segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Evgeny Morozov

folha de são paulo

Como sanar o deficit de democracia exposto por Snowden

As sociedades democráticas têm duas escolhas, na era pós-Snowden. A mais fácil é deixar tudo como está e fingir que o insaciável apetite por dados da NSA (Agência Nacional de Segurança) norte-americana é apenas uma aberração que pode ser retificada por meio de mudanças menores no aparato técnico e judicial existente. Assim, poderíamos tornar mais severos os protocolos frouxos quanto ao uso de dados, usar mais cifragem em redes de comunicações e aprovar novas leis que fiscalizem a NSA.
Mas também poderíamos adotar a opção, mais desafiadora, de aceitar que as revelações de Snowden expuseram mais que ações administrativas ambiciosas e sistemáticas da parte de burocratas descontroladas. Se aceitarmos essa interpretação, as revelações apontam para uma ameaça emergente e ainda não reconhecida ao espírito da democracia, que só irá se agravar à medida que os meios de coleta, registro e análise de volume cada vez maior de dados se tornam mais ubíquos.
O motivo para que seja tão difícil para nós reconhecer essa ameaça é bastante simples: uma conclusão como essa contradiria a rósea narrativa da economia da informação, que presume que o crescimento possa continuar para sempre. Google, Facebook e mil empresas que os imitam no Vale do Silício operam sob a premissa de que não existe limite para o volume de dados que pode ser produzido, recolhido, trocado e compartilhado. Mais informação é sempre melhor: esse é seu slogan.
O paralelo para com as porções da economia que ainda não estão abrigadas sob o espaçoso guarda-chuva da "informação" pode ser esclarecedor. Por muito tempo, a suposição de que poderia haver crescimento infinito –com o Produto Interno Bruto (PIB) servindo como único instrumento de avaliação da eficácia das políticas governamentais– reinou suprema por aqui, igualmente. As primeiras vozes críticas, surgidas nos anos 70, foram logo afogadas pelos slogans em defesa do livre mercado proferidos por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, mas o questionamento crítico ao crescimento como único foco da atividade econômica foi retomado na década passada, propelido pelas preocupações quanto ao aquecimento global.
Essa agenda crítica vem sendo defendida por adeptos do movimento de "decrescimento" –popular na Europa mas sem muita força nos Estados Unidos. O objetivo do movimento é não só esquadrinhar a sabedoria ecológica de manter o atual espírito favorável ao crescimento mas também atacar a primazia intelectual do uso de indicadores como o PIB a fim de avaliar e formular políticas públicas. Como aponta o sociólogo canadense Yves-Marie Abraham, um dos proponentes da agenda de decrescimento, "não estamos falando de uma queda do PIB, mas do fim do PIB e de todos os demais indicadores quantitativos usados como indicadores de bem-estar".
Não pretendo discutir aqui os méritos da agenda de decrescimento com relação à economia. Mas é difícil negar que ela apresenta muitos desafios intelectuais interessantes às ideias econômicas dominantes. Uma defesa robusta da agenda de crescimento, hoje, requer encarar preocupações como a mudança do clima. E quanto ao inconveniente fato de que não existe relação linear simples entre crescimento e felicidade? E se mais crescimento não serve para tornar mais pessoas mais felizes, por que exatamente deveríamos dar a isso um papel central em nossa política econômica?
Como paradigma alternativo para o arranjo das atividades produtivas, o "decrescimento" resultou pelo menos em algumas formas provocadoras de pensamento sobre a política e a economia. Não existe um paradigma alternativo como esse com relação à informação. Os esforços existentes para pensar em maneiras de relacionamento com a tecnologia e a informação levam jeito de soluções privatizadas e transcendentais que podem funcionar no plano individual mas não coletivo; somos encorajados a estudar a "desintoxicação digital" a fim de revigorar nosso senso de realidade, a instalar apps que nos tornam permitem exercitar a "atenção plena" e a passar algum tempo em acampamentos que proíbem o uso de engenhocas eletrônicas.
Nenhuma dessas soluções oferece uma alternativa intelectual coerente ao atual paradigma de "mais informação é sempre melhor". O motivo para isso é simples: os teóricos do "decrescimento" têm o conveniente, mas real, fantasma do aquecimento global como exemplo do desastre final, e o evocam para reorientar nossos processos mentais. Existe melhor maneira de estimular as pessoas a agir do que lembrá-las de que estão lentamente destruindo a civilização?
A visão de um tal desastre, no entanto, não existe até o momento no debate sobre a informação. Tudo que vemos são preocupações sobre a saúde pessoal, a redução nos intervalos de atenção, a distração. Trata-se de preocupações sobre indivíduos, e não sobre coletividades. Não admira que se prestem a soluções privadas tais como apps que ajudam a dominar técnicas de atenção plena.
Mas não é preciso um gênio para perceber qual seria o equivalente apropriado ao aquecimento global, nesse caso: a gradual evaporação do espírito democrático em nosso sistema político.
Essa evaporação está em curso, à medida que uma crença ingênua em serviços de "big data" reduz os espaços que antes estavam abertos à deliberação pública –quem precisa desses complicados debates sobre fins alternativos quando temos dados que permitem selecionar os melhores meios possíveis?– e ao mesmo tempo produz cidadãos que, presos aos ciclos intermináveis de realimentação dos modernos sistemas burocráticos, entregam o controle do processo político aos tecnocratas, que gostam muito de direcionar e de mexer com o nível micro mas raramente se interessam por mudanças sistêmicas em nível macro.
Em lugar de contestar o Vale do Silício quanto a dados específicos, por que não simplesmente reconhecer que os benefícios que seus serviços oferecem são reais mas que, como um utilitário esportivo ou um sistema de ar condicionado em funcionamento permanente, podem não compensar os custos? Sim, a personalização de buscas pode oferecer resultados fabulosos, informando-nos sobre a pizzaria mais próxima em dois segundos, em vez de cinco. Mas os três segundos de tempo economizado requerem que dados fiquem armazenados nos servidores do Google em algum lugar e, depois de Snowden, ninguém está certo quanto ao que realmente acontece com esses dados e quanto às inúmeras maneiras pelas quais eles podem ser alvo de abusos.
Por isso, vamos deixar de lado as discussões semânticas: para a maioria das pessoas, o Vale do Silício oferece produtos excelentes e convenientes. Mas se esses produtos vierem a sufocar o sistema democrático, talvez devamos reduzir nossas expectativas e aceitar dois segundos a mais em nossas buscas –mesma forma que devemos aceitar carros menores e mais lentos -, porque isso é um preço razoável a pagar por um futuro decente.
As soluções de mercado para o problema da privacidade propostas por alguns dos críticos do atual sistema –Jaron Lanier, por exemplo, argumenta que as pessoas deveriam ser proprietárias de seus dados pessoais e que deveriam poder negociá-los como preferissem, com apoio de um forte regime de proteção aos dados– dificilmente serão mais efetivas para combater essa lenta erosão da democracia do que as soluções de mercado propostas como resposta ao aquecimento global. Você se lembra do Esquema de Transação de Emissões, um dia celebrado pela União Europeia como grande solução? Foi um notável fracasso.
O problema que enfrentamos não é o de falta de controle sobre dados individuais; é o fato de que, armados com tantos dados, os sistemas políticos modernos parecem acreditar que é possível dispensar os cidadãos –enquanto os cidadãos, desfrutando da cornucópia do "conteúdo", não hesitam em abandonar o reino político. Criar um mercado de dados pessoais sob essas condições só aceleraria o declínio já rápido do sistema democrático.
Quer seja pela aplicação das ideias de decrescimento ou pela adoção de algum outro paradigma intelectual capaz de desafiar a fórmula de que "mais informação é sempre melhor", precisamos seriamente de novos modelos que nos permitam pensar sobre maneiras de escapar ao deficit democrático revelado por Snowden. Hackers e advogados não nos salvarão: o debate quanto a Snowden precisa de pensadores que tenham tanta fluência em códigos de software e lei constitucional quanto em economia e política.
Tradução de PAULO MIGLIACCI 
evgeny morozov
Evgeny Morozov é pesquisador-visitante da Universidade Stanford e analista da New America Foundation. É autor de "The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom" (a ilusão da rede: o lado sombrio da liberdade na internet). Tem artigos publicados em jornais e revistas como "The New York Times", "The Wall Street Journal", " Financial Times" e "The Economist". Lançará em 2012 o livro "Silicon Democracy" (a democracia do silício). Escreve às segundas-feiras, a cada quatro semanas, no site da Folha.

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