segunda-feira, 10 de março de 2014

Sala da injustiça - Daniel Lisboa

revista são paulo da folha do mesmo lugar.

SOCIEDADE

Sala da injustiça

Homens acusados de agredir mulheres se encontram semanalmente, sob pôsteres de ícones feministas, para dialogar (e tentar reduzir a pena)
DANIEL LISBOA
Um cômodo repleto de retratos de ícones feministas não seria, a princípio, um lugar onde homens acusados de agredir suas companheiras seriam bem-vindos. Mas é exatamente numa sala assim que dezenas deles, autuados com base na Lei Maria da Penha (que protege a mulher contra violência doméstica e familiar), reúnem-se toda semana desde 2009.
O objetivo dos encontros, realizados às segundas numa em Pinheiros, zona oeste, é estimular os participantes a falar sobre o que os teria levado aos atos de violência doméstica e como evitar que aconteçam novamente. A participação não é obrigatória e está aberta a qualquer interessado (tel. 3812-8681).
Porém, ao frequentar pelo menos 16 sessões, o autuado pode, caso seja condenado, ter sua pena suavizada.
Cerca de 50 homens passam pelo Grupo de Reflexão durante o ano. Trata-se de um bate-papo em que nenhuma técnica terapêutica específica, como os métodos utilizados nas sessões para lidar com a raiva ou vícios, é empregada.
O papel dos orientadores, os psicólogos Leandro Andrade e Tales Furtado e o filósofo Sergio Barbosa, é fomentar a discussão, o que normalmente é feito de maneira sutil. "Se eu apertar muito a corda, o cara não volta mais", explica Leandro.
Do empresário ao manobrista
No grupo estão homens das mais diversas profissões, níveis culturais e classes sociais (um deles, quase um clone do empresário Abilio Diniz, senta-se ao lado do rapaz que poderia manobrar seu carrão num estacionamento próximo).
Opiniões equilibradas surgem ao lado de promessas de distância eterna das mulheres. Um dos participantes clama que "hoje em dia o homem está totalmente indefeso perante a lei", enquanto outro, ao saber da presença de um jornalista no encontro, pede uma "cruzada contra a lei Maria da Penha".
Um terceiro frequentador, homem magro que fala baixo e mal encara os outros nos olhos, conta que nunca tinha bebido na vida até sua mulher convencê-lo a entornar uma garrafa de conhaque. "A partir daí não lembro mais de nada. Já acordei preso", relata.
A sensação de injustiça é a mais frequente entre os participantes, de acordo com Leandro, envolvido com o trabalho desde 2006, quando o grupo se encontrava em outro local.
A reunião nasceu para "homens agressores de mulheres" e, depois da promulgação da lei, em 2006, passou-se a ser dirigida a "homens autuados pela Lei Maria da Penha".
Abundam na conversa relatos de frequentadores que não teriam chegado de fato a agredir suas companheiras, mas que acabaram encrencados com a Justiça.
Dono de um bar perto do largo do Arouche, Levy deve terminar suas 16 sessões em março e afirma ser um desses injustiçados. "Minha ex apareceu com um saco de tijolos, distribuiu pedradas no bar e eu quem terminei autuado", afirma. "Levei três testemunhas para depor a meu favor e elas nem sequer foram ouvidas. Agora estou aguardando pela minha sentença."
Um dos poucos voluntários a frequentar o grupo –ele não foi autuado pela Justiça, mas procurou ajuda depois de agredir a mulher–, Marcelo critica alguns de seus colegas. "Em vez de admitir o que fizeram, eles vêm para ficar papeando e discutindo tecnicalidades sobre a Lei Maria da Penha. Acho a proposta do trabalho interessante, mas eu esperava outra coisa", diz.
Essas dezenas de homens fazem parte de um universo muito maior, que não caberia na sala observada por rostos de feministas famosas como Frida Kahlo e Camille Claudel.
A ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, disse à Folha que, só em 2013, 38 mil homens foram autuados pela lei. Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada de setembro do ano passado aponta que, entre 2009 e 2011, o Brasil registrou 16,9 mil feminicídios –mortes de mulheres, especialmente cometidas por parceiros.

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