sábado, 14 de dezembro de 2013

O Brasil deve proibir torcidas organizadas?

folha de são paulo
LUÍS FLAVIO SAPORI
O Brasil deve proibir torcidas organizadas?
Antipática, mas necessária
SIM
O episódio recente de confronto entre torcedores do Atlético-PR e do Vasco da Gama é mais um capítulo de uma novela que não tem fim.
A manifestação de violência dentro e fora dos estádios de futebol não é recente, tendo se intensificado a partir do início da década de 1990. E coincide com o surgimento e proliferação das torcidas organizadas por todo o país.
É fato que a violência no futebol brasileiro não pode ser separada da violência que assola a sociedade como um todo. E nos últimos 20 anos, tornamo-nos uma coletividade que banalizou a violência --especialmente os casos de homicídio.
O respeito à vida como valor social deteriorou-se amplamente, de modo que os freios morais para a contenção do impulso da agressividade estão muito fragilizados.
Como consequência, a utilização da força física para imposição de interesses e resolução de conflitos dissemina-se nos mais diversos ambientes sociais: na família, no bairro, na escola, no trânsito e nos eventos esportivos e culturais.
A despeito dessa dimensão social do fenômeno, deve-se considerar que as torcidas organizadas têm potencializado a violência no futebol. Elas constituem focos geradores de práticas violentas, influenciando o próprio contexto social em que se inserem. Ou seja, a violência na sociedade é estimulada também pela violência no futebol.
As torcidas organizadas de modo geral estão estruturadas pelo "ethos" da virilidade, da masculinidade e da afirmação da força física contra torcedores adversários, que podem ser inclusive integrantes de outra torcida do mesmo clube de futebol. Estes, na verdade, são tratados como inimigos --alvos, portanto, do sentimento de ódio.
Quando há tal aversão pelo outro, o impulso da agressividade é dificilmente controlado. Ao contrário, os membros das torcidas organizadas que são capazes de infringir danos físicos aos "inimigos" são respeitados e valorizados pelos companheiros. Os atos de violência desses torcedores compõem a identidade da organização da qual participam. Constituem, portanto, procedimentos institucionalizados na sociabilidade cotidiana desses grupos sociais.
É equivocado, sob tal ponto de vista, o argumento de que a violência é provocada por delinquentes supostamente infiltrados no interior das torcidas organizadas.
O momento exige a adoção de medida legal que não se restrinja ao monitoramento e repressão dos integrantes violentos das torcidas organizadas. Isso deve continuar sendo feito, porém faz-se necessário dar um passo adiante. A simples responsabilização criminal dos torcedores que perpetram atos de violência não será capaz de pôr fim às cenas de brutalidade que testemunhamos no estádio de Joinville (SC).
Está em questão o grau de responsabilidade do coletivo sobre o individual. Considerando que o coletivo torcida organizada molda em boa medida atitudes e comportamentos dos indivíduos que a ela se filiam, é imprescindível que esse coletivo seja desestruturado mediante a expressa proibição de sua existência.
Tal proibição implica a impossibilidade de o grupo se formar como pessoa jurídica, ter sede, arregimentar membros, produzir e vender camisas e outros objetos alusivos e se apresentar junto dentro dos estádios de futebol. É uma medida dura, controversa e antipática, mas necessária diante de nossa realidade.
MAURICIO MURAD
O Brasil deve proibir torcidas organizadas?
Símbolo e ritual
NÃO
As torcidas de times de futebol organizam a festa, os cânticos, as alegorias, a criatividade repentista e constroem rituais e simbologias, marcas de nossa cultura popular, de nossas identidades coletivas. Também fazem trabalhos sociais importantes e muitas vezes apoiam causas cívicas, pontos positivos e pouco divulgados.
Sim a Eros, expressão da paixão, do ócio criativo. Não a Thanatos, que revela a destruição, o ódio, a morte. Não às gangues infiltradas nas torcidas! Essas hordas de vândalos, que se aproveitam desse coletivo historicamente legítimo, popular e democrático.
Não podemos nem devemos generalizar e, por efeito, criminalizar esses coletivos que ajudam a sustentar um dos nossos maiores patrimônios culturais, o futebol.
Torcidas organizadas? Estamos falando de 2 milhões de brasileiros e brasileiras. Já os grupos de delinquentes infiltrados --as imagens da televisão não deixam dúvida-- são minorias, perigosas e violentas, mas minorias, que têm de ser contidas pela mão dura da lei e pela ação enérgica das instituições de segurança pública. Basta de impunidade.
Punição e prevenção, eis o binômio clássico de um planejamento de segurança consistente. E no longo prazo, claro, educação. Sem educação, não há solução para qualquer setor, o futebol inclusive.
Acabar com as torcidas organizadas --ideia que reaparece sempre-- é decretar incompetência: é mais fácil, mais rápido e mais midiático "eliminar" o problema do que aplicar a lei, planejar a ordem pública, reprimir e prevenir, respeitando-se a legislação, a ética e os efeitos pedagógicos das ações de política pública.
É o imediatismo e a extravagância de matar o gado para acabar com o carrapato. Depois não adianta empurrar para a clandestinidade (aí é que não se tem como fiscalizar mesmo!) enormes contingentes de pessoas, pacíficas em sua maioria, porque elas voltam com outros nomes, muitas vezes com a mesma diretoria e no mesmo endereço. Flagrante desmoralização da autoridade pública. Experiências desse tipo, aqui e lá fora, não deram certo. Por que insistir no erro? Desconhecimento?
Está na Constituição brasileira que somos uma sociedade democrática e de Direito. Isso significa que todos devem obediência às leis e para cada transgressão há sanções cabíveis. O sentido ético, pedagógico e jurídico da pena é estabelecer a diferença entre quem cometeu e quem não cometeu o delito. Então, puna-se o infrator. Quando um deputado é pego em flagrante delito, quem é punido (quando é punido) é ele --no limite, com a perda do mandato. Não é o Congresso que é fechado. O mesmo vale para um policial em relação à sua corporação ou qualquer outra pessoa ligada a alguma instituição ou entidade. Não se pode confundir a pessoa física com a pessoa jurídica. São instâncias distintas, em todos os níveis.
O que precisamos de fato é de um plano estratégico nacional de segurança pública para o futebol brasileiro, permanente e que se renove sempre, com três conjuntos de medidas interligadas.
No curto prazo, medidas de punição (prioridades: prisão e processo criminal levado até o fim). No médio prazo, medidas de prevenção (prioridades: ocupar as redes sociais desses segmentos criminosos e desmontar os cenários de guerra previamente combinados). E no longo prazo, medidas de caráter reeducativo (parcerias com as lideranças e os setores majoritários e pacíficos das organizadas e o disque-denúncia das torcidas).
Tudo isso para isolar e punir severamente os praticantes dos atos de selvageria e preservar a cultura legítima, popular e democrática das torcidas de futebol. E não é somente por causa da Copa do Mundo, mas, sobretudo, porque é um direito da cidadania e um dever do Estado, como preconiza a nossa Constituição vigente.
Futebol é bem mais do que um jogo. É uma das expressões profundas da história, da vida social e das culturas que formam o Brasil.

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