderiam recebê-la com o dinheiro deles."
        A verdade é que os editores jamais investiriam um centavo na participação do Brasil em Frankfurt não porque contassem com tirar vantagem do governo, mas porque a maioria estava se lixando para a homenagem, não tinha o menor interesse nela, assim como, com raríssimas e notáveis exceções, se lixa para a literatura brasileira. Se houve farra, não foi promovida por ou para eles, estão inteiramente inocentes. Mas o desinteresse dos editores é mais de se lamentar do que de elogiar.
        Não há dados da porcentagem de livros brasileiros entre o que se publica de ficção no país. No perspicaz artigo "Tendências do mercado de livros no Brasil: um panorama e os best-sellers de ficção nacional 2000-2009" (revista "MATRIZes", 2012), Sandra Reimão não divulga esse número, mas consegue denunciar a inexpressividade do ficcionista brasileiro nas listas de mais vendidos.
        Na primeira década do século, os autores que conseguiram furar o bloqueio estrangeiro foram: Luis Fernando Verissimo, Jô Soares, Chico Buarque, Paulo Coelho, João Ubaldo Ribeiro, Letícia Wierzchowski, Luiz Eduardo Soares e Orlando Paes Filho.
        À exceção de Paes Filho, autor do gênero fantasia, todos são nomes que vinham de carreira de sucesso em jornal, TV ou música (Verissimo, Jô e Chico), ou que se consagraram como escritores antes da última década do século 20, chegando ao novo milênio já com ampla presença na mídia (João Ubaldo e Paulo Coelho), ou que tiveram o apoio de TV ou cinema para seus seus romances (Wierzchowski com "A Casa das Sete Mulheres" e Luiz Eduardo Soares com "Elite da Tropa"/"Tropa de Elite").
        Há exemplos recentes que ilustram a tese da professora: textos ótimos que, assinados por um autor desconhecido, estariam longe das listas. E esses autores e mais todos os outros brasileiros publicados não representam 5% das obras de ficção lançadas anualmente --essa é minha chocante projeção do alto de 20 anos de trabalho no meio editorial, acompanhando carteiras de lançamento das editoras, como jornalista, editora ou agente.
        MULETAS Esse é o grande obstáculo para a internacionalização da ficção brasileira: nossa literatura não anda com as próprias pernas em seu país. Precisa das muletas de outro veículo ou forma de comunicação. Não temos volume ou variedade. Entre os autores traduzidos nos últimos dois/três anos, alguns tiveram desempenho razoável no exterior, foram reeditados, mas nenhum causou impacto semelhante ao do sueco Stieg Larsson, que expôs para o mundo a literatura de toda a Escandinávia.
        Principalmente, nenhum autor brasileiro chegou a terras estrangeiras com um histórico inequívoco de consagração nacional. A não ser Paulo Coelho, cuja literatura não foi percebida lá fora como brasileira, ao mesmo tempo que o Brasil tolamente não a reivindicou, incluindo aí a crítica e os colegas escritores. Sua popularidade intercontinental não teve como abrir portas para outras obras brasileiras --um caso excepcional.
        O divórcio entre literatura nacional e sociedade é uma vergonha para o Brasil. Não é preciso recorrer a parâmetros de mundo desenvolvido; fiquemos na América Latina. Argentina, Chile, México e Colômbia consomem a ficção local muito mais do que nós. Comparemos a literatura brasileira à do Chile, que tem menos habitantes do que a Grande São Paulo.
        Em viagens pela Europa, ou em Nova York, eu costumava fazer de brincadeira uma pesquisa sobre a presença brasileira e de outros países nas livrarias que visitava. Aconteceu na Fnac, na Feltrinelli, Bertrand, na livraria do El Corte Inglés, Barnes & Nobles, La Hune. Pegava um atendente de jeito e perguntava se saberia me dar, sem recorrer ao computador, um nome de escritor brasileiro.
        Quando ele conhecia a nacionalidade de Paulo Coelho, era o que vinha. Se não conhecesse, não vinha nada. Tenho curiosidade de fazer a brincadeira este ano. Algo pode ter mudado na Alemanha, mas o quadro não deve ter se alterado significativamente.
        A mesma brincadeira feita com o Chile era uma humilhação. Em 100% das vezes o nome que primeiro saiu foi de Isabel Allende, mas, se esse fosse "hors-concours", os atendentes ofereciam como segunda opção Roberto Bolaño, Marcela Serrano, Jorge Sepúlveda, Hernán Rivera Lettelier e Alberto Fuguet: autores reconhecidos como chilenos, que alcançaram sucesso nos Estados Unidos e Europa por iniciarem carreiras internacionais com o lastro da popularidade primeiro no Chile e depois na América Hispânica, para então ganhar o mundo.
        DIVÓRCIO Quando ocorreu o divórcio entre literatura e sociedade no Brasil? Nos anos 1960, Erico Verissimo, Rachel de Queiroz, Dinah Silveira de Queiroz, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, José Mauro de Vasconcelos e outros escritores, caídos ou não no esquecimento (quem se lembra de Amando Fontes?), constavam do cardápio de assuntos da classe média como hoje só figuram os atores da TV Globo. Os personagens de romances, e não os das telenovelas, inspiravam os pais na hora de dar nome aos filhos. Quantos Rodrigos com mais de 45 anos não se chamam assim por causa do capitão de Erico?
        Era uma sociedade polarizada politicamente e muito mais literária. De minha infância no seio de uma família politizada mas não de intelectuais --o pai jornalista, leitor de marxismo e reportagens, a mãe dona de casa com boa leitura dos clássicos e de tudo que lhe caísse nas mãos--, lembro de discussões furiosas com as tias lacerdistas sobre a posição de Rachel de Queiroz frente ao golpe de 64, ou sobre a conveniência de Guimarães Rosa assumir a cadeira da Academia Brasileira de Letras quando a ditadura fechava o cerco sobre a instituição.
        Os pais não problematizavam como incutir nos filhos o hábito da leitura. Ler era "default". Sem priorização consciente do nacional (eu adorava Mark Twain e Laura Ingalls Wilder), antes dos dez anos, minha irmã e eu lêramos, com gosto, todo Monteiro Lobato, Viriato Corrêa, muito José Lins do Rego, José Mauro de Vasconcelos, José de Alencar, o jovem Machado, "A Moreninha", "A Bagaceira", "Os Corumbas", "Capitães da Areia", "O Cortiço". Era literalmente o que caísse nas mãos, e o que caía era muito mais brasileiro do que tradução. Os pais problematizavam a idade adequada para ler "Dona Flor e seus Dois Maridos", licença que penei para ter.
        Chegaram os anos de chumbo, e a competição estrangeira se fez sentir, mas nada que impedisse o brasileiro de devorar "Bar Don Juan", de Antonio Callado, e "Sargento Getúlio", de João Ubaldo, de 1971. O primeiro romance de Rubem Fonseca, "O Caso Morel", chocou em 1973, mesmo ano em que "Água Viva", de Clarice, intrigou e deslumbrou; "Galvez, o Imperador do Acre", de Márcio Souza, e "Essa Terra", de Antônio Torres, encantaram os leitores em 1976; e "Zero", de Ignácio de Loyola Brandão, publicado primeiro na Itália, provocou ondas de indignação quando foi recolhido pela censura, para retornar em 1979.
        Diga-se que na década de 70 não era só Jorge Amado que conquistava edições no exterior. O trabalho de José J. Veiga angariou tal respeito e admiração no Brasil que chegou ao inglês pela prestigiosa Knopf, com a publicação de "A Hora dos Ruminantes" e "A Estranha Máquina Extraviada". "Galvez" e "Zero" foram muito traduzidos, assim como, na primeira metade dos anos 80, "Viva o Povo Brasileiro", de João Ubaldo, consagração crítica e estouro de vendas do autor.
        DÉCADA PERDIDA Os 80, a notória "década perdida", viram o reconhecimento da autoficção de Marcelo Rubens Paiva e Fernando Gabeira, e dos romances de Caio Fernando Abreu e Ana Miranda, mas a relação entre sociedade e literatura já estava esgarçada. Em 1987, saiu "O Diário de um Mago", mas vimos a excepcionalidade de Coelho. Para a ficção brasileira, a década perdida foram os anos 90.
        O que permitiu que o imaginário brasileiro fosse tão absolutamente sequestrado pela televisão? A ditadura começou solapando o sistema de ensino e a rede escolar; desvalorizando a crítica, o saber humanístico, o hábito da leitura, e agigantando a TV Globo. Mas o fator determinante foi a inflação, pondo desafios incomensuráveis à atividade do editor e fazendo com que ele buscasse a facilidade da literatura traduzida.
        Ao estrangeiro, em geral, só se presta contas uma vez por ano, algo inviável no tratamento com o escritor brasileiro, diante do quadro inflacionário. Os investimentos em marketing eram mais difíceis de recuperar quando se tratava de revelar um talento nacional; o autor estrangeiro chegava consagrado, bastando mandar para as redações fotocópias da crítica no país de origem para garantir o destaque da imprensa.
        A oferta anglo-saxônica era ampla e variada bastante para abastecer as editoras em atividade --baixa concorrência que permitia, até a virada do milênio, a aquisição dos direitos por somas razoáveis. E a literatura americana desenvolvera largamente um tipo de ficção deglutível por um leitor menos contumaz e sofisticado do que aquele da geração anterior --e viciado na linguagem televisiva. Uma ficção que não havia no Brasil.
        Motivos suficientes para o editor se acomodar na publicação de estrangeiros. Os brasileiros sumiram das carteiras de lançamento. Quando havia lugar para o nacional, era uma tiragem de 2.000 exemplares, sem visibilidade, que não vendia nem arranhava a lista de mais vendidos. A perfeita profecia autorrealizável: leitor gosta mesmo é da literatura americana.
        EXPANSÃO Veio o real, e a moeda estabilizada permitiu a expansão do negócio editorial. Dezenas de novas editoras se somaram à indústria do livro; a concorrência por direitos de publicação e espaço na livraria profissionalizou as práticas do mercado.
        O baixo nível educacional da mão de obra já consternava até o meio empresarial. Com a democracia consolidada, setores do empresariado e opinião pública (por exemplo, novelas da Globo) e campanhas do governo começaram a valorizar o hábito de leitura.
        A distribuição da renda permitiu a entrada de novos leitores no mercado, nem sempre apreciadores da melhor literatura, mas leitores. Os números de vendas de Dan Brown, J.K. Rowling, Khaled Hosseini, E.L. James e Suzanne Collins --alguns milhões no mercado nacional-- documentam isso de maneira lapidar.
        Só não foi convidado para a festa o escritor brasileiro. Nem de longe se beneficiou da nova conjuntura do mercado mais simpática ao livro. (Exceção feita àqueles voltados para o leitor jovem, que souberam usar os recursos da internet para construir seu público e se impor às casas editoriais.)
        O editor se esquecera de por que não publicava literatura brasileira e não via por que mudar de atitude. Nem a explosão de feiras literárias projetando autores locais (secundariamente aos estrangeiros) o impressionou muito.
        Quem veio em socorro do autor foi o bom e velho Estado brasileiro, a quem os escritores devem infinitamente. Se no século 20 o Estado os sustentava com sinecuras, nos últimos anos garantiu a sobrevivência da categoria aumentando as compras dos governos federal e estaduais para bibliotecas e escolas, nas quais a literatura nacional ainda compete com vantagem em relação às obras traduzidas.
        As compras do governo permitiram que as editoras mantivessem uma fresta de porta aberta à ficção local. A preferência voltou-se para os clássicos, depois de alguns terem atravessado longo ostracismo, mas vêm sendo feitas apostas em autores menos consagrados na esperança de que os prêmios literários que também surgiram desde a virada do século possam ungi-los com a boa crítica que conduz à rampa das aquisições governamentais.
        No entanto, já ouvi de muito editor estrangeiro e de "scouts", os olheiros do mercado editorial, a queixa quanto a certa mesmice no que apresentamos, um "mais do mesmo" que inviabiliza apostas ousadas nos lançamentos. E, sem apostas ousadas, pode-se dar adeus ao sonho de um grande estouro de vendas e popularidade. Sem estouro de vendas ou clara consagração com prêmios internacionais, "bye-bye" ao nosso sonho de visibilidade global.
        EIXO Uma possibilidade de ação editorial seria tentar diluir o poder cultural concentrado no eixo Rio-São Paulo, com esporádicas esticadas ao Rio Grande do Sul, buscando originais em um espectro mais amplo do país.
        Um livro médio de autor que trabalhou no jornal "O Globo" ou na Folha, que fez estágio no Instituto Moreira Salles ou no Itaú Cultural, que atuou em editoras do eixo, que já entrevistou escritores renomados e conhece as pessoas certas tem muito mais possibilidade de encontrar uma casa que o publique do que um original novo, diferente e excelente de um profissional liberal sem esse capital social e que esteja escrevendo de alguma cidade média ou grande desse Brasil, que não Rio, São Paulo ou Porto Alegre.
        É compreensível que a ideia de separar joio do trigo nas pilhas de originais não solicitados chegados de todo o país desanime o editor. Encontram-se textos de valor, mas há muito joio. Desanima até o agente literário, em si figura escassa no mercado. Os profissionais da edição andam sobrecarregados, o trabalho com livro é infinito.
        Mas é um desperdício. O Brasil hoje é uma sociedade complexa, e há talentos literários de norte a sul, da fronteira continental à costa atlântica, recriando experiências mais diversificadas do que as que temos mostrado ao exterior.
        Editores no exterior buscam autores consagrados em seus países de origem, cujos livros sejam objeto de escolha dos leitores, não que tenham sido comprados para bibliotecas. Se o Brasil quer que sua ficção seja reconhecida, o escritor brasileiro precisa urgentemente reocupar o seu espaço na livraria.
        O editor precisa buscar os novos autores e publicá-los com esse objetivo: a vitrine da livraria. O jornalista literário tem que se aliar ao editor e --além de ler e priorizar o autor brasileiro-- deve jogar fora as muletas teóricas da faculdade e desenvolver parâmetros críticos mais próximos do gosto do bom leitor médio, que os professores e acadêmicos não têm por que reconhecer. O crítico não universitário tem que aprender a apreciar um texto por sua qualidade intrínseca, pelo seu poder encantatório, e não pelo charme intelectual da editora ou de quem apresenta o autor. E o leitor tem que se despir de preconceitos tolos, como está fazendo quanto ao cinema nacional.
        PRIORIDADES Para o escritor, sobram tarefas? A primeira é refazer sua lista de prioridades, percebendo que o importante é passar a ser bem publicado no Brasil e que 20 leitores locais são mais preciosos que uma edição na Bulgária. Estou farta de ser abordada por autores mal publicados, com vendas na ordem de mil exemplares, que, após uma conversa sobre expectativas de carreira, dizem: "Mas meu sonho mesmo é ser traduzido para o inglês ou para o francês".
        Em qual lugar do mundo um autor de mil leitores sonha com tradução? Qual autor americano chegou ao Brasil (que traduz quase toda e qualquer porcaria publicada nos EUA) com esse histórico de vendas? Vá cuidar de seus leitores aqui, caro escritor, vá para a internet falar com eles, vá cobrar distribuição dos seus editores, vá conversar com jornalistas, vá ver se o que você está escrevendo é realmente bom --antes de cultivar o sonho colonizado e aprisionador do "sucesso no Primeiro Mundo".
        A prioridade da literatura brasileira é sua valorização no Brasil. É preciso retomar o espaço perdido no imaginário das pessoas. Nunca mais será como antes, mas TV e cinema jogam hoje a favor da literatura, bebendo cada vez mais em contos e romances para compor suas dramaturgias. Tradução é importante, mas vem depois.
        Vamos continuar a batalhar por nossos autores no exterior, sabendo que o próximo livro brasileiro a ganhar espaço nas estantes das casas e livrarias, nas listas de mais vendidos, nas páginas da internet, nas conversas dos leitores --pela qualidade, força e magia de seu texto-- é que será o principal responsável pela entrada do Brasil no mapa literário internacional.

        Letras brasileiras [reportagem] - Marco Rodrigo Almeida

        folha de são paulo
        LETRAS BRASILEIRAS
        REPORTAGEM
        Instinto de subjetividade
        Notícias da literatura brasileira no século 21
        MARCO RODRIGO ALMEIDARESUMO No atual cenário da literatura brasileira, o sujeito, em sua esfera íntima, passa ao centro das narrativas. Marca principal detectada na ficção contemporânea por críticos ouvidos pela Folha, a tendência autorreferente, para alguns deles, ameaça a relevância do que se produz hoje ao afastar debates de relevância nacional.
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        Caso escrevesse hoje um ensaio como "Notícia da Atual Literatura Brasileira - Instinto de Nacionalidade", Machado de Assis teria bons motivos para alterar o início do texto. A célebre frase "Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade" poderia ter o "nacionalidade" substituído por algo como "subjetividade".
        A "Ilustríssima" ouviu na última semana críticos e acadêmicos para traçar uma espécie de "notícia da atual literatura brasileira versão 2014". Eles responderam a um questionário acerca das tendências, novos rumos, qualidades e deficiências de nossa ficção contemporânea, cuja íntegra está na página do caderno na internet.
        Para quase todos, os enredos centrados no "eu", frequentemente narrados em primeira pessoa, com temas ligados, mais ou menos explicitamente, à vida do escritor, são predominantes na produção nacional dos últimos anos.
        A visada sobre as letras brasileiras atuais remonta em muitos pontos às questões propostas pela "notícia" de Machado. O bruxo do Cosme Velho publicou o texto em março de 1873. Aos 33 anos, era ainda, como alguns críticos costumam brincar, o "Machadinho", autor até então apenas do primeiro de seus romances --"Ressurreição", lançado no ano anterior.
        O texto editado originalmente no periódico "O Novo Mundo", no entanto, já vislumbrava pontos centrais do "Machadão" de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1891) e "Dom Casmurro" (1899) e da própria discussão sobre a literatura brasileira no século seguinte.
        Ele fazia um contraponto a uma ideia corrente nas décadas posteriores à Independência do Brasil, a de que apenas a "cor local", os costumes e as tradições populares, o indianismo e a história de formação do país seriam patrimônios legítimos da literatura brasileira.
        "O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço", escreveu.
        Machado defende que nossa literatura supere tanto a tradição nacionalista quanto a submissão internacionalista. No fim das contas, trata dos dilemas da produção cultural de um país periférico, apartado do cânone internacional, emancipado havia apenas 50 anos e de público leitor mínimo.
        Nos últimos anos, essas indagações, ainda pertinentes e inconclusas, ganharam nova luz em face da internacionalização do mercado literário, da globalização dos enredos, das bolsas de tradução, do fortalecimento das feiras literárias e da capilaridade das redes socais. Nas páginas seguintes, a "Ilustríssima" apresenta análises sobre esse novo cenário.
        DIVERGÊNCIAS A preponderância da escrita focada na confissão de experiências pessoais deu destaque ao termo "autoficção", tradicional em países da Europa --caso da França, onde foi cunhado nos anos 1970 para designar a mistura entre autobiografia e ficção. Nos últimos anos, foi empregado para classificar obras das mais variadas, como "O Filho Eterno" (Cristovão Tezza), "Divórcio" (Ricardo Lísias) e "A Maçã Envenenada" (Michel Laub). Embora o domínio do texto autorreferencial no Brasil seja tido como fato, a reação a ele é bastante divergente.
        "O termo autoficção é um equívoco, senão um desastre", afirma Luiz Costa Lima, professor emérito da PUC-RJ, e autor, entre outros, de "Frestas: a Teorização em um País Periférico" (Contraponto). "Supõe que haja uma maneira de falar de si --auto(biografia)-- que seja tão verdadeira' que não contenha uma montagem (em geral inconsciente) fictícia. E, ao contrário, que a ficção --como consolidação verbal de um relato fictício-- seja absolutamente isenta de traços biográficos ou extraídos da realidade'."
        O crítico da Folha Manuel da Costa Pinto também se refere ao termo como "equívoco de teoria literária". "No Michel Laub, não há rigorosamente nada que estabeleça esse vínculo com a biografia do autor dentro das obras, ou mesmo por informações externas. E acho que o mesmo se aplica ao Marcelo Mirisola, ao menos nos livros que li. Acho que realmente há no caso de O Filho Eterno', que explora vivências biográficas conhecidas e explicitadas pelo autor --mas que no entanto é um caso ímpar na obra de Tezza. Seus livros posteriores nada têm de autoficção."
        Outra crítica é lançada por Alcir Pécora, professor de teoria literária da Unicamp. "O que tenho lido na esfera do que se autonomeia como autoficção está bem mais próximo da falsificação da experiência e da história como espetáculo vulgar", diz.
        Ele comenta que a produção recente é autorreferente, bem dispersiva e pouco marcante, em qualquer tendência que se observe. "Resumindo, na poesia, a praga é o kitsch, falta de fibra e de objetividade. Na prosa, o romanesco ralo, batido, com remissões ostensivas ao mundo dos livros e à cultura de fachada." E arremata: "Não dá para fazer boa literatura fazendo glosa ou trívia de literatura".
        No campo oposto está Luciana Hidalgo, uma das principais pesquisadoras da prosa autorreferencial no país."O que interessa na autoficção é que esse eu', muito reprimido na história, pode enfim se revelar e se assumir, sem repressão", comenta. "Isso não necessariamente significa qualidade, mas acho que há ótimas narrativas autoficcionais totalmente centradas nas vivências íntimas de seus autores."
        Essa visão é compartilhada pelo escritor e crítico Luiz Brás. Embora diga que nunca escreveu uma única linha autobiográfica, ele avalia que o apreço às vezes ingênuo pela verdade "está salvando da falência a literatura brasileira".
        "Esgotada a hegemonia modernista, nossa produção literária corria o risco de também definhar. Mas foi salva pela literatura de linguagem transparente e conteúdo subjetivo de qualidade. Na ficção, os jogos metalinguísticos recuaram em favor da representação realista. E, na poesia, o estruturalismo antipático da poesia concreta perdeu todo o prestígio para a irreverência simpática da poesia marginal", provoca.
        SENTIDO POLÍTICO Decorrência natural da subjetivação, segundo os críticos, seria a ausência de um sentido político em parte significativa da prosa brasileira. Costa Pinto fala de uma recuperação do conto urbano dos anos 1960 e 1970, mas com elementos mais centrados nos desvios individuais. Como exemplo, tanto no conto quanto no romance (para o qual, diz, os autores levam a estrutura elíptica das narrativas curtas) cita Luiz Ruffato, Marçal Aquino, Joca Reiners Terron e Ana Paula Maia.
        "Acho que a definitiva urbanização do país, a partir dos anos 1960, derrubou a ideia de um destino singular, sobre o qual a literatura teria a tarefa de meditar; sintonizou a literatura com questões gerais --embora a ficção sempre trate também de questões locais."
        O professor de literatura da UFRGS Luís Augusto Fischer propõe uma explicação sociológica para a questão."Agora são bem mais raros os casos de escritores que lidaram com obstáculos realmente duros em sua trajetória. Isso redunda na quase ausência dos temas associados à mobilidade social no repertório temáticos das novas gerações."
        As narrativas ancoradas não nos fatos externos, mas na condição testemunhal, podem representar ainda "uma forma de fugir ao isolamento estrutural do escritor em um país escasso de leitores".
        As exceções, diz Fischer, são muito raras, mas dotadas de bom acerto --como "o mosaico ao mesmo tempo realista e experimental" de Luiz Ruffato e "o realismo minucioso e antiépico" de Rubens Figueiredo.
        É com surpresa que Pedro Meira Monteiro, professor de literatura brasileira na Universidade Princeton (EUA), diz perceber, após tantos anos de predomínio de uma literatura mais dura e realista, uma certa tendência a buscar espaços íntimos, em que a delicadeza e o lirismo dão o tom."Eu não chamaria de deficiência, mas é claro que a questão das classes sociais pode ficar de fora dessa literatura."
        Hidalgo também não acredita que a literatura atual seja politicamente engajada ("as redes sociais têm cumprido esse papel de forma mais direta", diz). Nega, porém, que a autoficção seja alienada.
        "Em Todos os Cachorros São Azuis', Rodrigo de Souza Leão [1965-2009] narra com muito humor o dia a dia de um personagem (chamado Rodrigo) numa clínica psiquiátrica. Ele parte de sua própria experiência como esquizofrênico e, ao tecer essa bela ficção, deixa entrever todas as questões mais delicadas do que significa conviver com os próprios delírios e não ter o menor controle sobre isso (talvez apenas pela própria ficção). É, na minha opinião, um ato político essa exposição de si mesmo, fora da chamada normalidade'."
        Para Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, o caso mais exitoso nessa seara é o de Ricardo Lísias no livro "Divórcio".
        "É a prova de que um texto formado a partir de um explícito pacto autoficcional pode ser altamente político e significativo. Se no ato de leitura não lançarmos nossa atenção para os elementos biográficos do autor, estamos diante de uma contundente representação da classe média paulistana."
        ÉTICA E ESTÉTICA Ser ou não político, argumenta Costa Lima, é apenas uma das possibilidades temáticas de um escritor. No caso, de relevância ética, não estética. O dilema seria bem mais amplo.
        "Creio que a falta de debate de temas de relevância nacional, ou mais especificamente políticos, não deve ser separada de uma questão mais ampla: a falta de reflexão aprofundada em nossa expressão literária. Claro que há dimensão política em Machado, mas está conjugada com outras. É a dimensão humana que conta."
        Essa dimensão ele identifica nas obras de Milton Hatoum, Nuno Ramos e no romance de estreia de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, "As Visitas que Hoje Estamos". E em poucos obras mais. A seu ver, a razão está relacionada ao "exagero da subjetividade".
        "Esse ensimesmamento excessivo, no romance e sobretudo na poesia, piora o estado das coisas. A reflexão exige um distanciamento, uma saída de si."
        A opinião do professor ecoa, em parte, a de Machado, que no artigo de 1873 dizia estar o romance brasileiro isento de "tendências políticas, e geralmente de todas as questões sociais", alheio "às crises sociais e filosóficas".
        Uma diferença fundamental, contudo, os separa, talvez ainda mais vasta que os 140 anos entre o ensaio e esta enquete. Machado falava de uma literatura ainda adolescente, insípida em muitos aspectos, mas ativa no debate nacional de sua época.
        Hoje, acreditam os críticos, essa forma de representação se perdeu. "Um importante sintoma da produção contemporânea é o esvaziamento do desejo de representar o Estado-nação. Não há mais espaço para a narrativa fundacional da nação", conta Patrocínio.
        "O que ocorre", acrescenta Pécora, "é que essa centralidade obtida em decorrência do fortalecimento do Estado-nação é um ciclo terminado, em função mesmo do enfraquecimento do Estado-nação".
        "Isto posto", conclui, "não entendo que seja possível qualquer retorno à situação histórica anterior nem acho que nos cabe qualquer nostalgia da brasilidade perdida. Cabe, sim, à literatura buscar descobrir uma nova centralidade para si no cerne da vida social. É isso ou conformar-se a um papel lateral, secundário na cultura".
        Encerrando esta tentativa de "notícia", podemos retomar, com modéstia --e desta vez sem alteração-- o fim do ensaio de Machado: "eis aqui por alto os defeitos e as excelências da atual literatura brasileira, que há dado bastante e tem certíssimo futuro".

          Letras brasileiras [crítica] - Beatriz Resende

          folha de são paulo
          LETRAS BRASILEIRAS
          CRÍTICA
          Exercícios de 2013
          Como se movimenta a prosa recente
          BEATRIZ RESENDERESUMO A aposta na desestabilização das narrativas, fruto do esgotamento do modelo do romance, é uma tendência da literatura brasileira recente. Mescla de gêneros, tramas fragmentadas, intervenções formais e gráficas, mais comuns nas artes plásticas que nos livros, são recorrentes nas ficções mais significativas.
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          A participação do Brasil como homenageado da Feira Literária de Frankfurt, em 2013, fez com que a mídia se ocupasse de autores contemporâneos, das diversas formas de divulgar a cultura brasileira no exterior, dos financiamentos à cultura e da política do livro praticada pelo Estado. As repercussões do evento, que reuniu contingente considerável de escritores e pessoas ligadas ao mundo das letras, com acertos e erros que atravessaram três diferentes gestões do Ministério da Cultura, deram publicidade especial ao mundo do livro.
          Além disso, porém, o evento evidenciou a necessidade quase desesperada, por parte de editores e escritores, de conquistar um mercado externo, em função da debilidade do mercado editorial interno. A venda de direitos em dólares ou euros, surgindo como forma imperiosa de sobrevivência econômica, tornou a questão bem mais importante que o debate sobre a difusão no exterior da literatura criada no Brasil.
          Se por um lado nossa literatura -pelo aumento e pela pluralidade da produção, pela forte ruptura com formas desgastadas e conservadoras e com resquícios nacionalistas, regionalistas e similares- encontra-se em condições de buscar um público internacional, por outro é incômoda a necessidade da tradução como condição mesma de existência. Mais do que isso, surge o perigo de obras serem escritas ou publicadas já de olho em possíveis vendas para o exterior (ou, numa variante, com vistas a adaptações para cinema ou TV).
          Não se confunda tal alerta com obscurantismo, busca por pureza ou medo do capital. O sucesso internacional de um autor é absolutamente benéfico para o conjunto da nossa literatura, mas não pode ser o objetivo primeiro.
          TENDÊNCIAS Ao mapearmos a produção recente, importa, mais do que listar nomes de romancistas, identificar tendências. Evidentemente as propostas são concretizadas por autores e é inevitável que sejam citados -isso não deve significar que eles configuram algum tipo de cânone pessoal.
          O romance-sintoma do panorama recente me parece ser "Reprodução" [Companhia das Letras, R$ 37, 168 págs., 2013], de Bernardo Carvalho. Digo sintoma no mesmo sentido em que "Esperando Godot", de Samuel Beckett, é sintoma da Europa do pós-Guerra.
          Em "Reprodução", cuja ação se situa no não espaço de um aeroporto, falas sem marcação de diálogo reproduzem clichês veiculados pelas mídias sociais, pela comunicação de massa, por discursos preconceituosos e discriminatórios e pelas religiões. Pelo lado de fora circulam a corrupção, o autoritarismo e, sobretudo, a ignorância que recusa a imaginação. Um mundo que prescinde da literatura e por esta falta é enformado.
          Quando se falava, com entusiasmo, da chamada geração 2000, ao mesmo tempo em que se apostava na renovação e no crescimento da literatura, partilhávamos certo medo de que duas ameaças se concretizassem: que a produção dos autores que surgiam não se mantivesse e que a pulsão criativa não se desdobrasse em novos autores.
          Nesta década seguinte já vemos que os temores eram infundados e a safra do ano passado bem confirma isso. Os principais autores surgidos naquele momento continuam, quase todos, produzindo com interesse. A geração 2000 desdobrou-se no grupo dos "melhores jovens escritores brasileiros", escritores com menos de 40 anos incluídos em volume da revista Granta: alguns dos mais jovens de antologias anteriores deram lugar aos mais jovens entre os selecionados pela publicação em 2012.
          O esgotamento do modelo do romance, que os modernos já apontavam, merece ser lembrado; a produção recente aposta na desestabilização da narrativa. A autoficção, a temática memorialista (que memórias tão breves!), o questionamento de identidades vêm, nos melhores casos, atravessados por intervenções formais que vão de alterações no discurso narrativo a intervenções gráficas.
          O deslocamento do território nacional, contribuição incentivada pela coleção Amores Expressos, dá originalidade a "Ithaca Road" [R$ 34, 112 págs., 2013] de Paulo Scott, publicado pela série da Companhia das Letras no ano passado -pouco depois do importante "Habitante Irreal" [Alfaguara, R$ 39,90, 264 págs., 2012].
          Tanto a coleção como a Granta em português mostraram que a vida literária não é constituída apenas por conversas em bares ou pela veiculação dos raros suplementos ou páginas dedicados aos livros. Esforços de produção editorial contam muito.
          Paloma Vidal e Ana Paula Maia, duas possibilidades absolutamente diferentes, comprovam, com seus novos roman
          ces - "Mar Azul" [Rocco, R$ 29,50, 176 págs., 2012] e "De Gados e Homens" [Record, R$ 30, 128 págs., 2013], respectivamente -sua capacidade de continuar imprimindo forte marca pessoal: a primeira, cerebrina e com uma escrita sedutoramente melancólica; a segunda, simulando uma escrita "pulp fiction", mas comovente na criação de personagens do mundo do trabalho e seu entorno cruel.
          "Barba Ensopada de Sangue" [Companhia das Letras, R$ 42, 424 págs., 2012], de Daniel Galera, talvez tenha sido um dos livros nacionais que mais atenção receberam no momento de seu lançamento. O autor dá um salto adiante em sua escrita de formato realista; a introdução do horror, do terrível, do agônico, altera a dimensão da realidade, dramatizando-a.
          GÊNERO Além de experimentar dentro dos espaços em que já vinham se exercitando, alguns autores optaram por adentrar o romance como um gênero novo.
          Assim foi com o premiado contista João Anzanello Carrascosa, que estreou no gênero com "Aos 7 e aos 40" [Cosac Naify, R$ 39,90, 224 págs., 2013]. O autor recorre a recursos gráficos para separar as duas partes da narrativa, a do menino e a do homem que ele se tornou. O romance mantém o ímpeto do conto mas vai além, atribuindo à narrativa do personagem adulto um ritmo que não se delimita como prosa ou poesia -tanto faz.
          Troca mais radical é a de Laura Erber, poeta e artista visual que também estreou no romance, levando para ele formas de composição plásticas."Esquilos de
          Pavlov" [Alfaguara, R$ 32,90, 176 págs., 2013] incorpora imagens que se negam ao papel de ilustrações; antes fazem um trânsito entre expressões artísticas, numa perspectiva promissora.
          A noção de obra como processo, que vigora hoje nas artes cênicas e visuais, trazida para o romance, provoca um leitor menos estático. Um exemplo é o segundo livro de Ieda Magri, "Olhos de Bicho" [Rocco, R$ 24,50, 160 págs., 2013]. Referências literárias, leituras prévias e uso de outras linguagens, como a dramatúrgica, dão ao texto uma inovadora perspectiva de ensaio, de obra inconclusa.
          De algum modo, a ideia de um leitor que deve completar a obra guia também a produção de textos curtos ou curtíssimos que vêm ocorrendo, não apenas em contos mas também em romances formados por fragmentos, como "A Invenção do Amor" [7 Letras, R$ 28, 132 págs., 2013], de Jorge Viveiros de Castro.
          Nas produções ficcionais de jovens escritores, chama atenção certo bom comportamento, um temor de enfrentar o erótico. Essa, aliás, foi a marca de quase toda a literatura modernista, escrita por uns castos que contrastavam com escritas tidas como menores, de antecessores seus. Duas obras de 2013 romperam essa barreira e merecem atenção.
          O primeiro é o divertido romance de Juliana Frank, jovem de 28 anos, desbocada e com muito humor, raridade na literatura escrita por mulheres. A narradora de "Meu Coração de Pedra-Pomes" [Companhia das Letras, R$ 31, 112 págs., 2013], ainda mais jovem que a autora, é uma "lunatiquinha" que atravessa a violência da cidade com sua sensibilidade.
          O segundo é um belo romance: "Todos Nós Adorávamos Caubóis" [Companhia das Letras, R$ 37, 192 págs., 2013], de Carol Bensimon. Este é o terceiro livro da autora, que já havia mostrado, com "Sinuca embaixo d'Água" [Companhia das Letras, R$ 36, 144 págs., 2009], o interesse que sua escrita pode despertar.
          O novo livro, que registra seu amadurecimento como escritora, é uma espécie de "Thelma & Louise", com Cora e Júlia num carro durante as férias na Serra Gaúcha. A bem da verdade, um pouco de gauchismo demais, com direito a descrição de trajes típicos, quase atrapalha. Trata-se, porém, de uma rascante história de amor entre as duas jovens, com toda a melancolia das relações feitas de idas e vindas, de dificuldade de aceitação e muito tesão. Ainda que seja uma narrativa tradicional, o romance se impõe pelos diálogos e pelo contraste entre a juventude das duas e a aridez dos cenários.
          Acrescente-se ao elenco gaúcho a forte contribuição de Veronica Stigger. Depois do desmonte de gêneros e outros rótulos por "Os Anões" [Cosac Naify, R$ 42, 60 págs., 2010] e "Delírio de Damasco" [Cultura e Barbárie, R$ 30, 80 págs., 2012], publicou o que Flora Süssekind chamou de "experimento narrativo mais longo", "Opisanie Świata" [Cosac Naify, R$ 25, 160 págs., 2013].
          A narrativa se ancora num episódio tradicional, a carta de um filho moribundo instando o pai, que não conhece, a ir despedir-se dele. Inicia-se então a estranha viagem do Sr. Opalka por trem e navio, da Polônia à Amazônia. Textos diversos, personagens-citação, como Raul Bopp, e outras intervenções, inclusive gráficas, desmontam o pseudorrelato de viagem para criar o texto de uma das mais significativas ficções do ano passado.
          PRÊMIOS Para concluir pelo caminho por onde começamos, o das iniciativas de promoção e divulgação da literatura, vale passar pelos prêmios e a influência que podem ter em lançamentos e divulgação do trabalho de novos escritores.
          Publicado em 2013, "Quiçá" [Record, R$ 42, 240 págs.] foi um grande acerto do Prêmio Sesc de Literatura 2011. No romance, Luisa Geisler -que nasceu em 1991, foi premiada em 2010 na categoria conto do mesmo prêmio e era a mais jovem dos autores na seleção brasileira da Granta em 2012- cruza fios narrativos, tempo e espaços diferentes, com rara habilidade, para falar da amizade entre uma garota de 11 anos, filha de pais ocupados demais ganhando dinheiro, e um rapaz que tentara suicídio.
          Em edição 2013, o Prêmio São Paulo inovou dividindo os estreantes em dois grupos etários: os de menos de 40 anos e os de 40 anos ou mais. O contemplado mais jovem, Jacques Fux, 36, premiado por "Antiterapias" [Scriptum, R$ 45, 168 págs., 2012], surpreende pela erudição, pelas referências acadêmicas e literárias e pela autoironia, rara nos jovens. Borges e Perec visitam a narrativa em citações -ou contaminações. Um fatiamento do romance em partes e as intervenções gráficas sacodem o leitor. A edição, em fonte minúscula com um texto que não respira, é torturante. Mas o leitor está salvo -o livro existe em e-book.
          Uma promessa interessante, lançado também a partir de um concurso, o Prêmio Paraná de Literatura, é Caetano Galindo. O vencedor na categoria contos traz para a criação ficcional a experiência de quem pesquisa e luta com as palavras no ofício da tradução. Galindo recebeu muitos reconhecimentos, entre os quais o Jabuti pela mais nova versão de "Ulysses" (Peguin- Companhia, 2012), de James Joyce.
          Em "Ensaio sobre o Entendimento Humano" (que por ora recebeu somente edição não comercial, por parte do prêmio, devendo sair pela Companhia das Letras no ano que vem) põe em discussão não apenas os limites do gênero conto, mas da prosa de ficção ela mesma. De sua experiência anterior com as palavras, o autor traz segurança na criação do convívio entre linguagem coloquial e livre e uma forte erudição. O resultado são textos tão provocadores quanto desassossegados.
          A propósito de Galindo, professor da Universidade Federal do Paraná, uma última constatação sobre o universo da produção literária. Merece destaque o crescente número de autores que são professores universitários. Talvez isso contribua para diminuir o fosso entre a produção literária contemporânea e os estudos das literaturas em nossas universidades.

            Letras brasileiras [mercado] - Raquel Cozer

            folha de são paulo
            LETRAS BRASILEIRAS
            MERCADO
            Um samba de breque
            A ficção nacional avança, mas para
            RAQUEL COZERRESUMO Pesquisas de mercado e levantamento da Folha junto a editores indicam que ficcionistas brasileiros ganharam espaço nos catálogos, no embalo de Frankfurt, mas que as vendas continuam incertas. Apesar de alguns êxitos pontuais, participação nacional nas vendas de ficção é tímida e teve leve queda em 2013.
            -
            NAS LISTAS DE MAIS vendidos, o nacional "Fim" (Companhia das Letras), de Fernanda Torres, figura isolado há semanas entre romances de John Green e estrangeiros afins. Seu sucesso, porém, não serve como parâmetro de repercussão da ficção brasileira -e não apenas porque a autora é uma atriz reconhecida. A leitura em geral positiva da crítica decerto impactou menos o leitor que a nada desprezível campanha de marketing em torno do romance, que incluiu inserções na TV Globo e placas de publicidade em espaços públicos.
            Com 70 mil cópias vendidas em três meses, "Fim" é um ponto fora da curva de um momento em que casas comerciais passaram, timidamente, a dedicar mais atenção à produção nacional. Embora 2013 possa vir a ser lembrado como um ano de investimentos inéditos na área -a Companhia das Letras dobrando o número de lançamentos de romances, contos e poesia brasileiros, com 16 títulos no ano; a Intrínseca estreando no segmento; editoras emplacando traduções de seus autores para outros países-, no geral as vendas no país não acompanharam o movimento.
            Segundo a empresa alemã de pesquisa de mercado GfK, que mensura 69% da comercialização de livros no varejo do país, as vendas de obras de ficção nacional (em unidades) tiveram, de 2012 para 2013, aumento inferior ao do mercado como um todo. Cresceram 2,4%, ante 6% da expansão nas vendas da somatória de todos os gêneros. Com isso, a participação da ficção nacional no mercado de livros do país sofreu uma queda sutil, de 7,6% para 7,4%.
            Exemplos mais dentro da curva podem vir da mesma Companhia das Letras que publicou a obra de Fernanda Torres. Para ficar em dois outros romances nacionais de estreia publicados em 2013, "Memória de Pedra", de Mauricio Lyrio, e "Em Breve Será Tudo Mistério e Cinza", de Alberto A. Reis, tiveram menos de mil exemplares vendidos cada um.
            Num mercado em que o padrão para autores estabelecidos é alcançar apenas alguns poucos milhares de títulos vendidos, conquistar público leitor mais amplo não é tarefa simples nem para editoras com forte trabalho na área de divulgação, como a Intrínseca.
            Em 2013, a editora carioca usou para propagar seus dois primeiros romances nacionais, "Sal", de Letícia Wierzchowski, e "Vidas Provisórias", de Edney Silvestre, as mesmas redes sociais com as quais bombou as obras do americano John Green, que vendeu mais de 800 mil livros no país desde 2012.
            Lançados no meio do ano passado com tiragens iniciais de 20 mil e 30 mil cópias, respectivamente, os livros de Wierzchowski e Silvestre tiveram por ora pouco mais de 4.000 e 8.000 exemplares vendidos. São números similares aos de dois romances de 2013 considerados bem-sucedidos pela Companhia das Letras, "O Drible", de Sérgio Rodrigues, e "República das Abelhas", de Rodrigo Lacerda, com 4.000 e 6.000 cópias.
            Nesse cenário, "Fim", com apenas dois meses nas livrarias em 2013, foi a segunda obra nacional (sem entrar no domínio da não ficção) mais vendida do ano, perdendo somente para "Toda Poesia" (Companhia das Letras), de Paulo Leminski, com 80 mil exemplares em dez meses.
            O ANO SEGUINTE Passado o frenesi em torno da homenagem ao Brasil na Feira de Frankfurt 2013, precedida pelo entusiasmo de grandes editoras com as pratas da casa, o cenário hoje é mais de manutenção que de crescimento.
            A Intrínseca tem só uma ficção adulta prevista para o ano, "Tempos Extremos", de Miriam Leitão. A Companhia das Letras talvez fique aquém do número de nacionais de 2013, numa lista que, se tudo der certo, terá os novos de Chico Buarque e de Milton Hatoum.
            A Record, líder em lançamentos entre as editoras de interesse geral, espera manter suas mais de 20 obras anuais de ficção nacional, incluídos aí o retorno de Santiago Nazarian ao romance adulto e os novos de Altair Martins e Cristovão Tezza. A Alfaguara, com cinco ficções brasileiras em 2013, também planeja manter sua média.
            "O trabalho em cima de autores nacionais é lento. Você ajuda a construir a carreira deles até o momento em que começam a ter repercussão", diz Marcelo Ferroni, editor da Alfaguara, que no ano passado viu repercutir o segundo romance de um autor até então desconhecido, José Luiz Passos ("O Sonâmbulo Amador", do fim de 2012, vencedor do Portugal Telecom 2013), e o mais recente de Ricardo Lísias, "Divórcio".
            "Lísias é um exemplo de autor que a cada romance vende mais. O primeiro que publicamos dele, 'O Livro dos Mandarins', saiu em 2009 com 3.000 cópias e teve reimpressão agora. 'O Céu dos Suicidas', de 2012, já foi reimpresso duas vezes. 'Divórcio' está numa curva ainda maior de vendas, com três tiragens distribuídas e 4.500 exemplares vendidos", diz.
            À exceção da Intrínseca, que informa levar em conta "todos os aspectos específicos e possibilidades de comunicação, de marketing e comerciais de cada obra", as editoras em geral não se lançam com grandes expectativas de venda sobre obras de ficção nacional.
            "O papel do editor literário é olhar para a frente. Se for bom, tem de investir mesmo no que não tenha tanta saída. Uma autora como Elvira Vigna ['O que Deu para Fazer em Matéria de História de Amor'], por exemplo, merecia ganhar um top prêmio literário, ter um público muito maior. Enquanto isso não acontece, trabalhamos a obra dela", diz Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras.
            Enquanto isso, também, a editora começa a olhar para a seara mais rentável da ficção pop nacional. Em março, publica o thriller "Dias Perfeitos", de Raphael Montes, com tiragem inicial de 10 mil exemplares. Mas é uma ficção pop com respaldo crítico -o primeiro livro do autor, "Suicidas" (Benvirá), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.
            BEST-SELLERS Uma crítica à lista de autores que representaram o Brasil em Frankfurt dizia respeito à ausência de uma nova geração de escritores nacionais que frequentasse as listas de mais vendidos. São nomes como Paula Pimenta, autora de infantojuvenis com mais de 400 mil livros vendidos pela Autêntica, e Eduardo Spohr, com cerca de 700 mil exemplares de seus romances de fantasia comercializados pela Verus.
            Foi a partir de um autor dessa linha, André Vianco, com mais de 500 mil exemplares de seus títulos de fantasia vendidos, que a Novo Século montou seu catálogo tal como é hoje, com 70% de autores nacionais e 30% de estrangeiros. Luiz Vasconcelos, editor-chefe da casa paulistana, gosta de dizer que se trata da editora que mais publica escritores nacionais hoje no país -a previsão para 2014 é lançar 163 títulos nesse segmento.
            O pulo do gato foi a criação, em 2003, do selo Novos Talentos da Literatura Brasileira, pelo qual os aspirantes a escritores aceitavam pagar parte dos custos de produção de seus livros. Mas não bastava chegar e pagar -para poder pagar, era preciso antes passar pelo crivo da comissão editorial da editora.
            Desse modelo, saíram nomes como Laura Conrado, de "chick lit", e Renata Ventura, de fantasia, que não dizem nada à crítica literária do país, mas tiveram lá seus 10 mil exemplares vendidos em dois ou três anos. Quando o autor emplaca vendas boas para um ficcionista nacional, como elas, ganha um "upgrade" dentro da Novo Século, passando a ser publicado pelo selo principal da casa.
            O pagamento, feito pelos autores, de parte da tiragem inicial de seus livros, após seleção por uma comissão editorial, é um formato ao qual já recorriam casas independentes reconhecidas pela qualidade de suas edições, como a carioca
            7Letras e a mineira Scriptum.
            Menos comerciais que a Novo Século, elas não chegam perto de colocar títulos nas listas de mais vendidos, mas já apresentaram ao mercado nomes elogiados pela crítica como Ana Paula Maia (hoje na Record) e Ana Martins Marques (na Companhia das Letras). Sobrevivem sem grandes lucros, mas estão entre as editoras que fazem diferença no cenário superpopuloso de casas independentes voltadas à publicação de autores nacionais.
            Da Scriptum saiu, no fim do ano passado, o vencedor do Prêmio SP de Literatura na categoria estreante com menos de 40 anos. A obra em questão, "Antiterapias", de Jacques Fux, é exemplar da situação de lançamentos nacionais independentes no país. Saiu com 500 exemplares em agosto de 2012 e, até a véspera do anúncio do prêmio, tinha vendido 250 deles. Os 250 restantes se esgotaram após a premiação. A reedição, prevista para breve, terá mil exemplares.

              Carlos Heitor Cony

              folha de são paulo
              O mistério da santidade
              RIO DE JANEIRO - Abordei, tempos atrás, de maneira bastante ligeira, em uma crônica, o problema da santidade. Isso me valeu algumas descomposturas de damas e mães de família, pressurosas em espinafrar um homem "que não entende nada de santidade" e que se mete, com imprudente constância, a falar no assunto.
              Todas as espinafrações vieram de pessoas católicas. Creem elas que só por meio do catolicismo é possível a santidade, como se houvesse um único e imutável tipo de santidade.
              Não estou aqui para gastar latim à toa, ensinando os princípios mais elementares do problema. Mas gostaria de acentuar, mais uma vez, o caráter existencial do santo, independente de qualquer ascese, de qualquer mística. Há santos na Antiguidade clássica, na pré-história, no Tibete, nas regiões mais bárbaras da África.
              Há santos que praticaram a antropofagia e há santos que comeram gafanhotos, como são João Batista --um santo autêntico, independente de sua consanguinidade com o Redentor. Por falar em Redentor, este foi um santo existencialmente completo, independente também de qualquer credo religioso ou filosófico. No mesmo caso está o hedonista Maomé, o materialista Lênin, e muitos outros vultos pomposos ou não da História Universal ou da nossa história particular.
              Há a santidade sem-Deus, que Albert Camus descreveu com abundância de princípios, e há a santidade com-Deus, cujo maior exemplo, para mim, é a do Cura d'Ars. E há, sobretudo, a santidade com-o-Homem, cujo protótipo seria Francisco de Assis.
              Enfim, há mil tipos de santidade e todos eles só têm em comum o caráter existencial (ou até mesmo existencialista) da santidade, da pureza, da reta intenção.
              Não desejei insultar ninguém que pensa diversamente, mas bem que poderiam dispensar o insulto ao adversário.

              Helio Schwartsman

              folha de são paulo
              Eutanásia infantil
              SÃO PAULO - Algumas pessoas ficaram chocadas --e pediatras e a Igreja Católica protestaram--, mas vejo com bons olhos a decisão dos belgas de permitir que crianças também tenham acesso à eutanásia, desde que sofram de uma doença incurável e demonstrem ter capacidade de tomar decisões.
              Situações que envolvem eutanásia nunca são fáceis. Entendo a posição dos que pretendem traçar a incolumidade da vida humana com fronteiras nítidas, mas receio que, quando nos debruçamos sobre casos concretos, isso não passe de uma ficção. Pior, uma ficção que pode levar pacientes terminais a sofrer mais do que seria indispensável.
              Com efeito, nem mesmo aqueles que sustentam que a vida é sagrada, isto é, que dão ainda um passo além da incolumidade, defendem que o médico faça tudo a seu alcance para prolongar a existência do moribundo, o que, convenhamos, poderia até ser qualificado como tortura.
              A igreja aceita bem a chamada suspensão do tratamento fútil. O próprio papa João Paulo 2º, quando a irreversibilidade de seu quadro clínico ficou patente, recusou-se a voltar para uma UTI.
              Religiosos costumam estrilar apenas quando a descontinuação do tratamento assume um caráter mais ativo, como desligar o respirador ou retirar a sonda de alimentação.
              Meu argumento é que essa divisão peca por artificialismo. Não consigo ver muita diferença entre deixar de realizar um procedimento que evitaria a morte, desligar uma máquina da tomada e ministrar deliberadamente uma dose letal de opioide. A doutrina do duplo efeito, que tenta distinguir entre objetivos explícitos e resultados antevistos, mas não desejados, parece-me mais um exercício de metafísica do que um critério útil para a tomada de decisões bioéticas.
              Mais razoável defender que cada qual, até crianças, é dono de sua vida e cabe a ele e ninguém mais decidir quando é hora de jogar a toalha.

                Bem-estar, mal-estar [editorial folha]

                folha de são paulo
                Bem-estar, mal-estar
                Dados sobre a popularidade presidencial e as intenções de voto não parecem refletir o acúmulo de tensões sociais e econômicas no Brasil
                Prossegue sem alterações significativas o quadro das intenções de voto para presidente da República, segundo a pesquisa Datafolha publicada hoje. Tampouco a popularidade de Dilma Rousseff (PT), parcialmente recuperada após uma vertiginosa queda por ocasião das manifestações de junho, conhece variação digna de nota.
                Talvez seja esse, paradoxalmente, o dado de maior relevo a comentar nesse levantamento.
                No plano econômico, acumulam-se indicadores de uma situação ainda mais difícil do que se prognosticava em meados de 2013.
                A alta do dólar, os recordes negativos na balança comercial, as correções --sempre para baixo--no que se prevê para o PIB e o desempenho, insatisfatório ao extremo, dos investimentos seriam razões suficientes para deixar de sobreaviso os estrategistas do Planalto.
                Por outro lado, a vida cotidiana de larga parcela da população está longe de espelhar aquilo que os especialistas americanos intitulam de "feel good factor", a vaga sensação de que tudo anda bem.
                Basta lembrar fatores diretamente ligados ao dia a dia dos cidadãos, como as ameaças de apagão, o permanente colapso dos transportes e o agravamento da insegurança pública --de que são emblema o caso das patrulhas do Flamengo e seus acorrentadores de menores, assim como a renitência, desta vez assassina, dos tumultos protagonizados pelos "black blocs".
                Enquanto se debate com a meta, aliás crivada de incógnitas, de realizar sem sustos a Copa do Mundo, e enquanto enfrenta, quase sempre sem glórias, as rebeliões de sua base parlamentar, o governo Dilma é considerado ótimo ou bom por 41% da população.
                Bem longe, por certo, dos 65% que obtinha quase um ano atrás. Distante, todavia, dos meros 30% que registrou no final de junho.
                Seja como for, continua fraca a penetração dos principais candidatos oposicionistas à Presidência. Marina Silva (PSB) chega a 23%, mas não tem garantida a cabeça de chapa na coalizão; os demais nomes, como Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB), não passam de 16% das intenções de voto.
                Da disparidade entre o cenário eleitoral e a inquietação pressaga que se sente nas metrópoles, algumas hipóteses podem-se aventar.
                Talvez os indicadores de mal-estar venham apenas de setores localizados, e se constituam em fatos de curto voo. Talvez seja o próprio sistema institucional que se mostra incapaz de escutar e atender as demandas da sociedade --a qual, dividida, continua a esperar que as candidaturas deem conta dos dilemas que apresenta.

                  Suzana Singer [ombudsman folha]

                  folha de são paulo
                  OMBUDSMAN
                  93 anos, mas cabeça de...
                  Resumo das posições editoriais surpreende os leitores que consideravam aFolha mais conservadora
                  Muita gente se surpreendeu com as posições editoriais da Folha, resumidas na quarta-feira passada, dia do aniversário do jornal. Para uma senhora avançada na terceira idade (93 anos), a Folha é até moderninha. Defende a legalização das drogas, desde que seja "gradual" e aprovada por plebiscito ou referendo. Já o casamento gay deve ser igualado ao heterossexual, sem necessidade de consulta à população.
                  O jornal considera imprescindível o pedágio urbano. É a favor dos médicos estrangeiros, embora considere a medida paliativa. Na área econômica, defende a redução do gasto público e o aumento da idade da aposentadoria.
                  Folha não faz a linha Sheherazade: é contra o endurecimento das penas e contra a redução da maioridade penal, mas acha necessário mudar a lei para que menores que cometeram delitos graves possam ficar internados por mais tempo.
                  Em política, é a favor do voto facultativo porque a participação em eleição deve ser um direito e não um dever imposto pelo Estado. Está correto concluir que o jornal se coloca no "espectro da social-democracia", segundo o editor de "Opinião", Uirá Machado. "Mas sem se confundir com partidos. O jornal é apartidário e não apoia candidatos."
                  "O que a Folha pensa" (http://remediosdirce.blogspot.com.br/2014/02/o-que-folha-pensa.html) foi útil para o leitor que não tem paciência para os editoriais e para desfazer imagens equivocadas sobre o jornal. "Achei 'animal' explicitar as posições em campos polêmicos, alguns bem espinhosos. Com certeza, já não vejo vocês com os mesmos olhos", diz o geógrafo Paulo Castro, 26.
                  Por causa de alguns colunistas e da forma como o jornal cobriu as manifestações de junho, Paulo considerava a Folha mais conservadora. "É bom saber que isso não é uma verdade por completo", diz.
                  Num jornal com mais de uma centena de colunistas, a balbúrdia de opiniões é tamanha que muitas vezes a voz oficial, expressa nos editoriais, se apaga. Iniciativas como essa, de sistematizar pontos de vista assumidos ao longo dos anos, ajudam o leitor a entender melhor o jornal que ele tem nas mãos. Serve ainda de instrumento de fiscalização: sabendo o que a Folha pensa, fica mais fácil cobrar que o noticiário se mantenha plural e sem influência dos editoriais.
                  IMAGENS QUE ENGANAM
                  Era uma vez um menino sírio de quatro anos que, fugindo do seu país, cruzou sozinho o deserto. Um conterrâneo seu, desamparado, dormiu entre os túmulos do pai e da mãe, vítimas da guerra civil.
                  As histórias, de cortar o coração, circularam pela internet e foram publicadas em alguns órgãos de imprensa. Felizmente, eram falsas.
                  O garotinho Marwan, com sua sacola de plástico, não foi encontrado perambulando sozinho rumo à Jordânia, como noticiou, na terça-feira, o site da Folha, o "Estado de S. Paulo" e o "Yahoo", entre outros.
                  Marwan tinha se distanciado por alguns momentos do resto da família, que caminhava mais à frente, quando foi abordado por funcionários da ONU que ajudam refugiados.
                  Um deles colocou a foto de Marwan no Twitter, mas sem falar em cruzada solitária pelo deserto. Quem acrescentou a pitada dramática foi uma âncora da CNN que tem 122 mil seguidores na rede social. Dali, a imagem se espalhou.
                  O outro menino, do cobertor vermelho, não é sírio, os montes ao seu redor não são túmulos e ele não estava dormindo.
                  Nesse caso, houve má-fé. A imagem foi pinçada do Instagram de um fotógrafo saudita e ganhou uma legenda mentirosa. Era um ensaio artístico, em cenário montado, sobre o "amor insubstituível dos pais". O menino é sobrinho do fotógrafo, não é órfão e não vive na Síria.
                  O propagador do engano é um americano que vive na Arábia Saudita e tem 179 mil seguidores no Twitter. A imagem explodiu na web, em janeiro, mas a grande imprensa não caiu na armadilha.
                  Os dois casos ilustram como não dá para confiar no que está nas redes sociais, onde "quem conta um conto aumenta um ponto".