sábado, 21 de dezembro de 2013

Autor faz bom retrato cômico da humanidade - Alcir Pécora

folha de são paulo
CRÍTICA ROMANCE
Autor faz bom retrato cômico da humanidade
'A Cidade, o Inquisidor e os Ordinários', de Carlos de Brito e Mello, usa farsa como opção inteligente ao romanesco
O andamento narrativo opera por redundância e acumulação até que os papéis entrem em colapso
ALCIR PÉCORAESPECIAL PARA A FOLHAEm "A Cidade, o Inquisidor e os Ordinários", novo livro do escritor mineiro Carlos de Brito e Mello, boa parte da graça está em acertar a leitura com o gênero encenado por ele: a farsa.
No seu modelo medieval mais conhecido, a farsa é uma composição teatral breve, cômica, usada para preencher os intervalos das representações sacras nas festas religiosas. Daí o nome "farsa", do latim "farcire", isto é, "encher", "rechear".
Como aqui não se trata de teatro e tampouco de preencher o intervalo de uma função religiosa, a forma apresenta-se como alternativa inteligente à construção romanesca e, ademais, como recurso para um andamento narrativo prioritariamente conduzido pelo caráter bufão e caricato de personagens e situações bem circunscritas.
No caso, o enredo se dá em torno das ações de um autoproclamado Inquisidor de uma cidade grande,mas não moderna, nem interessante, cujas pistas mais óbvias referem Belo Horizonte, mas potencialmente servem a qualquer outra localidade.
SEM DEUS
Perdida a fé em Deus e na grandeza humana, o Inquisidor cuida de fazer dependurar, à vista de todos, o corpanzil sem asseio da gente "abnorme", vale dizer, aquela que já perdeu o sentido das regras do convívio social, enfronhando-se em casa, num processo lento e implacável de apatia e desdém por si e pelo mundo.
Num mundo católico, tratar-se-ia do pecado da acídia, mas na urbe do Inquisidor já não há traços da Providência.
Talvez se pudesse falar em depressão ou bipolaridade epidêmicas, não fosse a farsa favorecer a ridicularização da matéria, que penaliza a vista com as feiuras e os desmazelos do corpo, ainda que certamente extensivos ao espírito.
Por meio dessa cena básica, acentua-se não propriamente a servidão voluntária dos habitantes ao Inquisidor, pois a vontade já está perdida, mas sim a mansidão disposta ao castigo, o alívio pela autoridade que se impõe na anomia, o vestígio de força dos estereótipos.
O andamento narrativo, muito afrouxado pelos verbos no presente (e não no pretérito perfeito), opera por redundância e acumulação até o ponto em que os papéis entram em colapso e insinuam mudanças tímidas.
Menos mudanças que alternância de papéis: quem pune agora apanha; quem é amado agora dispensa o amor; quem sussurra disfarçado agora fala abertamente; algum dependurado mudo quer berrar etc.
SEM SAÍDA
A amplificação ridícula e o nonsense de uma forma de vida coletiva definitivamente esgarçada, que oscila entre a nostalgia alucinada da ordem (sem qualquer fundamento real) e o abandono à extinção (desde que não dê nenhum trabalho), enquadra a farsa e não permite vislumbrar saída.
Aqui, entretanto, o melhor para o romance seria resistir à tentação alegórica a que se entregam contracapa e orelha ("retrato da subserviência de muitos diante do poder", "desmoronamento da sociedade em nome da vigilância", "a moral e os bons costumes estão satirizados").
Não é a lição moral genérica e denuncista que torna original o romance, mas, antes, a literalidade do retrato cômico que fere o ridículo.
A CIDADE, O INQUISIDOR E OS ORDINÁRIOS
AUTOR Carlos de Brito e Mello
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 49,50 (472 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

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