quarta-feira, 7 de maio de 2014

Motivos pelos quais os alemães adoram a Rússia - Clemens Wergin*

Motivos pelos quais os alemães adoram a Rússia

Clemens Wergin*
The International New York Times, em Berlim
  • 5.set.2013 - Eric Feferberg/Afp
    A chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente russo, Vladimir Putin, em foto de 2013
    A chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente russo, Vladimir Putin, em foto de 2013
Assim como a maioria dos especialistas em política externa, eu fiquei chocado com a anexação da Crimeia pela Rússia e com a continuidade da "invasão suave" que está sendo levada a cabo pelos russos no leste da Ucrânia. Será que uma apropriação de terras tão descarada como essa realmente está acontecendo hoje em dia, em plena Europa do século 21?

Mas as ações da Rússia não foram a única surpresa. Se você acompanhou os debates realizados na Alemanha sobre a crise na Ucrânia, você testemunhou outro fenômeno estranho: um desfile de políticos aposentados e figuras públicas que foram à TV para defender a Rússia.

De acordo com essas figuras respeitáveis --que incluem os ex-chanceleres Gerhard Schröder e Helmut Schmidt--, a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar do Ocidente) e a União Europeia (UE) foram as reais agressoras nesse caso, pois se atreveram a expandir seus domínios para um território que pertencia à esfera legítima de interesse de Moscou. E parece que parte do público alemão concorda com isso.

Você acreditava que os alemães eram os defensores das leis internacionais e da ordem mundial baseada nas regras? Pense novamente.

Há uma hipocrisia flagrante aqui. Isso por que as mesmas pessoas que se fiaram nas leis internacionais para criticar a invasão norte-americana do Iraque estão atualmente agindo como realistas recém-nascidos e criando desculpas para a necessidade da Rússia de violar a soberania de outras nações.

Na verdade, apesar de suas falsas acusações contra o Iraque, o governo Bush tinha pelo menos 16 resoluções do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) para respaldar seu caso. Vladimir Putin, presidente da Rússia, não tem nenhuma. O único denominador comum entre ambas as posições parece ser um antiamericanismo subjacente.

Parte desse sentimento pró-Moscou pode ser atribuído à propaganda patrocinada pela Rússia: uma recente reportagem investigativa publicada pelo jornal alemão Welt am Sonntag revelou como uma rede suspeita de partidários da Rússia foi capaz de moldar o discurso público na Alemanha. Até fóruns de diálogo com a Rússia, co-patrocinados pelo governo alemão, estão cheios de amigos de Putin --mesmo do lado alemão.

Mas também há uma tendência preocupante entre os cidadãos comuns que remonta a antigas e infelizes tradições alemãs. Nós vemos a Alemanha como um país da Europa Ocidental, mas essa visão é, em grande parte, um produto de alianças firmadas durante a Guerra Fria. Antes disso, o país ocupava uma posição precária, ficando bem no meio entre o leste e o oeste.

Vinte e cinco anos depois do fim da Guerra Fria, a sociedade alemã pode muito bem estar se distanciando do Ocidente novamente. Em uma pesquisa realizada no mês passado pela Infratest/dimap, 49% dos alemães disseram que queriam que seu país assumisse uma posição intermediária entre o Ocidente e a Rússia na crise da Ucrânia, e apenas 45% gostariam que o país se posicionasse firmemente do lado ocidental.

Esse antiocidentalismo da Alemanha é proveniente de ambos os lados do espectro político. Há a parcela de esquerda que é instintivamente antiamericana e fica do lado de qualquer ator internacional que venha a desafiar o status quo e a principal potência ocidental.

Mas também existe a direita populista da Europa, que concorda com a propaganda da Rússia, segundo a qual a Europa se tornou demasiadamente gay, demasiadamente tolerante, demasiadamente permissiva em relação a seus princípios morais e demasiadamente não cristã, e que acolhe um líder autoritário que desafie o multilateralismo difuso da Europa.

Na Alemanha, essa corrente é mais bem representada pelo novo Partido Alternativa para a Alemanha (Alternative für Deutschland), que é contra o euro. Eles ocupam uma parcela conservadora do pensamento alemão que remonta ao século 19, abriga um ressentimento contra a civilização ocidental e romantiza uma Rússia que aparentemente não foi corrompida pelos valores ocidentais e pelo capitalismo do livre mercado.

Ambas as versões desse antiocidentalismo existem há várias décadas. Mas, até agora, elas ficavam confinadas às bordas do cenário político. Atualmente, elas são aceitas por grupos das elites e por parcelas do centro do espectro político. Isso, combinado ao enorme investimento realizado por empresas alemãs na Rússia, está restringindo o quão agressivamente o governo de Angela Merkel --a chanceler alemã que é fortemente pró-ocidental-- é capaz de agir contra a Rússia.

O que une os defensores da esquerda e da direita da Alemanha é um desrespeito impressionante pelo destino das pessoas que habitam as terras localizadas entre a Alemanha e a Rússia, além de uma noção truncada da história alemã.

Alguns defensores explicam sua simpatia pela Rússia como uma questão de dívida com o país devido às atrocidades cometidas pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Mas é importante lembrar que a guerra começou com a Alemanha invadindo a Polônia a partir do Ocidente --e, alguns dias mais tarde, com a União Soviética invadindo a Polônia a partir do Oriente, depois que ambos os lados tinham concordado em segredo em dividir a Europa Oriental entre si.

E, dessa maneira, quando figuras públicas alemãs repetem a propaganda russa e repudiam a Ucrânia ao afirmarem que o território "não é um país real de qualquer maneira" ou tratam os países localizados entre o Ocidente e a Rússia como nações de segunda classe cuja soberania vale menos do que a de outras nações, elas estão evocando memórias dos velhos e difíceis tempos do Leste Europeu, quando nazistas e soviéticos transformaram a região nas "Terras Sangrentas" de suas respectivas ditaduras.

Durante décadas a Alemanha tem tentado aceitar seu passado fascista e aprender lições importantes com ele. Mas agora, lá vem um líder autoritário de outro país que, para tentar estabilizar seu regime, comete uma agressão externa baseada no nacionalismo étnico.

Para quem já teve que lidar com o passado nazista da Alemanha, devia ser fácil diferenciar o certo do errado neste caso, em vez de tentar ficar encontrando desculpas para as ações da Rússia. Mas esse foi um teste no qual muitos de meus compatriotas fracassaram.

Para ser justo, em uma pesquisa recente 60% dos alemães disseram que seu país deveria ficar do lado do Ocidente na crise Ucrânia. Então, a atual agressão da Rússia contra a Ucrânia está tendo algum efeito sobre a opinião pública. Mas isso ainda significa que quase a metade dos alemães não sente uma profunda ligação com o Ocidente e seus valores – que é precisamente o que Putin quer.

*Clemens Wergin é editor internacional do grupo jornalístico alemão Die Welt e autor do blog Flatworld