sábado, 22 de fevereiro de 2014

A democracia na Venezuela está ameaçada? - Ignacio Ramonet e M.Coutinho respondem

folha de são paulo

IGNACIO RAMONET
A democracia na Venezuela está ameaçada?
NÃO
Técnicas de manual
A Venezuela passou por quatro eleições decisivas recentemente: duas votações presidenciais, uma para governos estaduais e uma para prefeituras. Todas foram vencidas pelo bloco da revolução bolivariana. Nenhum dos resultados foi impugnado pelas missões internacionais de observação eleitoral.
A votação mais recente aconteceu apenas dois meses atrás e resultou em clara vitória para os chavistas. Desde que Hugo Chávez assumiu a Presidência, em 1999, todas as eleições demonstram que, sociologicamente, o apoio à revolução bolivariana é majoritário no país.
Na América Latina, Chávez foi o primeiro líder progressista --desde Salvador Allende-- a apostar na via democrática para chegar ao poder. Não é possível compreender o que é o chavismo se não for levado em conta o seu caráter profundamente democrático. A aposta de Chávez, ontem, e a de Nicolás Maduro, hoje, é o socialismo democrático. Uma democracia não só eleitoral. Também econômica, social, cultural...
Em 15 anos, o chavismo conferiu a milhões de pessoas que não tinham documentos de identidade por serem pobres a situação de cidadãos e permitiu que votassem. Dedicou mais de 42% do Orçamento do Estado aos investimentos sociais. Tirou 5 milhões de pessoas da pobreza. Reduziu a mortalidade infantil. Erradicou o analfabetismo. Multiplicou por cinco o número de professores nas escolas públicas (de 65 mil a 350 mil). Criou 11 novas universidades. Concedeu aposentadorias a todos os trabalhadores (mesmo os informais). Isso explica o apoio popular de que Chávez sempre desfrutou e as recentes vitórias eleitorais de Nicolás Maduro.
Por que, então, os protestos? Não nos esqueçamos de que a Venezuela chavista --por possuir as maiores reservas mundiais de hidrocarbonetos-- sempre foi (e será) objeto de tentativas de desestabilização e de campanhas de mídia sistematicamente hostis.
Apesar de se haver unido sob a liderança de Henrique Capriles, a oposição perdeu quatro eleições consecutivas. Diante desse fracasso, sua facção mais direitista, ligada aos Estados Unidos e liderada pelo golpista Leopoldo López, aposta agora em um "golpe de Estado lento". E aplica as técnicas do manual quanto a isso.
Na primeira fase: 1. Criar descontentamento ao tirar do mercado produtos de primeira necessidade. 2. Fazer crer na "incompetência" do governo. 3. Fomentar manifestações de descontentamento. E 4. Intensificar a perseguição pela mídia.
A partir de 12 de fevereiro, os extremistas ingressaram na segunda fase: 1. Utilizar o descontentamento de um grupo social (uma minoria de estudantes) a fim de provocar protestos violentos e detenções. 2. Montar "manifestações de solidariedade" aos detidos. 3. Introduzir entre os manifestantes pistoleiros com a missão de provocar vítimas de ambos os lados (a análise balística determinou que os disparos que mataram o estudante Bassil Alejandro Dacosta e o chavista Juan Montoya, em 12 de fevereiro, em Caracas, foram feitos com a mesma arma, uma Glock calibre 9 mm). 4. Ampliar os protestos e seu nível de violência. 5. Redobrar a ofensiva da mídia, com apoio das redes sociais, contra a "repressão" do governo. 6. Conseguir que as "grandes instituições humanitárias" condenem o governo por "uso desmedido da violência". 7. Conseguir que "governos amigos" façam "advertências" às autoridades locais.
É nesta etapa que estamos.
Portanto, a democracia venezuelana está ameaçada? Só se for, uma vez mais, pelos golpistas de sempre.
MARCELO COUTINHO
A democracia na Venezuela está ameaçada?
SIM
Monarquias eleitas
MARCELO COUTINHO
É um erro reduzir a democracia a um sistema que realiza eleições. Até na totalitária União Soviética havia voto e um sistema eleitoral do qual "todos participavam".
Aliás, foi justamente o bloco socialista no século 20 o último grande inimigo da democracia, que ao longo da história enfrentou monarcas, sultões, coronéis e tiranos.
A redução da democracia a apenas um dos seus elementos não passa de um truque para grupos autoritários se legitimarem no poder. Quem recorre a esse artifício sabe que está ludibriando as pessoas e confundindo a opinião pública.
O que distingue a democracia é o voto livre, para o qual se faz necessário garantir a liberdade e a autonomia da imprensa e do Judiciário e os direitos de manifestação e de organização sem riscos de perseguição. Pode-se dizer que nenhum regime tem esses componentes em plenitude, mas, se há democracia, eles estão presentes.
A eleição em uma falsa democracia é como um dado viciado, que só pode dar um mesmo número sempre. As supressões de liberdade vão aumentando uma a uma, até que se torna virtualmente impossível para qualquer oposição vencer, mesmo quando o país está um caos. Até há voto, mas ele não é livre.
A Venezuela deixou de ser uma democracia quando Hugo Chávez morreu (2013). Ele já havia castigado o regime democrático, mas foi com seu sucessor que a mudança autocrática aconteceu. Com o apoio de um Judiciário controlado pelo governo, Nicolás Maduro foi empossado presidente antes das eleições, sem qualquer legitimidade, porque naquele país, ao contrário do Brasil, o vice não é eleito.
Depois disso, a mesma Justiça controlada estabeleceu um prazo exíguo de apenas um mês para o pleito, mantendo o presidente ilegítimo no poder. Por acaso, seria ele mesmo o candidato às eleições que veio a vencer por alguns poucos decimais. Mesmo com a imprensa quase toda capturada, o abuso de poder estatal, ameaças e uma campanha de duração ínfima, a oposição conseguiu virtualmente empatar a disputa.
As democracias e os organismos internacionais que reconheceram as eleições anteriores nas quais Chávez de fato foi o vencedor mostraram-se menos confiantes no pleito de 2013. Ao final, a Justiça chavista recusou-se a fazer uma auditoria ou recontagem total dos votos, a despeito do que manda a praxe e do que solicitou a oposição, que obteve, no mínimo, 49% dos votos.
Desde então, o quadro venezuelano só tem piorado. A última notícia é a da prisão de líderes oposicionistas e fortíssima repressão --com mortos-- aos movimentos contrários ao governo. Difícil encontrar um direito humano que o governo venezuelano já não tenha violado. Não há democracia eleitoral sem Estado democrático de Direito.
Depois de Franklin Delano Roosevelt exercer quatro mandatos consecutivos como presidente dos Estados Unidos, entre 1933 e 1945, em um momento singular de depressão econômica e Grande Guerra, o espírito democrático dos norte-americanos prevaleceu, impedindo que tais reeleições sucessivas voltassem a acontecer naquele país.
Mas, na Venezuela, não há mais margem para dúvidas. Infelizmente, o país deixou de zelar a democracia. As oposições não encontram condições leais de disputa eleitoral, impedindo uma virtual vitória, mesmo que esta pudesse refletir a vontade popular. Não se pode falar em democracia onde a oposição está impedida de tornar-se situação.
O socialismo do século 21 continua sendo irremediavelmente autoritário. As novas gerações dessa suposta esquerda também fracassaram. Só não querem reconhecer e muito menos largar o poder, como verdadeiras monarquias eleitas.

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