domingo, 23 de fevereiro de 2014

Livro mostra como se inventa um artista - Iara Biderman

folha de são paulo
Livro mostra como se inventa um artista
Em enciclopédia criada para tese de mestrado, Bruno Moreschi revela e realiza o truque da arte contemporânea
Feita para discutir o que legitima o trabalho criativo, obra também faz parte dos padrões correntes de produção
IARA BIDERMANDE SÃO PAULO
Acorrentado como um animal, o iraquiano Abdul-Rafi Fayad, 48, percorreu uma sala da Bienal de Veneza de 2011 tentando morder os visitantes que se aproximavam ""e chegou a ferir alguns.
O brasileiro William Amaral, 50, ator e palhaço, tem 20 anos de palco. Em seu último trabalho, "O Processo de Giordano Bruno", de 2012, fez o papel de inquisidor.
Fayad e Amaral se encontraram para uma sessão de fotos na Oficina Oswald de Andrade, em São Paulo, no ano passado. Mas quem está nas fotos acorrentado é Amaral. Fayad é uma obra de ficção.
Com outras 49 criaturas fictícias e suas criações, Fayad faz parte do livro "Art Book "" 50 Contemporary Artists", organizado pelo artista e pesquisador Bruno Moreschi, 32. O volume de luxo trilíngue (português, inglês e espanhol) apresenta biografias e declarações desses artistas e fotos de suas obras (311, entre pinturas, fotos e performances).
Estão lá, além do performer polêmico de origem islâmica, o latino-americano que brinca com símbolos da cultura popular, o japonês minimalista, o alemão conceitual e outros clichês da arte atual.
O livro é o produto da tese de mestrado de Moreschi, "A construção de uma enciclopédia de artistas", defendida em janeiro no Instituto de Artes da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
A pesquisa começou com o levamento dos padrões mais recorrentes em dez enciclopédias de arte para discutir o que legitima uma obra ou um artista hoje.
"É um sistema: discurso da crítica e do artista, lugares onde expõe, em que publicações aparece", diz Moreschi.
No livro, os textos e as obras (feitas e fotografadas pelo autor) reproduzem esse sistema de uma forma que supera a simples paródia.
"Vários artistas são muitos convincentes. Você encontra no livro um bocado de gente conhecida", diz o crítico e curador de arte Agnaldo Farias.
Para Farias, a liberdade na produção artística hoje é tão grande que torna plausíveis as invenções da obra.
"O livro é uma espécie de desmontagem dos processos criativos da arte contemporânea. Mas, ao mesmo tempo em que Moreschi cria dúvidas, ele reafirma esses processos, porque também faz parte deles", afirma o curador Paulo Miyada.
"Não foi minha intenção fazer uma obra puramente crítica. É também uma forma de problematizar minha própria produção", diz Moreschi.
Com auxílio de uma bolsa da Fapesp e de dois editais, ele imprimiu 50 exemplares do livro. A maioria será doada para bibliotecas e cinco serão usados em exposições, como a que fará em março, na Funarte de São Paulo.
"A minha primeira mostra individual será uma coletiva", diz, já que obras das criaturas da enciclopédia estarão expostas ao lado de outros trabalhos de Moreschi.

ANÁLISE
Novato corre risco de se tornar vítima da própria armadilha
SILAS MARTÍDE SÃO PAULO
Muito antes de inventar seus 50 artistas, Bruno Moreschi também se reinventou num projeto pessoal radical. Ex-jornalista que perfilou vários autores nas páginas das revistas "Bravo!" e "Piauí", Moreschi sempre investigou o que fazia deles um artista --e agora tenta pôr em prática tudo aquilo que aprendeu.
Novato nesse mundo, decidiu trilhar uma das rotas mais arriscadas. Inventando uma porção de artistas nascidos dos clichês mais arraigados na arte contemporânea, Moreschi adentra o campo da crítica institucional, movimento que surgiu nos anos 1960 e se sagrou sabotando por dentro o mundinho da arte e que, por isso, tinha chances mínimas de êxito.
Seu maior risco é resvalar no vazio, criticando um sistema fechado ao público. Ou seja, arrisca ter zero impacto sobre gente comum que não entende os códigos de um mercado exclusivo como o das artes visuais, de curadores e críticos que vivem entre uma capital da moda e outra e de artistas que disputam espaço em bienais e editais.
Moreschi, agora, é um deles. E sabe disso. Seu projeto, ao mesmo tempo hilário e eloquente, é fruto de um processo exaustivo que joga luz sobre o choque de egos balofos --os da crítica aí incluída-- que dita os passos de um sistema cada vez mais voraz.
Não é a primeira vez que um artista inventa outro artista ou recorre à provocação como trunfo maior do que as qualidades estéticas de uma obra. Moreschi dá a cara a tapa, mas corre o risco --louvável-- de ser vítima de sua própria armadilha conceitual.

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