sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Premiado em Cannes, 'Azul É a Cor Mais Quente' estreia com romance entre garotas

folha de são paulo

Premiado em Cannes, 'Azul É a Cor Mais Quente' estreia com romance entre garotas


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FERNANDO MASINI
DE SÃO PAULO

Adèle beija Emma. A câmera quase encosta nas duas, que aparecem nuas em seguida. Elas trocam carícias e soltam gritos abafados, misturados aos estalos das bocas.
Emma faz sexo oral em Adèle, que agarra os cabelos azuis de Emma. A câmera passeia entre as duas, próxima, buscando expressões.

O ritmo fica mais acelerado, os movimentos, mais bruscos, e os gemidos, mais altos. Não há música, o que intensifica o realismo.
Divulgação
As atrizes Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux em cena do filme 'Azul É a Cor Mais Quente', de Abdellatif Kechiche
As atrizes Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux em cena do filme 'Azul É a Cor Mais Quente', de Abdellatif Kechiche
Os quase sete minutos da cena de sexo do longa francês "Azul É a Cor Mais Quente", que estreia hoje, viraram alvo de críticas de feministas e lésbicas.
Segundo esses grupos, houve exploração do corpo das atrizes como objetos sexuais e apelo pornográfico, além de a cena não traduzir a realidade de uma relação entre mulheres.
A crítica do "New York Times" Manohla Dargis se disse desapontada porque o diretor Abdellatif Kechiche "ignorou questões que envolvem a representação do corpo feminino no cinema".
Em entrevista à Folha, Kechiche rebateu as críticas: "Quem me julgou não aceita o fato de um diretor retratar o amor entre duas mulheres".
Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, o filme exala sensualidade até em cenas casuais, como quando Adèle se lambuza de macarrão e o diretor gruda a câmera nos lábios dela.
A atriz de origem grega Adèle Exarchopoulos, 20, empresta o nome à protagonista, inspirada nos quadrinhos de Julie Maroh. Ela interpreta uma estudante de literatura em crise, que recusa o interesse de um colega do colégio ao cruzar olhares com Emma (Léa Seydoux), a garota de cabelos azuis.
A aproximação entre as duas se dá num bar frequentado por lésbicas. Depois, um encontro no parque e o primeiro beijo. O interesse curioso de Adèle se torna uma paixão avassaladora.
O mundo mais prosaico dela, no entanto, destoa do ambiente intelectual de Emma.
Na tela, a pele das atrizes, que não usaram maquiagem nas filmagens, parece vibrar.
"Percebi que o diretor queria que eu mexesse no cabelo, brincasse com a boca", diz Adèle, esclarecendo que havia uma orientação nesse sentido, mas que ela também ajudou a modelar o jeito sensual da personagem.
Kechiche afirma que se trata de um ritmo natural baseado na sua percepção. "Busquei os melhores ângulos a fim de retratar as expressões que não podem ser transmitidas pelas palavras", diz.
Após a premiação em Cannes, a atriz Léa Seydoux acusou o diretor de truculência e assédio moral.
2- Crítica: Com imagens que encantam, 'Azul é a Cor Mais Quente' é maior destaque do ano 
3- Diretor de 'Azul é a Cor Mais Quente' atribui crítica a questões de classe 
4- Obra adaptada por filme 'Azul é a Cor Mais Quente' discute mortalidade e perda 
CRÍTICA DRAMA
Com imagens que encantam, filme é maior destaque do ano
INÁCIO ARAUJOCRÍTICO DA FOLHAO que é um homem? Um ser que procura a si mesmo. Essa é a ideia mais evidente contida nas imagens e nas várias referências literárias de "Azul É a Cor Mais Quente", de Marivaux a Sófocles, de Rimbaud a Alain Bousquet.
Comecemos pela literatura, com um fragmento do poema de Bousquet que Adèle a horas tantas ensina a seus alunos de pré-primário: "Para o que serve o pescoço da girafa? Para alcançar as estrelas". Ou, podemos pensar: para o que serve a sexualidade de Adèle? Para o prazer.
Mas o que é o prazer? Como alcançá-lo? Eis um drama pelo qual todo adolescente passa: o momento da descoberta do sexo, quando não há mais amigos, pais ou guias que nos amparem. Estamos sozinhos.
De certa forma é o momento de saber quem somos. É o que diz a professora que analisa a "Antígona" de Sófocles: neste momento, o de abandonar a infância, Antígona descobre-se diante da tragédia. Pois o trágico nada mais é do que isso: o inelutável.
Eis o trágico da bela adolescente: Adèle descobre-se mais atraída por garotas do que por rapazes. Quando transa com um é como se algo lhe faltasse --ela diz. Quando cruza na rua com Emma (Léa Seydoux), a menina dos cabelos azuis, a atração é imediata.
Eis o que Abdellatif Kechiche nos traz neste filme: a condição trágica. A impossibilidade, para Adèle (Adèle Exarchopoulos), de escapar à sua sexualidade. Ou seja, à sua homossexualidade.
Tudo isso, no entanto, poderia resultar num filme gay desinteressante como existem às pencas. Kechiche não é um doutrinador, um defensor de causas. É um cineasta, alguém que mostra. O que há de especial em Adèle, por um lado, é a força, a clareza com que caminha em busca de si mesma. E por outro lado, seu sorriso.
Pois este é um filme, sobretudo, de primeiros planos, de rostos. Do sorriso tão especial, tão aberto de Adèle. E que pode ser comparado, talvez, ao sorriso conquistador de Emma. Como descrevê-los? Não há muito a fazer: eis a riqueza do filme, de sua opção por uma relação estrita com a imagem, com o real.
Ele pode nos levar a uma bela cena de amor entre as duas moças, é verdade (talvez seja o principal ponto de venda do filme). Mas é ao retomar a ideia proclamada por Eric Rohmer de que o cinema foi a arte clássica do século 20, que o filme assume plenamente sua originalidade.
A relação do cinema com a realidade, desde os anos 80 do século passado, tornou-se progressivamente mais tênue. Parece que cada vez menos os cineastas conseguem captar o óbvio: o corpo humano, seus sorrisos, sua batalha para descobrir sua própria medida, sua estatura.
O que há de fascinante neste Azul-Kechiche é a veemência com que o autor, mais uma vez, afirma sua modéstia diante de suas personagens, como lhes permite, e ao mundo que habitam, se manifestarem na tela e irradiarem no espírito dos espectadores.
"Azul..." é o filme que mais se destaca neste ano tão fraco, de 2013. Mesmo que fosse um ano forte, seria, ainda assim, um filme especial: desses cujas imagens, aparentemente tão simples, chegam a nossos olhos, encantam, não se deixam esquecer.
(P.S.: Pessoalmente, penso na morena da escola de Adèle, com quem ela troca um beijo. A menina explicará que aquilo foi um momento a ser esquecido. Depois, quando outras colegas cercam Adèle e a chamam de lésbica nojenta, a garota aparece à distância, só seu rosto, em silêncio: em que estará pensando? --são esses momentos laterais que, muitas vezes, fazem os grandes filmes).
AZUL É A COR MAIS QUENTE
DIREÇÃO Abdellatif Kechiche
PRODUÇÃO França, 2013
ONDE Reserva Cultural e circuito
CLASSIFICAÇÃO 18 anos
AVALIAÇÃO ótimo
    Diretor atribui crítica a questões de classe
    Léa Seydoux, que diz ter se sentido uma 'prostituta' nas filmagens, faz polêmica para se promover, diz Kechiche
    A atriz que reclamou da cena de sexo e da truculência do cineasta deixa de divulgar 'Azul É a Cor Mais Quente'
    FERNANDO MASINIDE SÃO PAULODiretor de outros quatro longas, entre eles "O Segredo do Grão" (2007) e "Vênus Negra" (2010), Abdellatif Kechiche é meticuloso com sua estética e exigente com atores.
    Fala do cinema como a arte das limitações, que deve respeitar uma duração determinada, ao contrário de uma pintura ou de um livro.
    Para explicar o seu trabalho de cineasta, ele recorre a uma metáfora: "A imagem que me vem à mente é a de um capitão de navio que vai embarcar com a tripulação".
    Ele é o encarregado de levar as pessoas ao seu destino, "mas no meio do caminho há o mar, com tempestades e ventos".
    Na visita que fez a São Paulo para o lançamento de "Azul é a Cor Mais Quente", na qual deu entrevista à Folha, Kechiche falou com grandes pausas entre uma frase e outra, pensando muito no que ia dizer, mas sempre firme nas suas posições.
    Demonstrou agitação apenas quando foi questionado sobre os desentendimentos com a atriz Léa Seydoux, 28. Ela reclamara, por exemplo, da alongada cena de sexo, que demorou dez dias para ser filmada, com repetição exaustiva doe movimentos.
    "Ela chegou ao topo compartilhando a conquista de uma Palma de Ouro e agora vai demolir o diretor que a alçou a essa posição?", pergunta retoricamente Kechiche.
    As desavenças começaram em setembro, quando Léa disse que não voltaria a trabalhar com o diretor por seus "métodos truculentos".
    Ao jornal inglês "The Independent", a atriz afirmou que as cenas de sexo foram humilhantes e que tanto ela quanto Adèle Exarchopoulos se sentiram como "prostitutas".
    Kechiche nega as acusações, mas chegou a pensar em desistir do lançamento do filme. Em outubro, escreveu uma carta aberta no site francês Rue89, na qual chama Léa de "arrogante e oportunista".
    Adèle, por sua vez, que havia se juntado na artilharia contra o diretor, agora tem adotado outro tom. Em São Paulo para o lançamento do longa, disse que "as cenas de sexo foram descontraídas".
    Segundo Kechiche, o problema não será resolvido. "A polêmica foi criada para ela [Léa Seydoux] se promover. Nesse período, ela foi capa de revistas na França. Talvez os motivos tenham mais a ver com classes sociais."
    O diretor é de origem africana e a atriz vem de família tradicional, segundo ele. O avô da atriz, Jérôme Seydoux, é um dos donos da companhia cinematográfica Pathé. Antes de estrelar "Azul...", Léa trabalhou com Woody Allen em "Meia-Noite em Paris" (2011) e Ridley Scott em "Robin Hood" (2010).
    A atriz decidiu se afastar da campanha de promoção do filme.
      Obra adaptada por filme discute mortalidade e perda
      CESAR SOTODE SÃO PAULOA HQ que inspirou a primeira adaptação de quadrinhos a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes foi criada por uma jovem quadrinista que, na época em que a escreveu, tinha 19 anos.
      A autora, Julie Maroh, agora com 28, diz que hoje vê todos os defeitos da obra, realizada quando era tão jovem. "Ganhei um concurso de quadrinhos cujo tema era 15 anos de idade', e ganhei confiança para escrever a história", diz. "A essência de Azul...' veio nesse momento."
      Lançada em 2010 na França, "Azul É a Cor Mais Quente" (Martins Fontes) aproveita o sucesso do filme para chegar ao Brasil --e se envolve nas polêmicas do longa.
      Maroh se nega a responder perguntas sobre a produção, mas publicou uma declaração em seu site sobre o processo de adaptação --"apenas uma outra visão para a mesma história"-- e sobre o tratamento que recebeu do diretor Abdellatif Kechiche --que não responde suas mensagens desde 2011.
      No texto, ela descreve as cenas de sexo entre as protagonistas como "uma demonstração brutal e cirúrgica do suposto sexo lésbico que se tornou pornô", o que a deixou desconfortável.
      Para ela, a maneira como Kechiche as gravou se relaciona a outro momento do filme, no qual personagens falam sobre o mito do orgasmo feminino como algo místico e muito superior ao masculino. "Acho isso perigoso", escreve.
      "Como uma espectadora feminista e lésbica, não posso aprovar a direção que ele tomou nessas questões."
      MENSAGEM
      Quadrinhos e longa têm inícios similares --com a diferença de que a protagonista da HQ, Clémentine, recebe o nome de Adèle no filme--, mas apresentam desfechos bem distintos. Mesmo assim, para Maroh, tanto ela quanto o diretor tinham os mesmos interesses na história e ninguém desejava militar sobre a causa homossexual.
      "Este livro apresenta uma reflexão sobre a mortalidade e o que resta do amor perdido", diz ela à Folha. "A vida não é um desenho animado."
      Assim, não se trata de algo apenas para lésbicas, mas de uma forma de contar uma história de amor. "Não quero passar uma mensagem fechada. Gosto da ideia de que o leitor tome posse dela."
      AZUL É A COR MAIS QUENTE
      AUTORA Julie Maroh
      TRADUÇÃO Marcelo Mori
      EDITORA Martins Fontes
      QUANTO R$ 39 (160 págs.)

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