domingo, 2 de fevereiro de 2014

1984 - Suzana Singer [folha ombudsman]

1984
folha de são paulo
folha_ombudsman

Lula, Fernando Henrique Cardoso e a Folha. Os três convivendo em paz. Mais do que isso, embalados em uma mesma campanha. O jornal, crescendo rapidamente em circulação e em prestígio, é uma unanimidade na "sociedade civil".
O que hoje parece impossível era realidade em 1984. O pano de fundo: asDiretas-Já. A Folha percebeu antes as oportunidades da abertura política e, enquanto os outros veículos da grande imprensa hesitavam, abraçou a causa do voto direto para presidente da República. Conquistou jovens e intelectuais. Virou o "jornal das Diretas".
Por alguns meses, as páginas de política ganharam um tom militante, romântico e empolgado. A descrição do comício na praça da Sé, de 25 de janeiro de 1984, ocupou praticamente toda a capa do jornal no dia seguinte. O texto afirmava que o verdadeiro "herói" da manifestação foi a "multidão, as 300 mil pessoas que provaram ser possível (e desejável) fazer política com amor, garra e alegria".
Quando a emenda constitucional que previa a eleição direta não foi aprovada, em abril do mesmo ano, a manchete foi "A NAÇÃO FRUSTRADA!", assim mesmo em letras maiúsculas, sob uma tarja que convidava o leitor a "usar preto pelo Congresso Nacional".
Trinta anos depois, parece que estamos falando de outro jornal. A Folha não se engaja mais em campanhas – a última foi pelo impeachment de Fernando Collor– , busca um tom sóbrio em política, e a camaradagem com Lula e FHC terminou quando cada um ocupou a Presidência da República.
Aquele texto sobre o grande comício da Sé não passaria pelo editor e tamanho entusiasmo destoaria até dos editoriais, em geral ponderados e comedidos. As circunstâncias políticas mudaram radicalmente. É difícil imaginar uma causa que obtivesse um consenso suprapartidário como o que havia para combater a ditadura. Conquistada a abertura, cada um foi para o seu lado e começou a disputa pelo poder, o que é da natureza do regime democrático.
Da mesma forma, a Folha não é mais unanimidade. Muitos dos que se apaixonaram pelo jornal nas Diretas-Já estão hoje entre os seus críticos mais ferozes. Sentem-se traídos pela metralhadora de denúncias e de críticas.
O distanciamento que se tomou dos partidos políticos e dos chamados "formadores de opinião" foi deliberado. Ainda em 1984, quando surfava na empolgação das Diretas-Já, a Folha desafiou os anseios da "sociedade civil" ao não apoiar a candidatura de Tancredo Neves, que disputava com Paulo Maluf a Presidência. Foi acusada de malufista.
No ano seguinte, cobriu a doença do presidente eleito com informações que contradiziam a tese oficial de que Tancredo estava melhorando. Foi acusada de agourenta e antipatriótica ("Médicos esfriam Tancredo" era a manchete de 16/04).
Nesse mesmo ano, o novo projeto editorial pregava que "não devemos ambicionar as unanimidades, mas sim o reconhecimento da identidade pela diferença". Com um ímpeto quase juvenil, o texto defendia que "praticar a crítica substantiva (...), contra tudo e contra todos, é obrigação não apenas moral mas política do jornalismo, especialmente em um país que as circunstâncias dotaram tão generosamente de problemas e de possibilidades".
É bom relembrar essas palavras 30 anos depois, quando acontecem eleições presidenciais e uma Copa do Mundo. Impuseram-se ao jornal novos desafios, como manter a relevância e a qualidade num mundo inundado por informação, mas "apartidarismo", "crítica" e "pluralidade" ainda são metas a serem perseguidas com afinco.
Mal começou o ano, as acusações já esquentaram. Uns dizem que a Folhatorce para que tudo dê errado na Copa, outros que o jornal serve de fornecedor de munição à oposição, enquanto um grupo vê a Redação rendida ao petismo. Que venham muitas críticas, ajuda valiosa no trabalho de um ombudsman, mas que levem em conta aquilo a que a Folha se propõe. 
suzana singer
Suzana Singer é a ombudsman da Folha desde 24 de abril de 2010. No jornal desde 1987, foi Secretária de Redação na área de edição, diretora de Revistas e editora de 'Cotidiano'. Escreve aos domingos na versão impressa. E-mail: ombudsman@uol.com.br

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